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LIBERTAÇÃO

Segunda-feira, 19.05.14

Numa manhã, cálida, fulva e etérea do Outono, chegou à serra Prada um viajante solipsista, misterioso e invulgar. Invulgar porque, imaginem, era um anão. Vinha de longe, de muito longe. Percorrera mares, andurriais e páramos, suportando tempestades e procelas, saltando montanhas de espuma e de submissão, sentando-se à sombra de árvores sem folhas e sem esperança, perdendo-se ininterruptamente em ilhas desertas e em oásis mistificados. Atravessara, com extenuante lucubração, um grande e tórrido deserto, com rios de fogo e pináculos de estranha adoração, onde se perdera e onde, simultaneamente, enlapara muitos dos seus sonhos e fantasias. Mas trazia consigo a experiência da liberdade, a fragrância da dignidade, a auréola da fraternidade, a estranheza da sublimidade e do amor, sobretudo do amor. Sonhava, sempre, que as estrelas são de prata, e que para além de cada oceano, há sempre um outro mar. Ensinava que as nuvens quando se desfazem não pretendem apenas jorrar sobre os mortais a incomodidade da chuva. Aprendera nos campos e nos bosques e estudara com as flores e os pássaros. Acolhia com sorriso as manhãs sombrias, escuras, enevoadas e chuvosas. Era amigo da esperança e das florestas. Pernoitava nos bosques, ao relento, dialogando com o destino e com a solidão. Alimentava-se do perfume das flores e dos frutos. Possuía um coração com aromas de alecrim e sabor a hortelã. Mas tinha um grande defeito: dependia total e exclusivamente do sol, para quem olhava constantemente, sonhando poder, um dia, voar ao seu encontro.

Mais! Era gimnosofista, o anão! Vivia permanentemente nas florestas, abstraído das multidões, convivendo com a frescura e a mansidão dos bosques. Considerava a "noite" como a origem de todos os males e produtora de todas as limitações, e a "escuridão" a filha única da ignorância universal. A fuga a estas maléficas divindades, adquire-se através da sabedoria, filha da claridade, mas que permanece longínqua e quase inatingível, porque libertadora de sucessivas, contínuas e constantes migrações, e que consiste, apenas e simplesmente, na capacidade equívoca de fugir aos pesadelos escuros e tétricos da nossa existência atormentada. Isto apenas se consegue mediante um isolamento total e uma entrega às "hamadríades", ou seja, as ninfas dos bosques, que nascem simultaneamente com as árvores, nunca se desvinculando das mesmas, vivendo e morrendo com elas. A vida duma árvore ninfada ou duma ninfa arborizada é, no entanto, perene e infinita, porque umas e outras dependem da única fonte de vida do universo - o Sol. Por essa razão, o anão entendia, que as árvores nunca deviam ser destruídas, pois o aroma das suas folhas, o perfume das suas flores e o sumo dos seus frutos constituem o alimento primordial e único de todo a raça carracena, pelo que a vida depende, necessariamente e em último grau, da luz emanada pelo astro-rei. Este é um armazém infinito de poder e beleza, receptor tranquilizante de todas as inquietudes. Somente através dele é possível atingir a sublimação da beleza absoluta e, consequentemente, atingir a simplicidade. Assim toda e qualquer oposição à força e à beleza solar devia ser eliminada.

Chegou, pois, o anão, à serra Prada e aboletou-se num tétrico e cavernoso antro, isolado de tudo e de todos. Inicialmente, os serranos, supinamente preocupados com as perversas vicissitudes resultantes da famigerada governação dos seus chefes, não se aperceberam da sua presença. Passados alguns dias, porém, numa tarde clara, florida, perene de sol e de ternura, o anão desceu aos povoados e encontrou a serra na posse plena da sua beleza omnipotente e beatificante, isolada e só, mas acolhedora, glorificante e transcendente.

O povo, ocupado em orgias contestatárias e efervescentes, nem se apercebeu da sua presença e o anão perdeu-se, no meio da confusão que então se gerava, vagueando por entre a população envolvida em deslumbrantes manifestações contra o estado da nação. A revolta agigantava-se cada vez mais. O anão foi apanhado pela manifestante enxurrada, sem se aperceber e sem que ninguém o notasse. Foi levado pela confusão até ao palácio real, que de imediato foi invadido. A multidão, difluída junto à platibanda que o cercava, de rompante, encostou-se aos altos portões que a encimavam e que de imediato cederam e entrou, em turbilhão, pelos pátios ajardinados e pelos salões desertos e esconsos.

O monarca, mais uma vez se ausentara, para se dedicar às suas actividades preferidas e satisfazer os seus reais e eficientes instintos cinegéticos. A última sala a ser invadida foi a do trono. Uma multidão furibunda, intransigente, sedenta de esperança e liberdade, encostou-se à porta e esta cedeu facilmente. De repente, todos entraram, à esmo, pela sala dentro. A confusão era enorme e emaranhada em sucessivos e contínuos atropelos. Ninguém podia fugir, libertar-se ou, tão pouco, mover-se. O anão, hesitante, enleado e ilaqueado, ainda tentou fugir. Não conseguiu. Impossível de todo! Estava completamente preso e assolado, amarrado a uma força infinita, invisível e estranha, que o puxava e que, por fim, sem saber-se como, o sentou no próprio trono real.

