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A SEGUNDA CASA DO CIMO DA ASSOMADA, DO LADO DO OUTEIRO

Sábado, 26.11.16

Na segunda casa da Rua da Assomada, do braço esquerdo do ípsilon que, lá bem no cimo, junto ao Vale da Vaca, a rua formava, ramificando-se em duas vielas, no caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água pertencia à Marquinhas José Fragueiro. A casa situava-se na curva ao lado do Palheiro do Tomé e como que estava enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho. A dona era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente e sozinha. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe. A casa era muito velha e rústica, feita de pedra e situada numa espécie de buraco ou fundão, de tal modo desnivelado do caminho que apenas o telhado ficava paralelo a este. A casa, frente à qual existia um pequeno mas bem cuidado jardim, comunicava e dava acesso ao caminho através de uma íngreme e tosca escada de pedra, que terminava, na parte superior, num pequeno portal, sem portão ou cancela. A casa era pequenina e o seu interior, pobre e escuro, limitava-se a uma cozinha com piso térreo e a uma outra divisão assoalhada que servia, simultaneamente, de sala e quarto de dormir. Vivia pois, a senhora Mariquinhas José em péssimas, limitadas e lastimáveis condições a que se aliava uma enorme pobreza e um exagerado desconforto. Vivia sozinha e não tinha parentes na Fajã que se conhecessem. Constava, apenas, que tinha uns primos no Mosteiro, os quais, no entanto, nunca a procuravam.

Mas… pior do que tudo isto, a Marquinhas José era muito doente. Para além de outras maleitas menores, tinha uma doença terrível na perna esquerda. Esta estava de tal modo inchada que bem se podia igualar, em espessura, à cintura da sua dona, dificultando-lhe, de sobremaneira, o andar, já de si lento e vagaroso. No entanto e apesar de todas estas limitações e contrariedades, fazia, ela própria, toda a sua vida quotidiana: cozinhava os parcos alimentos de que dispunha, acarretava baldes de água a uma fonte bem distante, arrumava e lavava a casa e a roupa e até transportava, à cabeça e sob uma rodilha, pequenos molhos de garranchos de lenha, que ia apanhar a uma belga que tinha para os lados da Cabaceira. Também era ela que trabalhava uma escassa courela que possuía atrás da casa e que lhe ia dando meia dúzia de maçarocas de milho, uns pés de couve e algumas batatas. Algumas pessoas da freguesia ajudavam-na, dando-lhe, de vez em quando, um pouco daquilo que também possuíam e cultivavam nos seus campos.

Mas apesar de pobre, desventurada, sofredora e estigmatizada pela solidão a Marquinhas José do Cimo da Assomada, parecia ser uma pessoa feliz e conformada com o seu infortúnio, pois tinha sempre um agradável sorriso no seu rosto, uma contagiante ternura no seu olhar e uma sincera afabilidade nas suas palavras.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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