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VIDA COMUNITÁRIA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Terça-feira, 23.05.17

Aqui, na Fajã Grande, antigamente, as pessoas demonstravam um grande sentido de comunidade, pois ajudavam-se muito umas às outras, participando conjuntamente nos trabalhos agrícolas e até juntando-se para tudo o que fosse necessário, como para casar uma filha, receber um americano ou até para construir a própria casa. Eram muitas as atividades que se faziam comunitariamente.

Mas era sobretudo nos trabalhos e atividades agrícolas que as pessoas mais se ajudavam. No desfolhar e apanhar do milho, no encambulhá-lo e guardá-lo no estaleiro, nas sementeiras das batatas, no plantar as couves e as batas doces, no ceifar dos feitos ou cortar lenha, na matança do porco e em muitas outras atividades. Nas longas noites do inverno eram as mulheres que se juntavam para também se ajudarem umas às outras a cardar, a fiar, a fazer meia, ou até a debulhar o milho, a picar a cebola para as morcelas, etc.

Mas este sentido de ajuda e de comunidade que havia nesta freguesia ainda se fazia sentir em muitas outras atividades feitas conjuntamente, como a de debulhar na eira o pouco trigo que ainda existia, a moer o milho nos moinhos de mão, a amassar e cozer o pão no forno, ou a massa sovada para as festas do Espírito Santo e de Santo Amaro, a lavar a roupa nas ribeiras, a levar o gado ao mato, a limpar os caminhos, nas festas, ao tirar as derramas e, muito especialmente, no dia de fio. Este sim era um verdadeiro dia de vida comunitária.

Tudo isto fazia com que as pessoas fossem muito amigas umas das outras e se respeitassem umas às outras. Havia poucos roubos, os mais novos respeitavam os mais velhos e aceitavam, de bom grado, os seus conselhos. De notar que, à semelhança de todo o norte rural do continente português, todos tratavam os mais velhos por tio e tia, o que indicia uma quase relação familiar e de respeito e amizade.

Gosto pois que ainda hoje tratem os mais velhos desta maneira. Gosto que me tratem por Ti Antonho!

 

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EU E AS VACAS (DIÁRIO DE TI ANTONHO)

Quarta-feira, 22.02.17

Desde criança sempre tratei de vacas. Até quando estive na América trabalhei durante muito tempo num rancho a ordenhar vacas. Nessa altura, até na América, o leite se tirava todo à mão. Dizem que agora já é tudo com mexins. Toda a minha vida trabalhei. Passei todos os meus dias só trabalhar. Trabalhei na lavoura e a tratar e tirar leite às vacas. Quando era pequeno até ia ajudar o meu avô, quando meu pai não precisava de mim. Aos dez anos comecei a tratar das vacas sozinho a tratar delas durante o dia. Depois de sair da escola, aos 12 anos, já tratava das vacas sozinho. No inverno leva-as para as relvas durante o dia e à noite ia busca-las e guardava-as no palheiro para se defenderem do frio. Mas durante o dia tinha que ir buscar comida, geralmente erva e incensos para elas comerem durante as noites que eram muito longas. No verão devido ao calor que se faz, durante o dia, nesta freguesia, fazia ao contrário. Ia levá-las às relvas à noite e busca-las de manhã. Durante o dia tinha que lhes dar comida. O meu irmão mais velho ia ceifar, sachar, mondar e semear com meu pai e eu é que tratava das vacas. Eu tratei sempre das vacas, andei sempre com as vacas, por isso, é que ainda hoje, apesar de velho ainda tenho uma vaca e uma gueixa. Gosto muito de tratar das vacas. A minha paixão, ainda hoje, é as vacas. É uma paixão tal que não posso passar sem ela. Quando vendo uma das minhas vacas ou a embarco para Lisboa fico muito triste, quase choro. Quando me adoece uma vaca também fico muito triste. Agora, estou a criar apenas uma vaca e uma gueixa para fazer dela vaca. A mãe já está velha. Quando a gueixa der cria vou engordar a vaca e embarcá-la para Lisboa. Enquanto Deus me der vida e saúde vou ter sempre uma vaca. Mas mesmo só uma vaca dá muito trabalho e consumição.

As vacas foram sempre o meu sustento. Sempre vendi algum leite e com o dinheiro comprava o que precisava. Mas a maior parte era para beber em casa e fazer queijo. A minha Maria também chegou a fazer manteiga em casa.

Mas tratar das vacas dá muito trabalho. Todos os dias, quer chuva torrencialmente, quer faça grandes temporais temos que tratar delas. No outono guarda-se fetos secos e rama e espiga de milho. Mas não dá para todo o inverno. Mesmo com mau tempo tem que se ir buscar molhos de erva e incensos e ir levá-las e busca-las às relvas. Mas mesmo assim eu adoro tratar das vacas. Gosto muito de tratar delas. Gosto muito de vacas.

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MATANÇA DO PORCO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quinta-feira, 22.12.16

Quando eu era criança a matança do porco realizava-se de madrugada e era um dia de folia ou de festa para cada família. A preparação da matança começava muitos dias antes. Era preciso cortar lenha, serrá-la e fendê-la, ir buscar queirós ao Mato para o chamusco e cortar cana roca para secar o curral. Na véspera da matança era preciso o picar a cebola para as morcelas, cozer o pão e as escaldadas, preparar as comidas e comprar uma garrafa de aguardente. Eram convidados os familiares mais chegados, os vizinhos ou alguns amigos. O dia da matança começava cedo, com a chegada dos convidados e do matador que tomavam pequenos cálices de aguardente, para aquecer, coisa rara nos outros dias do ano. Depois enganava-se o porco para que saísse do chiqueiro, tapando de seguida a porta do mesmo para que o porco não voltasse a entrar e se escondesse durante a luta que se seguiria. Alguns homens mais afoitos saltavam para o curral, localizado regra geral atrás da cozinha da casa, tentando agarrar o animal e amarrá-lo pelos queixos. Era nestas alturas que o dono gostava de mostrar o porco aos convidados, com vaidade, pelo seu enorme porte e muita gordura. Depois o porco era puxado ou arrastado até junto da mesa onde era deitado num banco, preso pelos homens e morto com uma facada dirigida ao coração. O sangue era aparado num alguidar de barro por uma mulher e seria utilizado, mais tarde, para as morcelas. Depois de morto, o porco era “chamuscado”, com as queirós trazidas do Mato e que haviam sido postas a secar. Seguia-se a lavagem, a abertura e o esventramento do animal, que posteriormente, era dependurado de uma trave de uma loja, de uma casa velha ou até na cozinha. Depois era o almoço em que se comia, peixe, feijão assado, carne de ovelha e caçoila do porco. À tarde o principal trabalho da matança cabia às mulheres; lavar as tripas, encher e cozer as morcelas, depois dependurá-las nos fumeiros da chaminé. A meio da tarde, amigos da família, expressamente convidados para o efeito, vinham ver o porco, e provar a caçoila, os inhames, as iscas de figo e um copo de vinho. Depois jogavam às cartas e as crianças jogavam à bola com a bexiga. À tardinha, desmanchava-se o porco, picava-se e temperava-se a carne das linguiças e à noite já se comiam bifes e morcelas. No dia seguinte derretiam-se os torresmos e salgavam-se os ossos que eram guardados numa salgadeira. Minha mãe mandava-me sempre ir levar uma posta de carne e toucinho a casa de alguma pessoa a quem devesse favores.

Era assim as matanças de porco na minha casa, quando eu era criança e que afinal eram muito parecidas com as de hoje.

 

 BOAS FESTAS

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O INVERNO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Domingo, 18.12.16

O inverno aqui na Fajã Grande é terrível. Há dias em que quase nem se pode sair de casa. O vento é fortíssimo e a chuva torrencial. As pessoas recolhem-se, como os grilos, nos seus esconderijos. Os homens juntam-se em qualquer sítio mais abrigado, a falquejar e a descansar, ou numa casa velha a jogar às cartas, enquanto as mulheres ficam em casa, a limpar, a arrumar armários, a consertar o que está à espera de reparos, a costurar, a fiar, a cardar e a fazer outros trabalhos

O inverno aqui, na verdade, é muito rigoroso, por vezes até chove pedra.

Mas é nesta estação do ano que as pessoas convivem mais, ficam mais solidárias, se ajudam mais, porque ficam mais tempo juntas. Para além de se juntarem ao serão, passam muitas tardes e até manhãs juntos, uma vez que não podem ir para os campos trabalhar. É sobretudo no dia de matar o porco que as pessoas se juntam e convivem muito.

É verdade que o inverno principia no Hemisfério Norte mais ou menos no dia 21 de dezembro, quando ocorre o tradicional Solstício de Inverno, nesta data a noite torna-se a mais longa do ano, mas aqui na Fajã Grande, o inverno começa muito antes, pois a partir do princípio de novembro o tempo já é muito rigoroso, prolongando-se o mau tempo até fevereiro e março. Durante este longo período de tempo a Fajã Grande é assolada, com muita frequência, por violentas tempestades, acompanhas de trovões fortíssimos e relâmpagos assustadores. Para se proteger de tão assustadores catástrofes ou para implorar que elas se afastassem, o povo volta-se para Santa Bárbara, exclamando: Santa Bárbara luz divina! Na verdade é a esta santa que, nestes momentos de angústia e aflição, o povo implorava e pede auxílio, uma vez que a Santa é considerada protetora por ocasião de tempestades, raios e trovões. Esta devoção à santa, apenas nos momentos das tempestades levou, inclusivamente, à criação de um adágio muito utilizado na freguesia: Só te lembras de Santa Bárbara quando faz trovões.

Mas o inverno também é uma estação triste. Há dias em que as ruas da freguesia parecem desertas e despovoadas. Apenas as lojas estão abertas e muitos ali se juntam, para descansar.

 BOAS FESTAS

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NOVEMBRO (DIÁRIO DE TI ANTONHO)

Quarta-feira, 30.11.16

Para mim este mês de novembro é um dos mais tristes do ano. Nunca me agradou lá grande coisa. Para além de ser um mês em que os campos estão quase desertos e muito pouco produzem é um mês escuro, desolado e muito triste. Não há flores nem frutos, a não ser as castanhas, e as folhas das árvores tornam-se amareladas e caem. Novembro é também o mês durante o qual na igreja da nossa freguesia se celebram as novenas das almas, durante as quais se reza e se recordam todos os mortos desta freguesia desde do cimo da Assomada até ao fim da Via d’Água. Todos os dias o nosso pároco invoca os defuntos de todas as casas, uma por uma…

O mês de novembro é pois um mês de luto e de tristeza. Quando eu era criança até me assustava ao ver, à noite, na nossa igreja muito escura, aquele cadafalso coberto com um pano negro, debruado a amarelo. O pároco durante as cerimónias também se vestia com paramentos pretos, assim como o povo vestia roupas escuras, sobretudo os mais velhos. Tudo na igreja estava envolto num ambiente fúnebre e sinistro, que causava susto às crianças e contribuía para a tristeza que se estampava nos rostos dos adultos. Além disso todos os dias, à noite, a fim de chamar o povo para as novenas e orações, os sinos da igreja dobravam a finados, como se tivesse morrido alguém. Diziam os nossos avós que era o enterro do velho Laranjinho.