De repente, fez-se um enorme e sepulcral silêncio na sala.

O anão estava ali, só, mais a multidão, que, faminta de lenimento, fixava o seu olhar  tímido, mavioso e expectante, no rosto aureolado e blandicioso de tão inesperada e inquietante personagem, que, na realidade e a partir de agora, seria a esperança libertadora da sua estigmatização.

Um grito de alívio ecoou por toda a serra Prada! As árvores ficaram mais  verdes e floridas, as flores mais perfumadas e alegres, os frutos mais aromatizados e saborosos. As aves, encheram-se de coragem, perderam os últimos resíduos de medo e de temor e voaram mais alto. Os animais retoiçavam com mais afinco e blandícia. A suavidade ornamentava o destino de toda a serra. O vento soprava paramentado de ternura e graciosidade.

Porém o monarca emérito, ausente do palácio real, continuava abstraído na prática das artes cinegéticas e pantagruélicas, não se apercebendo, de imediato, que ali terminara o seu reinado e que era substituído na governação serrana por um simples, humilde e heteróclito anão.

A noite, porém, decorreu, em toda a serra, sobressaltada, angustiante e repleta de escuridão e incerteza. Mas a manhã seguinte, surgiu, risonha, afável, simpática e perene de sol e de ternura. Os dias seguintes correram céleres, maviosos e flexíveis. Era imperioso, por parte da nova governação, alterar ou suprimir muitas das leis vigentes, estabelecendo novos rumos, mudando a ordem até então estabelecida.

Os ergástulos foram destruídos, as leis maquiavélicas suprimidas e os decretos aniquilantes anulados. Foi decretado que, a partir de agora, o Sol seria a principal razão de ser e de viver dos serranos pradenses. É que o neo-governante bochimane adorava o Sol. Não podia mesmo viver sem ele. A sua dependência do astro-rei era tal que, sempre este se escondia, quer porque chegasse a noite, quer porque surgisse um dia enevoado, cinzento ou chuvoso o anão refugiava-se no seu mítico falanstério e tremia terrivelmente de frio, sofrendo tão violentas e pitónicas convulsões, que se abstraia total e absolutamente da sua governação protectoral.

Por isso a protecção legislativa ao astro-rei era imperativo constitucional. O Sol recebia assim, por decreto, à boa maneira dos sacerdotes assírios e pré-helénicos, os epítetos de ser supremo, paraninfo real, coração do mundo, razão de ser de todo o universo, detentor dum poder, duma força e duma vontade anteriores ao mundo, regulador da marcha do universo, controlador assumido do destino, significante exímio da grandeza, da dignidade e da perenidade e gerador da contagiante simpatia.

Foram, então, publicados decretos cerceadores dos eclipses e eliminadores dos dias enevoados e cinzentos e promulgadas leis que combatiam, de forma radical e imperiosa, as próprias noites. A Lua, quer na sua extravagante ousadia de gerar eclipses, quer na sua prestigiante função de iluminar a noite, foi decretada como inimigo número um. A duração dos dias de Inverno foi aumentada.

Na própria bandeira da nação serrana foi mandada afixar a inolvidável imagem do maior e mais importante astro do universo, na sua postura mais digna, gratificante e criadora - nascendo. Por toda a parte, dentro e fora do palácio real, surgiam desenhos e imagens do Sol. Nos jardins reais, foram mandadas erigir duas estátuas: uma do deus Apolo e outra do rei Hélio e as salas foram ornamentadas com frescos e baixos-relevos representando os episódios mais significativos da vida de Faetonte, o mais importante filho do Sol que, estando um dia a jogar apaixonada e emotivamente com o seu amigo Epapo, este, ao ser derrotado, desentendeu-se com ele e lançou-lhe à cara alguns insultos, nos quais se incluía uma grave e ofensiva suspeita de que ele não era filho do Sol, o que punha linearmente em causa a seriedade da sua mãe. Faetonte foi queixar-se a esta que, de imediato, o mandou certificar-se junto do Sol. Este, encontrando o filho, a quem desde há muito procurava, despojou-se dos seus próprios raios em benefício do filho e jurou conceder-lhe tudo o que ali mesmo lhe pedisse, como real prova da sua efectiva paternidade. O jovem Faetonte pediu-lhe que o deixasse conduzir, apenas por um dia, o seu próprio carro. Não era essa a vontade paternal, mas como prometera em juramento e não podia voltar com a palavra dada, o Sol emprestou-lhe o seu carro puxado por fortíssimos cavalos e deu-lhe a respectiva certificação de condutor. Os verdores de Faetonte levaram-no, em louca correria, até ao horizonte terrestre. Foi aí que os cavalos, ao aproximarem-se da Terra, se assustaram e os raios de Faetonte começaram, de imediato a queimá-la e a incendiá-la, ao mesmo tempo que afastando-se, ela arrefecia. Gerou-se, assim, um caos universal, que culminou em tempestades ciclónicas e diluvianas, trovoadas contínuas, cataclismos destruidores, inundações arrasantes, tendo sido, o próprio Faetonte, fulminado por um raio, caindo o seu corpo no rio Eridano, perante o choro e o lamento de suas irmãs e do seu amigo Cícuo. A desordem no universo foi tal que, durante um ano, não houve Sol e a corrida dos cavalos tão violenta que do carro ficou um rastro no firmamento, que se prolongou até hoje e que ainda se pode observar - a Via Láctea.

