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LABUTA DIÁRIA

Segunda-feira, 28.12.15

Na Fajã Grande, comunidade cuja economia dependia fundamentalmente da agricultura e da criação de gado, até à década de cinquenta, o calendário como que era profundamente condicionado e estabelecido pelas exigências de uma e outra destas atividades. Assim o ano como que começava não em um de janeiro, mas em outubro, a partir da altura em que se iniciava o novo ciclo agrícola e em que as terras não tinham nada. Era por isso que quem fizesse uma terra de meias, ou a tivesse de renda, se pretendesse terminar o contrato, entrega-la ao dono ou iniciar um novo período de arrendamento ou contrato de meias, devia fazê-lo nos fins de outubro.

Assim, podia dizer-se que o ano agrícola começava quando se iniciava um novo período de produção, ou seja nos princípios de novembro, altura em que a agricultura como que estava na sua fase de hibernação. Por estas alturas, pouco mais se fazia do que tratar do gado, preparar a matança do porco e do Natal. Mas iniciavam-se também as novas atividades agrícolas todas elas tendo em conta não apenas os ciclos lunares e as marés, mas também uma série de crenças, de mitos, de tradições e de costume ancestrais e ainda o clima, o tempo, o vento, o sol, a localização das terras, a sua proximidade do mar, a natureza do terreno, etc. etc. Tudo isto, obviamente, condicionava e influenciava o ano agrícola.

Em dezembro e janeiro o mau tempo que se fazia sentir na freguesia cerceava fortemente as atividades agrícolas. Mas em janeiro já se preparavam algumas terras, sobretudo as que ficavam mais próximas do mar, limpando, estrumando, transformando-a de modo a o terreno ficar limpo, fofo e sem torrões. Dava-se continuidade ao semear das favas, iniciado em dezembro, pela Senhora da Conceição, plantavam-se couves e cebolinho. Em fevereiro, com o tempo a melhorar já se cavavam ou lavravam as terras que não tinham forrageiras ou que estavam livres e que recebiam o estrume retirado dos palheiros ou o sargaço armazenado nos lagos, no Rolo da Ribeira das Casas. Nalgumas terras semeavam-se os feijões, as caseiras e os tomateiros, plantava-se couves. Fazia-se o canteiro para a batata-doce e, no fim do mês, já se plantava alguma rama se a houvesse.

Em março continuavam-se os trabalhos iniciados em fevereiro, nomeadamente os respeitantes ao acarretar para os campos o estrume e o sargaço, lavrava-se e cavava-se, preparando-se os terrenos para as sementeiras e plantações para o presente mês e para o seguinte. Já se semeava algum milho nas terras próximas do mar, como Areal, Furnas, Porto, Cambada, Estaleiro, Rego do Burro e outras. Procedia-se, se o tempo o permitisse, às primeiras sachas de algumas culturas já desenvolvimento. A plantação da bata-doce tinha o seu apogeu nesse mês. Em abril já se sachava e mondava o milho, enquanto se semeava nas terras mais distantes do mar e que haviam sido trilhadas pelo gado amarrado à estaca, e que antes deveriam ser abertas com o arado de ferro. Estas terras, geralmente não necessitavam de estrume. Semeavam-se batatas. Em maio dava-se continuidade a tudo isto e já havia muito milho para sachar e abarbar. O mesmo acontecia em junho, altura em que o milho já deveria estar todo sachado, mondado, desbastado e abarbado. Apanhavam as primeiras batatas que também haviam sido sachadas, mondadas e calçadas. Era preciso também sachar os inhames, apanhar alguns e plantar outros novos.

Em julho e agosto, enquanto o milho crescia limpavam-se as terras de mato, ceifando a cana roca e os fetos, assim como as relvas que tinham feitos. Estes eram postos a secar e depois amarrados às mancheias ou pavias, sendo guardados nas casas velhas para servirem de cama para o gado, no inverno. Muito milho ainda era sachado no início de julho. Setembro era altura de quebrar a espiga ao milho, de o desfolhar sendo as folhas também amarradas em mancheias com folhas de espadana e presas nos milheiros para que secassem. Serviriam de comida para o gado no inverno. Iniciava-se a apanha do milho nas terras perto do mar. Em outubro era a apanha do milho, encambulhá-lo e guardá-lo nos estaleiros, arrancar os milheiros e limpar as terras que deviam ser entregues no fim do mês. Era o fim de um ciclo, o ciclo do milho que na verdade dominava todo ou quase todo o ano agrícola. Na verdade era o milho que estava na base da economia da Fajã Grande, nos anos 50, baseada numa agricultura de subsistência, na qual o cultivo daquele cereal se revelava muito importante, dado que dele dependia a sobrevivência da população.

Toda esta labuta diária, a que se juntavam muitas outras atividades como o cortar lenha, ceifar erva, apanhar incensos, tratar do gado, tirar o leite, limpar palheiros e currais, ir, muitas vezes ao leite ao mato, constituía um desmesurado trabalho, um cansativo esforço que no entanto era extremamente compensado, com tudo aquilo que as terras davam, nomeadamente o milho, que constituía grande parte do sustento anual de cada família. O milho era pois rei e senhor, servindo inclusivamente como moeda e forma de pagamento. Um dia de trabalho era pago com um alqueire de milho.

Tudo no milho era aproveitado. Em primeiro lugar o produto final, ou seja, o que de mais importante se extraía do milho – a farinha, com a qual se fazia o pão e o bolo, elementos básicos no cardápio alimentar de então. Mas não se ficavam por aqui os lucros e benefícios de tal produção. As maçarocas, quando o milho estava verde e ainda vertiam leite eram cozidas juntamente com as batatas brancas ou assadas no espeto e constituíam um bom e saboroso alimento. Outras vezes os grãos eram torrados, servindo não só para se comer mas para se juntar e moer com o café. As folhas tinham um peso substancial na alimentação do gado no inverno e as espigas, ainda verdes, também alimentavam os bovinos no verão; a parte interior da casca das maçarocas, depois de desfiada e alisada, era utilizada para encher os colchões e travesseiros e com a restante também se alimentavam os bovinos; uma parte dos milheiros utilizava-se para fazer o lume em que se cozinhava a comida do porco, enquanto outros eram picados em pequenos pedaços e utilizados para secar o curral do suíno das húmidas imundícies em que era profícuo, graças ao seu desassossegado e hediondo reboliço; os sabugos eram utilizados para acender o lume, para as crianças brincarem e até para limpeza e higiene do rabiosque; uma boa parte das maçarocas, sobretudo aquelas cujos grãos eram mais raquíticos bem como as excedentes da produção da farinha, eram utilizados para alimento das galinhas, do porco e das vacas à engorda e até com os fios da cabeleira que saíam da ponta da maçaroca, depois de secos, se fazia chá, muito recomendado nos achaques dos rins e nas infeções urinárias. Além disso e depois de peneirada, a farinha deixava no fundo da peneira um farelo que era utilizado em parte para engrossar as águas das lavagens do porco e também para alimento das galinhas, fazendo-se com ele uma espécie de bola a que se juntavam couves e cascas de batatas, geralmente cozidas e picadas. Finalmente, com a farinha do milho ainda não seco faziam-se as tradicionais papas grossas.

Daí que toda esta riqueza resultante do cultivo do milho justificasse, durante o ano, um trabalho excessivo e cuidadoso e envolvesse toda a população no seu cultivo, a que dedicava grandes cuidados e gigantescos esforços. O milho era, na realidade, a causa e a razão de tudo, até determinando e delineando o calendário da Fajã Grande, obrigando os seus habitantes a uma árdua e persistente labuta diária.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A RECICLAGEM DOS SABUGOS

Sábado, 05.12.15

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, eram poucas as casas que gozavam do privilégio de dispor de quarto de banho. Talvez duas, talvez três. Decerto que mão chegaria a meia dúzia. Daí as parcas e limitadíssimas condições de higiene da população da altura e as consequências gravosas que eventualmente tinham na mesma, sobretudo no que à saúde dizia respeito, mais concretamente, à das crianças e dos mais fragilizados.

Nesses tempos a quase totalidade das casas da Fajã Grande, em vez dos quartos de banho, tinha retretes, situadas no rés-do-chão, numa loja, ao lado d local que servia de palheiro aos bovinos. Outras casas, as mais abastadas, em vez das retretes nas lojas tinham as casinhas, ou seja, pequenos cubículos, geralmente anexados à cozinha da própria habitação, quase exclusivamente destinadas à defecação. Tanto as retretes como as casinhas eram constituídas por uma ou duas canecas de madeira, no caso das retretes, geralmente isoladas num canto da loja e separadas por um biombo, por um pano ou por uma espécie taipau de tábuas velhas, remendadas, retiradas dos caixotes de sabão. As canecas tinham, por vezes, uma tampa de madeira, mas na maioria dos casos estavam destapadas à espera das moscas varejeiras. Quando rigorosamente cheias tinham que ser transportadas às costas ou à cabeça e eram levadas geralmente para um terreno, não muito longe de casa, de preferência onde houvesse couves ou caseiras. A limpeza do rabiosque era feita, a maioria das vezes, com sabugos, outras com casca de milho ou feitos secos e, algumas vezes, com um pano velho. No caso do pano, talvez o uso menos comum pois qualquer panacho era sempre útil e aproveitado mesmo que fosse para ser cortado em tiras e com elas fazer uma colcha, este ia sendo usado por uns, por outros e por todos até que, por fim, ficava tão borrifado, tão atafulhado e tão cheio de sujidade, que se assemelhava a uma espécie de mapa da Polinésia. Nessa altura já não havia ponta por onde se lhe pegar, nem muito menos sítio para limpar o dito cujo. Mas na verdade, para a limpeza do rabo, posterior à evacuação, era aos sabugos que se recorria com mais frequência, pois estavam sempre à mão. Como o milho era pendurado no estaleiro com a casca, de lá eram retirados cambulhões, com alguma frequência, ao longo do ano, a fim de descascar e debulhar as maçarocas para se encher a moenda e a levar ao moinho. Mas os sabugos esgotavam-se depressa até porque também eram muito usados na cozinha, para acender o lume. Era preciso poupá-los e aproveitá-los muito bem. Um sabugo não podia servir para limpar o rabo apenas para uma pessoa e para uma vez. Era, por isso, necessário trata-los de modo a que pudessem, no mínimo, servir para mais duas ou três vezes. Para isso procedia-se à sua reciclagem, pese embora o termo ainda não fosse conhecido, na altura. A reciclagem dos sabugos, destinada a limpar o rabo após nova defecação, era feita do seguinte modo: como as paredes das retretes e das casinhas, geralmente, eram esburacadas, porque feitas de pedras soltas, os sabugos, uma vez usados, eram enfiados nos buracos das paredes, a fim de que secassem com a circulação do ar. Passados dois três dias estavam secos e aptos a serem usados de novo. Este processo, para além de útil, servia para uma decoração primorosa das paredes e, no inverno, ajudava a tapar o frio que vinha de fora, através dos buracos.

Santos e puros tempos!

Acrescente-se, no entanto, que, sobretudo em casos de aperto, as relvas, as canadas e as terras de mato ou as de milho quando este já estava crescido, possuíam recantos bastante encobertos e muito adequados ao largar da “poia”, constituindo, assim, uma sustentável alternativa às retretes e casinhas e, consequentemente, à poupança dos sabugos.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

AS ROUPAS

Sexta-feira, 27.11.15

Muita da roupa que se vestia na Fajã Grande, na década de cinquenta, vinha da América. Carvalho após Carvalho, chegavam às mãos de quem tinha familiares e parentes nos States os famosos avisos amarelos, trazidos pela Maleira. Quem os recebia abalava, todo contente, na madrugada seguinte para as Lajes, a pé, atravessando os matos da ilha de lés-a-lés. Por vezes eram ranchos que, a meia tarde, chegavam de regresso à Fajã, carregados com as tão desejadas encomendas. A abertura das ditas cujas era uma festa a que se seguia a distribuição dos trapinhos a quem serviam ou a quem ficavam melhor.

Era esta a razão por que na Fajã Grande praticamente não havia um traje tradicional. Vestia-se, regra geral, o que vinha da América. Mas não chegava e por isso muitas vezes era necessário costurar a própria roupa, encomendá-la a uma costureira ou ir comprá-la à vila.

As mulheres, naqueles tempos, nunca usavam calças. Usá-las seria sujeitar-se ao difamatório. De semana cada qual vestia segundo as suas possibilidades e o que tinham de mais velho ou usado. O melhor guardava-se para o domingo. De semana a roupa de trazer, era constituída, geralmente, por saias, blusas, soeras e um lenço de panino ou chita, que cobria a cabeça, atando-o por debaixo do maxilar inferior. As mais novas andavam em cabelo, prendendo-o com ganchos e fitas. O xaile era usado pelas mulheres mais velhas, sobretudo pelas viúvas. Curiosamente a forma de trajá-lo dependia do estado da portadora. As viúvas e as mulheres que estavam de luto traziam-no dobrado em triângulo e sem cadilhos, para maior simplicidade, fazendo-o cair em ponta, ao longo das costas. Por sua vez as solteiras ou casadas, dobravam-no, de forma a assemelhar-se a uma manta. As raparigas, aos domingos, vestiam um casaco, um buler ou uma soera, geralmente de abotoar e, ao entrar na igreja, eram obrigadas a cobrir a cabeça com um mantinho ou com um lenço. Aos domingos calçavam sapatos altos e meias de vidro. As mais abastadas traziam a chamada saia-de-balão e a sai plissada. Algumas senhoras mais ricas vestiam casaco e usavam sombrinha, mas a maioria usavam o xaile e cobriam a cabeça com o lenço de merino

As cores preferidas na indumentária feminina variavam com o estado de solteira, casada ou viúva. Estas vestiam de preto até morrer ou até contraírem novas núpcias, as solteiras de cores vivas e claras, as casadas de cores mais modernas, modestas e escuras. Quando morria um familiar, por vezes, as raparigas não tendo roupas pretas tingiam de negro alguma da que possuíam a fim de a usar durante o tempo estipulado, de acordo com o grau de parentesco. Esta operação fazia-se metendo a roupa que se pretendia tingir num caldeirão com água a ferver onde se havia misturado uma tinta própria para o efeito. As próprias crianças também se vestiam de negro. Como objectos de adorno, traziam, ao pescoço fio de carolinas, colares e fios om uma pequena cruz. Presos na roupa usavam broches, prisões e ganchos no cabelo e pulseiras. Raras as raparigas e mulheres que possuíam e usavam relógio. Além disso não era de bom tom usar relógio e andar descalço. O anel de prata, ouro ou coral constituiu o mais apreciado objecto de luxo da mulher, que o trazia não só como adorno mas ainda como distintivo do seu estado. As solteiras traziam-no nos dedos indicadores e médio, as casadas, no anelar da mão esquerda.

Quanto às crianças, as meninas vestiam de modo semelhante às raparigas, enquanto os meninos usavam calça curta. Uns e outros, geralmente, andavam descalço, com excepão dos doentes e os filhos de gente rica.

Os homens também tinham o fato de ver a Deus, isto é, a roupa melhor e roupa de trazer. O primeiro consistia numas calças e casaco ou camurça. Muitos usavam chapéu de lona ao domingo. A maioria usava o boné. Um ou outro, boina. Assim como a das mulheres quase toda esta roupa dos homens vinha da América, nomeadamente as calças de angrin, as frocas e os alvarozes, calças largas, também eles de angrin, com suspensórios e peito, vestidos por cima duma camisola de lã. De toda a cobertura da cabeça, porém, a mais usada, por homens e mulheres, durante os trabalhos agrícolas era o chapéu, feito com palha de trigo entrançada, fabricado na freguesia. Eram geralmente as mulheres que os faziam, ornando-os com uma fita no sítio em que a parte de enfiar na cabeça se ligava à aba. Os chapéus das mulheres tinham grandes abas e por vezes eram colocados na cabeça, por cima do lenço.

O povo da Fajã Grande, na década de cinquenta, andava, em regra descalço. Segundo o seu modo de pensar, a cobertura dos pés era considerada um luxo escusado e dispendioso que a poucos se podiam dar. Muitas vezes até era pouco prático, sobretudo na travessia de grotas e ribeiras, e no trânsito por caminhos, canadas e atalhos cheios de pedregulhos e calhaus. Somente os velhos e doentes andavam calçados. A maioria dos sapatos vinha da América. Os sapatos vendidos nas lojas da Fajã eram os de pele-de-cabra e as botas de injaroba, usadas sobretudo para ceifar erva nas lagoas e tirar o esterco dos palheiros. Muitos homens usavam os tamancos e as mulheres galochas. Tanto aqueles como estas eram fabricados na freguesia e tinham sola de madeira com cobertura de couro, pregado à madeira com tachas. Os homens novos e saudáveis, mesmo ao domingo, andavam descalços e dizia-se que alguns houve que, durante a vida, apenas se haviam calçado por três vezes: no dia da primeira comunhão, no dia do embarque para o castelo e no dia do casamento. Contava-se até que certo homem de tanto andar a pé e ter os pés grandes, ao ir para a tropa, não havia botas que lhe servissem, elo que teve que andar sempre descalço.

 

 

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PEDIR CARNE À PONTA

Segunda-feira, 15.06.15

Muitos americanos que em tempos idos haviam abandonado a ilha, na década de cinquenta regressavam, geralmente no verão, para darem um jantar, ou seja para cumprir ou pagar uma promessa que haviam feito ao divino Espírito Santo. As promessas ao Senhor Espírito Santo eram feitas, geralmente, em momentos de grande aflição, doença ou de catástrofe ou ainda e com maior frequência se tivessem conseguido realizar, com êxito, a sua ida para a América, se a vida por essas paragens lhes tivesse corrido bem, se tivessem tido sucesso profissional e económico, o que geralmente acontecia. Estes jantares incluíam a distribuição de carne e de pão de graça, a todas as famílias da localidade ou da zona delimitada a quando da promessa. Acontecia porém que a maioria dos americanos prometiam dar o jantar apenas às pessoas e famílias da sua localidade, ou seja na Fajã, na Fajãzinha ou na Ponta. Raros eram os que abrangiam toda a população que ocupava o espaço desde o Portal ao Risco, incluindo, para além daquelas três localidades, a Cuada.