Durante as novenas, umas vezes em português outras lá nos arrevesados latins, o pároco só falava do inferno e das penas que lá havíamos de sofrer se morrêssemos em pecado. Que susto e que tormento!

- “Libera animus omnium fidelium defunctorum de poenis inferni. – Proclamava nos latins. E acrescentava - Requiescant in pacem! Ao que o respondia o povo:

- Amen!

Outras vezes terminando o sermão, o pároco dizia em português:

- Livrai as nossas almas das fauces do leão, não as engula o abismo e não caiam nas profundezas tenebrosas do inferno”.

Na Fajã Grande sempre houve uma devoção muito grande às almas do Purgatório. Para além de se recordarem com sufrágios e orações especiais durante este mês que lhes era dedicado, todas as casas, no dia da matança do porco, guardavam a língua e traziam-na para a igreja, a fim de ser arrematada. Com o dinheiro de todas as línguas o mordomo das almas mandava celebrar missas por todos os defuntos da freguesia. No dia um era feita uma derrama pela freguesia, na qual se juntavam sacos e sacos de milho, cujo dinheiro da venda tinha o mesmo fim.

Por tudo isto é que este mês de novembro era um mês especial dedicado particularmente aos fiéis defuntos. Mas muito, muito triste!

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SÃO FRANCISCO (DIÁRIO DE T’ANTONHO)

Sábado, 12.11.16

Quando estive na Califórnia vivi algum tempo em São Francisco, trabalhando primeiro no Porto e depois na construção da linha férrea, juntamente com outros desta ilha e até da Fajã Grande, como o António Nunes e o Francisco Cerejo. Na altura São Francisco crescia a olhos vistos. Desde de1821, quando o México se tornou independente e passou a dominar aquela cidade, São Francisco começou a crescer e a desenvolver-se muito. É que o governo mexicano estimulou a criação de gado na Califórnia, atraindo assim não apenas muitos americanos como também muitos colonos, sobretudo os ingleses instalados no Canadá, que precisavam de couro para o fabrico de calçado. Mais tarde muitos ingleses instalaram-se na península de São Francisco, onde atualmente fica a maior parte da cidade. Decidiram então construir um grande porto onde trabalharam dezenas e dezenas de açorianos. Eu fui um deles.

Mas o pior foi quando rebentou a guerra entre o México e a América e que causou a anexação da parte superior da região mexicana da Califórnia. A 9 de Julho de 1846, as forças navais americanas capturaram a cidade e deram-lhe o nome de São Francisco.

Eu estive em São Francisco em 1860. Alguns anos antes tinha sido descoberto ouro na Serra Nevada, próximo do lugar em que, mais tarde, foi construída a cidade Sacramento. Isto provocou uma enorme gold rush para a Califórnia o que causou um grande crescimento populacional do estado e da cidade. Imigrantes de quase todo o mundo passaram a instalar-se em São Francisco, incluindo chiness. O porto da cidade recebeu milhares de embarcações vindas de todas as partes do país e do mundo e São Francisco tornou-se no principal centro de mineiros. Dizem que apenas num ano a população de São Francisco passou de menos de mil para 25 mil habitantes, tornando-se uma das cidades mais populosas dos Estados Unidos.

As pessoas que tiveram sucesso na busca ao ouro fizeram de São Francisco uma cidade rica. Foram construídas casas e palácios riquíssimos e luxuosos e o comércio desenvolveu-se muito. Mas tudo isto teve o seu aspecto mau. Começaram a haver muitos roubos, muitas mortes e muitos crimes de toda a espécie. São Francisco passou assim a ser uma cidade na qual era muito perigoso viver.

Em 1855, um barco trazendo imigrantes de um país onde havia uma epidemia de cólera causou uma grande epidemia da doença em São Francisco. Na altura tudo se complicou porque havia falta de água potável, os esgotos eram muito maus e, além disso, os hospitais eram poucos e não conseguiam albergar todos os doentes, pelo que morreu muita gente.

Só 1869 e que terminou a construção da linha férrea entre São Francisco e o Ist. Assim tornava-se muito mas fácil chegar dos Açores à Califórnia. Isto foi muito bom não só para os que emigravam como também pelos que depois de muitos anos separados da família regressavam à sua ilha, como eu. Muitos até voltaram à Califórnia mais uma vez e outros três como foi o caso do meu compadre, o pai do José Batelameiro.

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A VACA PROMETIDA (DIÁRIO DE TI ANTONHO)

Segunda-feira, 03.10.16

Contava-me meu avô que antigamente, parece-me que na Ponta Ruiva havia uma pobre mulher que estava à espera de ter uma criança. Quando se aproximou o tempo de parir a mulher ficou muito doente. Naqueles tempos não havia doutores nesta ilha e então, a mulher, na sua aflição valeu-se da devoção que tinha ao Senhor Espírito Santo. Apesar de o marido só ter uma vaca, ela fez a promessa de que a havia de matar e dar de esmola em louvor do Senhor Espírito Santo. A mulher ficou boa e a criança nasceu saudável e robusta. Mas ela tinha prometido a vaquinha ao Senhor Espirito Santo, sem dizer ao marido. Ele ao saber, já depois do filho nascer, ficou furioso e não deixou matar a vaca pois ela era a única forma que ele tinha de sustentar a família.

Certo dia, o homem levou a vaca para lavrar um campo a fim de semear milho. Ele queria que a vaca andasse e puxasse o arado, mas a vaca ficou parada. Ele bem a picava e lhe batia com a aguilhada mas a vaca nada, nem se mexia. Furioso o homem foi ao carro, tirou um fueiro e voltando à terra começou a bater na vaca com tanta fúria que a pobre quase morreu. Ouvindo os gritos dele a mulher foi a correr com a criança para o lugar onde ele esava. Quando chegaram junto dele, a cara da criança começou a ficar toda riscada, com verdugos semelhantes aos que haviam ficado marcados no corpo da vaca depois do homem lhe bater com o fueiro. Perante a aflição da mulher o homem parou e, no dia seguinte, matou o animal e ofereceu a carne aos pobres em louvor do Senhor Espírito Santo, conforme a mulher tinha prometido. No dia seguinte os verdugos desapareceram da cara da criança e, ao dirigir-se ao palheiro onde guardava a sua vaca, para arrumar o arado, viu lá, no lugar onde costumava esta a vaca, uma bela gueixa que, meses depois deu uma bela cria.

Não sei se esta história era verdadeira ou não. Mas meu avô dizia que sim e que com o Senhor Espírito Santo não se brinca, pois Ele é vingativo. Quem faz promessas ao Senhor espírito Santo tem que as cumprir.

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O TRIGO (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)

Domingo, 20.03.16

Quando eu era miúdo ainda se cultivava muito trigo aqui, na Fajã Grande. Mas a julgar pelo que o meu avô me contava, no tempo dele ainda se cultivava muito mais. Na verdade diziam os antigos que noutros tempos o milho era desconhecido nesta freguesia e que apenas se cultivava trigo nesta terra. O trigo, porém, dava muito mais trabalho e obrigava a mais canseiras para ser cultivado do que o milho. Na verdade o trigo merecia um tratamento especial, não apenas no seu cultivo mas sobretudo na apanha. A colheita do trigo era demorada e difícil. O trigo tinha que ser ceifado com muito cuidado para as espigas não se desfazerem. Havia várias eiras aqui na Fajã Grande. Depois de ceifado e amarrado em molhos com folhas de espadana era levado para a eira onde se fazia a debulha. No meu tempo de criança o dia de debulhar o trigo era um dia muito longo e de muito trabalho mas também era um dia especial, uma espécie de dia de festa para a família, que nesta tarefa era ajudada por vizinhos e amigos. Era um dia de festa e de alegria semelhante ao da matança do porco. Eram precisas duas ou três juntas de bois ou de vacas para andarem na eira a puxar o trilho, à volta do moirão. Uma junta não aguentava o dia todo, pois os animais ficavam tontos e cansadíssimos de tanto andar à roda. O jantar e a ceia nesse desse dia eram melhorados. Na véspera cozia-se pão, um caldeirão de inhames e matava-se e guisava-se uma ovelha que se comia junto com linguiça e torresmos. Os homens tratavam do gado, de espalhar e juntar o trigo e as mulheres joeiravam-no ao vento. E a rapaziada da família divertia-se sentada em cima do trilho ou rebolando-se na palha. Depois de o joeirar o trigo era ensacado e carreado para as casas onde era guardado para ser usado durante todo o ano. Nesses tempos o povo regulava-se e programava as suas atividades agrícolas pelas luas e pelas marés, tendo mm conta as chuvas e o mau tempo. Era assim que se estabelecia os tempos adequados quer para semear quer para apanhar não apenas o trigo mas também todas as outras culturas como os inhames, as batatas, as couves, as cebolas, o feijão e as abóboras. O trigo na Fajã Grande também chegou a ser cultivado estritamente como forragem para animais domésticos ou seja como o feno, em substituição das forrageiras.

Há quem diga que o trigo foi o primeiro cereal cultivado pela humanidade. O primeiro local onde foi cultivado foi no Crescente Fértil, no Médio Oriente. Os arqueólogos demonstraram que o cultivo do trigo é originário da Síria, Jordânia, Turquia e Iraque. Cuida-se que o seu aparecimento terá acontecido há mais de 10.000 anos e terá sido da seguinte maneira: ainda em pleno nomadismo, uma mutação ou hibridização terá ocorrido ocasionalmente, por razões climáticas, originando uma planta com sementes grandes, impossíveis de se espalharem-se pelo vento e nascerem espontaneamente. Esta planta não poderia vingar como silvestre, mas podia ser cultivada e assim produzir mais comida para os humanos.