Estas imagens, gravadas nas paredes o palácio real, contribuam, significativamente, para valorizar a força, a grandeza e a imperiosa consistência que o Sol, agora, passava a ter, na vida e nos costumes do novo governante. Este acordava todas as manhãs, na esperança de ver nascer o astro-rei. Caminhava pelos campos e pelas bosques, alta madrugada, ansioso e expectante, tímido e submisso, na certeza de que ele em breve, surgiria no firmamento, na sua grandiosidade e omnipotência, espargindo, com os seus raios luminosos, simpatia contagiante, irradiando doçura, emanando dignidade, aquecendo os bosques e as florestas, aconselhando as flores e os pássaros, passeando ao lado das montanhas, dignificando o perfume das flores e transformando em sublimidade a perene doçura dos frutos. O dia surgia, então, pacífico, alegre, e bonançoso. A água dos regatos e arroios corria, agora, mais  límpida e cristalina, a fluidez fora irradiada, a inconstância abolida e a indefinição suprimida. O sol assumia-se, na realidade, na sua total e infinita plenitude - rei e senhor do universo. Era, assim, reposta, nas cercanias serranas, a ordem mitológica, assíria e pré-helénica, desfeita pela perturbante missão da História, acolitada por imperativos religiosos ou racionais.

O povo, cedo, entendeu o que se passava. As alterações eram tais, que era impossível não entendê-las. Preferiu, no entanto, ocultar-se, calar-se, aguardar os acontecimentos, sentindo a perene e constante ternura de sentir que agora fora decretado o direito de sonhar e de imaginar a aventura e a fulgurante consonância de conquistar o próprio destino. Por outro lado, a protecção e o constante acompanhamento que lhe era dado, por parte do novo governante, permitia não apenas que aceitasse a mudança, mas também que a anelasse e que a quisesse ou até mesmo que a procurasse.

Os dias sucediam-se, pois, repletos de paz e de tranquilidade. O povo pradense orgulhava-se de ocupar o 1º lugar no top da euritmia e da ataraxia contemplativa. As manhãs consolidavam-se perenes de irradiações solares e erguiam-se acolhedoras e tranquilizantes, geradoras de orgasmos emocionais, transmitindo à serra um potencial de vida, de doçura e simpatia contagiante, nunca antes conseguida. Quando o dia, impelido pela beleza solar, se extravasava na sua delirante bonança, os arbustos cresciam, as árvores davam mais flores e mais frutos, as aves construíam ninhos de raios de luz e de esperança, o povo refugiava-se nas sombras do destino, o anão pura e simplesmente contemplava o sol ou as imagens que dele rodeavam os mistérios do reino.

A vida, na serra, era agora a certeza institucionalizada. Era possível sonhar-se com a perene transcendência de se poder sonhar mesmo não sonhando. O teorema hélénico dos filósofos socráticos fora traduzido para a neo-cultura serrana: "a verdade é que estamos sempre a sonhar, pois quando estamos a sonhar, estamos de facto a sonhar e quando estamos a não-sonhar, também estamos a sonhar que não estamos a sonhar". Por isso, toda a serra sonhava.

Porém, inesperadamente, um dia, sem que ninguém se apercebesse ou desejasse, chegou, o primeiro e grande Inverno. De imediato os dias escureceram totalmente, as flores fecharam-se, as folhas caíram, as árvores murcharam, os animais, em aulidos de dor, refugiaram-se nos seus esconderijos. As encostas serranas cobriram-se com um manto acinzentado de neve. O anão tremeu de frio, como nunca tinha tremido até então e escondeu-se, fechou-se, enclausurou-se e chorou amargamente. É que não havia nem leis, nem decretos que imperassem sobre as leis da natureza e transformassem aqueles frios e terríveis dias de inverno, fazendo regressar à serra a ternura, o calor e a fragrância solares.

A vida na serra paralisou totalmente. O frio e a neve destruíram tudo e todos. Apenas a perene certeza do retorno sazonal e ansiado da longínqua primavera, justificava a angustiante mas ousada volúpia de viver.

O anão tremeu de frio dias a fio, semanas inteiras, meses consecutivos. Do sol, apenas a ténue esperança de regressar o mais cedo possível, pondo termo a tão angustiante e tétrica lucubração.

 

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publicado por picodavigia2 às 14:05





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