No entanto, estes jantares eram mais frequentes na Ponta, talvez porque o número de emigrantes daquela localidade fosse, proporcionalmente, maior do que o de emigrantes da Fajã. Também se sabia que sendo a carne e o pão distribuído em louvor do Senhor Espírito Santo, a pessoa que cumpria a promessa nunca recusava uma posta de carne aos mais pobres mesmo que pertencessem a outra localidade.

Assim e nos meus tempos de menino, sempre que havia um jantar na Ponta, eu e muitas outras crianças e até alguns adultos que não tinham crianças na família, moradores na Fajã, de cestinha em riste, partíamos para a Ponta, na mira de pedir uma posta de carne e um pão. Os que moravam na Assomada e na Fontinha, para encurtar caminho, seguiam pela canada do Mimoio, até à ponte da Ribeira das Casas, onde tomavam o caminho da Ponta, subindo a ladeira das Covas e o antigo caminho, paralelo à Rocha do Vime, até à Ribeira do Cão. Todos juntos, entrávamos na Ponta, atravessando o casario da rua principal, até à parte norte, ao Outeiro, onde, ao lado da igreja da Senhora do Carmo, se situava a Casa do Espírito Santo. Muito envergonhados, por vezes ridicularizados na nossa condição de pobres e pedintes, pela ganapada da Ponta, com quem mantínhamos uma acentuada hostilidade histórica, entrávamos na casa e sentávamo-nos à espera da nossa vez. A Casa enorme e esconsa exalava um cheiro a sebo e a carne fresca, espalhada sobre folhas de cana roca. Era sábado e o gado havia sido morto no dia anterior. Durante a noite, um grupo de homens havia picado a carne que o Senhor Padre Pimentel já havia benzido. Alguns homens ainda serravam, picavam e partiam. Outros colocavam as postas nas cestas das crianças da Ponta que, acompanhando a coroa, a bandeira e os foliões, a iam distribuir por todas as casas. Só no fim, a que sobrava era distribuída aos pobres da Fajã. La chegava a minha vez. Trémulo aproximava-me e colocavam-me uma posta de carne e um pão na minha cesta. Agradecia e, juntando-me aos outros, regressava a casa feliz. No dia seguinte havíamos de ter lá em casa um almoço bem diferente do dos dias habituais.

Tão contente eu ficava quando sabia que havia um jantar na Ponta. Embora muito raramente também íamos pedir carne a um ou outro jantar na Fajãzinha.

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RELIGIOSIDADE

Segunda-feira, 08.06.15

A principal e mais importante manifestação religiosa do povo da Fajã Grande, como aliás de quase toda a população dos Açores, centrava-se na devoção ao Espírito Santo e nos festejos que a mesma protagonizava. Na verdade o sentimento religioso do povo da Fajã Grande, na década de cinquenta e nas anteriores, tinha uma expressão muito ampla, peculiar e emotiva nas festas do Espírito Santo, realizadas nos seis impérios existentes na freguesia: Casa de Cima, Casa de Baixo, Ponta, Cuada, São Pedro da Casa de Cima e São Pedro da Ponta. Embora grande parte das atividades celebradas em honra do Paráclito se realizassem nas casas que cada império possuía, uma boa parte das mesmas centravam-se na igreja paroquial e tinham o seu epicentro na celebração da missa, geralmente festiva e cantada. Sabe-se que esta devoção, no caso das Flores e do Corvo, onde não há memória de abalos sísmicos como nas restantes ilhas açorianas, se deveu à luta que o povo tinha que travar para fugir às frequentes investidas e ataques dos piratas que, frequentemente, demandavam as costas da ilha para atacar, incendiar, roubar e destruir. Além disso, tal como nas outras ilhas as epidemias e as pestes grassavam em abundância. Também elas, inesperadas e destruidoras, terão feito avivar, em muito a devoção com o Espírito Santo.

A segunda mais clara manifestação da religiosidade do povo fajãgrandense na segunda metade do século XX, parece estrar ligada à devoção das almas, ou seja, ao culto dos mortos. Na verdade, a devoção e o culto das almas ocupavam, literalmente, um lugar de relevo no top da religiosidade e das celebrações litúrgicas, na Fajã Grande. Havia entre toda a população uma muito acentuada espécie de “cultura do além”, repleta, por um lado, de mitos, lendas, tradições, extravagâncias, ingenuidades e medos, mas, por outro, eivada de convicções embora limitadas, certezas geralmente inconsequentes, esperanças inexplicavelmente obscuras e de quotidianas e convictas realizações. Era sobretudo no mês de Novembro, cognominado de mês das almas que esta religiosidade se tornava mais patente. Neste mês, todos os dias, com exceção dos dias um e dois e dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a novena das almas. Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa finda a qual era rezados responsos por alma dos familiares de todas as famílias da freguesia, incluindo a Cuada e a Ponta. O pároco, devidamente paramentado, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia o número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados. No dia dois fazia-se romagem ao cemitério, enquanto os sinos dobravam a finados. Era o chamado enterro do Velho Laranjinho. No dia um do mesmo mês, de tarde, tirava-se uma derrama para as almas. Homens percorriam todas as ruas da freguesia juntando o milho que cada família oferecia e que ia sendo armazenado em casa do mordomo. Este era vendido e o dinheiro da venda, assim como o das línguas dos porcos, arrematadas por altura das matanças, era destinado a celebrar missas pelas almas. Além disso cada família, consoante as suas posses mandava celebrar, frequentemente, missas, por alma dos seus familiares falecidos. Muitas pessoas, em momentos de aflição ou ao serem fustigados por alguma desgraça, recorriam às Benditas Almas, prometendo fazer uma derrama pela freguesia.

Outra estranha forma de religiosidade verificava-se durante a Quaresma. Era o Cantar no Outeiro. Sobranceiro à Fajã Grande, quase paralelo ao Pico da Vigia, fica o Outeiro, em cuja parte mais alta, no meio de imensa e diversa vegetação, está colocada uma enorme cruz, branca, ingente, altiva e teúrgica, como que a abençoar a freguesia. Antigamente era junto a esta cruz que, nas noites das terças e sextas-feiras da Quaresma, um grupo de homens, quer chovesse, quer ventasse, depois de subir por um trilho estreito e íngreme, ajoelhava e entoava cânticos religiosos e impropérios diversos e prolongados. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os telhados das casas da freguesia. Então todos os lares as pessoas paravam o trabalho ou suspendiam a ceia e ajoelhavam e rezavam Padres-Nossos e Ave Marias, de acordo com a orientação dos cantores e, unindo-se às preces deles, suplicavam auxílio para os necessitados, prosperidade para os pobres, perdão para os delituosos e beneficência para os infelizes e sofredores.

Outra interessante forma de religiosidade fajãgrandense eram as Procissões das Rogações, realizadas nas Têmporas de Setembro ou quando havia secas prolongadas. Eram procissões de penitência e oração, sem Santos e sem andores, onde apenas seguia a cruz paroquial, revestida de manga roxa. Depois os homens, a maior parte de opas, as mulheres de cabeça coberta e no fim o pároco que aspergia e benzia os campos por onde a procissão passava, ao mesmo tempo que entoava, em latim e enquanto os sinos dobravam, a ladainha de todos os santos. Nos períodos de seca era, geralmente, o povo que as pedia e o pároco levava uma pequenina e velha imagem de Sant’Ana, a quem se dirigiam vários cânticos e preces, seguidas das ladainhas. As procissões das Rogações normalmente percorriam as Courelas, Rua Nova, a Via d´Agua e a Tronqueira, ou seja as zonas onde as terras eram mais próximas do mar, atingidas pela salmoira, mais secas e onde a recolha dos produtos agrícolas se verificava mais cedo.

Outras manifestações interessantes eram as festas religiosas, da Senhora da Saúde, São José, Senhora do Rosário, Santo Amaro, Senhor dos Passos, Páscoa e Natal e ainda as da Comunhão Solene e primeira Comunhão. Na igreja também se realizava a Via Sacra, na Quaresma e as devoções à Senhora de Fátima e ao Coração de Jesus, nos meses de Maio e Junho e as novenas do Natal, estas realizadas de madrugada.

Em quase todas as casas rezava-se o terço à noite e as pessoas saudavam-se com expressões religiosas: “Fique com Deus”, “Deus te ajude”, “Deus vos nos dê muita saúde”, “Vamos passando melhor do que merecemos a Deus”, etc., etc. Ao passarem por uma cruz ou pela igreja e ao ouvirem as Trindades, todos os homens tiravam os bonés ou chapéus. No caso das Trindades as mulheres rezavam o “Anjo do Senhor, anunciou a Maria”. Á noite rezava-se ao “Anjo da Guarda” a seguinte oração: “Anjo do Senhor/Meu zeloso guardador/A ti me confiou a piedade divina. Hoje e sempre me rejas, guardes e ilumines. Amen.” Em qualquer lugar onde morria, repentinamente, uma pessoa colocava-se um nicho com uma cruz, assim como nos cruzamentos de três caminhos. Muitas crianças andavam com o escapulário da Senhora do Carmo e havia algumas mulheres, sobretudo na Ponta, que vestia permanentemente o hábito da Senhora do Carmo. Muitas mulheres e crianças usavam uma cruz ou uma medalha ao pescoço.

 

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MATAR O GADO

Sexta-feira, 22.05.15

A festa do Espírito Santo da Casa de Cima começava na sexta-feira, dia de matar o gado. Num dos domingos anteriores os cabeças haviam percorrido as casas da freguesia, a fim de arrolarem quem desejava comprar carne para o dia da festa. Primeiro arrolavam os mordomos. Cada qual declarava a quantidade de carne que desejava para o dia da festa. Num desses domingos, ou se necessário em dois, de tarde, os cabeças, em cortejo, com os foliões e os símbolos do Divino Espírito Santo, percorriam as ruas da freguesia, a fim de saber a quantidade de carne que pretendiam, pois cada um é que pagava a sua, e se davam ou não davam pão de trigo, uma vez que o pão era oferecido pelos mordomos que tinham mais posses e destinava-se aos mais pobres. Na verdade, este e o excedente de carne eram distribuídos pelos mordomos pobres ou pelos pobres da freguesia que nem mordomos eram. Uma vez que todos compravam carne, indagavam e registavam apenas a quantidade que cada um desejava, escrevendo os nomes numa folha de papel, na qual registavam a quantidade de carne pretendida. Os que não eram mordomos ou os que os o eram, mas da Casa de Baixo ou do Império de São Pedro, se desejassem também podiam ser arrolados, indicando a carne desejada. Havia também que contar com as esmolas para os pobres, para os que não a podiam pagar. Depois de calcular a carne necessária para a festa, quantidade que não variava muito de ano para ano, escolhia-se o gado para abater. Geralmente duas rezes bastavam. Na sexta-feira de tarde, o gado era trazido para junto da casa e amarrado junto ao pau da bandeira. Pouco depois organizava-se o cortejo para o Matadouro que ficava no Porto, num pequeno rolo que existia junto à Baía d’Água e onde, paredes meias com o caminho antigo, haviam um pequeno nicho, construído para o efeito, onde era colocada a coroa. Ao lado as bandeiras, o testo e o tambor. O cortejo descia a rua Direita e a Via d’Água, até ao Matadouro. À frente a bandeira branca geralmente levada por uma criança, filho ou familiar de um cabeça. Depois os animais, devidamente amarrados, presos por uma corda e enfeitados com grinaldas de flores na cabeça. Seguiam-se a coroa e as bandeiras vermelhas transportadas por familiares dos cabeças. Atrás os foliões, muitas pessoas, algumas munidas do material necessário para a matança e de paus e recipientes para trazer a carne e as vísceras, no regresso, já com os animais abatidos. Os sinos repicavam e os foguetes estralejavam tanto na ida com na vinda. Os foliões acompanhavam com os seus cânticos, com destaque para o Lavrador da Arada e a Minha Vaca Lavrada. Uma vez mortos, esfolados e limpos, os animais eram partidos em quatro bons pedaços e transportados, de palanca, aos ombros, em cortejo até à casa, sempre acompanhados pelo cantar dos foliões, pelo repicar dos sinos e por muito povo, sobretudo crianças. As mulheres e familiares dos dois cabeças traziam as vísceras e o sangue em alguidares transportados à cabeça. As primeiras para limpar, guisar e fazer caçoila, O sangue para fazer o sarapatel. Ao chegar à Casa a carne era presa em fortes ganchos de ferro e, mais tarde, colocada no chão, mas em cima de uma boa camada de folhas de cana roca muito fresca e verdinha, à espera de ser picada durante a noite. Esta parte da casa onde ficava a carne havia sido dividida com bancos, para que à noite se pudesse fazer a Alvorada e no fim desta, os jogos, mas num espaço bem mais reduzido do que nos dias anteriores. Só então, lá para depois da meia-noite, um grupo de homens ficaria a desmanchar a carne e a parti-la, formando os quinhões de cada mordomo, de acordo com o que combinara, quando a coroa andara pelas casas a arrolar os mordomos.

Sobre o gado e o dia da matança contavam-se muitas estórias. Uma delas era a seguinte: Antigamente havia um homem que tinha prometido dar um bezerro em louvor do Senhor Espirito Santo. Mas o homem tinha poucas relvas cá em baixo e, alem disso, precisava delas para criar uma única vaca que tinha e que lhe dava o leite para criar os filhos. Por isso levou o bezerro para o Mato, Mas como não tinha relva no Mato, deitou-o no Concelho, isto é, naquelas relvas de ninguém, onde andavam as ovelhas. O homem ia ver o bezerro de vez em quando pois ele estava muito longe, lá para os lados da Pulgueira e das Pontas Brancas. Certo dia, ao ir ver o bezerro não o encontrou. Procurou-o por todos os sítios, um dois, três dias e o bezerro nunca apareceu: Uns amigos foram ajudá-lo, mas nada. Todos cuidaram desapareceu e todos e todos pensaram que o bezerro tinha caído nalgum valado e levado por alguma enxurrada. O certo é que nunca mais ninguém o viu. O homem era pobre e naquela altura a vaca já não dava outro bezerro nem podia comprar outro. Ficou muito triste por não poder cumprir a sua promessa. Mas no dia de matar o gado, para espanto de todos, o bezerro apareceu no Matadouro e. assim, o homem, cumpriu a sua promessa, matando o bezerro em louvor do Senhor Espírito Santo, por isso todos dizem que tinha sido um milagre.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:39

AS ALVORADAS

Quinta-feira, 21.05.15

Na Casa do Espírito Santo de Cima, na semana que, na Fajã Grande, antecedia a festa do Espírito Santo, agendada para o Domingo de Pentecostes, havia alvoradas na terça, na quinta e no sábado, pese embora a casa, que mais se assemelhava a uma pequena ermida, abrisse durante toda a semana, à noite. O mesmo acontecia, em data posterior, na Casa de Baixo

Na verdade, durante a semana que precedia quer uma quer outra das festas, à noite, o povo juntava-se naqueles enormes salões, mesmo em dias que não se cantassem as alvoradas, convivendo através da realização de jogos, bailes e, no sábado, com distribuição de fatias de pão adubado, vinho abafado e licores por todos os presentes.

As Alvoradas eram uma forma de louvar o Divino, através do canto e da folia efetuados por um grupo de homens, chamados “foliões”, na Casa de Cima, comandados pelo Teodósio. Eram anunciadas com um foguete.Munidos de um tambor e dos testos, iniciavam a cantoria fora da porta da Casa. Logo se fazia um silêncio no interior, parando todos os jogos e brincadeiras. Ao ritmo do tambor iniciavam em coro: “Ai Alvorada, Ai Alvorada Santa. Ai, Aqui hoje pelo canto, o Senhor seja louvado. Ai o Senhor Espírito Santo”. E pouco mais acrescentavam do que isso, embora o repetissem várias vezes estas e outras semelhantes invocações. No entanto estes cânticos variavam da terça para a quinta e desta para o sábado, isto é, havia uma alvorada específica para cada dia da semana. Terminadas estas preces ao ar livre, com o povo sempre em silêncio, os foliões entravam na Casa e formavam um círculo em frente ao altar, onde estava a corroa com o cetro, ladeada de flores e velas a arder. Ao lado as bandeiras vermelhas símbolos da carne e a branca, símbolo do pão. Os foliões, começavam a circular no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio e, ao toque do tambor e dos textos, entoavam cânticos apropriadas. Cada folião ao passar em frente da coroa circulava ao contrário dos outros e do seu próprio circular, uma vez que se voltava ao contrário a fim de não ficar de costas para os símbolos do Paráclito que se encontravam sobre o altar. Por fim, parados em frente ao altar e voltados para o mesmo, com o povo todo de pé, cantavam as sete Avé Marias, findas as quais se seguia o oferecimento das mesmas: “Ó estas sete Avé Marias, Ó Senhor, que hoje aqui vos canto, Ó, sejam em vosso louvor, Que ofereço ao Senhor Espirito Santo,” Pedia-se ainda pelas almas dos defuntos e por fim terminavam, cantando da seguinte forma: “Ó Senhor Espírito Santo, Vós que estais no vosso altar, Dai saúde e vida a todos Para vos servirem e louvar.”