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DO NATAL AO CARNAVAL (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Terça-feira, 26.01.16

Ainda há poucos dias era Natal e já estamos quase a chegar ao Carnaval. Quando eu era criança costumava dizer-se que Do Natal ao Carnaval era um pulinho de pardal. E é bem verdade, pois perece que foi ontem que aconteceu aquela maravilhosa noite em que se ceia um pouco melhor - galinha recheada, uns inhaminhos com linguiça e, no fim, um pratinho de arroz doce, a cheirar a canela… Depois a missa do galo, à meia-noite. Tudo isto só acontece uma vez por ano, por isso é lembrado muitas vezes, Agora que tudo passou, os dias até já parecem maiores, vão seguindo uns atrás dos outros, sem acontecer nada de especial, a não ser mau tempo. Já quase passamos janeiro e a seguir virá fevereiro que nos trará o Carnaval para adocicarmos a boca, novamente, mas agora com umas filosinhas que a minha Maria faz, muito saborosas e que assim como o arroz do Natal também terão um gosto e um cheirinho a canela. A canela a unir o Natal ao Carnaval. Por esses dias há por aqui muitas folias e também aparecem aqui na freguesia umas danças… umas de cá outras de fora. Eu cá nunca entro nessas brincadeiras. São para os mais novos. Para mim agora só contas e bordões.

Dezembro foi frio, janeiro também e pouco se pôde trabalhar. Fevereiro vamos lá a ver como vai ser. Vamos ver se vem um pouco melhor. Há muito trabalhinho à minha espera, sobretudo nas terras. Tenho que fazer o canteiro da batata-doce, limpar o curral para por o bacorinho novo e lavrar as terras do Areal e das Furnas, para nelas semear o milho mais cedo. Não sabemos se o tempo vai ajudar. Nesta ilha e nesta freguesia, no que ao tempo diz respeito, nunca se sabe o que nos espera o dia de amanhã. De repente levanta-se aí um temporal que não nos deixa fazer nada. Espero bom tempo a fim de que todos estejam seguindo em frente nos seus trabalhos e culturas e que estejamos olhando adiante, centrados no futuro que haveremos de novamente escolher e festejar o Carnaval.

Quando eu era novo o pároco desta freguesia era o padre Bizarra, um homem de muitas letras e de grande sabedoria. Um dia à Praça falando sobre o Carnaval ele disse que se tratava duma festividade muito antiga. Parece que começou a ser festejado quando se começou a celebrar as cerimónias da, Semana Santa pela Santa Madre Igreja, mas que era antecedida por quarenta dias de jejum e abstinência que eram os dias que durava a Quaresma. Como durante esse longo período de tempo havia muitas privações e grandes sacrifícios, nos dias antes da Quaresma começar, na Quarta Feira de Cinzas, o povo comia e bebia bem e fazia grandes festas, pois eram os dias que diziam adeus à carne ou dias de Carnaval. É por isso também que estes dias são chamados gordos, em especial o Domingo Gordo e a Terça-Feira Gorda, pois nestes dias costuma-se comer uma öboa talhada de toucinho com couves e linguiça com inhames. Depois e durante a Quaresma é comer umas tortas de lapas ou peixe frito para quem tem tempo e modo de o ir pescar. Muitas vezes, na Quaresma até se comem as batatas sem nada ou faz-se Mangão. E a minha Maria sabe fazê-lo muito saboroso.

 

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O COELHO BRANCO E O GALO PRETO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 04.12.15

Uma outra estória muito engraçada que meu avô contava era da do Coelho Branco e do Galo Preto. Se bem me lembro a estória era mais ou menos assim: Havia em tempos antigos um homem muito bruto e mau mas que era muito devoto e tinha por hábito rezar todos os dias um Pai Nosso a Senhor São Francisco. Quando estava para morrer apareceu-lhe um anjo e disse-lhe:

- Para te salvares não chegam as orações. Terás que dar uma esmola avultada a um pobre. Caso contrário irás parar ao Caldeirão de Pero Botelho.

Passado algum tempo entrou um velhinho no pátio da casa onde homem morava e os cães não lhe fizeram mal. O criado que trabalhava para o homem quando viu o velhinho dirigiu-se até ele e disse-lhe:

- Como é que entraste aqui sem os cães te impedirem?

O velho respondeu:

- Eles são mansinhos, fiz-lhes umas festas e eles não me fizeram mal.

O velhinho entrou em casa e foi visitar o homem que estava deitado na sua cama, às portas da morte e pediu-lhe uma esmola. O homem virando-se para o criado disse-lhe:

- Dá-lhe cinquenta alqueires de milho.

- Mas ele não trás saco. - Contrariou criado.

- Dá-lhe um saco dos melhores e maiores que temos para levar o milho.

- Mas o pobrezinho também não tem carro para transportá-lo.

- Então carrega tu o milho no carro de bois e vai levá-lo a casa dele.

O criado assim fez e lá foi mais o velhinho.

Quando já iam a meio caminho ouviram o sino da igreja tocar a finados. Era o sinal de que o homem que tinha dado o milho ao velhinho tinha falecido. Nisto passou-lhes por perto um coelho branco a fugir de um galo preto. O velhinho voltou-se para o criado e disse-lhe:

 - O teu patrão já morreu, e o coelho branco, que passou, significa que ele se salvou, o galo preto era o inimigo que vinha a correr atrás dele, mas não o apanhou porque ele foi generoso e deu uma grande esmola. Aquele que fizer o bem neste mundo e repartir os seus bens com os pobres há-de salvar-se e tu, meu amigo, podes levar o milho e ficar com ele para alimentar os teus filhos, porque eu não preciso dele.

Dito isto o velhinho desapareceu.

O criado percebeu, então, que aquele velhinho, a quem o homem deu a esmola e com que o acompanhara com o carro carregado de milho era São Francisco, o sento a quem o seu patrão rezava todos os dias um Pai Nosso.

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A AGRICULTURA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Domingo, 30.08.15

Isto é que é uma preguiceira hoje em dia! No meu tempo não era nada disto! Não havia pedaço de terra que não fosse aproveitado. Cultivava-se de tudo um pouco. Os campos enchiam-se com culturas diversas embora, como hoje, o milho fosse o produto mais cultivado, uma vez que era a base da alimentação da gente desta freguesia, sendo ainda muito utilizado na alimentação dos animais, nomeadamente de galinhas e porcos. Era bonito ver por toda a freguesia cheia de estaleiros e mais estaleiros a abarrotar de milho. Algumas famílias, em anos de melhor e maior colheita tinham que construir um estaleiro suplente. Recorriam ao chamado estaleiro de pé de cabra. A sua construção era simples e fácil e poderia ser feito num canto qualquer da courela, junto de casa. Para a sua construção eram precisos três ou quatro paus do mesmo tamanho e algumas taliscas de madeira ou, em sua substituição canas. Os paus eram amarrados conjuntamente na extremidade mais delgada, sendo depois abertos de forma a afastar as extremidades opostas, simulando uma espécie de pirâmide, de três ou quatro faces, com os pés enterrados profundamente na terra, de forma ao estaleiro resistir a ventos e temporais. Depois eram pregadas as taliscas de madeira nas diversas faces da pirâmide, a fim de nelas se pendurarem os cambulhões. Mas a maioria das vezes recorria-se a uma construção mais simples e fácil que consistia numa espécie de grade, feita com dois, três ou quatro paus de lenha com várias tiras de madeira pregadas. Os paus eram colocados paralelos uns aos outros e equidistantes e de seguida neles se pregavam as ripas de madeira ou se amarravam as canas, com fio de espadana, formando uma espécie de grade, deixando, no entanto, numa das extremidades um espaço de cerca de um metro livre de tiras, sendo esta a parte que assentava no chão e servia de pés. Estes estaleiros eram encostados às empenas das casas e neles se iam pendurando os cambulhões. Para que os ratos não subissem pelos paus até às maçarocas, em cada um deles, logo abaixo das tiras, era enfiada um pedaço de lata velha, devidamente furada e presa de modo a não cair. Quem tinha um estaleiro cheio de milho tinha garantido o sustento no ano da própria família. E então se tivesse um suplente… Era uma riqueza!

Nas Furnas, no Areal, no Porto, no Estaleiro, no Mimóio, no Vale da Vaca, na Bandeja e em muitos outros lugares era bonito ver as pequenas belgas e os serrados muito bem trabalhados, sem mondas e verdejantes porque eram muito bem sachados, mondados e adubados e trabalhados. As terras, naquele tempo, produziam muito e de tudo. Os serrados e os currais próximos do mar eram destinados ao milho, mas neles também se cultivava, couves, feijão, batata-doce e, nos cantos milho de vassoura. Nas terras mais abrigadas e protegidas da salmoura, plantava-se alhos, cebolas e ainda se semeava a batata branca, As belgas e os serrados mais do interior, da Fontinha, Bandeja, Ribeira, Queimadas, Fonte Cima e Vale da Vaca eram quase sempre destinados ao milho e batatas, doces e brancas. Havia belgas onde se plantava batata-doce de latada, isto é, a batata-doce sem nenhuma outra cultura, nomeadamente a do milho. Eram as melhores! A sementeira do trigo já era mais rara, fora substituída pela do milho e verificava-se sobretudo no Areal, onde os terrenos eram mais pobres. Nestas terras, no meio do milho semeava-se o trevo, a erva da casta e outras forrageiras para, depois da apanha do milho, amarrar ali o gado à estaca.

Nos cimos das ladeiras, nas encostas dos montes, a separar as pastagens dos terrenos agrícolas existiram pequenas matas de faias e incensos que forneciam a lenha para a cozinha dos próprios proprietários. Muitas destas terras tinham belgas onde se cultivavam inhames e, nas mais próximas das casas batata-doce. Em muitas delas, sobretudo no Delgado, Cabaceira e Caminho da Cuada, cultivavam-se árvores de fruto. Videiras e figueiras proliferavam sobre os maroiços, nem necessitavam de ser trabalhadas, apenas deviam ser limpas de fetos e cana roca. A Rocha também era aproveitada para dela se retirar lenha, incensos para o gado e fetos e cana roca, os primeiros para cobrir o chão dos palheiros e cana roca para a cerca do porco. Até as terras do mato eram trabalhadas, ceifadas e limpas e, naqueles tempos ainda nem existiam os fios de verga, que ligam o cimo da Rocha até cá abaixo, para neles rolarem os molhos de fetos, de lenha, de queirós e de bracéu. Era tudo acarretado às costas pela Rocha. Trabalhava-se muito mas em compensação havia muito pão, leite e conduto de porco. Hoje, com esta moda do sargaço, muito deixaram de trabalhar as suas terras e muitas dos que foram para a América não têm quem as trabalhe.

É triste olhar para essas terras e vê-las abandonadas e cheias de matas. Mas se isto continua assim, daqui uns anos será muito pior. Oxalá esteja enganado.

