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O QUARTO DO LADO

Quinta-feira, 18.02.16

As horas pareciam meses, os minutos dias e os segundos, horas. O aeroporto era mar tumultuoso e desatinado. Os placards pareciam emperrados. Ao desassossego misturava-se o sobressalto. Um emaranhado de vozes confundia-se com o soluçar da espectativa e o amordaçar do silêncio. Finalmente o ecrã gigante anunciou em letras garrafais: aircraft landed.

Respirou de alívio. A inquietação desfazia-se como um boneco de neve acossado pelo calor. Nascia a angústia. Ela demorava tanto em aparecer na porta de saída. Calculou, genericamente, os seus passos. Levantar-se, esperar vez, sair do avião, atravessar a manga, percorrer corredores e descer escadas. Finalmente, esperar pela bagagem. Vinte minutos. Não. Meia hora. Por vezes rondava os três quartos.

Os que, agora, saiam pela porta de acesso à sala de espera, muito provavelmente pertenceriam ao mesmo voo. Ela nada. O vento soprava, no exterior e sentia-se que caía uma chuva de bátegas fortes e incomodativas. Do parque do aeroporto, ao parque do centro comercial e deste à garagem do prédio onde morava era abrigo seguro. Que a chuva se danasse. Não os havia de incomodar, muito menos molhar. Muitos vultos de mulher que saíam sozinhas agarradas aos tróleis ou às malas confundiam-no… Que parvo. Era a ânsia transformar-se em miragens loucas, inaceitáveis, ingratas. Finalmente fez-se luz. Um clarão. Sentiu um baque no peito. Era ela e trazia um sorriso, é verdade que um pouco enigmático, mas do tamanho do mundo.

Júlio conhecera Márcia num verão em que fora passar férias a casa de uns tios nos Açores. Conversaram pouco, mas o suficiente para Márcia lhe demonstrar o tédio e o desencanto que a domavam, após ter terminado a licenciatura em Lisboa. Sonhara sempre com o Norte e com o Porto. Nas ilhas nada a motivava, até porque poucas ofertas de trabalho eram disponibilizadas a recém-formados. Pelo menos na área da sua especialidade. Júlio prometeu que, ao regressar ao continente, havia de procurar e investigar propostas adequadas ao curso que possuía e ao que pretendia. No início de janeiro telefonou-lhe. Havia uma vaga para Assistente Social numa Câmara dos arredores do Porto, a menos de meia hora de distância do local onde morava. A entrevista estava marcada para a primeira segunda-feira de fevereiro.

Agora, aguardava, expectante e ansioso, a sua chegada. Sabia muito bem como era um dia de viagem do Pico ao Porto. E não era uma sande no aeroporto de Ponta Delgada, mais a celebérrima refeição ligeira servida a bordo que a saciara. A chuva persistia dolosa e incomodativa mas o Centro Comercial ficava-lhes a caminho. Uma boa dose de picanha ou uma francesinha havia de ressarci-la da abstinência de um longo e cansativo dia de viagem. Depois… Bem depois havia que optar. Ou o hotel ou o apartamento dele. Ficasse bem claro que tinha um quarto disponível, ao lado do dele. Simuladamente hesitou, mas anuiu.

Júlio morava num condomínio fechado em Valongo. O apartamento era amplo e espaçoso, com uma sala bastante ampla a que se anexava uma cozinha pequena, mas muito moderna e funcional. Nas traseiras os quartos. O dele com casa de banho e roupeiro anexos e um outro, o quarto do lado, que na véspera preparara minuciosamente na espectativa de que ela viesse a optar por ali ficar.

O serão foi longo e envolvente. Lá fora a chuva caía em bátegas cada vez mais fortes. Pela segunda vez telefonava à mãe, assegurando-a de que tudo estava bem. Lá longe, no silêncio da ilha, entre o reboliço das marés e os sulcos da lava, estava muito preocupada. A incerteza do futuro que aguardava a sua menina transtornava-a agonizantemente. Não havia de pregar olho até segunda, até saber o resultado da entrevista.