Pela sua simplicidade e originalidade se depreende a origem ancestral destes cânticos, uma vez que as festas do Espírito Santo e os costumes com elas, relacionados foram implantadas em Portugal pela Rainha Santa Isabel e trazidas para os Açores pelos primeiros povoadores oriundos do continente português. No continente a sua força esmoreceu, nos Açores, por força do isolamento das ilhas, a festa do Espírito Santo não apenas se manteve como se foi consolidando, de tal forma que hoje estende-se a todas as ilhas, apesar de se manifestar de formas diferentes em cada uma delas. Talvez nas Flores e no Corvo, porque mais separadas das restantes ilhas, estas diferenças sejam mais amplas e as tradições mais originais. Um dos muitos cânticos cantado pelos foliões era o “À Porta das Almas Santas” e que ainda hoje é cantado em muitas regiões do continente por altura da Quaresma. Trata-se duma das mais antigas e arreigadas tradições da religião popular. Nas noites da Quaresma, em cada aldeia reúne-se um grupo de homens vão de porta em porta, iluminando o caminho com lanternas, entoando o cântico, tradição que parece remontar à Idade Média e que é muito semelhante às Alvoradas do Espírito Santo: “À porta das Almas Santas, Bate Deus a toda a hora. Almas Santas lhe perguntam: O que quereis, meu Deus, agora? Quero que venhas comigo, Para o Reino da Glória. Assim como estes, O Lavrador da Arada, A Barca Bela e muitos outros, talvez todos, terão sido levados de terras continentais para as ilhas.

Acrescente-se que na Ponta, Cuada e Fajãzinha também se cantavam as Alvoradas muito semelhantes às da Fajã Grande. Na Fajãzinha, no entanto, as Avé Maria e alguns cânticos eram bem mais lentos. Dizia-se que era devido ao maior bojo dos tambores. Na verdade os tambores da Fajãzinha eram bem maiores, em volume, do que os da Fajã, pelo que, consequentemente, tinham um som bem mais cavernoso e lento.

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SECAR MILHO

Terça-feira, 10.03.15

Na Fajã Grande o milho era fundamental na alimentação diária das pessoas. Nas casas dos lavradores, era com ele, depois de transformado em farinha, que, geralmente às sextas-feiras, se cozia o pão ou o bolo, presentes em todas as refeições do dia e de todos os dias. Além disso, o milho ainda tinha papel importante na alimentação dos animais, nomeadamente das galinhas, do porco e até das vacas, que se pelavam por uma maçaroca do dito cujo, com casca e tudo. Assim, em cada casa, gastava-se, durante o ano, muito milho. Este, depois de apanhado, era encambulhado com a casca e pendurado nos estaleiros de onde se ia tirando à medida que dele se necessitava.

O milho era apanhado no mês de outubro, depois de bem amadurecido e seco. Acontecia, porém, que em anos menos fartos, em que o estaleiro não se enchia, ou quando se ia ao estaleiro mais vezes do que o habitual, chegava-se aos fins de agosto ou a setembro e já não havia cambulhão dependurado no dito cujo só existia uma solução. Apanhar o milho mais cedo do que o habitual. Mas o problema é que ele estava verde, como se dizia vertia leite e, consequentemente, não se podia moer, ou transformar em farinha. Algumas vezes, porém, o milho era moído mesmo verde, mas, neste caso, em moinhos caseiros, manuais que existiam em quase todas as casas. Mas nestes moinhos a farinha saía muito grossa, e servia apenas para fazer papas. Eram as chamadas Papas Grossas que misturadas no leite substituíam o pão na refeição da noite, designada, na altura, por ceia. Também se comiam de manhã, geralmente, fritas em banha de porco. A maior parte das vezes, porém, era costume secar o milho. Havia duas maneiras de o fazer. Uma era aproveitar o calor do forno, logo após cozer o pão, colocando as maçarocas lá dentro. A outra, a mais vulgar, era debulha-lo e aproveitar as tardes de sol para o espalhar numa eira ou num pátio de cimento, a fim de que o calor do Sol o secasse. E secava. Só que para além de o espalhar ao início da tarde era necessário juntá-lo à tardinha, o que era bastante trabalhoso. Além disso, geralmente, ainda era necessário estar alguém presente, a fim de enxotar as pombas e outros pássaros ou até as galinhas da vizinha, a fim de que o não comessem, tarefa geralmente atribuída às crianças ou a pessoas de idade. Se de repente, a meio da tarde, começasse a chover era um corre para ir apanhar o milho antes que ele se molhasse…

Só depois de secar ao sol alguns dias o milho estava apto a ser levado ao moinho, onde era transformado em farinha.

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publicado por picodavigia2 às 10:24

A ALIMENTAÇÃO

Quinta-feira, 26.02.15

Na Fajã Grande, até à década de cinquenta a alimentação era muito limitada. Embora houvesse abundância de alguns produtos, nomeadamente, pão, leite, ovos, carne de porco, fruta, etc., outros rareavam e muitos, simplesmente não existiam. A ceia, à noitinha, era, geralmente, reduzia a pão migado no leite. Eram as tradicionais Sopas de Pão e Leite. Algumas vezes o bolo ou as escaldadas substituíam o pão, quando este faltava ou abolorava. Outras vezes eram as papas misturadas no leite. As habituais feitas de farinha fina, ou as grossas feitas do milho verde, abruptamente moído num moinho caseiro. Às vezes enriquecia-se este mísero cardápio com uma sopa de agrião ou de couve. Uma colherada de pão e leite alternada com uma de sopa. Às vezes um pedacinho de queijo, sobretudo nas alturas em que havia crostes, o leite que as vacas davam após o parto e que não era levado para a máquina, para desnatar, aproveitava-se para queijo. Isto à ceia, à noite, porque ao meio dia, ao jantar a ementa era mais completa: batatas cozidas, brancas ou doces, por vezes inhames a acompanhar peixe frito, tortas de ovos, linguiça, torresmos e pão de milho. Geralmente não se bebia vinho e era uma boa tigela de café que substituía o vinho. Por vezes o cardápio do almoço era enriquecido com maçarocas de milho verde e tenro que se coziam junto com as batatas, ou, separadamente, em água com funcho. Outras vezes fatias de abóbora também cozidas com as batatas brancas. Outras vezes eram as batatas-doces assadas no forno depois de cozer o pão, que de tão saborosas que eram até se comiam sem nada. Às vezes mesmo ao jantar, ao meio dia comia-se, uma sopa de couves ou de agrião ou de feijão com uma bela talhada de toucinho. Outras vezes era o peixe frito. O feijão assado com pedacinhos de linguiça só aparecia nos dias mais importantes. Lapas em tortas ou guisadas também serviam de conduto, sendo comidas com pão ou bolo, pois havia muitas mulheres que se aventuravam a ir apanhá-las para os lados do Areal, enquanto alguns homens iam pescar, sobretudo vejas, sargos, polvos e moreias pretas. O café era de mistura com cevada, chicória e até favas torradas e com pouco ou sem nenhum açúcar. Muitas vezes as mulheres ou as crianças iam levar o jantar aos homens, que andavam a trabalhar nos campos e costumava ser peixe frito ou conduto de porco, pão de milho e café, sempre café. Não havia sobremesa, a não ser arroz doce pelo Natal, filoses pelo Carnaval e pão adubado pelo Espírito. A fruta, geralmente, comia-se nos intervalos das refeições, muitas vezes na própria terra onde havia árvores, carregadinhas da dita cuja. Pela Páscoa comiam-se os folares e na Sexta-feira Santa sopa de funcho.Um prato que se fazia quando não havia conduto era o mangão, feito à base de batata branca cozida e esmagada, misturada e bem envolvida num refogado de graxa de porco, cebola e alho. Outras vezes eram as migas simples, feitas de pão fervido e misturado na banha. Quando não havia conduto também era o queijo feito em casa que o substituía. Por vezes, sobretudo as crianças comiam o pão barrado com a graxa da linguiça. Raramente se matava uma galinha. Só em caso de doença e pelo entrudo. Muitos homens e crianças bebiam uma boa tapa de leite na altura em que ordenhavam as vacas.

Carne e pão de trigo, só pelas festas do Espírito Santo ou quando algum americano dava um jantar ou ainda pelos casamentos, mas neste caso só para convidados. Os dias de matança do porco eram uma exceção a tudo isto.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:07

A IDA AO MOINHO

Domingo, 22.02.15

A agricultura, juntamente com a pecuária, pelo menos até à década de cinquenta, foram, como é sobejamente conhecido, os pilares fundamentais da economia da Fajã Grande, bem como de todas as freguesias das Flores e dos Açores. Tradicionalmente, nesta como em quase todas as freguesias açorianas a agricultura tinha o seu epicentro no cultivo e na produção do milho.

A importância do milho na economia da Fajã Grande era tão grande que, nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, este era frequentemente utilizado como moeda de troca e como meio de pagamento de serviços de vária, num contexto, marcado por uma economia de subsistência. Pagava-se um dia de trabalho com um alqueire de milho ou o equivalente ao seu preço. Da mesma forma se pagava o culto e outros serviços.

Terra que produz milho terá que ter moinhos. E a Fajã não era exceção. Havia-os junto às ribeiras do Cão e das Casas, sendo que eram sobretudo os que se situavam nas margens da Ribeira das Casas, que serviam a população da Fajã, enquanto a Ponta beneficiava dos da Ribeira do Cão. Por sua vez os habitantes da Cuada levavam as suas moendas aos moinhos da Alagoa, já em território da Fajãzinha.

Os moinhos da Ribeira das Casas eram três. Dois pertenciam ao Tio Manuel Luís e o terceiro, conhecido por Moinho do Anjinho, mas que deveria ser uma deturpação popular de Moinho do Engenho, pertencia a uma sociedade, constituída por vários donos. Construídos em locais de rara beleza, um deles foi transformado, recentemente, em vivenda, e, necessariamente junto a um curso de água com um potente caudal, os moinhos tinham o inconveniente do relativo isolamento e da distância das habitações. Além disso, as veredas de acesso não era as melhores e as moendas, nas idas e vindas tinham que ser carregas às costas ou à cabeça. O transporte dos cereais para os moinhos, como se pode verificar em escritos e imagens ou até em poemas como o da Moleirinha de Guerra Junqueiro, nas mais diversas regiões do país, era normalmente feito a dorso de burros. Na Fajã Grande, porém, era às costas dos homens ou cabeça das mulheres.

As idas ao moinho, tarefa quase exclusiva das mulheres e das crianças, no entanto, por vezes transformavam-se em espécies de romarias, ora cruzando-se uns que iam, outros que vinham, ora cavaqueando enquanto esperavam, no próprio moinho, que a moenda estivesse moída. Assim podia dizer-se que ida ao moinho era uma espécie de ritual, e o moinho um espaço de convívio social de eleição, não sendo rara a circunstância de muitas vezes as pessoas, sobretudo da mesma rua, se juntarem a fim de se deslocarem em grupo.

Uma vez no moinho, cada moenda era identificada e pesada, pelo moleiro, geralmente, na presença dos donos, pesagem que seria determinante para a definição da maquia a que o moleiro tinha direito.

As épocas de maior actividade nos moinhos coincidiam com as colheitas, particularmente nos meses de setembro, outubro e novembro, altura em que se verificava uma afluência muito considerável de pessoas aos moinhos. Na Fajã Grande e nas Flores, contrariamente, a outras ilhas do arquipélago, não havia moinhos de vento. A água era abundante e suficiente para os mover. Pelo contrário, o vento era forte de mais.

Na Fajã Grande existiam, na maioria das casas, pequenos moinhos manuais utilizados para moer o milho, mas em pequenas quantidades, quando este estava verde. A farinha ficava muito grossa e servia apenas para fazer papas. Eram as chamadas Papas Grossas. Na Fajã Grande também não havia atafonas

Ir ao moinho era fundamental na Fajã Grande, pois todo pão era cozido em casa. E não era pouco. O milho era levado ao moinho em sacas de pano que vinham da América, trazendo as encomendas. O pano destas era muito bom e já continha em grandes letras o nome do dono. Competia a cada agricultor ou a um membro da sua família levar a sua própria moenda ao moinho, mas geralmente as raparigas gostavam de ir ao moinho. É que sendo estes longe do povoado, beneficiavam de uma saída de casa que, geralmente, aproveitavam quer para por em dia a conversa com os namorados quer para iniciar um primeiro namorico. Na ocasião em que se entregava a moenda era combinado com o moleiro o dia em que estaria pronta.

Ao moleiro competia apenas moer o milho, pagando-se ele próprio do seu trabalho através da tal maquia de farinha que retirava de cada uma das moendas. Como geralmente não a utilizava para uso pessoal, dado que ele próprio também tinha as suas terras de milho, vendia-a compensando assim todo o trabalho que tinha e as horas que passava no moinho, onde geralmente pernoitava, pois a substituição de cada moenda era manual.

Hoje, os moinhos são relíquias de um passado longínquo, que encerra muitas histórias humanas de sacrifícios e sofrimento do trabalho árduo para obter o pão de cada dia. Infelizmente os moinhos da Fajã parecem não ter sido conservados da melhor forma, contando as histórias que se perderam no tempo.

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publicado por picodavigia2 às 10:09

SANTA BÁRBARA LUZ DIVINA

Quinta-feira, 04.12.14

A ilha das Flores e, mais concretamente, a Fajã Grande, noutros tempos era, com muita frequência, assolada por violentas tempestades, acompanhas de trovões fortíssimos e relâmpagos assustadores. Para se proteger de tão assustadores catástrofes ou para implorar que elas se afastassem, o povo implorava a proteção de Santa Bárbara, exclamando: Santa Bárbara luz divina! Embora a igreja paroquial não possuísse imagem de Santa Bárbara, nem lhe fosse tributada grande devoção era a ela que, nestes momentos de angústia e aflição se implorava e pedia auxílio, uma vez que era considerada protetora por ocasião de tempestades, raios e trovões. Esta devoção à santa, apenas nos momentos das tempestades levou, inclusivamente, à criação de um adágio muito utilizado na freguesia: “Só te lembras de Santa Bárbara quando faz trovões.”

Era pois, Santa Bárbara, uma santa de grande devoção na freguesia. Mas o que ninguém sabia era que Santa Bárbara, padroeira de algumas freguesias açorianas, é celebrada, liturgicamente no dia 4 de Dezembro e a igreja considera-a santa virgem e mártir. A razão de ser invocada em momentos de trovoadas e tempestades prende-se com algumas lendas que se criaram a seu respeito.

Cuida-se que Bárbara terá nascido, nos finais do século III depois de Cristo, na cidade turca de Nicomédia, hoje chamada Izmit, situada nas margens do Mar de Mármara. Era a filha única de um rico e nobre, habitante desta cidade, que na altura pertencia ao poderoso Império Romano e que se chamava Dióscoro.

Por ser muito bela e, acima de tudo, rica, não lhe faltavam pretendentes para casamentos e o pai, supostamente com o objetivo de a proteger e afastar da sociedade corrupta daquele tempo, decidiu fechá-la numa torre. Na sua solidão, Barbara, tendo uma mata virgem como quintal, passava o tempo refletindo e interrogando-se, se toda aquela beleza natural seria criação dos ídolos que aprendera a cultuar com seus tutores ou se seriam obra de um Deus omnipotente.

Ora aconteceu que, passado algum tempo, o pai autorizou-lhe uma visita à cidade, durante a qual Bárbara teve oportunidade de conhecer e contatar alguns cristãos, que lhe falaram de Jesus e dos seus ensinamentos. Bárbara apaixonou-se por esta nova doutrina e, pouco tempo depois, batizou-se, tornando-se cristã. O pai, como represália, voltou a fechá-la na torre.

Certo dia, pai decidiu construir duas janelas na torre. Todavia, dias mais tarde, ele viu-se obrigado a fazer uma longa viagem. Enquanto Dióscoro viajava, Barbara ordenou a construção de uma terceira janela na torre. Além disso, ela esculpira uma cruz, símbolo do cristianismo, numa das paredes da torre

Ao regressar, o pai viu que a torre onde tinha trancado a filha tinha agora três janelas em vez das duas que ele mandara abrir. Indignado, perguntou à filha o porquê das três janelas. Ela explicou-lhe que isso era o símbolo da sua nova fé, simbolizava a Santíssima Trindade, mistério da religião que abraçara, o que deixou o pai furioso, porque ela se recusava a adorar os deuses pagãos.

A partir de então Bárbara começou a ser torturada. O próprio Dióscoro denunciou a filha ao Prefeito da cidade que a mandou torturar numa tentativa de a fazer renunciar à fé cristã, fato que não aconteceu. Por fim, como se mantivesse firme na sua fé, foi condenada à morte por degolação.

Reza ainda a lenda que durante a sua tortura em praça pública, uma jovem cristã de nome Juliana denunciou os nomes dos carrascos, e imediatamente foi presa e entregue à morte, juntamente com Bárbara. Ambas foram levadas pelas ruas de Nicomédia por entre os gritos de raiva da multidão. A Bárbara ter-lhe-ão cortado os seios, sendo, depois, conduzida para fora da cidade onde o seu próprio pai a executou, degolando-a. Quando a cabeça de Bárbara rolou pelo chão, um imenso trovão estrondou pelos ares fazendo tremer os céus e a terra. Um relâmpago flamejou pelos ares e atravessando o céu fez cair por terra o corpo da jovem.

Essa a razão por que Santa Bárbara passou a ser conhecida como “protetora contra os relâmpagos e tempestades" e é considerada a padroeira dos artilheiros, dos mineiros e de todos quantos trabalham com fogo.