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A ORAÇÃO AO ANJO DA GUARDA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quarta-feira, 17.06.15

Quando eu era criança, meu avô contava dezenas e dezenas de estórias. Muitas delas eram casos verdadeiros que tinham acontecido em tempos muto recuados, outras haviam-se passado quando ele era criança. Algumas dessas estórias narravam casos com acontecimentos assustadores como aquela em que ele numa noite se encontrou com o vulto estranho e que era nada mais, nada menos do que o diabo. Antigamente, as pessoas acreditavam que o diabo costumava andar a tentá-las e que lhes aparecia sobretudo à meia-noite, que era a hora do diabo. Por isso ninguém devia andar longe de casa à meia-noite. Mas antigamente não havia relógios e as pessoas que iam para os campos mais distantes ou que faziam viagens mais longas, muitas vezes, para acabar um ou outro trabalho ou porque se demoravam, ficavam até de noite longe de casa. Como não davam pelo passar do tempo, chegava a meia-noite e nem davam por isso.

Ora num certo dia, meu avô foi a Santa Cruz tratar de uns assuntos e, quando regressava, anoiteceu ainda vinha ele a subir o Rochão do Junco. Continuou a andar, mas como a noite estava muito escura perdeu-se e, passado algum tempo já muito cansado e sem saber onde se encontrava, aproveitou uma furna que por ali existia para dormir o resto da noite. Quando clareasse de manhã havia de reconhecer o lugar onde se encontrava e retomar o caminho para casa. Juntou algumas ervas secas com que fez uma cama e cobriu-se com a froca que trazia ao ombro. Mas não conseguia dormir. Passado algum tempo ouviu um barulho estranho. Levantou-se, pegou no bordão que trazia consigo e saiu da furna a ver o que era aquilo. Foi então que à sua frente viu um vulto negro. Era o diabo em carne e osso. Voltou à gruta, pegou num pedaço de pau e amarrou-o ao bordão formando uma cruz. Saiu de novo e, como o diabo ainda lá estivesse, ergueu a tosca cruz que construíra bem alta e, desenhando com ela uma cruz no ar, gritou bem ato:

- Reda vás, Satanás! Reda vás, Satanás.

Como o diabo não se mexesse, meu avô insistiu, gritando mais alto:

- Reda vás, Satanás! Em nome de Deus Pai, de Deus Filho e de Deus Espírito Santo da Virgem Maria e do meu Santo Anjo da Guarda, eu te arrenego Satanás.

Mal acabara esta oração, o diabo deu um estoiro e desapareceu. Meu avô regressou à furna e pensou que tudo isto lhe tinha acontecido porque, por esquecimento, não tinha rezado, como fazia todos os dias na sua cama, a oração que a mãe lhe ensinara e que devemos rezar todos os dias ao nosso Santo Anjo da Guarda, antes de nos deitarmos. Pôs-se de joelhos e rezou:

 - Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, pois que a ti me confiou a piedade divina, hoje e sempre me rege, me guarda, me governa e me ilumina. Amem.

De seguida rezou um Pai Nosso por alma dos seus, levantou-se e, já deitado na tosca e provisória enxerga que ali construíra, concluiu a sua oração, implorando a proteção divina:

- Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do Espírito Santo. Nossa Senhora me cubra, com seu divino manto. Meu Anjo da Guarda, meu bom amiguinho, leva-me sempre para o bom caminho. Amém! – Por fim, benzendo-se, concluiu – Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amem.

Foi assim que adormeceu descansado, sem ouvir mais barulho algum. De manhazinha cedo, levantou-se e logo encontrou o caminho para casa.

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PIRATARIA NA ILHA DAS FLORES (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Segunda-feira, 30.03.15

“Meu avô contava que quando ele era rapaz os habitantes desta freguesia e de toda a ilha das Flores viviam constantemente atormentados com medo que fossem atacados por piratas que os roubassem, violassem as mulheres e as filhas e, por fim, os matassem. Ele contava muitas aventuras, entre elas a de um tal capitão Rafael Semes que comandava um navio de piratas chamado Alabama que caçou dezenas de navios da marinha mercante americana, assaltando-os, roubando-os, matando os seus tripulantes e, por fim, afundando-os. Só num mês aquele maldito capturou e incendiou, ao largo das Flores, a escuna Starlaitt, que viajava da Horta para Boston, e ainda várias baleeiras algumas delas que já haviam ancorado na ilha para aguadas e embarcar muitos emigrantes clandestinos, que tentavam a sua sorte na América. Também contava estórias de uma grande batalha que tinha acontecido quase cem anos antes de ele nascer. Nesses recuados tempos, certo dia, a esquadra de um tal lord Tomas, que se encontrava ancorada e escondida na baía da Ribeira da Cruz, ao avistar uns barcos que vinham de oeste lançou-se, precipitadamente, contra eles julgando que eram espanhóis. Nesse tempo Portugal era governado pelos Filipes, reis de Espanha e quem odiava a Espanha odiava Portugal. Porém, em vez de encontrarem navios mercantes, mal armados, os ingleses depararam-se com a frota de defesa das ilhas, constituída por 40 navios de guerra, comandados por D. Alonso de Bázan, que lhes vinham dar caça. A armada inglesa era bem mais pequena, pelo que foi duramente atacada e destruída pelo fogo inimigo, sendo obrigada a fugir como pôde. Mas houve um navio que não conseguiu fugir juntamente com os outros tendo-se demorado em zarpar de Santa Cruz, e acabou por ser capturado pelos espanhóis. Esse combate foi terrível. Foi uma dura batalha que ficou conhecida pela Batalha das Flores Mas meu avô também contava que, por vezes, os piratas até eram amigos e ajudavam a população. Ocasiões houve em que, tanto os piratas como as pessoas da ilha souberam, por interesse comum, cultivar uma convivência amiga e boa camaradagem. O melhor exemplo disso foi o de um tal pirata chamado Pedro Eston, talvez o mais bem sucedido pirata do seu tempo, que chegou a comandar 40 navios com alguns milhares de homens ao seu serviço, o que fazia dele o corsário mais temido no Atlântico Norte, e que angariou uma fortuna pessoal avaliada em dois milhões de libras. Este pirata visitava com muita frequência a ilha das Flores na procura de carne, água e lenha. Pelos vistos chegou a estar de casamento marcado com uma filha do capitão-mor das Flores. Duplamente incomodado com os prejuízos causados pelos navios deste pirata e ainda com a cumplicidade entre florentinos e corsários, Filipe III de Espanha e II de Portugal mandou-o prender. Mas ele era esperto e poderoso e o rei nunca lhe pôs as mãos em cima. Quem foi preso nas Flores, acusado de compactuar por interesses pessoais com os piratas foi o ouvidor e também capitão-mor da ilha, Tomé de Fraga. “

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NAMORO ANTIGO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sábado, 14.03.15

Estes namoros de hoje são uma pouca-vergonha. Antigamente, o namoro era muito diferente. Os rapazes e as raparigas só podiam namorar diante dos pais e não andavam por aí agarrados um ao outro por tudo o que é sítio, como hoje em dia. Hoje os rapazes e as raparigas começam a namorar sem os pais saberem mas no meu tempo só se namorava depois do rapaz pedir e ter a devida autorização do pai da rapariga para com ela falar. De contrário era um ver se te avias. É verdade que antes de pedir a mão e de namorar a rapariga do seu agrado, que seria a sua futura esposa, o rapaz bem procurava piscar-lhe o olho, olhar para ela com insistência, de maneira a que ela compreendesse. Se o rapaz lhe agradasse ou até já o desejasse, a rapariga ficava um pouco ruborizado de pudor mas arranjava sempre uma maneira de mostrar que também ele não lhe era indiferente. Depois quando se encontravam lá diziam alguma coisa um ao outro mas numa linguagem quase impercetível, como se costumava dizer, falavam de boca pequena. Depois bem procuravam encontra-se nas festas, nas alvoradas, nos caminhos e ao sair da missa. Os rapazes mais atrevidos lá arranjavam maneira de passar à porta das suas eleitas, às horas que calculavam poder descortiná-la, ou se sabiam que ela ia a uma terra, tratar das galinhas ou fazer um mandalete, arranjavam sempre, com artimanhas, uma maneira de se cruzarem com elas. Mas eram precisas mil cautelas! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém. É que se o pai dela os apanhasse era um ver se te avias. E naquele tempo havia pais muito rigorosos. Alguns açapavam nas filhas de corda dobrada, outros de fueiro. Só depois de pedida a rapariga, o rapaz podia falar com ela ou namorar, mas sempre ela à janela e ele do lado de fora. Não era como hoje que namoram encostados às paredes, onde querem e entendem, sem ninguém a “apastrá-los”. Depois do pai conceder autorização ao rapaz para falar com a filha, comunicava-a à mulher para que esta ficasse a par da situação e se mantivesse alerta. Ao princípio era só ao domingo em que eram autorizados a namorar e às horas que o pai determinasse, geralmente de tarde. Depois das Trindades, nem pensar. Daí o adágio: “Trindades batidas, meninas recolhidas”

O namoro, antigamente, também não demorava tanto tempo como hoje. Alguns ficam anos e anos a namorar e a fazer sabe Deus o quê. No meu tempo, poucos meses depois de terem autorização para falar os pais começavam a pensar no casamento, iniciando-se os preparativos: a rapariga começava a bordar o enxoval, enquanto o rapaz começava a arranjar maneira de conseguir uma casinha. E quando resolviam casar, o rapaz combinava o dia em que iria pedi-la em casamento. No dia combinado, dirigia-se à casa da rapariga, geralmente acompanhado do pai, a fim de pedir ao futuro sogro do seu filho, a filha dele em casamento para o seu filho. Eram ocasiões muito sérias e de muito respeito. A rapariga nem estava presente. O pai, depois de dar o seu consentimento, é que a mandava chamar para lhe comunicar o pedido que a rapariga aceitava logo e de bom grado. A partir do dia de pedido do casamento, o rapaz já podia entrar dentro de casa e passear com ela aos domingos, desde que se fizessem acompanhar por um familiar. As famílias dos noivos passavam a visitar-se, aos domingos, a convidar-se para as matanças uns dos outros, etc. A partir de então dizia-se que a rapariga já estava comprometida pois tinha namorado da porta pra dentro. O pior é que nestes casos, se o casamento era “desmanchado”, a coitada da rapariga, geralmente, ficava para tia, pois tarde ou nunca voltaria a ser pedida em casamento. No meu tempo, nesta freguesia, infelizmente, muitas mulheres ficaram assim. Nunca casaram, ficaram solteiras toda a vida, arranjando filhos de uns e de outros. Basta ver os livros de assentos de batismos da nossa freguesia, do final do século passado, para perceber isso.