Júlio fixando-lhe os olhos muito vivos e de um azul esverdeado acalmava:

- Tenho sérias esperanças de que o lugar será teu. O teu currículo pareceu-me ter agradado. Uma licenciatura com excelente nota!

Ela insegura sorria com um leve e suave esburacado em cada uma das faces. Ele insistia, esclarecendo:

- E o trabalho que te espera será muito interessante e deveras motivador. A autarquia pretende intervir ativamente na área social através da implementação de medidas sociais de âmbito local. O Serviço Social revela-se cada vez mais como um importante recurso das autarquias na criação das políticas sociais locais.

- Mas para isso pressupõe-se que a Assistente Social, conheça bem o território a fim de intervir mais próximo dos cidadãos e poder propor e implementar programas de desenvolvimento local, adequados aos interesses da população. Nesta área os concorrentes de cá estarão em vantagem sobre uma ilhoa.

Que se tranquilizasse. O conhecimento adquire-se e decerto que se lhe proporcionariam contactos e oportunidades.

A noite ia longa e ela precisava de descansar. O seu quarto era ali, ao lado do dele. Dispusesse de tudo como se estivesse em sua casa. Teimaram em adormecer. Ela domada pela insegurança, ele atormentado pela presença dela, ali, tão perto, apenas separados por uma maldita parede.

Sonhou-a a despir-se, enrolada nos lençóis, imbuída de incertezas, vagueando em possibilidades. Descobrira-lhe no olhar uma réstia de esperança. Talvez o amasse, talvez o desejasse, talvez naquele momento estivesse a pensar nele. Ouviu passos. A porta do quarto abriu-se. Precisaria de alguma coisa? Assomou à porta do quarto. Não a viu. A casa de banho era logo em frente à porta do quarto mas ela já entrara. Ficou de alerta. Logo que ouviu o puxar do autoclismo, levantou-se, rapidamente e assomou à porta. Disfarçadamente, perguntou-lhe se precisava de alguma coisa. Mas quando o fez ela, aparentemente, já regressara ao quarto e fechara porta. Talvez o tivesse ouvido e fizesse de conta…

- Cheta! – Vociferou.

Júlio trabalhava por turnos. No sábado trabalhou de tarde. Mas no domingo saíram. Impunha-se conhecer o Norte. Na segunda tinha folga e acompanhou-a à entrevista. Na terça de manhã ela recebeu um telefonema da Câmara. Estava decidido. O lugar de Assistente Social era dela! Que se apresentasse no dia seguinte.

Abraçaram-se estonteantemente. Na quarta de manhã, antes de entrar para o turno, foi levá-la a Gondomar. Desejou-lhe sorte e abraçaram-se novamente.

Márcia era idolatrada por Júlio. Não pela beleza, embora ela fosse verdadeiramente linda, mas pela sua singeleza, pela sua simplicidade, pela sua naturalidade, por ser detentora de um espírito e verdade e de uma pureza original. Tudo nela era sublimidade, envolvência, dignidade. Amava-a e ela, decerto, que já o intuíra, que já sabia e até, muito naturalmente, se orgulharia de saber que era a eleita. Pressentira-o com uns olhos cheios de verdade e de dignidade. Apesar de tudo havia pautado sempre o seu relacionamento por uma dignidade contagiante, escondendo-se numa aparência comprometedora.

Ansioso, aguardou até à tarde. Muito antes de ela sair já estava em frente ao edifício da Câmara. O primeiro dia de trabalho correra maravilhosamente. Sem delongas abraçou-o demoradamente e regressaram a casa, enlaçados e felizes

Na madrugada do dia seguinte, o quarto do lado, tinha a persiana levantada e a roupa da cama permanecia ajeitada como tinha ficado na véspera.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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