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publicado por picodavigia2 às 15:00

A LOUCURA DAS VACAS NOUTROS TEMPOS

Terça-feira, 25.11.14

Na Fajã Grande, como aliás, muito provavelmente, em quase todas as outras localidades não só de Portugal como até do Mundo, na década de cinquenta, não se falava ou nem sequer se pensava na existência de vacas loucas. No entanto, ao que tudo leva a crer, na mais ocidental freguesia da Europa elas existiam.

Isto porque, na Fajã Grande, terra onde havia muitas vacas e onde as mesmas eram extremamente bem tratadas, se não havia vacas loucas, no sentido em que hoje se refere esta designação, pelo menos havia algumas vacas que tinham comportamentos muito estranhos, pouco ortodoxos no que a vacas dizia respeito e que em nada abonavam a dedicação, o tratamento cuidadoso e até o carinho que os donos lhe dedicavam.

Na verdade e para além da maioria das vacas que nasciam mansas e assim permaneciam toda a vida, detentoras de comportamentos e atitudes de grande tranquilidade e quietude, submissas às ordens e vontade dos donos, muitas outras havia que se distinguiam por comportamentos esquisitos, estranhos, alguns roçando a loucura outros a agressividade.

O pior destes comportamentos era o hábito que as vacas tinham de “garrar”, isto é, ao verem uma pessoa estranha, que não fosse o dono ou outro conhecido, viravam-se às marradas na mesma, à semelhança de um touro em plena praça, num espetáculo de tourada. A maioria das vezes, porém, este estranho comportamento, surgia já no fim da vida do animal. Por lei consuetudinária, na Fajã Grande, quem tivesse uma vaca que garrasse era obrigado a andar com ela amarrada na via pública. A maioria dos donos ao aperceber-se que tinham uma vaca com este hábito, embarcavam-na para Lisboa, o mais cedo possível, onde era abatida para consumo. Louca ou não, a população de Lisboa deliciava-se com a sua carne.

Outro vício de algumas vacas era o de, quando soltas nas pastagens, galgarem as paredes circundantes e saltarem para os campos alheios, muitas vezes causando grandes prejuízos. Para evitar estes males e impedir o animal de se meter em ceara alheia, os donos possuíam dois meios. Um era acabramá-las, isto é, amaravam-lhe uma corda à cabeça e prendiam-na a uma das mãos, impedindo o animal de saltar. Outro, o mais eficiente, até porque a corda, muitas vezes rebentava, eram as galochas. As galochas eram duas enormes tiras de madeira, em forma de barco com duas proas, com um furo redondo a meio, no sítio em que se ligava uma parte à outra. Estas partes, num dos lados, eram presas por uma dobradiça e fechavam na outra, com uma pequena cavilha, depois de colocadas na mão do animal, causando-lhe grande embaraço e transtorno no andar, impedindo-o, consequentemente de saltar.

Muito esquisito também era o comportamento da maioria do gado alfeiro, que uma vez solto, corria, saltava e pinchava como se estivesse louco, sobretudo se colocado nas pastagens do mato, permanentemente encafuado entre brumas e nevoeiros. Na altura do cio muitas vacas também ficavam loucas, por vezes atirando-se para cima dos próprios donos quando estes tratavam delas,

Finalmente havia as vacas dando, ou seja, aquelas que depois de um ou mais partos, nunca mais davam cria, ficando a dar leite para sempre, mas em muito pequena quantidade. Estas depois de devidamente castigadas com a canga, também eram enviadas para Lisboa, como se dizia, a brincar, ver os senhores de bengala.

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publicado por picodavigia2 às 09:39

EMIGRAÇÃO CLANDESTINA

Quinta-feira, 23.10.14

Na Fajã Grande, na década de cinquenta ainda se se recordavam e contavam muitas estórias de fugitivos que, partindo da freguesia, clandestinamente e correndo graves riscos, embarcavam em baleeiras americanas que demandavam a ilha na procura de água, de víveres e de baleeiros, partindo, assim, para a América, numa estranha e não menos arriscada aventura. De facto, nos finais do século XIX, muitos habitantes da Fajã Grande como de toda a ilha das Flores, embarcaram, às escondidas da noite e clandestinamente, viajando nas baleeiras americanas às quais pagavam a viagem até à costa leste dos Estados Unidos, com o seu trabalho diário a bordo e eram deixados à sua sorte, mal encontrassem a terra do Tio Sam, onde cuidavam que o ouro corria a jorros. Na Fajã Grande, a fim de que a fuga não fosse detetada pelos militares que vigiavam nos vários fortes, fugiam durante a noite, escondendo-se nas margens das ribeiras. Quando os marinheiros desciam com vasilhames carregados de água, os fugitivos, imitando-os, seguiam-nos e aproveitavam para escapulir nas chatas, muitas vezes sob os tiros dos militares, que, embora tardiamente, se apercebiam da marosca. Eram aceites a bordo como marinheiros, trabalhavam como escravos e as viagens demoravam meses, por vezes, quase anos, uma vez que as baleiras tomavam rumos diversos, aproveitando as viagens para a caça aos cachalotes e baleias.

Uma vez chegados à costa leste americana, onde desembarcavam seguiam o seu destino, por sua conta e risco. Muitos, levados pelo sonho do ouro, demandavam a costa oeste, atravessando o continente americano de lés-a-lés, até chegar à Califórnia. Aí, cerceado o sonho do ouro, tornavam-se pastores na serra de Nevada, agricultores no Vale de São Joaquim, operários nas obras dos portos e das pontes de São Francisco ou na edificação da cidade do Fresno e de muitas outras urbes da Califórnia. Apenas um grupo, mais afoito e audacioso, partia para o norte, na procura de trabalho nas minas, sobretudo nos condados de Siskyou, Del Norte e Modoc.

Sabe-se hoje, que esta aventura americana marcou uma geração de habitantes da Fajã Grande, influenciando usos e costumes e até o falar da freguesia. Uma dessas influências terá sido na caça à baleia, pois foram estes homens, após regressar dos Estados Unidos, ou os seus descendentes transformaram a Fajã Grande no maior e mais importante local de caça à baleia, depois das duas vilas: Lajes e Santa Cruz. Na verdade, a Fajã Grande foi terra de grandes baleeiros, sobretudo marinheiros e trancadores, porquanto os oficiais, geralmente, eram importados do Pico. Embora a época da caça à baleia se verificasse apenas nos meses do verão ela modificou a vida e os costumes da população, assim com a sua muito fraca economia, reduzida a uma simples agricultura de subsistência e à criação de gado, em muito pequena escala.

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publicado por picodavigia2 às 21:12

AS SNAIPAS

Domingo, 12.10.14

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, era costume perguntar-se aos outros, sobretudo aos mais tontos e mais distraídos, se iam às snaipas. As snaipas, pura e simplesmente, não eram coisa nenhuma, nem sequer existiam. Era, no entanto, um costume muito frequente, mandar alguém às snaipas. O objetivo era o de confundir o interlocutor, sobretudo se fosse ingénuo. Na Fajã Grande e na ilha das Flores, “Ir às snaipas“ era de alguma forma o equivalente à expressão continental “Ir aos gambozinos”.

Esta palavra, muito provavelmente, terá a sua origem no inglês snipe, espécie de ave com características muito específicas, entre as quais a dificuldade em se deixar caçar, por quanto possui nas suas penas uma camuflagem que lhe permite passar despercebido aos caçadores, nas regiões pantanosas onde têm o seu habitat. Mesmo quando voa, os caçadores têm dificuldade em acertar-lhe. As dificuldades na caça do snipe deram origem uma frase que sugere uma missão de tolos, ou uma tarefa impossível: “Going on a snipe hunt".

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publicado por picodavigia2 às 22:20

CAMPAINHAS DE BADALO

Quarta-feira, 17.09.14

 

Era assim que se chamavam, na Fajã Grande os chocalos,ou seja, uma espécie de cilindros de lata ou metal, achatados, compridos e ocos, geralmente de metal, com uma extremidade aberta e outra fechada, tendo preso no seu interior um badalo de metal. Quando abanados, o badalo ao bater nas bordas da extreemidade aberta. produzem um som, tanto mais forte quanto o tamanho do cilindro e a qualidade do material de que são feitos.

Na Fajã Grande, as vacas, sobretudo as leiteiras, eram ornamentadas com campainhas, penduradas ao pescoço por um estrape. Umas campainhas eram em forma de sino, outras de meia laranja, mas todas feitas de metal sonante, com uma boa têmpera, produzindo, assim, sons harmónicos, harmoniosos e diversificados que, por vezes, identificavam os próprios donos do gado. Por isso e para além do efeito estético, as campsainhas serviam, em muitos casos, para identificar a própria rês. Quando as vacas eram levadas para o mato, no Verão, as campainhas eram-lhes retiradas do pescoço, sendo substituidas pelos chocalhos, caracterizados pelo seu som abrutalhado e pouco harmónico mas forte e, consequentemente, capaz de se uvir a uma considerável distância. As razões desta troca eram, fundamentalmente, duas. A primeira porque nas relvas do mato havia muitos valados e grotões a abarrotar de silvas e queirós que proporcionavam a que os estrapes se rompessem e as campainhas se perdessem. A segunda, porque tendo o chocalho ou campainha de badalo um som muito forte, era mais fácil aos donos dos animais identificar onde se encontravam em dias de brumas densas e de nevoeiros cerrados ou de procurar quando se encontravam caídos nalgum grotão.

Quer as campainhas quer os chocalhos eram mandados fazer ou comprados nas Lajes, embora a maioroia fosse uma espécie de bem de família que se ia transmitindo de geração em geração.

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publicado por picodavigia2 às 10:38

IMPOSIÇÃO DO ESCAPULÁRIO DA SENHORA DO CARMO

Quarta-feira, 16.07.14

Nossa Senhora do Carmo é um título ou invocação da Igreja Católica consagrado à Virgem Maria. Este título apareceu com o propósito de relembrar o convento construído em honra da Santíssima Virgem Maria nos primeiros séculos do Cristianismo, no Monte Carmelo, em Israel. A principal característica desta invocação mariana é apresentar o Escapulário do Carmo, símbolo que representa o acto de se estar, permanentemente, ao serviço de Deus e que, em contrapartida, acarreta muitas indulgências, graças e outros benefícios espirituais a quem o traz ao peito ou vestido, no caso da Ordem Maior.

Na Fajã Grande, sobretudo no lugar da Ponta, havia grande devoção à Senhora do Carmo e era costume muitas pessoas usarem o escapulário, sobretudo mulheres e crianças, pois acreditava-se que Nossa Senhora acompanharia e livraria de males e perigos quem o utilizasse. Na igreja paroquial, num nicho lateral do altar do Coração de Jesus ou do lado da Epístola, havia uma pequena imagem da Senhora do Carmo. Mas a grande e mais conhecida e venerada imagem da Virgem sob essa invocação, não só na freguesia mas em toda a ilha das Flores, encontrava-se na igreja da Ponta da qual era a Padroeira. A sua festa litúrgica era celebrada no dia dezasseis de Julho, mesmo que este não coincidisse com um domingo, transformando, assim, esse dia num verdadeiro dia Santo na freguesia. Mais tarde a festa passou a realizar-se no domingo de Julho mais próximo daquele dia.

Era no dia da festa, antes da missa do dia que, em cerimónia solene, presidida pelo pároco, com mandato canónico para tal, que se procedia à imposição do escapulário, constituído por duas pequenas tiras de pano castanho, uns com a imagem em plástico da Senhora do Carmo, presas uma à outra com dois elásticos que devíamos colocar ao pescoço de forma visível apenas no dia da festa e nos restantes dias por debaixo da roupa. Uma tira devia ser colocada sobre o peito e a outra nas costas. Isto no caso de se aderir apenas à Ordem Menor, porque mulheres havia que, aderindo à Ordem Maior, teriam que andar vestidas com um vestido castanho sobre o qual usavam o escapulário, também imposto numa cerimónia ainda mais solene. Neste caso, as tiras, também de cor castanha, eram muito maiores cobrindo-lhes o corpo quase por completo como se fosse um avental ou uma bata aberta nos lados. Na Ponta havia muitas mulheres que se vestiam assim, permanentemente, fruto de promessas que haviam feito.

O Escapulário, como era explicado pelo pároco durante a cerimónia de imposição, era um sinal de aliança com a Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa mãe e exprimia a consagração a Ela dos que aceitavam usá-lo em Seu louvor.

Afirmava o pároco nas prédicas dos dias de tríduo preparatório, que, poucos anos antes, em 1951, por ocasião da celebração do 700º aniversário da entrega do Escapulário, o Papa Pio XII escrevera aos Superiores Gerais das duas Ordens carmelitas, afirmando que: "… o Santo Escapulário, que pode ser chamado de Hábito ou Traje de Maria, é um sinal e penhor de protecção da Mãe de Deus". Depois concluía que o uso do Escapulário do Carmo, havia sido recomendado por vários Papas e que muitos Santos o haviam utilizado durante toda a sua vida.

E nós inocentes e crédulas criancinhas, logo após a idade da\razão, lá íamos, à festa da Senhora do Carmo da Ponta, em romaria, receber o escapulário ou usá-lo, com maior solenidade naquele sai, colocando-o, ostensivamente, sobre a roupa.   

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publicado por picodavigia2 às 15:38

O SAL

Quinta-feira, 26.06.14

O sal teve, desde sempre, uma importância primordial na vida da população da Fajã Grande. Sem outros meios de conservar os alimentos, até à década de sessenta, altura em que chegou a luz à freguesia e, consequentemente, os primeiros frigoríficos, a única forma de conservar os alimentos, sobretudo a carne de porco e o peixe, era salgando-os. Apenas os bifes de lombo e a linguiça eram conservados debaixo de banha, mas mesmo neste caso, o sal era necessário.

Essa a razão por que na década de cinquenta era necessário comprar sal, bastante sal e ter sempre uma reserva do mesmo, em casa, À necessidade de conservar alguns produtos ao longo do ano, juntou-se o hábito de cozinhar os alimentos com algum sal e, nalguns casos, abusava-se deste, o que, obviamente, prejudicava a saúde. A população da Fajã Grande, na década de cinquenta e anteriores, era dependente do sal e, por vezes, abdicava-se de outros gastos mais importantes, para se poder comprar o sal.

Sabe-se que em tempos antigos em que na ilha das Flores rareavam os produtos importados se adquiria o sal aos navios que ali passavam para a pesca do bacalhau, que ali passavam para se abastecer de água, víveres e recolher marinheiros clandestinos. O sal funcionava então como moeda de troca, uma vez que a população, a troco de produtos frescos, nomeadamente carne, recebia sal e de dinheiro.

A falta de sal na freguesia, em tempos idos, era tanta, que naufragando nos laredos do baixio, um barco carregado de açúcar, a população, depois de o recolher, utilizou-o como se fosse sal.

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publicado por picodavigia2 às 10:05

TRADIÇÕES E SUPERSTIÇÕES

Sábado, 17.05.14

Na Fajã Grande, antigamente, à boa maneira açoriana, havia muitas tradições, por vezes aliadas a superstições quer sobre os alimentos quer sobre a forma de os tomar. Enquanto alguns alimentos eram malignos, como por exemplo, a melancia que não devia comer-se sobre vinho, pois era mortal ou as laranjas que à ceia ou ao serão não se deviam comer, outros havia que tinham efeitos salutares, quase mágicos. Assim devia comer-se salsa em jejum, pois desenvolvia a memória e sopa de funcho na Sexta-Feira Santa, pois ele era mais doce nesse dia. É que Nossa Senhora, enquanto subia o Calvário, ia comendo funcho. Com muitas e variadas frutas e ervas se devia fazer chá, como o limão, o funcho, a macela, o poejo, a erva-nêveda, a cidreira, etc. Outros chás serviam para lavar e curar partes do corpo, como por exemplo o de mestrunços para dores nos ossos e o de malvas, muito bom para curar hemorróides. As papas de linhaça também eram óptimas para curar inchaços e maleitas. Alguns frutos deviam ser colocados ao sol para se tornarem mais saudáveis e a própria aguardente tinha efeitos medicinais, pois, misturada com mel curava a gripe e queimada com açúcar fazia bem à tosse e as dores de garganta

Algumas outras crenças. Relacionadas com o credo religioso católico, proibiam dizer nomes feios à mesa e fora dela, comer despido, ou com boné, boina ou chapéu, por acreditar que fosse uma ofensa a Jesus, ao Anjo da Guarda ou a algum santo que estivesse presente durante as refeições. Ainda, por razões religiosas, não se deviam sentar treze pessoas à mesa, durante uma refeição porque, assim como na Última Ceia, um havia de morrer em breve.

Enquanto se cozinhavam os alimentos, não se devia acender o lume com papel nem apaga-lo com água atiçá-lo com objectos metálicos. Algumas pessoas mais idosas cuidavam que atirando alho para o lume afugentava o diabo.

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, ainda se acreditava em feiticeiras, cuidando-se que andava em bailados nocturnos. Havia um calhar denominada das Feiticeiras, onde estavam marcados os seus pés. Dizia-se que subiam e desciam de manhã e à noitinha. Depois de atirarem por lá abaixo as almas penadas, vinham busca-las para voltar a atirá-las outra vez. Também se acredita em transfigurações do diabo, sob a forma de cão preto ou outro animal. As invocações dos mortos, a levantarem-se dos túmulos e regressarem ao mundo eram frequentes. Cuidava-se que as almas do outro mundo andavam por toda a parte e todos delas tinham medo Detrás das portas faziam-se cruzes com terebintina para afugentar o diabo. Os cogumelos, talvez por alguns serem venenosos eram considerados os pães das feiticeiras.

 

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publicado por picodavigia2 às 18:48

O NAMORO

Quinta-feira, 15.05.14

Antigamente, na Fajã Grande, como provavelmente em muitos outros meios rurais açorianos, o namoro revestia-se de características muito específicas e peculiares.