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publicado por picodavigia2 às 08:10

A FEITICEIRA DA RIBEIRA DAS CASAS (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 27.02.15

Antigamente não havia água canalizada nesta freguesia e as mulheres tinham que ir lavar a roupa à Ribeira. Umas iam para os lados da Ribeira de Cima, no início da canada que dá para a Rocha mas a maioria procurava a a Ribeira das Casas, no Caminho da Ponta, pois aí havia um lago maior e mais pedras a servirem de lavadouro. As mulheres iam a pé com os cestos ou as trouxas da roupa à cabeça. Costumavam ir de manhãzinha, muito cedo, para apanharem um lavadouro livre, para terem a água limpa, para aproveitarem o fresquinho da manhã e para evitarem o calor do Sol. Muitas combinavam ir juntas.

Contava meu avô que certa vez, duas mulheres vizinhas que moravam na Tronqueira tinham combinado de véspera ir juntas lavar a sua Roupa à Ribeira das Casas. A que acordasse primeiro chamava pela outra. Aconteceu que uma delas acordou e, como viu tudo muito claro, pensou que já era de dia e que a vizinha se tinha esquecido de a chamar. Vestiu-se à pressa, pôs a trouxa à cabeça e caminhou apressada para a Ribeira das Casas. Foi andando, sempre muito lesta. Estava tudo claro como se fosse de dia. Depois de descer a ladeira do Calhau Miúdo e de passar o Lago do Sargaço viu que já havia uma grandeza de roupa branca estendida a corar na relvas do lado do Rolo e uma grande quantidade de outra de cor, posta a secar sobre as paredes de pedra, como era costume as mulheres fazerem. Dali não podia ver quem estava a lavar na Ribeira. Mas como viu tanta roupa a secar pensou que deviam estar muitas mulheres a lavar e que de certeza já não apanharia lavadouro livre onde pudesse lavar a sua roupa.

Continuou a andar, ainda mais depressa pôr julgar que já ia atrasada e que ia ter de esperar muito tempo para ter um lavadouro livre. Levava colchas e cobertores e tinha que apanhar um lavadouro desocupado porque só assim podia lavar à vontade. As galochas batiam nas pedras do caminho e faziam um barulho seco e cadenciado que ecoava ao longe. Já muito próximo da Ribeira viu uma mulher de costas para ela a lavar a roupa. Julgando que era a vizinha, chamou:

 - Ó vizinha, esqueceste-te de chamar por mim ou que foi!?

A mulher, sem nunca virar a cara, retorquiu:

 - A sorte que tu tens é que te confessaste e comungaste no domingo passado, senão já ias comigo. Ficavas encantada e eu acabava o meu encantamento.

Depois levantando-se começou a recolher a roupa que estava estendida na relva, a juntar a que estava sobre as paredes e a fugir na direção da ladeira das Covas, talvez para se esconder nalguma furna.

Vendo isto, a lavadeira ficou cheia de medo e desatou a correr para casa com tanta força que parecia que um pé não apanhava o outro. Ao chegar a casa, viu que era só uma hora da manhã e que aquela claridade era da lua. Com certeza que aquela mulher era uma feiticeira.

A notícia espalhou-se pela freguesia e daí por diante as mulheres só iam lavar para a Ribeira, depois do Sol nascer, com medo das feiticeiras que viviam encantadas por aqueles lados. Contava-se que não era a primeira vez que ali apareciam. Um homem, noutros tempos, tinha visto uma com os pés iguais aos das cabras. Precisamente na ladeira das Covas. E toda a gente dizia que uma feiticeira só quebrava o seu encanto quando conseguisse levar uma outra mulher consigo.

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publicado por picodavigia2 às 06:48

ALHO, ARRUDA E LOUREIRO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quinta-feira, 22.01.15

Contava o meu avô uma estranha estória. Se bem me lembro, era mais ou menos assim: Há muitos anos, nesta localidade que, na altura, ainda nem freguesia era, contava ele que numa noite de verão, em que estava muito calor, um tio dele não conseguia dormir. Para espairecer e apanhar um pouco de ar fresco, veio sentar-se numa varanda da sua casa a ver se conseguia dormir ao fresco, pois o ar parecia que sufocava. De repente e sem nada o fazer esperar, já muito pela noite dentro, apareceram três mulheres que ele não conheceu porque traziam a cabeça coberta com lenços, se aproximaram dele e disseram:

— Se não fosse o alho, a arruda e o loureiro, não havia ninguém vivo neste mundo!

— E porquê raparigas? — Perguntou o tal tio do meu avô, apesar de muito admirado com aquele dito das três mulheres que ele cuidou que viriam de fazer serão da casa de alguma amiga.

E elas responderam:

— Cala o bico, pois se souberes morres e nunca digas a ninguém que nos viste que ouviste isto.!

Queriam elas dizer que ele não havia de contar nada do que vira naquela noite, nem contar a conversa que ouvira. Mas elo, pelos vistos, não tomou aquele aviso muito a sério. Ele ficou sem saber o que elas queriam dizer com aquilo e, por isso andou, no dia seguinte a contar a toda a gente. E contava, a minha mãe, que ele não durou muito tempo. Começou a ficar doente, a definhar de um dia para o outro e que morreu pouco tempo depois. Aquelas mulheres eram feiticeiras que lhe fizeram o bruxedo.

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publicado por picodavigia2 às 10:40

OS COMPADRES (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)

Quinta-feira, 08.01.15

Uma outra estória que eu ouvia contar quando miúdo era a seguinte:

Era uma vez um casal que tinha vários filhos e um compadre de quem eram muito amigos. A mulher, para além de muito religiosa, era muito íntima do tal compadre. O marido, inicialmente, não se apercebeu do caso, mas com o tempo veio a perceber a embrulhada e, por isso, começou a pensar na maneira como havia de os desmascarar.

Teve então uma ideia: quando a mulher fosse à igreja rezar aos santinhos da sua devoção, ele escondia-se e atrás do altar. Assim o fez. No dia seguinte, aguardou que a mulher saísse de casa para ir rezar e, correndo à sua frente, foi esconder-se atrás do altar. A mulher entrou na igreja, ajoelhou, rezando a seguinte oração em voz alta:

- Ó meu Santo cegai o meu marido.

O marido ouvindo isto responde-lhe lá de trás do altar, distorcendo a voz, como se fosse o Santo:

- Ó minha Senhora, dai-lhe bastante de comer e beber que ele há-de cegar pouco a pouco.

A mulher saiu da igreja e, convencida de que tinha sido o santo a ouvir a sua oração e a aconselhá-la, quando o marido se sentou à mesa, para almoçar, disse-lhe:

- Ó homem, come e bebe bastante que eu quero-te bastante forte e saudável.

Nos dias seguintes a mulher voltava à igreja para rezar e o marido, escondido atrás do altar, respondia-lhe como se fosse o Santo:

- Dá-lhe bastante comer e beber que ele há-de cegar, por completo.

Passados uns dias, ao almoço, o homem disse para a mulher:

- Ó mulher, não me deves dar tanta comida. Não vês que me anda a dar uma estranha cegueira.

A mulher toda contente diz-lhe:

- Ó homem, come e bebe, pode ser que te ponhas melhor.

No dia seguinte, voltou a mulher à igreja para ir rezar ao Santo da sua devoção. Ela a rezar a mesma oração e a voz disfarçado do marido, como se fosse o Santo, a dar-lhe o mesmo conselho. Alguns dias depois, o homem ao almoço voltou a dizer:

- Ó mulher, não sei o que se passa comigo. É que eu já não vejo mesmo nada.

- Ó homem, não te preocupes - retorquiu a mulher muito contente - os nossos filhos hão-de ajudar-te nos trabalhos.

Convencida de que o milagre tinha acontecido e de que o homem estava mesmo cego, a mulher deixou de ir à igreja e, passados alguns dias, convidou o compadre para jantar na sua casa, como se fosse comemorar o acontecido. O marido, muito convencido, dizia, ironicamente, à mulher:

- Ó mulher, come e bebe a ver se também ficas cega como eu.

A mulher nem desconfiou e, no fim do bródio, ficaram todos sentados à mesa, a conversar. Diz então o homem para o compadre:

- Ó compadre, o que mais me custa não é ter ficado cego. A minha maior tristeza é saber que o meu compadre e a minha mulher mesmo sem comer e beber muito ainda estão mais cegos do que eu.

Como não o entendessem, mas muito admirados, o homem voltando-se para a mulher, pediu-lhe;

- Ó mulher, traz-me a espingarda que eu, embora cego, ainda sou capaz de atirar certeiro.

A mulher, cada vez mais confusa, trouxe-lhe espingarda. O homem voltando-se para um dos filhos, pediu-lhe que lhe colocasse uma garrafa a uns bons metros de distância. Depois pegando na espingarda, fez-lhe pontaria, acertando-lhe em cheio.

Perante o espanto da mulher que, assim se sentia descoberta, o homem concluiu:

- Na garrafa, acertei-lhe de cifrada e aos que nos enganam atira-se a matar.

O compadre, cheio de medo, fugiu dali a sete pés, a mulher pediu perdão ao marido e este, pediu a um dos filhos que lhe guardasse a arma.

E o Santo, pelos vistos, nunca mais teve orações daquela mulher.

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publicado por picodavigia2 às 14:47

OS PRESÉPIOS DO MEU TEMPO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Domingo, 04.01.15

“No meu tempo de criança não havia presépios como os de agora, muitos deles enormes, a encher quase metade das salas, com muitas casas e casinhas, estradas, montes e muitas outras coisas. No meu tempo, não havia nada disto e, em muitas casas, nem presépios se faziam. Apenas as crianças a tal se dedicavam.

Mas verdade é que chegados ao Natal, todos percebiam que era uma época diferente em que se desejava viver com alegria, paz e conforto. Tudo começava no dia dezasseis com as novenas do Natal, realizadas na igreja, ainda de noite. E a igreja enchia-se de gente. Todos cantavam. Er muito bonito.

Todos percebiam que esses dias deviam ser de paz e de amor pois era pelo Natal que se comemorava o nascimento do Menino Jesus, nu estábulo dos arredores da cidade de Belém, há mil novecentos e quarenta e seis anos!

