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A LINGUIÇA E A GATA

Segunda-feira, 13.01.14

O teólogo Edmundo, assim como todos os outros teólogos, tinha o seu quarto lá bem no alto, no terceiro andar da ala central, por cima das camaratas dos “Médios” e que dividia o enorme edifício do Seminário em duas partes: os professores, as salas de aula, a capela de baixo, os refeitórios e a cozinha a sul, a Prefeitura dos “Miúdos”, com as suas camaratas, salão de estudo e capela da Natividade, a norte.

Apenas quando, de madrugada ou à tardinha, se deslocavam à capela, ou nos dias destinados a passeios e numa outra vinda casual à portaria, o teólogo Edmundo e os outros teólogos desciam a enorme escadaria, interior, paralela ao frontispício do edifício, que dava para o largo de Santa Teresinha e para o Salão dos “Médios”. De resto, nas suas descidas frequentes e contínuas, quer para as aulas, quer para os campos de futebol ou até para o refeitório. o teólogo Edmundo e os outros teólogos, desciam dos seus altos aposentos por umas escaleiras exteriores e de cimento, situadas nas traseiras do prédio, rés-mines com as paredes de outros prédios contíguos ao Seminário.

Nessas descidas e subidas, repetidas várias vezes ao longo do dia, o teólogo Edmundo passava ao lado da cozinha e, antes desta, da despensa, onde se guardavam batatas, cebolas, farinhas, açúcar, carne e muitos outros géneros necessários à alimentação de alunos e professores, incluindo uns bons pedaços de linguiça, ainda a cheirar a “fogueado”, enrolados e suspensos em barrotes de madeira. A dispensa tinha uma janela que dava para a escadaria por onde transitava, várias vezes ao dia, o teólogo Edmundo. A janela, porém, embora se encontrasse com uma pequena gateira, estava de tal modo trancada, que mais nada por ali cabia ou entrava, a não ser uma mão fechada, sendo impossível, por tanto, do exterior, agarrar o que quer que fosse que estivesse lá dentro, muito menos um pedaço da linguiça, ainda por cima, bem distante da janela e suspensa nos barrotes. Apenas o cheiro desta se evaporava pela gateira, permanentemente aberta, provocando nos transeuntes um apetite devorador, uma vontade indómita de a agarrar, trincar e degustar. Mas qualquer tentativa, relativamente à sua captura, era vã e improfícua, constituindo um desperdício de forças.

Mas o teólogo Edmundo, sem meias medidas, jurou que um dia ainda havia de lhe chegar e de se deliciar com um belo naco da dita cuja. Os outros teólogos riam e julgavam-no tresloucado.

Ora na vizinhança do Seminário havia sempre gatas que pariam, com alguma frequência, ninhadas de gatinhos. Aproveitou o teólogo Emundo para escolher um produto de uma última ninhada, uma bela gatinha, branca, pequenina e fofinha, alimentando-a e tornando-a sua protegida. A bicha cresceu, tornou-se uma bela gatarrona e afeiçoou-se em demasia ao seu protector.

Certo dia o teólogo Edmundo, deixou a bichana sem comida, muniu-se de um cordão, amarrou-o ao pescoço da gata e, ao passar em frente à janela da despensa, enfiou-a pela gateira da janela que permanecia aberta dia e noite. A gata, esfomeada que estava, encaminhou-se abruptamente na direcção da linguiça, atirando-se a ela de unhas e dentes, enquanto o teólogo Edmundo, de fora, lhe ia dando folga na corda. Assim que a gata capturou o primeiro troço de linguiça, puxou-a até junto da janela, retirou-lhe o naco e repetiu o cerimonial, a fim de que a felina lhe trouxesse outro e um outro e ainda mais um outro bocado de linguiça. Todos os que o teólogo Edmundo quis.

E a linguiça foi assada com álcool retirado da enfermaria, e comida pelo teólogo Edmundo e por muitos outros teólogos, expressamente convidados para o bródio. Apenas um ou outro teólogo mais íntimo do teólogo Edmundo, cúmplices indirectos na façanha, soube a verdadeira origem da linguiça, cuidando a maioria que a mesma lhe havia sido enviada da Ribeira Grande, pelos seus progenitores.

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publicado por picodavigia2 às 01:34





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