Iniciado com olhares intencionais, piscar de olhos ocultos ou pequenos encontros fortuitos, o namoro só se iniciava, oficialmente, depois de o rapaz pedir a noiva aos pais. Só a partir de então, podia falar com ela, mas sempre em lugares públicos ou acompanhados de terceira pessoa, com maior incidência, a uma janela da casa da rapariga, sendo que o rapaz, de forma nenhuma poderia entrar em casa. Dizia-se que os ditos namorados já tinham autorização para falar. Só depois de um segundo pedido, confirmado pela autorização do pai da noiva, o rapaz tinha autorização para entrar em casa, onde passava a ser uma presença assídua, sobretudo aos serões.

Sendo assim, pode dizer-se que o namoro, antigamente, na Fajã Grande, se dividia em três etapas, correspondendo a tantos outros rituais específicos: piscar o olho, falar e entrar em casa.

Assim, todo o namoro se iniciava, geralmente, com pequenos, simples e fortuitos olhares entre o rapaz e a rapariga, o que acontecia sobretudo por alturas de festas e arraiais, muitas vezes com jogos e bailes, como era o caso das semanas que antecediam e precediam as festas do Espírito Santo. Nesta fase preliminar, o rapaz que pretendia namorar a rapariga do seu agrado, procurava atraí-la com olhares sucessivos e com piscar de olhos, contínuos e intencionais. Normalmente a rapariga, ao notar e perceber o que se passava, ou, no caso das mais tímidas, ruborizava de pudor e corava de vergonha, ou, no caso das mais destemidas e afoitas, respondia com outro piscar de olho, sinais, num caso e noutro, de que o rapaz não lhe era indiferente. Geralmente, estes primeiros olhares completavam-se com pequenas mensagens, transmitidas por sinais ou pelo simples mover dos lábios, numa linguagem quase imperceptível, a que se chamava falar de boca pequena.

Depois destas trocas de olhares, de mensagens e de consentimentos recíprocos, o rapaz procurava então ver, novamente, a sua eleita, passando-lhe à porta, às horas que calculava pudesse descortiná-la, ou em lugares onde pudesse encontrá-la o que, geralmente, acontecia ou na ribeira enquanto lavava a roupa ou aos domingos, à saída da missa. Esta fase do namoro revestida de mil cautelas e em grande segredo, desenrolava-se muitas vezes sem que os familiares se apercebessem, ou o público, no geral, notasse. Eram corridas loucas, sobretudo aos domingos para encontrar e falar à bem amada, sendo que, muitas vezes, os encontros eram combinados por papelinhos, sinais deixados nos buracos das paredes ou com ajuda de uma criança ou irmã mais nova.

Finalmente o rapaz resolvia iniciar o namoro e falar com a rapariga, comunicando-lhe a resolução de ir pedir ao pai dela licença para com falar.

Caso o pai concedesse a devida autorização, o rapaz podia falar com a rapariga, regra geral junto da casa dela, mas não entrando nunca. As conversas aconteciam à porta, à janela, num muro ou balcão, ou então num lugar público, geralmente encostados a uma parede, mas sempre a considerável distância um do outro, sendo-lhe apenas permitido falar até às trindades, ou seja, até ao pôr-do-sol. Daí o adágio: Trindades batidas, meninas recolhidas”. Também por alturas de festas e arraias, mas sempre em público, era permitido aos namorados falarem. Durante esta fase do namorico, caso a rapariga necessitasse de ir para os campos, tratar das galinhas, lavar roupa à ribeira, ou levar a moenda ao moinho, devia ser acompanhada por uma criança.

Logo que os namorados entravam nesta fase do namoro, geralmente, começavam a pensar no casamento, iniciando-se os preparativos: a rapariga começava a bordar o enxoval, enquanto  que o rapaz começava a amealhar o dinheiro destinado à compra dos móveis e apetrechos que lhe competia levar. E quando resolviam casar, o rapaz combinava com a rapariga o dia em que iria pedi-la em casamento, e esta comunicava à mãe, que, por sua vez, transmitia ao pai.

No dia e hora agendados, o rapaz dirigia-se à casa da rapariga, geralmente, acompanhado dos próprios pais, com o intuito de pedir a rapariga em casamento. Muitas vezes era um ritual estranho. O pai, depois de dar o seu consentimento, mandava a mulher, que assistira ao pedido, chamar a filha, à qual comunicava o acontecimento, inquirindo se era do seu agrado, obtendo, obviamente e entre muita vergonha, uma resposta afirmativa.

A partir do pedido de casamento, o rapaz já podia falar com a rapariga dentro de casa, e já podiam sair juntos, desde que se fizessem acompanhar por um familiar, geralmente uma irmã mais nova, que muitas vezes, os deixava livres, para ela própria descobrir e encontrar o seu eleito. As famílias passavam a visitar-se, havendo convites recíprocos para as matanças do porco.

Em relação a uma rapariga que tivesse sido pedida em casamento, dizia-se que tinha namorado da porta p´ra dentro e, por isso, estava comprometida, sendo-lhe proibido, conversar e até olhar para outro rapaz. Este processo contratual de casamento era sim, promessa formalmente assumida, encontrando-se em jogo a honra de duas famílias, e quando, por agravo de qualquer das partes, o casamento era desmanchado, a rapariga tarde ou nunca voltaria a casar, ficando para tia.

Outros tempos, estes!

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publicado por picodavigia2 às 10:21

OS AMOLADORES

Segunda-feira, 12.05.14

Muito raramente vinham de fora, como em tantas vilas e aldeias de Portugal. Na Fajã Grande havia-os em grande quantidade e bons, sendo até que em muitos casos, eram os próprios donos que amolavam as suas próprias facas e tesouras, quer em esmeril próprio quer recorrendo ao de algum parente, amigo ou vizinho. Na realidade, apenas de vez em quando, chegavam à Fajã, alguns amoladores vindos de fora. Geralmente traziam os apetrechos necessários não só para amolar tesouras e facas mas também para por grafos em pratos, travessas e alguidares partidos, pois esta arte, na Fajã Grande era menos comum. Além disso, também colocavam varas novas em guarda-chuvas e sombrinhas. Hoje estamos na era do usar e deitar fora em vez de arranjar o partido ou quebrado, uma vez que, geralmente, comprar um produto novo fica menos dispendioso do que mandar arranjar os que se partiram, o que fez dos amoladores uma profissão em vias de extinção.

O amolar de facas tinha o seu epicentro em Dezembro por altura das matanças. Era um ritual importantíssimo e necessário. Sem facas bem acoladas a matança seria um fracassa. As tesouras, sobretudo as usadas na tosquia, eram também necessariamente amoladas antes de cada dia de fio.

Para amolar facas e tesouras usava-se o esmeril. Tratava-se de uma geringonça de madeira, no meio da qual tinha uma enorme pedra de esmeril, redonda, que circulava ao redor de um eixo, ligado um engenhoso sistema movido pelos pedais. Ao pedalar-se a roda andava, sendo-lhe encostada com arte e engenho o instrumento que se pretendia amolar. Em alternativa havia esmeris em que a roda era movida a mão. Era um instrumento mais pequeno, simples e barato mas cuja utilização exigia o trabalho de duas pessoas. Uma faca ou tesoura só estava bem amolada quando tinha fio no gume. Este era detectado com o passar do dedo polegar, operação que devia ser feita com muito cuidar para não lanhar o dedo.

Uma arte que, aparentemente, se perdeu.

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publicado por picodavigia2 às 21:04

IN ALBIS

Domingo, 27.04.14

Chama-se In Albis ao domingo imediato ao da Páscoa, porque, nos primórdios da cristandade, era nele que os neófitos, ou seja os cristãos baptizados durante a vigília pascal, depunham a túnica branca do baptismo que haviam recebido, naquela noite santa. No entanto, este domingo também tem outras designações, sendo conhecido por Quasi modo por serem estas as primeiras palavras do antigo intróito da missa, deste dia. Esta designação está intimamente relacionada com uma das personagens do romance de Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris. Trata-se duma personagem que recebeu este nome, por ter sido abandonada à nascença e encontrado neste dia, junto da catedral parisiense. Quasimodo, no entanto, nasceu com notáveis deformações físicas, descritas por Victor Hugo como "uma enorme verruga que cobre seu olho esquerdo" e "uma grande corcunda". Foi recebido e adoptado pelo arcediago da catedral, que o baptizou. Desconhecendo-lhe nome, atribuindo-lhe aquele nome, por ter sido encontrado naquele domingo, designando-o, depois de adulto, para ser sineiro da Catedral. Devido ao alto som dos sinos de Notre Dame, Quasimodo acabou por ficar surdo. Apesar da sua aparência monstruosa, Quasimodo apaixonou-se pela cigana Esmeralda, salvando-a de ser assassinada.

Na Fajã Grande, onde este episódio da literatura mundial, obviamente, era desconhecido, e em muitos outras localidades, este domingo, que ocorre, precisamente, oito dias depois da Páscoa, correspondendo ao domingo seguinte ao domingo de Páscoa, agora, também denominado Dia da Misericórdia de Deus, sendo a oitava da Páscoa era designado como domingo da Pascoela, por simbolizar o prolongamento do próprio domingo de Páscoa, numa atitude festiva da Igreja e dos fiéis, podendo dizer-se que representa uma espécie de diminutivo da palavra Páscoa, ou Páscoa Menor e era neste domingo que se iniciavam as celebrações e as festas em louvor do Divino Espírito Santo, pois a partir deste dia todas as coroas dos vários impérios da freguesia se deslocavam, em cortejo, acompanhadas dos foliões e das bandeiras, para a igreja paroquial, onde ficavam presentes durante a missa de domingo. Por isso estes domingos eram designados pelos domingos em que o Senhor Espírito Santo ia à Missa. Nos pátios das casas onde existiam crianças eram colocadas bandeiras do Espírito Santo, vermelhas e brancas, com o desenho da coroa ou da pomba no centro.

Segundo a tradição popular, nalgumas localidades, era durante a celebração da missa, no domingo de Pascoela – quando esta se realiza às três horas da tarde em ponto – que, entre a elevação da hóstia e do cálice, «ao pedir-se uma graça, ela seria concedia».

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publicado por picodavigia2 às 11:57

MORAL SÓLIDA

Sexta-feira, 18.04.14

A Fajã Grande, na década de cinquenta, sobretudo devido à sua situação geográfica, era uma sociedade bastante isolada, com alguns hábitos e costumes muito rudimentares mas com uma moral digna, nobre e recta.

A maioria da população podia, verdadeiramente, ufanar-se de possuir uma conduta moral nobre e digna e, no seu dia-a-dia, no seu trabalho, nos poucos convívios e descansos de que dispunha, nas festas e divertimentos em que participava, enfim, sempre e em toda a parte, era detentora de costumes simples e bons. Uma digna herança do passado! Praticamente não se conheciam ladrões, pelo que os roubos eram raros e pouco generalizados, até porque sendo uma pequena freguesia rural, muito distante e até, praticamente, isolada de corruptores, não sofria quaisquer influências malignas ou malfazejas. Geralmente ninguém guardava para si o que não era seu e até os achados eram, religiosamente, anunciados pelo pároco à hora da missa, ou no caso dos mais pequenos e menos valiosos, colocados sobre a pia da água benta, à entrada da igreja, a fim de que o dono os recolhesse.

As pessoas adultas andavam sozinhas pelos caminhos e pelos matos, as crianças brincavam nas ruas, as portas das casas estava sempre abertas e quaisquer bens deixados aqui ou além, sem problema. Apenas se contavam, mas com o fim de assustar os mais tímidos, “estórias” de fantasmas, de feiticeiras e de almas do outro mundo.

A educação moral dos filhos também era um ponto de honra. Estes deviam ser educados, respeitadores, trabalhadores e obedientes, evitando brigas e palavras e gestos obscenos.

Havia por vezes, entre as pessoas, algum sentimento de vingança e de intrigas, muitas vezes dentro da própria família, mas a maioria delas acabavam por pacificar-se mais tarde. Os fajãgrandense. No geral, eram francos muitas vezes, ainda que duma rude, muito corteses, sabendo retribuir o bem que lhes era feito.

 A Fajã Grande, na década de cinquenta, era, na verdade, uma freguesia pacata, onde dominava a excelência dos costumes e de uma moral sólida. As excepções eram poucas e, obviamente, não ofuscavam a regra geral.

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publicado por picodavigia2 às 15:22

A VIA SACRA

Quinta-feira, 10.04.14

Uma das celebrações religiosas frequentes na Fajã, durante a Quaresma, era a Via Sacra, realizada, habitualmente, às terças e sextas-feiras, na igreja paroquial. Revestido de sobrepeliz e estola rocha, o pároco, acompanhado do sacristão que transportava, nas mãos, uma enorme cruz de madeira – a cruz da via sacra – percorria as catorze estações, representadas por outros tantos quadros, dependurados nas paredes do templo e que mostravam os principais momentos da paixão e morte de Jesus. Enquanto o povo permanecia nos seus lugares, ora de joelhos, ora em pé, o pároco e o sacristão movimentavam-se, ordenadamente, de um para outro quadro, diante dos quais, o prebendado lia pequenos textos, que incluíam frases e citações bíblicas relativas às imagens representadas no respectivo quadro. Enquanto se deslocava de uma para outra estação, pároco e fiéis rezavam conjuntamente a seguinte oração:

 

Recebei estes meus passos,

Ó meu amável Jesus,

E permiti que Vos ajude

A levar a Vossa Cruz

 

Que eu por ela consiga

Dos meus pecados perdão,

A Vossa Graça do Senhor

E a Eterna Salvação

 

E que depois deste desterro

Eu vos vá ver, ó Jesus,

No Feliz Reino da Glória,

Cercado da Eterna Luz.

 

A Via Sacra, na Fajã era realizada à tardinha, enquanto a missa, de semana, era celebrada de manhã.

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publicado por picodavigia2 às 16:04

A QUARESMA ANTIGAMENTE

Segunda-feira, 17.03.14

Na década de cinquenta e anteriores, na Fajã Grande, como de certo em muitos outros lugares das Flores e dos Açores, a população vivia a Quaresma, ou seja, o período de tempo entre Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa, com bastante intensidade, sentido de sacrifício e penitência. A palavra Quaresma vem do Latim quadragésima, e significa espaço de quarenta dias. Como noutros casos, entre os cristãos, o número 40 é carregado de grande simbolismo. Entre outros significados, pode entender-se como um período de preparação por causa de um grande acontecimento, ou de descanso depois de uma grande actividade, usando-se, frequentemente a expressão “está de quarentena”. No Antigo Testamento, o dilúvio durou 40 dias e 40 noites e 40 anos foi, também, o tempo que passou o Povo de Israel no deserto, preparando-se para entrar na Terra Prometida. Os habitantes de Nínive fizeram 40 dias de penitência antes de receber o perdão de Deus, 40 dias esteve Moisés e Elias na montanha e Jesus passou 40 dias no deserto.

Cuida-se que a instituição litúrgica da Quaresma tal como chegou ao século XX, foi organizada em Roma, na segunda metade do século IV. Era o grande período em que toda a Igreja fazia penitência e se purificava a fim de preparar a Páscoa.

O que na Fajã Grande mais caracterizava estes quarenta dias, era ser um tempo de jejum e penitência. As orientações da igreja, na altura, eram claras e o povo, no geral, cumpria-as a rigor. O jejum consistia na privação total ou parcial de ingestão de alimentos. Havia uns que comiam pouco e apenas em três vezes ao dia, pese embora, em muitos casos isto acontecesse todo o ano, dada a pobreza geral em que a população vivia. Por sua vez a abstinência consistia em não comer carne em todas as sextas-feiras da Quaresma. O jejum e a abstinência eram impostos, principalmente, como forma de sacrifício - a quem já fazia tantos sacrifícios - mas também como uma maneira de se educar, de ir percebendo que, o ser humano o que mais necessitava era de penitência a fim de conseguir as benesses de Deus, nomeadamente o perdão dos pecados e um lugar no Paraíso. Quem não cumprisse pecava, pelo que devia confessar estes pecados. Oficialmente, o jejum devia ser guardado apenas pelos cristãos baptizados, com a idade entre 18 e 60 anos, e em dois dias da Quaresma: na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. Por sua vez a abstinência devia ser guardada nestes dias e em todas as sextas-feiras da Quaresma.

O pároco, nesta altura, vendia as “bulas” e “indultos”, segundo as quais, mediante o pagamento de certa importância por pessoa, ficavam estas desobrigadas, isto é, poderiam comer carne na Quaresma e em todas as sextas-feiras do ano excepto nas da Quaresma. Quem não pudesse pagar esta “penitência” só tinha que cumprir, da outra forma, os preceitos de  bom cristão: Não comer carne na Quaresma e em todas as sextas-feiras do ano.

Na igreja havia vários indicadores de que a Quaresma era um tempo de penitência. Para além de se usar a cor litúrgica do roxo, não se colocavam flores nos altares e, nas duas semanas antes da Páscoa, os santos eram tapados com panos pretos, o que tornava a Quaresma um tempo feio, triste, escuro e difícil de compreender. A realização da Festa do Senhor dos Passos, na Fajã Grande, no segundo domingo da Quaresma, tornava tudo mais triste, mais negro e mais medroso. Era a imagem do Senhor, sentado na pedra e coroado de Espinhos. Na Quaresma ainda era obrigatória a confissão e a convite do pároco vinham outros sacerdotes, para ajudar a fazer alguns dias de pregação e oração e ajudar no confesso.

A cor litúrgica deste tempo é o roxo que simboliza a penitência e a contrição. Usava-se no tempo da Quaresma e do Advento, para lembrar a tristeza e a dor, sendo que na altura nos funerais era utilizado o preto.