Na igreja o primeiro vigário desta freguesia, o padre António José de Freitas pregava que o profeta Isaías havia anunciado muitos anos antes de Jesus nascer: “Brotará uma vara do trono de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor... Julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra...” Tantas vezes ouvi isto que decorei tal qual está escrito na Bíblia. Mas o padre José Maria não se ficava por aqui nos seus ensinamentos sobre o Natal. Falava dos evangelhos de São Lucas, que conta assim, pelo menos era assim que o senhor padre pregava: ”José, deixando a cidade de Nazaré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da Casa de David, a fim de recensear-se juntamente com Maria, sua mulher, que se encontrava grávida. E, quando ali se encontravam, completaram-se os dias de dar à luz, e ela teve o seu filho primogénito que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver lugar para eles na hospedaria.” E continuava: “Entretanto, o Anjo do Senhor apareceu aos pastores da região e anunciou-lhes o nascimento do Salvador, que é o Messias, o Senhor. E uma multidão do exército celeste juntou-se ao Anjo, cantando glória a Deus nas alturas e paz na terra a todos os homens. Depois explicava o aparecimento do presépio por São Francisco de Assis. Foi ele que construiu o primeiro presépio. Construiu uma gruta à maneira de estábulo, com manjedoira em que comia uma vaca e um burro. Deitou o Menino Jesus na manjedoura onde os animais comiam a palha e foram eles que aqueceram o Menino com o seu bafo. Ao lado a Virgem Maria e São José. Sobre a gruta os anjos cantavam enquanto os pastores dos arredores se aproximavam carregados com as suas ofertas. Era assim que também devíamos fazer os nossos presépios, pois o presépio deve ser a recordação mais sensível e cristã do Nascimento de Jesus.

Este padre António José de Freitas nasceu na Fajã Grande no início do século XIX. Era filho do alferes Inácio José de Freitas e de sua mulher Maria de Jesus. Dizia que se tinha ordenado sacerdote em 1841, sendo nomeado reitor da Lomba. Em 1848 veio para a Fajã Grande, como capelão da ermida que existia antes desta igreja que temos agora. Esteve na Fajã até 1851. Nessa altura foi transferido para o Mosteiro, exercendo aí o múnus sacerdotal até 1958, altura em que regressou à Fajã Grande, novamente como capelão da ermida de São José, tornando-se, assim, em 1861, com 53 anos de idade, o primeiro pároco desta nova freguesia. O padre António José de Freitas faleceu na Fajã Grande, a 8 de Março de 1881, com 73 anos.

Mas voltemos às novenas de Natal e aos presépios que se faziam naquele tempo. Depois de ouvir tudo isto na igreja, voltávamos e construíamos o nosso pequenino presépio semelhante ao que o senhor padre explicara.

No final deste ano de 1947 desejo que todos tenham um Santo Natal, semelhante ao que tínhamos nos meus tempos de criança.”

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publicado por picodavigia2 às 10:23

O BRUXEDO DAS FEITICEIRAS (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 21.11.14

Esta estória passou-se com um tio do meu avô que me a contou, era eu aina uma criança. Aos anos que isto foi, meu Deus!

Contava ele que numa certa noite de verão a sua mulher estava com muito calor e não conseguia dormir. Como estava muito bom tempo e a noite muito fresca, ela veio sentar-se à janela da sua casa, a fim de se refrescar um pouco para depois se deitar e conseguir adormecer. Já devia ser alta noite, mas ela como não tinha relógio não sabia as horas. Não se via viva alma, na rua. De repente, ela viu três mulheres que se aproximaram da janela onde estava sem que ela as conhecesse pois tinham véus a cobrir-lhes o rosto. Ao princípio, ao ver os três vultos, julgou que fossem vizinhas que voltassem de fazer serão em casa de alguma amiga ou familiar, pois naquele tempo era costume fazer-se serão em casa uns dos outros. Pensou que talvez para não apanharem frio traziam os lenços puxados para cima do rosto. Mas não as conheceu e elas, ao aproximarem-se da janela, disseram:

— Se não fosse o mastrunço, a arruda e o limoeiro, não havia ninguém vivo neste mundo!

— E porquê raparigas?

E então elas responderam:

— Se soubesses, calavas o bico, para sempre.

E contava meu tio, com os olhos raiados de lágrimas que a mulher não durou muito tempo. Passados poucos dias começou a definhar, a definhar de dia para dia, a ficar doente e morreu. As pessoas diziam que tinha sido por causa daquelas três feiticeiras que lhe fizeram bruxedo.

 

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O FILHO DO JOÃO DO PORTO (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)

Quarta-feira, 24.09.14

Meu pai contava que o avô dele lhe contava – imagine-se aos anos que isto aconteceu – que, antigamente, no lugar onde hoje é o barracão da Firma das Lajes, havia uma casa, pequena e pobre, onde morava um homem conhecido pelo João do Porto. A casa, como ainda hoje se pode verificar, ficava tão próxima do mar, que em dias de grandes temporais, quando o mar ficava muito bravo, as ondas quase lhe entravam pela porta dentro. João do Porto era pescador e vivia ali, na companhia de um filho já homem. Nos dias de grandes temporais fechavam-se em casa, pois não tinham nem terras para trabalhar nem gado para tratar, mas nas noites calmas e de lua cheia sentavam-se fora da porta do velho casebre, olhando para o mar, sonhando com a manhã seguinte quando haviam de regressar ao mar, no seu pequeno barco, para mais um dia de faina da pesca.

Certa noite em que ambos, cansados de mais um dia de trabalho, sentados fora da porta, se haviam calado e já dormitavam, pareceu-lhes ouvir, ao longe, o canto de vozes muito harmoniosas que pareciam vir do mar. Ao princípio cuidaram que estavam a sonhar, mas despertando do marasmo em que jaziam, puderam perceber que afinal aquelas belas vozes eram bem reais.

O rapaz, inicialmente bastante assustado, aos poucos começou a entusiasmar-se e perguntou ao pai, se aquilo não seriam vozes de sereias, sobre as quais já ouvira muitas e belas estórias. O pai disse-lhe que, na verdade, podiam ser sereias mas que era preciso ter muito cuidado e fugir delas porque costumavam enfeitiçar os homens com o seu canto e levá-los para o fundo do mar. Mas o rapaz, cada vez mais entusiasmado, quanto mais o pai o avisava, mais sonhava ir ao encontro das sereias.   

Certa noite de lua cheia, em que o luar brilhava mais do que o habitual, não dando ouvidos aos avisos e conselhos do progenitor, o rapaz, sem que o pai se apercebesse, aproximou-se da beira-mar, a fim de ouvir melhor o canto das sereias e, se possível, para as ver. A noite estava muito calma e clara e dava coragem ao jovem pescador, que se escondeu por detrás de um alto penedo do baixio, junto à Poça do Cobre, à espera que as sereias se aproximassem da costa.

As horas, no entanto, foram passando sem que nenhuma sereia aparecesse, pese embora o rapaz continuasse a ouvir, ao longe, as suas vozes e o seu canto. Já de madrugada, cansado da espera, o rapaz adormeceu. Pouco depois, uma onda, enfurecida, subiu as rochas e pegando-lhe, levou-o consigo para o mar alto. Quando acordou viu-se rodeado de belas mulheres que, da cintura para baixo tinham o corpo semelhante ao dos peixes. A sua beleza era tanta, o seu cantar tão suave e os gestos das suas danças tão harmoniosos que impressionaram tanto o rapaz que ele se deixou encantar. Sem sucesso, tentou apanhar uma das sereias. Elas, porém, vendo um homem a tentar agarrá-las, fugiram com ligeireza e mergulharam para o fundo mar. Na confusão da fuga, uma sereia deixou-se apanhar e, medrosa, começou a chorar e a debater-se para se libertar. O rapaz que nadava que nem um peixe, muito a custo, conseguiu aprisiona-la mas, no momento em que lhe pegou ao colo e a abraçou para a trazer para terra, a sereia deixou cair as guelras e como que quebrando o encanto, transformou-se numa linda e bela mulher.

 O jovem não podia acreditar naquilo que os seus olhos viam e, por isso, não a largou mais, trazendo-a consigo para terra. Passado algum tempo, casaram, mas consta que o rapaz morreu pouco depois, afundando-se o barco e desaparecendo para sempre no fundo do mar, para onde regressou também a mulher, que afinal nunca deixara de ser sereia.

Esta a razão por que ainda hoje se diz que, de u ou de outra, as sereias arrastam sempre os homens para o fundo do mar. Razão tinha, pois, o João do Porto, nos conselhos que dava ao filho.

 

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publicado por picodavigia2 às 22:51

TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE TI'ANTONHO

Sábado, 23.08.14

(Aqui se revelam os acontecimentos mais importantes da vida de Ti’Antonho, de cujo Diário têm sido transcritas algumas partes neste blogue “Pico da Vigia 2”)

 

1866 – Nasceu na Assomada, numa casa que ficava em frente ao Poço do Gado e que meu pai comprou mais tarde.

 

1880 – Foge numa espuma para a América.

 

1881– Chega à Califórnia. Vive e trabalha no condado do Fresno e, mais tarde, na cidade de S. Francisco.

 

1886 – Regressa à Fajã e casa com a sua Maria

            Nesse mesmo ano torna.se padrinho de casamento do seu compadre Mateus e da comadre Inácia.

 

1887 – Regressa à Califórnia. Na mira do ouro fixa-se no condado do Inyo, mas acaba por  tornar-se num simples  pastor de ovelhas, nas encostas do monte Witney, na serra Nevada

 

1892 - Volta definitivamente para a Fajã Grande, onde constrói uma casa, compra algumas terras e reinicia, definitivamente, a sua actividade agrícola

 

1946 – Começou a escrever o seu Diário.

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publicado por picodavigia2 às 00:46

COUVES (DIÁRIO DE TI ANTONHO)

Quinta-feira, 21.08.14

As couves foram sempre a hortaliça mais cultivada aqui, na Fajã Grande, servindo para alimentação não só dos homens mas também dos animais, nomeadamente, das vacas, dos porcos e até das galinhas. Por isso, na Fajã Grande sempre se plantaram grandes cerrados de couves, sobretudo, no Areal, nas Furnas e no Porto, pois elas dão-se melhor junto do mar, uma vez que esta hortaliça parece que se dá melhor em lugares amenos ou mais frescos, embora naqueles lugares as couves e outras culturas sejam muito prejudicadas pela salmoura, vinda do mar.