As celebrações da Semana Santa começavam no Domingo da Paixão, quinze dias antes da Páscoa, dia a partir do qual os santos eram tapados. Seguia-se o Domingo de Ramos, com a respectiva procissão, representando a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Os ramos, eram benzidos na Casa do Espírito Santo de Cima, seguindo-se uma procissão até à igreja. Simbolizam-se com eles, geralmente de alecrim, a paixão e morte do Senhor.

Era também durante a Quaresma, às terças e sextas-feiras, geralmente após se fazer a Via-Sacra, ao romper da noite, que um grupo de homens subia o Outeiro e, ajoelhados, junto à cruz, quer chovesse, quer ventasse, ajoelhava, entoando cânticos e impropérios diversos e prolongados. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente, em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores.

A Quaresma, na Fajã Grande, terminava com a celebração da Páscoa, nomeadamente com a missa, durante a qual, ininterruptamente, se cantava o “aleluia” e era preparada com duas semanas e meia de uma espécie de pré-Quaresma, durante as quais os domingos eram denominados por septuagésima, sexagésima e quinquagésima.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A TRÊS TEMPOS

Sábado, 15.03.14

I - AO ROMPER DA AURORA

Na década de cinquenta, na Fajã Grande, Ilha das Flores, dava-se, inequivocamente, cumprimento ao estabelecido no velho adágio “Deitar cedo e cedo erguer…”, pelo que o povo caminhava para os campos e trabalhava, de acordo com a popular modinha beirã “Ao romper da bela aurora, vai o pastorzinho…”

Na realidade, naqueles longínquos anos, todos os dias, incluindo, domingos, dias santos, feriados e dias santos abolidos, o dia de trabalho iniciava-se altas horas da madrugada. No Inverno, os homens saíam de casa com destino aos campos, ainda noite escura. Havia tarefas que, necessariamente, deveriam ser feitas alta madrugada. A mais cansativa, para quem tinha gado vacum, era a de ir ceifar um ou dois molhos de erva às lagoas – terrenos onde a erva crescia no meio de água – acarretando-a às costas, para os palheiros, onde o gado a aguardava como alimento preferido. A erva, para manter a qualidade e a frescura de bom alimento, devia ser ceifada e guardada antes do Sol nascer. Era uma tarefa cansativa e desgastante, não apenas no ceifar mas sobretudo no carregar com os molhos às costas. Para além de serem muito pesados, pingavam enorme quantidade de água que escorria pelos ombros e costas dos que os carregavam, encharcando-os, por vezes, da cabeça aos pés. Outra tarefa, embora mais leve e menos cansativa e, por isso mesmo, atribuída, geralmente, às mulheres e às crianças era a de ir buscar ou levar o gado às relvas, o que também era feito de madrugada. O gado devia evitar o calor do dia ou o frio da noite e ser ordenhado a tempo de o leite ser entregue nas máquinas. Assim, uma outra tarefa que se impunha era a da ordenha e do transporte do leite para os sítios onde era desnatado. Só depois, por vezes já bastante tarde, as mulheres faziam o café, misturando alguns grãos do dito cujo com chicória, cevada e, por vezes até favas ou milho torrado, tudo devidamente moído, em água a ferver. Despejado em grandes tigelas misturava-se um pouco de leite. O almoço, como então se chamava a primeira refeição do dia, para além do café bem quentinho, aromático e fumegante, incluía pão de milho ou bolo, geralmente acompanhado com queijo caseiro ou doce. O pão de trigo era apanágio dos dias de festa e, quando o de milho escasseava, recorria-se a bolo do tijolo ou a papas fritas, quando estas sobravam da véspera. Quando o pão de milho era mais envelhecido e rijo ou já roçava o gosto azedo do bolor, fritava-se em banha de porco, sendo que, muitas vezes, as fatias, antes de fritas, eram passadas por ovo batido. Nesses dias, considerava-se o almoço um luxo. Só então se partia para os campos para as tarefas da manhã.

 

Ao romper da bela aurora,

Sai o pastor da choupana.

Vem gritando em altas vozes:

- Muito padece quem ama

 

Muito padece quem ama,

Mais padece quem namora.

Sai o pastor da choupana,

Ao romper da bela aurora

 

Não empobrece ninguém.

Assim como não enrica.

Não empobrece ninguém

Assim como não enrica.”

 

Se na bela e popular canção beirã, substituíssemos a palavra “ama” por “trabalha”, embora perdendo a rima e desajustando a métrica, ganharíamos um interessante e significativo hino ao árduo labor que, quer nas frescas madrugadas de Verão, quer nas tempestuosas e escuras manhãs de Inverno, homens, mulheres e crianças realizavam na Fajã Grande, na década de cinquenta, do século passado.

 

II - PELA MANHÃ FORA, TOQUE, TOQUE

Após o almoço da manhã, seguia-se a parte mais tormentosa e cansativa do dia, em termos de trabalhos agrícolas. Era por volta das nove horas que se iniciava esta segunda etapa de trabalho intenso e extenuante, a qual terminava ao início da tarde. Na Primavera era o tempo de preparar os campos e semear os milhos, tarefa demorada, porquanto as terras tinham que ser adubadas, com esterco ou sargaço, muitas vezes acarretado, às costas. Depois era o lavrar com o arado de ferro, desfazer leivas e torrões com a grade, atalhar e, finalmente, semear o milho com o arado de pau. Já crescido, o milho tinha que ser mondado, sachado e corrido e quando espigado, era necessário espalhar e semear as forrageiras – trevo ou erva-da-casta – pelo meio. No Verão as manhãs eram ocupadas com a ceifa dos feitos nas relvas e terras de mato e o desbravar da cana roca, um flagelo que infectava o crescimento das árvores e dos inhames. Era, também, necessário dar continuidade aos trabalhos agrícolas. Além disso, como o gado, nesta estação do ano, devido ao excessivo calor, ficava fechado nos palheiros, era imperioso acarretar os alimentos que necessitavam. No Outono era a apanha dos milhos e o seu arrumo nos estaleiros, tarefa que ocupava não apenas as manhãs mas o dia todo. Além disso, havia muitas outras colheitas a serem recolhidas, nomeadamente, batatas, feijão, cebolas, etc. No Inverno eram as terras de mato o destino de homens e mulheres. Havia que cortar e recolher os incensos, alimento fundamental e quase único, para os bovinos, naquela estação do ano. Era, também, nesta altura que se sachavam os inhames e se cortava e serrava a lenha. O Inverno, porém, na Fajã Grande era bastante intempestivo e chuvoso, pelo que, durante muitos dias, os homens, impedidos totalmente de ir para os campos, a não ser para cumprir os serviços mínimos obrigatórios, aproveitavam amanhã para um merecido descanso, juntando-se à Praça, numa emblemática casa velha que ali existia. Conversavam, fumavam, discutiam, faziam negócios e jogavam às cartas, tendo como mesa, um cesto com o fundo virado para cima. Bem pior era a situação das mulheres nesses dias, porquanto aproveitavam, para remendar, costurar, fiar e efectuar outras tarefas domésticas.

Era pois, pela manhã fora, por vezes conduzindo animais, que o povo caminhava com destino aos campos, a fim de realizar estes e muitos outros trabalhos, calcorreando caminhos sinuosos a abarrotar de pedregulhos, ladeiras íngremes, atalhos e veredas, por vezes carregando pesadíssimos sacos, cestos ou molhos, os homens às costas, com um bordão a servir de alavanca e contrapeso e as mulheres à cabeça, com uma rodilha de pano a proteger-lhe o cocuruto.

 

“Pela estrada plana, toque, toque, toque,

Guia o jumentinho uma velhinha errante.

Como vão ligeiros, ambos a reboque,

Antes que anoiteça, toque, toque, toque,

A velhinha atrás, o jumentito adiante!...

 

Toque, toque, a velha vai para o moinho,

Tem oitenta anos, bem bonito rol!...

E contudo alegre como um passarinho,

Toque, toque, e fresca como o branco linho,

De manhã nas relvas a corar ao sol.

 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,

Toque, toque, toque, que recordação!

Minha avó ceguinha se me representa...

Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,

Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

 

Mas na Fajã Grande, freguesia com grande parte do território encastoado entre colinas e outeiros, os caminhos não eram nada planos e o jumento, na década de cinquenta, ainda era um animal raro, naquela freguesia. Para além de se ir levar a “moenda” ao moinho, com alguma frequência, havia muitas outras tarefas a realizar, mas, à boa maneira da moleirinha de Guerra Junqueiro, homens, mulheres, velhos e crianças, caminhavam, todos os dias, manhã fora, toque, toque, a trabalhar árdua e penosamente, a fim de, ao início da tarde, ao chegar a casa, dispor, apenas e tão só, de um simples e parco jantar.

 

III - QUANDO A TARDE DESCIA

 

Após um “jantar” frugal – batatas ou inhames com uma limitada porção de peixe, ou conduto de porco racionado ou uma torta de ovos, às vezes, simplesmente, batatas de mangão – impunha-se, novamente, um caminhar apressado e lesto para os campos, porque a tarde descia rápida, a fim de que se desse continuidade ou se terminassem as tarefas iniciadas de manhã. Muitas vezes havia que substituí-las por outras, impossíveis de adiar. No primeiro caso, as mulheres, iam aos campos levar o jantar aos que ali trabalhavam. Poupava-se tempo e ganhava-se no avanço do trabalho. Havia no entanto, muitas tardes em que era imperioso homens e mulheres dedicarem-se a outras tarefas, como a apanha das batatas, o plantar e cortar das couves, acarretar esterco para os campos ou, na maioria das vezes, trabalhar as terras mais próximas de casa e as situadas à beira-mar. Nas tardes de Verão, no entanto, era quase impossível trabalhar nos campos da Fajã Grande. A razão era simples: a freguesia situa-se, como o nome indica, numa “fajã”, ou seja, num terreno baixo, por trás do qual existe uma rocha. Só que, neste caso, a rocha de tão alta e inclinada que era, fazia jus a que o Sol nela se reflectisse e retrocedesse sobre o povoado, como que redobrando a força, a intensidade e o calor. Um autêntico forno! Por isso os homens passavam as tardes, sentados à sombra das casas, conversando e falquejando. No Inverno, ao invés, tardes havia em que era impossível trabalhar, neste caso devido à chuva e ao mau tempo.

Em contrapartida trabalhava-se à tardinha e durante uma boa parte da noite para compensar as “folgas” das tardes calorentas. Estes trabalhos relacionavam-se sobretudo com o tratamento e ordenha do gado e a limpeza dos palheiros, esta uma das tarefas mais degradante, asquerosa, conspurcas, imunda e enlameada que os homens eram forçados a executar. Munidos do “garfo de tirar esterco”, puxavam, rapavam, remexiam, amontoavam, espetavam toda aquela imundície acumulada nos palheiros e padejavam-na às garfadas para um monte de esterco que dia após dia ia crescendo e fermentando fora da porta do palheiro, levantando um cheiro horroroso, promíscuo, mefítico, aberrante que penetrava pelas frestas e paredes das casas contíguas e que se defluía, emanava e dispersava pelos arredores. Uma ou duas vezes por semana também era necessário despejar a poça, com odores e cheiros ainda mais mefíticos. O seu conteúdo era padejado com um caneco velho, para de dentro das “latas da urina” ou seja, uns enormes vasilhames de madeira, exclusivamente usados para este fim e que depois de cheios eram transportados aos ombro, presos num pau, um atrás das costas e outro à frente, para alimentar e fazer crescer as caseiras, as batatas-doces e as couves que floresciam nas terras do Porto, das Furnas e do Areal.

Trabalhos cansativos e degradantes que custavam e que doíam, realizados, como Fernando Pessoa escreveu, enquanto a sombra da tarde descia, emersa nas canseiras do fim do dia.

 

“O sol às casas, como a montes,

Vagamente doura.

Na cidade sem horizontes

Uma tristeza loura.

 

Nesta hora mais que em outra, choro

O que perdi.

Em cinza e ouro o rememoro

E nunca o vi.

 

Felicidade por nascer,

Mágoa a acabar,

Ânsia de só aquilo ser

Que há-de ficar.

Sussurro sem que se ouça, palma

Da isenção.

Ó tarde, fica noite, e alma

Tenha perdão.”

 

E nesta “cidade sem horizontes” (entenda-se: nesta freguesia sem horizontes) chegava uma tristeza loura, um suplício a que estiveram rigorosa e permanentemente condenados, em pleno século XX, os nossos avós, os nossos pais e os nossos irmãos. Talvez por estas e por outras razões e porque, voltando ao poema de Pessoa, havia uma felicidade por nascer, uma mágoa a acabar, e, por isso, com uma enorme ânsia de só aquilo ser, muitos escapuliram para a América e para o Canadá.

 

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publicado por picodavigia2 às 21:09

OS SINOS

Domingo, 09.03.14

O sino é um objecto ou instrumento sonoro, usado por muitas religiões, como forma de assinalar os momentos mais solenes das mesmas. Os sinos das igrejas são de metal com têmpera própria, o que lhes confere um som específico, Tem a forma de uma taça invertida e, geralmente são tocados internamente, por meio de um badalo. Os sinos têm uma linguagem própria e um significado marcante. Nos meios rurais os sinos das igrejas, tinham e continuam a ter um significado muito grande para as populações. Mas mesmo nas grandes urbes, apesar do progresso e do desenvolvimento industrial, os sinos nunca perderam o seu valor e simbolismo. Em tempos antigos, eles eram, em muitas localidades, o único veículo de comunicação, mandando mensagens para a população, não apenas s carácter religioso, mas também anúncios de morte ou alarme de incêndios e outras calamidades. Os dobres e repiques dos sinos continuam, ainda hoje, informando horários de missas, enterros, homenagens a santos, festas religiosas, etc.. Esta notável forma de comunicação foi muito importante em épocas antigas, quando a população não contava ainda com a instantaneidade das notícias de rádios, TVs e Internet. Mas o toque de um sino liberta vibrações com efeitos poderosos de acordo com seu som, que é definido pelo seu tamanho, pela sua espessura e pelo material de que é feito e da têmpera que lhe é dada.

O sino é, pois, uma verdadeira maravilha de arte, que encanta pela simplicidade, fascina pela sua harmonia, pela beleza de suas proporções e riqueza dos seus.

A igreja da Fajã Grande tinha apenas dois sinos. O grande, suspenso na janela da torre sineira da fachada do templo, voltada a nascente e o pequeno na janela voltada a sul, ou seja do lado da Courelas. Os sinos tinham um papel importantíssimo na vida e costumes da população e, pese embora a igreja não tivesse relógio, nem, consequentemente, os sinos batessem as horas, a maioria da população orientava e organizava a sua vida por eles. Durante a semana tocavam, para além do anúncio da missa, três vezes por dia. As trindades, de manhã e à noite e o meio-dia, às doze horas. Assim, como o sino se ouvia em quase toda a freguesia, logo que batia o meio-dia, era um chamamento a fim de que todos voltassem a casa para o jantar. À noite, acontecia o mesmo, a quando das trindades. O seu toque, dado ao lusco-fusco, avisava que se aproximava o anoitecer. Por isso se utilizava com muita frequência este proverbio “Trindades batias, meninas recolhidas.”

Mas era sobretudo aos domingos que os sinos mais tocavam, fazendo-o de forma mais solene, uma vez que, quer o ângelus, quer o chamamento para a missa eram acompanhados de repique, assim como o momento da elevação da hóstia e do cálice. No caso do anúncio da missa dominical ou de outra celebração litúrgica, o sino grande dobrava uma hora antes e dava três pancadas um quarto de hora antes, toque este conhecido por picadas. Na altura em que o sacerdote saía da sacristia com destino ao altar, o sino grande, sempre ele, dava uma pancada. Durante a Quaresma estavam proibidos os repiques, excepto no dia dezanove de Março, por ser dia da festa do padroeiro São José.

Nos dias de festa, porém, os sinos excediam-se nos seus batimentos, enchendo a freguesia com os seus harmoniosos toques, repiques e dobres. As trindades nesses dias eram dobradas, isto é, as pancadas das avés marias eram dadas pelos dois sinos, em simultâneo e o batimento final, em vez das habituais duas pancadas da semana, eram substituídas por três repiques, sucessivos.

Sempre que falecia alguém os sonos dobravam a finados, três laudes ou seja dobravam três vezes tratando-se de um homem e duas no caso das mulheres. Em ambos os caos os sinos ainda dobravam uma hora antes do funeral e enquanto o féretro era conduzido da igreja para o cemitério, depois da encomendação. No dia de defuntos os sinos também dobravam a finados, várias vezes, durante o dia.

Durante as procissões em que eram conduzidas imagens os sinos repicavam e nas procissões das rogações ou de penitência dobravam. Depois da missa de quinta feira Santa, durante a qual se realizava a cerimónia do Lava-pés, até ao domingo de Páscoa os ninos estavam proibidos de dar qualquer toque, incluindo as trindades, sendo, neste caso, substituído pela matraca.

Por alturas dos festejos do Espírito Santo os sinos tocavam repiques com muita frequência, sobretudo nos cortejos em que era levada a coroa, durante a ida ao Porto matar o gado, durante a distribuição da carne pela população e nos cortejos das coroas para a igreja.

Em bora raros, terá existido um ou outro incêndio na Fajã, os quais foram anunciados pelos sinos, que também assinalavam com repiques a chegada à freguesia de alguns vips, como o Bispo da Diocese e o Presidente da República, o que, no entanto, acontecia muito raramente.

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publicado por picodavigia2 às 18:31

BALEIA, BALEIA

Terça-feira, 04.03.14

A casa da vigia construída bem lá no alto do Pico sobranceiro ao Areal, era um pequeno quadrado de cimento branco, com uma fresta voltada para o mar e uma pequena porta de madeira para terra, sobre a extensa e abruta ravina que era o Pico, que se estendia até ao Canto do Areal. Lá dentro, com binóculos em riste, o Manuel Manquinho e o António Machado, com potentes binóculos, debruçavam-se, dia após dia, sobre a borda da fresta, com a tampa levantada, a espreitar, a observar minuciosamente, a vigiar o mar de lés-a-lés, em busca das baleias, que de vez em quando, haviam de assomar à tona, lá, bem longe, quase no fundo do horizonte. De lá, do alto, onde até o Sol nascia mais cedo e donde quase parecia tocar-se o céu, vislumbrava-se um bom pedaço do mar, numa grande amplitude, quase infinito, desde os Bredos até ao Risco, com o Corvo a esconder-se, por trás dos Fanais. Cá em baixo, entre ribeiras e veredas, os homens trabalhavam os campos, lavravam, semeavam, sachavam, ceifavam em pesadas e esgotantes tarefas, enquanto as mulheres ou os ajudavam ou permaneciam em casa, a lavar a roupa, a casa, a tratar dos filhos, a serrar e fender lenha e a cozinhar. Muitos desses homens aguardavam, atentamente, que, lá no alto, no cimo do Pico, fosse atirado um foguete ou uma bomba, a anunciar o aparecimento de baleia, Quando tal acontecia, aqueles que eram baleeiros suspendiam, imediatamente, os trabalhos e iniciavam uma louca, espavorida e atropelada correria na direcção do Porto Velho, onde os botes, escarrapachados no cimo do varadouro, à espera de serem arreados e a Santa Teresinha, já na água, os esperavam. Muitas mulheres também corriam, mas para casa, a fim de preparar uma cesta com bolo, pão, conduto de porco ou queijo, o que estivesse mais à mão, a aquecer café e depois, seguem também elas, umas a arrastar galochas, outras descalças, mas sempre muito lestas, para o Porto Velho. Algumas, as que demoraram mais, quando chegam já os botes estão no Boqueirão. Então aflitas, aos tropeções descem pelo Caneiro e atiram as cestas com a comida e as sacas com roupa, para dentro das embarcações. Só por milagre, mulheres e mantimentos não caem ao mar. Crianças, escapulindo da escola, também correm para ver e aprender. Um dia serão eles a embrenhar-se naquela faina, Por sua vez, os velhos, embora devagar, também lá chegam, para observar, para aconselhar e recordar. Um ou outro velho, mais trôpego e pouco desenvolto, chegou mais tarde e ficou cá em cima, junto da eira, com uma mão a segurar a bengala e a outra sobreposta ao olhar, na tentativa de ver melhor o que já não consegue ver. Os botes partem e as mulheres, languescidas e melancólicas, regressam às casas e aos campos a fim de terminar as tarefas que ficaram por completar.

A remos, à vela ou rebocados pela Santa Teresinha, sempre ela a última a partir para recuperar algum baleeiro que não chegou a tempo ou uma cesta de comida que chegou atrasada, os botes caminham na direcção do mar alto, até se perderem de vista. Na encosta do Pico da Vigia, um enorme lençol branco indica-lhes a direcção. A fim de algum tempo, os botes aproximam-se dos cetáceos e a Santa Teresinha abandona-os, não vá o ruído do seu motor espantar a caça, O esforço dos homens, agora, movendo os botes a remos, no mar alto, é redobrado. É que por vezes as baleias, rapidamente, mudam de rumo e o vigia, tão distante, já não os pode informar, alterando a posição do pano. Mas há sinais previamente combinados. O circular dos botes é um pedir de informações que, geralmente já não chegam. O vigia, sempre atento, volta a ver as baleias e altera a posição do pano. Os botes, sobre as ordens do oficial, retomam rumo certo e avançam, loucamente, ávidos da conquista, mas consciente dos perigos que correm.

Finalmente avistam as baleias, lá bem longe, e continuam a corrida. É imperioso aproximar-se delas, sem ruído. O oficial ordena ao trancador que se prepare. Este, hábil e experiente, coloca-se de pé, sem se agarrar ao que quer que seja, à proa, de arpão em riste, à espera das ordens do oficial que agora conduz ele próprio o bote, apenas com o sábio movimentar do remo esparrel. Há um silencio total, absoluto, enigmático e misterioso, entrecortado, apenas e levemente, pelo bater ritmado do esparrel na água. Finalmente a ordem do oficial. O animal reapareceu à tona da água. O posicionamento é bom. Perante o “atirar” convicto do oficial o trancador, gingando-se para trás, impinge toda a força ao corpo e atira o arpão, certeiro ao enorme corpo do cetáceo. Este, apanhado de soslaio, instintivamente, dá um grande abanão à cauda, formando ao redor uma enorme ondulação que coloca o bote em alvoroço, ao mesmo tempo que, num movimento brusco e inesperado, mergulha nas profundezas do oceano, presa pela enorme corda que amarrava o arpão. A corda, armazenada numa selha, vai-se desenrolando, numa velocidade estonteante, ao mesmo tempo que se escoa pela borda do bote. Um dos homens, por ordem do oficial, prepara o facão e coloca-se em alerta, junto à selha. Assim que corda estiver a chegar ao fim, só resta uma alternativa: cortá-la imediatamente. E era uma vez uma baleia… Mas a corda ainda continua a correr, muito bem enrolada dentro da selha, perante a espectativa dos marinheiros, Felizmente que a baleia volta à tona para respirar e a corda deixa de correr. A Santa Teresinha está por perto e, por ordem do oficial, aproxima-se e dá-lhe uma, duas, três e mais lancetadas, até que sangre e desfaleça. Antes porém ainda mergulha mais uma vez, reaparece e mergulha, mergulha e reaparece até se esvair, por completo, em sangue. O mar ao redor, tornou-se numa enorme mancha vermelha. Terminou a luta, com sucesso. Agora o reboque do animal para Santa Cruz, tarefa de que a Santa Teresinha se encarrega, enquanto os botes, depois dum breve repouso para abrir as cestas da comida. Muitos homens não têm apetite e algumas cestas regressam a casa quase cheias.

A remos, no escuro da noite, os botes regressam ao Porto Velho…

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publicado por picodavigia2 às 21:12

O VESTUÁRIO

Terça-feira, 25.02.14

Não se pode falar, com rigor, de um traje típico da Fajã Grande, no que às primeiras décadas do século passado, diz respeito. As pessoas, no geral, andavam descalço e vestiam pobremente, sendo que a maioria da roupa vinha da América e por isso mesmo, muitas vezes o seu uso tornava as pessoas desaleitadas e pouco elegantes. Apesar de tudo o vestuário permitia uma perfeita distinção entre o pobre e o rico, sobretudo entre os que trabalhavam no campo e os que não faziam nada e que, consequentemente, andavam sempre bem vestidos. Cada qual se vestia de acordo não tanto com as suas possibilidades, mas sobretudo em função do que vinha da América, nas tradicionais encomendas e lhe coubera, muitas vezes por sorte.

De entre as peças de vestuário feminino usadas, antigamente, na Fajã Grande, merecem lugar de destaque a chamada saia peliçada e o bolero. Muitas vezes e em muitas ocasiões, as mulheres usavam um lenço de merino, a cobrir a cabeça, atando-o por debaixo do maxilar inferior ou com as pontas amarradas atrás: de clafá. As mulheres de mais idade, muitas delas viúvas, vestiam totalmente de negro até ao fim da sua vida. Usavam um xaile negro, por cima do vestido e um lenço escuro na cabeça. A forma de trajar o xaile dependia do estado da portadora ou de uma situação passageira porque passava. Assim, as viúvas e as mulheres quando deitavam luto usavam-no dobrado em triângulo e sem cadilhos, para maior simplicidade, fazendo-o cair em ponta, ao longo das costas. Era o chamado xaile de ponta. Por sua vez as mulheres solteiras ou casadas usavam o xaile, dobrando-o como se fosse uma manta. Para sair de casa depois de cozer pão e estar quente do forno ou em dias de chuva ou de noite, as mulheres colocavam o xaile sobre a cabeça, prendendo-o, à frente, com as mãos

As cores preferidas na indumentária feminina variavam com o estado de solteira, casada ou viúva. Estas vestiam de preto até ao fim da sua vida ou até contraírem novas núpcias. As solteiras usavam roupas de cores vivas e claras, as casadas de cores mais modestas, mas tudo isto, na maioria dos casos era condicionado pela roupa que vinha nas sacas da América. Como objectos de adorno, as raparigas solteiras, geralmente, traziam, ao pescoço, um colar ou um fio com uma cruz ou medalha e usavam brincos nas orelhas. Também era muito usado o broche e as prisões de prender o cabelo. O anel, geralmente fantasia, constituiu o mais apreciado objecto de luxo da mulher, que o trazia não só como adorno mas ainda como distintivo do seu estado. As solteiras traziam-no nos dedos indicadores e médio, as casadas, no anelar da mão esquerda.

Os homens vestiam calça de cotim ou de angrim, estas vindas da américa, camisa de flanela e a froca, uma espécie de blusão também de angrim, substituído, poe vezes por uma jaqueta e noutras por uma suera, sendo esta também muito comum às mulheres.

A roupa melhor era designado por roupa de domingo enquanto a outra simplesmente se chamava roupa de trazer.

Vindos da América, também era muito vulgar, nos homens o uso dos alvarozes imitação do inglês overalls. Tratava-se de umas calças de angrim, bastante larga que se vestiam sobre uma camisola feita de lã de ovelha. Os homens, mesmo os mais novos, geralmente cobriam a cabeça com uma boina ou com um boné. Ao domingo alguns usavam chapéu de lona e nos dias de muito sol quase todos recorriam ao chapeu de palha de trigo entrançada, fabricado na própria freguesia e também comuns às mulheres, mas com formas diferentes e distintas para cada um dos sexos. Sobretudo os mais novos andavam, em regra, descalços, sendo a cobertura dos pés quase considerada um luxo escusado e dispendioso. Andar descalço era o mais normal, noentanto, além de ser prejudicial à saúde e inconveniente, na travessia de grotas e ribeiras, e no trânsito por caminhos íngremes e escorregadios. Pior no entanto era a lama que se infiltrava em dedos gretados e em topadas, situação que atingia o seu apogeu nos momentos de tirar o esterco e a urina dos palheiros do gado. Somente os velhos e doentes andavam calçados, sendo muito comuns os chamados sapatos de pele de cabra. Os sapatos que vinham nas encomendas da América, muitas vezes grandes outras curtos e quase sempre usados e desajeitados eram um luxo, sendo o seu uso exclusivo de domingos e dias de festa.
Para certos serviços, nomeadamente o de ceifar erva nas lagoas, eram as botas de borracha, compradas nas lojas da freguesia e muito prejudiciais à saúde. Alguns homens usavam tamancos e as mulheres galochas

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publicado por picodavigia2 às 10:50

IR AO MOINHO

Domingo, 16.02.14

Desde o início do seu povoamento que a agricultura, juntamente com a pecuária, é, desde longa data, um dos pilares fundamentais da economia das ilhas açorianas. Na Fajã Grande, como em toda a ilha das Flores.na primeira metade do século passado, cultivava-se sobretudo o milho.

A importância do milho na economia da freguesia acresce do facto de em tempos relativamente recentes, o milho ser frequentemente utilizado como moeda de troca e como meio de pagamento de serviços de vária ordem neste contexto, marcado por uma economia de subsistência Ao longo do ano, quando não havia farinha ou quando a existente estava prestes a chegar ao fim era necessário tirar uma parte do milho que estava guardado nos estaleiros, de maneira a encher uma moenda que seria levada ao moinho. Para tal era necessário tirar do estaleiro uma certa quantidade de milho, o qual, antecipadamente devia ser descascado, caso se tratasse de cambulhões. A retirada destes do estaleiro deveria ser sempre inversa à da sua colocação, de forma a não prejudicar o que lá ficava e apenas na quantidade necessária para encher a respectiva moenda, que de imediato seria levada ao moinho.

Na Fajã Grande havia quatro moinhos todos na Ribeira das Casas, dois pertencentes a tio Manuel Luís, um ao Manuel Dawling e o Moinho do Engenho, que teve vários proprietários, acabando, mais tarde, por ser abandonado. A Ponta tinha os seus moinhos e as pessoas da Cuada iam moer o seu milho à Fajãzinha, por lhes ficar mais perto. Competia a cada agricultor ou a um membro da sua família levar a sua própria moenda ao moinho, tarefa geralmente atribuída às raparigas, as quais aproveitavam a ida para por em dia a conversa com os namorados. Na ocasião em que se entregava a moenda era combinado com o moleiro o dia em que estaria pronta. Ao moleiro competia apenas moer o milho, pagando-se ele próprio do seu trabalho através de uma “maquia” de farinha que retirava de cada uma das moendas. Como geralmente não a utilizava para uso pessoal, dado que ele próprio também tinha as suas terras de milho, vendia-a compensando assim todo o trabalho que tinha e as horas que passava no moinho, onde geralmente pernoitava, pois a substituição de cada moenda era manual.

Os moinhos na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores eram movidos a água, por isso eram construídos junto das ribeiras donde se desviava a água para um rego ou levada, que corria na direcção do moinho. A água encanada no respectivo rego corria no mesmo com maior pressão, saía do rego e projectava-se contra uma enorme roda dentada cujo movimento comunicava a toda a restante engrenagem que acabava por movimentar a mó. Na Fajã Grande os moinhos ficavam situados junto da Ribeira das Casas e deles, actualmente, apenas restam ruínas.

Os moinhos eram construídos em locais de rara beleza, embora tendo o inconveniente do relativo isolamento e da distância face aos núcleos populacionais. Além disso os caminhos de acesso, ao longo da Ribeira das Casas eram íngremes e sinuosos e a moenda tinha que ser carregada às costas ou cabeça. Escolher o moinho a que se devia ir dependia de um conjunto de factores, entre os quais a distância a percorrer e os meios de acesso, as relações de amizade e de parentesco que se tinham com os moleiros, o montante das maquias, a qualidade do serviço, a disponibilidade do moleiro e o atendimento. Mas na Fajã Grande, os moinhos mais procurados eram os do Tio Manuel Luís, que tratava muito bem a sua clientela que era sempre atendida educadamente e muito bem servida.

As pessoas, em tempos de menor procura, esperavam até que a farinha estivesse feita ou regressavam a casa e voltavam ao moinho no dia seguinte ou no dia indicado pelo moleiro. Na Fajã Grande ia.se ao moinho com muita frequência, pelo que os moinhos eram espaços de convívio social de eleição. Por vezes eram autênticas romarias, uns a ir outros a vir, parando e descansando aqui e além. Os moinhos eram importantes locais de convergência, sendo usual o facto de neles ou nas suas imediações se encontrar sempre não apenas que ia ao moinho mas as lavadeiras da Ribeira das Casas, as pessoas que iam ou vinham da Ponta e ainda os que iam trabalhar para as terras ao redor dos próprios moinhos.

Ir ao moinho era fundamental na vida da Fajã Grande. O milho era levado ao moinho em sacas de pano que vinham da América. Competia a cada agricultor ou a um membro da sua família levar a sua própria moenda ao moinho, tarefa geralmente atribuída às raparigas, as quais aproveitavam a ida para por em dia a conversa com os namorados. Na ocasião em que se entregava a moenda era combinado com o moleiro o dia em que estaria pronta.

Ao moleiro competia apenas moer o milho, pagando-se ele próprio do seu trabalho através de uma “maquia” de farinha que retirava de cada uma das moendas. Como geralmente não a utilizava para uso pessoal, dado que ele próprio também tinha as suas terras de milho, vendia-a compensando assim todo o trabalho que tinha e as horas que passava no moinho, onde geralmente pernoitava, pois a substituição de cada moenda era manual.

 

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ANOS CINQUENTA – 3ª PARTE

Sábado, 08.02.14

(Continuação)

 

Outra actividade a que se associava mais uma espécie de festa familiar já referida, era o apanhar do milho. Também se iniciava de madrugada com a apanha das maçarocas dos milheiros, a qual, por vezes, até se fazia de noite, sobretudo, quando havia luar. O milho depois de apanhado e colocado em cestos, era acarretado em carros de bois ou nos corsões para as casas e colocado em lugar de honra: na cozinha ou na sala, no caso desta ser muito pequena. Depois todos se sentavam à volta do monte de milho para encambulhar, ou seja, fazer pequenos conjuntos em que as maçarocas eram presas por uma folha, juntando-se umas às outras e amarrando-as nas pontas. Os mais pequenos acarretavam os “cambulhões” para junto do estaleiro, onde os homens mais experientes os iam pendurando de modo a que resistissem à chuva e ao vento, ao longo do ano. O milho que não servia para encambulhar era descascado, o melhor era encambulhado sem casca e pendurado na parte interior do estaleiro ou nas traves da cozinha ou duma casa velha, O restante era debulhado, às vezes posto a secar, e guardado para ser usado em primeiro lugar. O milho das maçarocas mais verdes, ainda a “verterem leite”, era moído em pequenos moinhos manuais ou “pedras de moer” e, com ele faziam-se as tradicionais e típicas papas grossas,. À noite depois de realizado todo o trabalho havia serão, com estórias e jogo de cartas.