Hoje como antigamente, na Fajã Grande, as couves, geralmente, são plantadas depois de se apanhar o milho e a batata-doce, nas terras junto do mar e, por isso, são cultivadas durante o Outono e o Inverno, precisamente, porque o tempo é mais fresco. Os antigos diziam que durante os meses de Verão ou nos períodos de muito calor, as couves reduzem o seu crescimento e a qualidade das folhas produzidas é pior, tanto em tamanho e aparência, como em sabor. Daí um provérbio muito usado nesta freguesia e que é o seguinte: “Quem quiser o marido morto, dê-lhe lapas em Maio e couves em Agosto.”, com o qual se pretende lembrar que, assim como no mês de Maio as lapas não são tão saborosas nem tão boas para comer como nos restantes meses do ano, o mesmo acontece com as couves, pois, realmente no mês de Agosto e noutros meses mais quentes elas não são tão boas para comer. Tinham razão, os antigos pois até as vacas as comem melhor no Inverno do que no Verão.

As folhas da couve são, normalmente, consumidas cozidas, mas picadinhas, neste caso fazendo um belo caldo, por vezes acompanhado com feijão, batata branca e uma talhadinha de toucinho. Mas aqui na Fajã Grande também é costume cozê-las inteiras e com os talos, juntamente com os ossos do porco e batatas-doces. A minha Maria faz este saboroso cozido muitas vezes e é de lamber os beiços. Os animais, especialmente as vacas, comem-nas cruas, mesmo as folhas mais velhas e rijas. Mas os porcos e as galinhas preferem-nas cozidas e picadas. No caso das galinhas é costume na nossa freguesia, cozê-las e picá-las, misturando-as com farelo e água a cozer, formando bolas que elas adoram.

Eu já ouvi dizer que existem lugares neste mundo onde o plantio pode ser feito através de sementes lançadas directamente à terra. Mas aqui na Fajã Grande não é assim. Primeiro, fazemos um canteiro, num canto abrigado da terra, onde o terreno seja bom e estruma-se muito bem. Depois lançam-se as sementes em grandes quantidades e algum tempo depois começa a nascer as plantinhas que chamamos coivinha. Quando maiores, quando têm de 4 a 6 folhas verdadeiras e estão com pelo menos 10 cm de altura, arrancam-se e plantam-se no terreno onde se quer que elas cresçam, mas que antes foi lavrado com o arado e alisado com a grade. A plantação é feita com uma enxada, com a qual se faz uma pequena cova, onde se mete a planta, calcando-a nos lados O plantar coivinha deve ser feito de preferência em dias nublados e chuvosos ou no fim da tarde. O espaçamento ideal entre um pé e outro varia com a qualidade do terreno e com as condições de cultivo, mas geralmente um espaçamento de um palmo entre cada planta é o mais adequado. Mas a verdade é que quanto maior for o espaçamento entre os pés, maiores serão as plantas e maiores serão suas folhas. Felizmente, entre nós não é necessário sachar ou retirar as mondas que nascem entre as couves.

A colheita das folhas das couves pode fazer-se, normalmente, entre 10 a 16 semanas após o plantio. As plantas mais jovens podem ter suas folhas colhidas, mas isso pode prejudicar o crescimento das plantas. Primeiro apanham-se as folhas e deixa-se a planta crescer e produzir novas folhas procedendo-se então ao corte da planta. Mas é preciso ter muito cuidado porque o grande flagelo da couve é a bicha. Há lugares onde esta praga é tanta que como a folha toda, deixando apenas o talo. Felizmente, hoje em dia, já existem produtos para as sulfatar, mas o cuidado de as colher depois, deve ser redobrado.

Geralmente, muitas famílias tinham couves para a sua alimentação nos terrenos ou nas courelas junto de casa, enquanto as das terras da beira-mar eram para os animais. Mas por vezes, procuravam-se entre estas as folhas mais tenrinhas e era com estas que se fazia o cado. Meu pai dizia que as couves para o caldo não deviam ser colhidas nas horas mais quentes do dia e, também, dizia que deve deixar sempre, pelo menos as 5 folhas mais jovens em cada pé.

Não há dúvida que a couve é uma das grandes riquezas desta freguesia.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:08

UMA VACA PARA O SENHOR ESPÍRITO SANTO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO

Quarta-feira, 23.07.14

“Quando eu era criança, meu pai contava que há muitos anos, tinha havido um homem da Cuada que tinha feito a promessa de dar um jantar em louvor do Senhor Espírito Santo, pelo que decidiu criar uma vaca. Para poder cumprir a sua promessa e porque era pobre e não tinha relvas cá em baixo, nem comida para lhe deitar, resolveu ir levar a vaca ao mato, ao concelho para que ela lá ficasse durante o Verão e engordasse, a fim de que desse para cumprir a promessa.

 De vez em quando o homem ia ao mato ver a vaca e voltava sempre muito satisfeito porque o animal engordava a olhos vistos. Certo dia, porém, o homem chegou ao mato, ao sítio onde a vaca, normalmente, andava a pastar, mas não a encontrou. Procurou por todo o lado e por tudo o que era sítio, mas havia por ali muitos buracos, muitos valados, muitos grotões e muitos precipícios que dificultavam a busca. O homem regressou a casa muito triste e, à Praça, contou aos seus amigos o desgosto que tinha, sem saber o que havia de fazer para cumprir a sua promessa. Os homens que ali estavam tentaram acalmá-lo sem sucesso e, vendo aquela angústia e enorme tristeza, muitos ofereceram-se para ir com ele, no dia seguinte, procurar o animal. Procuraram um dia, dois dias, vários dias, todo o concelho mas não encontraram a vaca. Cuidando que ela teria morrido, regressaram ao povoado, sentindo que não podiam fazer mais nada. O homem ficou muito triste, pois como era muito pobre, não podia comprar outra vaca.

No entanto, lá foi economizando uns tostões e, ao fim de muitos anos, lá conseguiu juntar o dinheiro necessário para cumprir a sua promessa, porque o prometido é devido. Assim comprou outra vaca para pagar a sua promessa. Mas a vaca era pequena e pouca carne daria.

 Mas na semana antes do dia do Senhor Espírito Santo, juntou-se muita gente em casa do homem. Todos ajudaram a rachar a lenha, aquecer o forno, a amassar e a cozer o pão de trigo para comerem com a carne, mesmo sendo pouca, e a massa sovada. Na sexta-feira, foram em cortejo para o matadouro, para matar a vaca que o homem tinha comprado, depois da outra desaparecer. De repente viram ao longe, descendo uma canada, algumas reses que caminhavam na direcção do matadouro. O homem viu que o animal da frente era a vaca que lhe tinha desaparecido no mato e trazia atrás de si sete bezerros. Os animais chegaram-se para o lugar onde deviam ser mortos, como a oferecer-se e toda a gente se benzia e louvava o Senhor Espírito Santo pelo milagre. Mataram o gado e naquele jantar houve carne em abundância para todos.”

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publicado por picodavigia2 às 10:14

CASAS DE PALHA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sábado, 21.06.14

Meu avô nasceu na era de 1800. Meu Deus! Aos anos que isto foi! Ele contava que ouvia o avô dele contar que no tempo em que era pequeno o povo vivia, nesta terra, numa grande pobreza e miséria. Para comer, só tinham o que as terras davam e algum peixe e lapas. Não tinham que comer, nem que vestir, nem cama pra dormir, A pobreza era tanta que a maioria das casas, eram feitas de pedras, com o chão de terra e cobertas de palha de trigo, sem janelas e com apenas uma porta. Havia alguns mais desgraçados que até viviam em furnas, à beira do mar, pois naquele lugar que hoje se chama Furnas, onde há boas terras de milho, antigamente havia muitas furnas encravadas nos rochedos do baixio.

Mas não era só a casa que era uma pobreza desgraçada. Não havia fornos, ou melhor só uma ou duas casas ricas é que os tinham, nem sequer havia tijolos, como os de hoje, para cozer o bolo. Coziam-no em cima de pedras que aqueciam com lume. Havia pessoas que só tinham esse bolo para comer com o leite das cabras ou de uma ou outra vaca.

Meu avó contava, também, que havia um homem a quem chamavam o Tio Palha. Chamava-se assim por era muito hábil em por a palha nos telhados das casas. Mas ele não tinha casa sua, nem mulher, nem filhos. Para dizer a verdade, só tinha a roupa do corpo e esta era rota pois não tinha quem lha remendasse. Era tão pobre que nada tinha para comer e era magrinho e, como não tinha casa, dormia numa furna junto ao mar. Certa noite, enquanto dormia, levantou-se grande temporal e o mar embraveceu, galgando a terra e, entrando na furna, levou o tio Palha. Nunca mais se soube dele. 

 

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publicado por picodavigia2 às 16:07

MATAR O GADO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 06.06.14

Sexta-feira, 7 de Junho de 1946

“Domingo que vem, ou seja, depois de amanhã vai ser o dia da festa do Senhor Espírito Santo da Casa de Baixo. Como é costume desde há muitos anos, vai ser uma grande festa, uma festa de arromba, para meter inveja aos da Casa de Cima que fizeram a sua festa há quinze dias. Durante a semana cantaram-se as alvoradas. Só fui lá um dia, que tenho pouco tempo, mas gostei muito. Lembrei-me dos meus tempos de criança, quando ia ver e ouvira folia durante toda a semana. Os cânticos são os mesmos de há setenta anos! Tem lá uns velhotes do meu tempo e um ou outro rapaz novo que deitam foliam muito bem, sim senhor. Os mais velhos vão ensinando estas coisas aos mais novos para que não as esqueçam. A Casa, no dia em que lá fui, estava à pinha! Os foliões começaram a folia fora da porta, com o início da Alvorada, logo depois de atirar o foguete. Fora da porta, cantam a "Alvorada Santa", mas não deitam folia. Depois cantam para entrar. Só foliam quando entram para dentro do edifício. Fazem um círculo, no meio da casa, em frente ao altar onde está a coroa, ao lado das bandeiras e começam a folia, saltitando, dançando e cantando diante do Senhor Espírito Santo. Quando o que está na parte da roda que passa em frente ao altar, esse vira-se ao contrário de modo a que fique de frente para o altar e nunca lhe volte o rabo para não desrespeitar o Senhor Espírito Santo. No fim da Alvorada fica muita gente por ali a fazer jogos, sobretudo o do "Anel" e o das "Prendas". Mas isso é bom é para gente nova e solteira. Assim que acabou a Alvorada, dei dois dedos de conversa com uns do meu tempo e vim logo para casa, até porque a minha Maria não quis ir comigo.