Importante acrescentar que decerto não estava alheio a este espírito festivo a importância, quer do porco, quer do milho na alimentação desta população. Era imperioso venerar e festejar aquilo que, quase de forma divinal e misteriosa, era fundamental para a própria existência. Esta dependência das pessoas do porco e do milho, como que se prolongava para além da morte. Dois pequenos factos o comprovam. Primeiro o que acima referi, ou seja o de ninguém na freguesia comer a língua do seu próprio porco, uma vez que a oferecia para as almas. Estas tinham um mordomo que as leiloava e com o dinheiro mandava celebrar missas pelas almas dos defuntos de toda a freguesia. Algo de semelhante acontecia com o milho. Depois da época das colheitas, no dia um de Novembro, mês das almas, o referido mordomo chefiava um grupo de homens que andavam pelas portas de todas as casas da freguesia a pedir o milho para as almas. Cada qual dava uma parte do que havia colhido, consoante quisesse e entendesse. O milho que se recolhia era vendido, tendo o produto de tal venda destino igual ao da língua dos porcos.

Festa familiar também era a do dia em que se ceifava o Bracéu, embora nem todas as famílias a realizassem, simplesmente porque, na década de cinquenta, muitas famílias já não tinham bracéu. Bracéu era uma espécie vegetal, do tipo junco, mas muito mais fino, chamado cientificamente de “Fetusca jubata”, que crescia nas terras do mato, acima da rocha. As famílias que iam para a apanha do bracéu também marcavam o dia, com alguma antecedência e para lá se deslocavam, alta madrugada, com o respectivo e devidamente preparado jantar. Lá passavam o dia, uns ceifando, outros acarretando aos ombros os molhos de bracéu para cima da rocha. Aqui verificava-se um fenómeno muito curioso Estes molhos eram colocados e presos com ganchos num arame grosso, propriedade de todos, que em poucos segundos os fazia deslizar pela rocha até cá abaixo, junto do povoado, onde alguém os ia tirando da verga e arrumando, acarretando-os depois em carro ou corsão para o palheiro ou casa velha, onde devia ser guardado. O bracéu depois de seco destinava-se a fazer cama ao gado no Inverno, substituindo os fetos, que, por vezes, rareavam. Era também com este bracéu que se faziam os pincéis para caiar as casas, mas, neste caso a quantidade necessária era muitíssimo pouca, mas era sempre ir busca-lo ao mato ou pedir a alguém que o trouxesse.

Em relação às festas comunitárias, realizadas na freguesia, pode dizer-se que tinham duas variantes: uma religiosa e outra profana.

As festas religiosas estavam, obviamente, marcadas por padrões religiosos e costumes cristãos comuns a outras regiões do país e eram orientadas por normas canónicas ou litúrgicas e por orientações e decisões do pároco, obedecendo a cânones preestabelecidos. Apenas as festas do Espírito Santo, realizadas nos seis impérios existentes na freguesia, tinham um carácter mais laico, uma vez que o pároco não intervinha na sua orientação e, além disso, adquiriam aqui e em toda a ilha das Flores, matizes próprias e características, diferentes das outras ilhas açorianas, tendo, no entanto, mais de profano do que de religioso. Estas festividades traduziam, fundamentalmente, a pobreza e as carências alimentares da população, para as quais procuravam ser uma resposta. Isto porque na sua génese estavam os jantares de Espírito Santo, que implicavam a distribuição de pão de trigo e de carne pelos pobres, manjares raros nos cardápios diários da maioria da população. Estas festas também adquiriam um cunho notavelmente clubista. A freguesia tinha quatro impérios de adultos e dois de crianças, os quais representavam uma espécie de agremiações ou clubes, destacando-se dois, mais fortes, mais poderosos e maiores e que eram: a Casa de Baixo e a Casa de Cima. Quase toda a população ou pertencia a um ou a outro império, o que implicava uma acentuada rivalidade, fazendo cada um deles a sua festa em dias diferentes, devendo ser sempre maior e melhor do que a do outro, em autêntico espírito competitivo. As festas de cada um dos seis impérios eram precedidas de oito dias de alvoradas e folia, reunindo-se toda a população na sede de um ou outro Império. Os foliões acompanhados por tambor e pratos dançavam diante da coroa, cantando loas e imprecações ao Divino Espírito Santo. A cantoria das alvoradas iniciava-se fora da porta da casa e terminava em frente ao altar onde estavam os símbolos do Senhor Espírito Santo: a coroa e a as bandeiras, uma vermelha símbolo da carne e outra branca a simbolizar o pão. Depois da folia e das Alvoradas iniciavam-se jogos populares variadíssimos, sendo alguns de canto e dança. No dia da festa realizava-se um majestoso cortejo com destino à igreja, precedido pelas coroas e bandeiras de todos os impérios que assim se associavam nas festas, uns aos outros. Depois da missa o cortejo voltava para a sede. De seguida o povo recolhia às suas casas para o jantar. Este jantar fora, porém, cuidadosamente preparado e era parte integrante da festa. Incluía dois alimentos que a população habitualmente não comia: o pão de trigo e a carne de vaca. O pão era mandado cozer pelos “cabeças” da festa e oferecido aos mais pobres. Quanto à carne todos os irmãos de cada império se inscreviam antecipadamente, indicando a quantidade que pretendiam para a festa. Os “cabeças” calculavam, então, a carne necessária e compravam os animais. Estes, na sexta-feira antes da festa, eram conduzidos para o local apropriado, que por isso mesmo recebera o nome de Matadouro, em cortejo e devidamente ornamentados e acompanhados, pelo repicar dos sinos, pelos foliões, pela coroa e bandeiras por muito povo, onde eram abatidos. Na noite seguinte a carne era partida e eram feitos os quinhões de cada irmão ou mordomo. No sábado organizava-se novo cortejo, com coroa, bandeira e foliões e sinos sempre a repicar. Percorriam as casas de todos os mordomos, enquanto meninos e meninas iam distribuindo, em cestinhas e açafates, a carne e o pão. De tarde, depois do jantar, continuava a festa com jogos, arraial, quermesse, bailes, terminando tudo ao anoitecer com as sortes. Para a realização das sortes, ou seja, da escolha dos “cabeças” do ano seguinte, punham-se na coroa bilhetes enrolados, com o nome de cada um dos irmãos que tinham capacidade para serem cabeças. Eram então tirados dois nomes à sorte. Mas podia acontecer algo de insólito: eram os “cabeças” que efectuavam a operação das sortes e se o povo tivesse gostado deles se tivessem feito uma boa e bonita festa, enquanto estavam a tirar as sortes, os presentes tentavam cobri-los com a bandeira. Se o conseguissem antes de saírem as sortes, estas já não se efectuavam, eles seriam os novos “cabeças” para a festa do ano seguinte. A festa terminava com o levar as sortes, isto é, com uma visita a casa dos novos “cabeças” com coroa, bandeia e foliões. Esta festa podia repetir-se várias vezes durante o ano no mesmo império, embora com matizes diferentes. Isto acontecia quando alguém, geralmente um “calafona”, prometia e dava um jantar. A festa repetia-se quase nos mesmos moldes, só que, neste caso, não eram os irmãos a pagar a carne, mas sim aquele que tinha prometido o jantar.

Outras festas religiosas importantes eram a da Senhora da Saúde, uma das maiores da ilha das Flores, a do padroeiro, São José e ainda outras menores como a de Santo Amaro, da Senhora do Rosário, a do Senhor dos Passos e a de Nossa Senhora do Carmo, na ermida do lugar da Ponta.

 Das festas estritamente profanas e ligadas ao trabalho, era digna de menção o Fio, ou seja, a tosquia colectiva dos ovinos. Estes eram criados em conjunto na zona do “concelho”, grande espaço comunitário de pastagens no mato, onde se juntavam indistintamente todas as ovelhas do povoado. A festa também tinha à sua frente dois “cabeças”. Estes antecipadamente faziam anunciar o dia do Fio, duas vezes por ano, uma em Abril e outra em Setembro, geralmente através de um edital colocado à porta da igreja. Na véspera preparava-se o jantar ou a merenda e amolavam-se as tesouras para a tosquia. No dia de manhã, bastante cedo, os primeiros a partir para o mato eram os homens. As mulheres e as crianças seguiam mais tarde, subindo a rocha em autênticos bandos. No povoado ficavam apenas os velhos, os doentes, as crianças de berço e quem não possuía ovelhas. As mulheres levavam à cabeça os cestos com os alimentos para todo o dia. Os homens, ajudados pelos cães e orientados pelos “cabeças”, distribuíam-se em grupos, por uma ampla zona, fazendo cerco às ovelhas, conduzindo-as e juntando-as todas num curral apropriado - o Curral das Ovelhas, que dera nome ao local onde se situava. Quando aí chegavam com o enorme rebanho, já os esperavam as mulheres e as crianças. Todos se sentavam sobre a erva, em lugares previamente escolhidos e nos quais haviam de permanecer até ao fim do dia. Terminada a primeira refeição, os homens saltavam para o curral a fim de que cada um procurasse as suas ovelhas que eram identificadas através de sinais convencionais que lhes tinham sido marcados nas orelhas. Cada chefe de família tinha o seu sinal, diferente dos outros todos, distribuído pelos “cabeças” e guardado por estes, a fim de não haver confusão e, assim, cada um identificar apenas e tão só os seus animais. Exemplifiquemos um destes sinais: orelha direita – forcada e troncha; orelha esquerda – troncha fendida com três moças.

Uma vez escolhidas e retiradas as ovelhas do curral, seguia-se a tosquia, finda a qual os animais eram soltos e enviados para o “concelho”, de novo. No curral apenas ficavam os que não tinham sinal, ou seja, as crias pequeninas e algum animal adulto, nunca assinalado e que não era de ninguém. Estes eram arrematados, ficando o dinheiro para a organização. Os cordeirinhos eram identificados pelas próprias mães. Era a petizada que de tal se encarregava. Se uma ovelha desse leite, tinha cria. O dono assinalava-a com uma peça de roupa e colocava-a de novo no curral, sob a vigilância, geralmente, de um filho mais novo. Dentro em pouco a cria procurava a mãe para mamar e logo eram apanhadas: mãe e cria. Esta, então, era assinalada nas orelhas com o sinal do dono, ficando apta a ser identificada nos próximos Fios. Terminada a tosquia todos regressavam a casa, desta feita em conjunto. A freguesia povoava-se de novo e em quase todas as casas berrava um carneirinho que seria refeição nos dias seguintes.

Outra festa, ou melhor outro trabalho festejado era o sargaço, cuja efectuação, no entanto, dependia do mar. Algumas vezes, durante o ano, certas marés traziam para a costa enormes quantidades de algas marinhas que tinham grande utilidade para estrumar e adubar os campos. A sua recolha era feita quase como se fosse uma festa. O Rolo, onde saía o sargaço, era dividido aos pedaços e assinalado pelos que primeiro iam chegando. Mas tinha que dar para todos. Cada qual, munido de um garfo de tirar esterco dos palheiros, tirava o sargaço no seu sítio, conforme podia, por vezes esquivando-se às ondas bravias, para um monte onde o mar não chegasse e donde mais tarde seria acarretado para os “lagos”, às costas e em cestos, num contínuo vai e vem do qual resulta um extraordinário espectáculo de movimento e cor. Aí se passava o dia, aí se jantava e aí se ceava, prolongando-se a azáfama pela noite dentro, transformando o espectáculo numa movimentação sublime de luzes e luzinhas que se reflectiam na tranquilidade das águas do Atlântico.

Outra festa estritamente profana, mas não ligada ao trabalho, era o “Intrude”, que durava três dias. Eram célebres as danças realizadas nesses dias.

Eram estas festas de trabalho ou às quais o trabalho se associava ou talvez ainda mais correctamente, este dar-se ao trabalho um sentido de festa que, juntamente com as restantes festividades religiosas que, de alguma forma destruíam e destronavam o isolamento e a monotonia do quotidiano desta população. Começando a trabalhar, geralmente, antes do amanhecer e até muito depois do pôr do Sol, estes homens e estas mulheres eram limitados por natureza e sentiam que algo lhes faltava. Daí a necessidade de criarem ainda outros meios de lazer e outras formas estruturais de sociabilidade que ultrapassassem, sobretudo em frequência, as próprias festas. Era aqui que tinham grande significado os serões, sobretudo os das longas noites de Inverno, nas casas uns dos outros. Fazer serão, em casa de um amigo ou de um parente ou familiar era um hábito corrente. As mulheres, numa quase perfeita cadeia de moderna montagem industrial, trabalhavam a lã em série: umas depenicavam-na retirando-lhe a sujidade, outras cardavam, outras fiavam e outras dobavam-na em novelos. Os homens geralmente deitavam-se cedo e quando o não faziam, jogavam às cartas. Também se contavam estórias maravilhosas e fantásticas, rimances antigos em forma de poesia ou então narravam-se as antigas viagens por terras da América. Às vezes, até se cantava.

Sair à noite sozinho, porém, era perigoso, sob o ponto de vista de “medos” e pouco aconselhável. Só os mais “anamudos” o podiam fazer, isto porque “as almas do outro mundo” proliferavam por toda a parte e apareciam, a torto e a direito, por tudo o que era sítio escuro. Já muitos as haviam visto e contavam-se coisas terríveis e tenebrosas que a todos assustavam. Nos serões muitas destas histórias eram repetidas vezes sem conta. A meia-noite era a hora pior e a mais perigosa, pois era a hora do diabo. Este era mesmo designado pelo epíteto de “o que anda â meia-noite”. O seu nome nunca devia ser pronunciado, por isso também era designado pelo “não dei que diga”, o “coiso mau”, o “cão da noite”. Invocava-se Lúcifer, sem no entanto pronunciar o seu nome. “Entregar”, isto é, dizer o nome do diabo ou chamar diabo a alguém era uma palavra feia, proibida de ser pronunciada por uma criança, um pecado muito grave. Na origem das estórias contadas, estava geralmente a aparição do próprio diabo.

Que sofrida que era a vida desta gente. Sacrifícios e mortificações faziam parte do seu quotidiano e consubstanciavam-se de forma permanente e contínua com o viver deste povo. Esta vida sofrida talvez também tivesse alguma relação com os medos e com as crenças do além que povoavam o seu imaginário. Uma das manifestações desse sentimento de sacrifício, perdão, ou até de expiação, de que a igreja e o clero tinham a sua cota parte de responsabilidade, estava exemplificada no “cantar no Outeiro”. Tratava-se duma cerimónia de cariz religioso, muito curiosa e interessante, em que directa ou indirectamente se envolvia toda a população, realizada todas as segundas, quartas e sextas-feiras da Quaresma. Nesses dias, por volta das nove horas da noite, um grupo de homens, alguns já de avançada idade, dotados de boa voz e ainda melhores pulmões, quer chovesse ou fizesse vento, subiam o Outeiro sobranceiro à freguesia e de joelhos, junto a uma cruz que ali ainda existe, cantavam em altas vozes, orações apropriadas e antigas. Pediam a Deus clemência para os infelizes e abandonados, perdão para os pecadores, porto de salvação para os perdidos no mar, auxílio para os desamparados, saúde para os doentes e salvação para os agonizantes. As suas fortes vozes faziam-se ouvir ressonantes sobre as casas da freguesia e, por isso, ao mesmo tempo, todas as pessoas ajoelhavam nos seus lares e em silêncio iam acompanhando as preces dos cantores, intercalando-as com orações de acordo com as suas ordens. Só terminado o canto se voltava à conversa.

Muitas expressões, provérbios e adágios deste povo, permitem ajudar a compreender esta específica e muito especial a maneira de ser bem como as agruras, as atrocidades, o sofrimento e o trabalho árduo do seu dia-a-dia.

Eram estas, em linhas gerais, as características duma população situada quase no meio do mar, apesar de pouco influenciada por ele, que até ao início dos anos cinquenta mantinha uma idiossincrasia, própria e específica de um povo cujo quotidiano era dominado pela insularidade e, dentro desta, por um isolamento que quase a fazia única no contexto insular açoriano.

Tudo isto, porém, a partir de meados da década de cinquenta, aproximar-se-ia do início do seu fim. Grandes e importantes transformações se verificaram, a todos os níveis, no viver, no sentir, nos costumes e, sobretudo, nos anseios e aspirações desta gente, perdendo-se assim, no entanto, uma originalidade de vida, uma pureza de costumes e uma singularidade vivencial que, não sendo única, pelo menos era rara. Vários foram os factores que contribuíram para tal mudança, sendo de destacar como mais importantes os seguintes:

1) O grande surto emigratório para os Estados Unidos e para Canadá, verificado a partir da década cinquenta, uns por que encontraram no fundo dos baús e de velhas gavetas os tão almejados “papeles” que os seus antepassados, outrora, haviam obtido naqueles países e lhes garantiam a entrada no novo “el-dorado, outros por carta de chamada que os parentes lhes faziam.

2) A chegada da Telefonia e Rádio, que a partir dos finais dos anos cinquenta começa a ser uma presença continua em todas as casas.

3) A construção duma estrada, aparentemente e outrora quase impossível, ao longo da rocha e que passou a ligar este povoado ao resto da ilha, também nos finais da década de cinquenta.

4) A implantação de uma fábrica de Agar-Agar nos Açores, cuja matéria-prima, as algas, passaram a ser compradas a preços muitíssimo altos. Muitos dos habitantes da freguesia abandonam por completo a agricultura, alguns vendendo as próprias terras para se dedicarem à apanha e recolha das algas, das quais outros se tornam intermediários, arrecadando sofríveis fortunas.

Em menos de cinco anos, o progresso, a técnica, o desenvolvimento industrial e a emigração transformaram totalmente esta micro sociedade, fazendo-a abandonar e até esquecer alguns dos seus usos e costumes, uma boa parte da sua própria cultura, impondo-lhe um ritmo, uma maneira de ser e de viver quase totalmente diferente da antiga e primitiva

Era uma sociedade agrícola que sentia aproximar-se o princípio do seu fim e o início da sua passagem a uma quase sociedade industrial. Essa mudança, porém, será longa e morosa.

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