Mas como disse no princípio, hoje de tarde foi o dia de matar o gado. Foi à tardinha. Os dois gueixos que abateram foram comprados ao Raulino, foram trazidos para junto da casa e amarrados junto ao pau da bandeira. Pouco depois organizou-se o cortejo para o Porto, descendo a Via d’Água, até ao matadouro. A coroa e as bandeiras foram levadas por familiares dos cabeças. Atrás os gueixos, os foliões e muita gente. O sino repicou durante toda a tarde, sobretudo na ida e na vinda. Uma vez mortos, esfolados e limpos, os animais foram partidos em quatro bons pedaços que foram transportados, de palanca, aos ombros, em cortejo até à casa, sempre acompanhados pelo cantar dos foliões, pelo repicar dos sinos e por muito povo, sobretudo crianças. As mulheres e familiares dos dois cabeças trouxeram as vísceras e o sangue em alguidares transportados à cabeça . As primeiras para limpar, guisar e fazer caçoila, o sangue para fazer o sarapatel. Ao chegar à Casa a carne foi colocada no chão, mas em cima de uma boa camada de folhas de cana roca muito fresca e verdinha, à espera de ser picada durante a noite. Esta parte da casa onde ficou a carne foi dividida com bancos, para que à noite se pudesse fazer a Alvorada e no fim desta, os jogos. Só então, lá para depois da meia-noite, um grupo de homens ficaria a desmanchar a carne e a parti-la, formando os quinhões de cada mordomo, de acordo com o que há umas semanas haviam combinado, quando a coroa andou pelas casa a arrolar os mordomos. Depois escrevem um papel com o nome de cada um e colocam-no sobre o respectivo monte de carne que amanhã será distribuída.”

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publicado por picodavigia2 às 09:33

MEMÓRIAS (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Segunda-feira, 05.05.14

Hoje apetece-me recordar coisas antigas, memórias de outros tempos, dos meus tempos de criança. É bom lembrar o passado e recordar as pessoas com quem convivemos noutros tempos, mas que já partiram. Algumas partiram há muitos anos.

Esta ilha das Flores, a ilha onde nasci, é terra de mar e de tempestades, de isolamento e de pobreza e talvez por isso, muitos do meu tempo resolveram parir, procurar terra de mais abundância e de vida melhor – a América. Eu também parti um dia, mas juntamente com muitos outros voltei, para a terra onde nasci e da qual nunca me esqueci. Linda a terra, esta. Pobre, pequena e simples mas bonita e airosa esta minha ilha, onde nasceram meus pais, meus avós e meus bisavós! E porque me recusei a deixar a minha ilha para sempre, a me esquecer dela, depois de alguns anos na Califórnia, para aqui voltei e aqui me fixei, com a minha Maria, para sempre. Tudo o que quero é viver aqui, pobre mas feliz, mas vivendo no cantinho onde nasci. Eu sou assim, um apaixonado pela minha terra e pela minha ilha. Podem bem acreditar, porque eu, há muitos anos atrás, apaixonei-me, verdadeiramente, por esta ilha e pela minha freguesia, a Fajã Grande, que continua bela, airosa, apesar de simples e pobre. É mesmo verdade, ora vejam lá. Talvez possais sentir o cheiro forte da erva e dos incensos que enchem estes campos e estas rochas, do trevo e do milho, as faeiras e dos inhames, do estrume das vacas e do sargaço, retirado do mar, que também serve para adubar os campos e os cerrados férteis das Furnas e do Areal. Mais adiante, a Ponta e para sul a Cuada. A pobreza era muita mas a alegria não nos deixava. Trabalhava-se muito, mas com alegria. As mulheres sachavam cantando, e cantavam apanhado o trevo ou lavando a roupa na ribeira. Lá ao fundo a rua da Via d’Água e depois o mar, também salgado, mas mais sempre forte e bravo, como eu gosto de o ver, com ondas bravias e sonoras, cheias de espuma e salmoura. No Rolo, nos dias que saía sargaço, era uma verdadeira festa de trabalho. Era bonito ver o povo a padejar, a escarafunchar a encher cestos e a acarretá-los para os lagos que se avolumavam a olhos vistos. Por vezes até se disputava a ver quem tinha o monte mais alto… mas os lagos não eram todos do mesmo tamanho. Eram bons tempos. Foi bom, sim senhor! Amanhã, ou talvez mais logo, vou continuar a escrever e a avivar outras memórias. Está na hora de almoço e não falta um caldinho de couves com uma talhadinha de toucinho e bolo do tijolo que a minha Maria já me veio chamar. Vamos cear os dois, à luz da nossa candeia…

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publicado por picodavigia2 às 14:01

AS CASAS COBERTAS DE PALHA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sábado, 19.04.14

Muita gente hoje nunca ouviu contar isto, nem muito menos se lembra de ouvir falar de semelhante coisa. É que, antigamente, aqui na Fajã as casas eram quase todas, sobretudo as das pessoas mais pobres, cobertas com palha. Havia pouca telha e mesmo que houvesse alguma, ela tinha que ser comprada e a maioria das pessoas não tinha dinheiro. Contava meu avô que quando era criança, aqui na Fajã Grande, que nem sequer freguesia era, mas sim um lugar pertencente à Fajãzinha, nessa altura chamada Fajãs, a pobreza era muita. O povo passava muita miséria, vivia só do que produzia e não vendia nada, pelo que não tinha dinheiro para comprar telhas, pelo que cobria as casas com palha de trigo, pois nesses tempos não se cultivava milho como agora, mas sim trigo, que dava bem mais trabalho e canseiras. Além disso as casas eram muito pobres, muitas tinham apenas uma ou duas divisões, uma porta sem vidros e o chão era de terra batida, como se diz ou de solo. Por fora eram de pedra como os palheiros de agora. Muitos desses palheiros de hoje, há uns anos atrás, eram casas. O avô daquele rapaz que é padre, o José Luís, que é muito mais novo do que eu, vivia na casa que hoje é o palheiro do Raulino Fragueiro e foi aí que o rapaz nasceu. Alguns anos depois é que o filho, o Antonho fez aquela casa no Alagoeiro e o outro filho, o Manuel, que tem os dois moinhos da Ribeira das casas, construi a sua ali perto. Mas ambos foram para a América, a fim de ganhar dinheiro para as construir. Muitos outros fizeram omesmo. Até eu o fiz, também.

Na construção das casas as pessoas utilizavam apenas os recursos naturais que possuíam, alguns muito abundantes como a pedra para as paredes e a madeira, esta menos abundante, para as portas e divisões interiores. Por isso as paredes de habitações eram robustas, pois muitas ainda hoje aí estão, construídas em alvenaria de pedra seca, eram dobradas e com quase meio metro de espessura.

As pedras eram acarretadas de perto e arestadas com o malho de ferro, ficando com a face exterior direita, um pouco à bruta como ainda se pode ver. Apenas as pedras de cantaria, as ombreiras e as vergas eram bem trabalhadas e picadas, primeiro com o picão e depois com a picareta.

Meu avô também contava que vieram, noutros tempos, muitos pedreiros de São Miguel, sobretudo de Vila Franca do Campo, ajudar a fazer as paredes das casas e que nos tectos de palha de trigo esta era fixa numa armação de madeira, a que era muito bem amarrada e em boas quantidades, para que não entrasse água da chuva e o vento a não levasse.

Naquele tempo, para se poder segurar bem a palha e proteger a casa dos temporais a estrutura do tecto era formada por varais, espaçados e assentes nos frechais. Nos varais pregavam-se ripas de tamujo ou de outra madeira, ou até canas, às quais se amarrava a palha com vimes.

Tempos de muita miséria e pobreza!

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publicado por picodavigia2 às 15:33

A MULHER QUE FOI LAVAR ROUPA SEXTA-FEIRA SANTA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 18.04.14

“Lá vai mais uma antiga “estória” e esta muito esquisita, que ouvia do meu avô. Contava ele que quando era criança ouvia contar que, aqui, na Fajã Grande, há muitos, muitos anos vivia uma mulher que não era crente nem temente a Deus, por isso não respeitava nem muito menos cumpria nem os mandamentos da lei de Deus nem os da Santa Madre Igreja. Por isso não se abstinha de trabalhar quer aos domingos quer aos dias santos de guarda. Muitas vezes lhe chamaram à atenção para esse pecado, sobretudo o pároco que, com palavras bondosas, lhe explicava as leis de Deus e os ensinamentos da igreja. Mas a mulher não lhe dava ouvidos e, por vezes, até se ria e apoucava os que respeitavam e cumpriam tais ensinamentos.

Um dos trabalhos que a mulher fazia aos domingos era o de ir lavar roupa para a Ribeira, mesmo à entrada da canada onde se iniciava a subida da Rocha, onde havia um grande açude com enormes pedras ao redor a servirem de lavadouros.

Ora certa vez, a mulher ainda fez pior, pois decidiu ir lavar roupa na Sexta-Feira Santa, o dia considerado mais santificado do ano, dia em que Nosso Senhor morreu. Ninguém, nesse dia, devia fazer trabalho servil, fosse ele qual fosse, porque era um pecado grave. Além disso era um dia de jejum, durante o qual muitas pessoas nem faziam comida e até levavam os animais para os pastos para não terem que tratar deles.

Assim enquanto todas as outras pessoas da freguesia estavam na igreja a comemorar os mistérios da Paixão e Morte de Nosso Senhor, a mulher, que tinha uma trouxa de roupa para lavar, não quis saber que era dia santo de guarda nem do que se comemorava nesse dia. Pegou na roupa e foi para a Ribeira, para a lavar precisamente na hora em que o povo da freguesia estava reunido na igreja. Algumas mulheres que se atrasaram na vinda para a igreja, ainda lhe lembraram o dia que era e pediram-lhe que voltasse para casa, porque era Sexta-Feira Santa. A lavadeira riu-se e continuou a caminhar na direcção da Ribeira. Chegaram as três horas da tarde, em que se acredita que Nosso Senhor morreu na cruz e a lavadeira continuava a esfregar a sua roupa e a bater com a ela no lavadouro, para lhe tirar a sujidade.

A essa hora tocou a matraca, na igreja, porque nem os sinos tocavam nesse dia e as pessoas, contritas, oravam no templo e pediam perdão a Deus Era a chamada hora “tércia” a hora em que Nosso Senhor morreu, pregado numa cruz. Dizia-se que nessa hora até os passarinhos batiam as asas e cantavam e as folhas das árvores punham-se em cruz, em louvor de Nosso Senhor.

Pouco depois da matraca tocar as pessoas que estavam na igreja, apesar da Ribeira ser bastante longe, ouviram um enorme grito de aflição que, ecoando na Rocha se espalhou por toda a freguesia. Muito aflitas e assustadas algumas pessoas correram para a Ribeira a ver o que se passava, pois o barulho vinha mesmo de junto da Rocha. Quando chegaram à Ribeira viram que a lavadeira tinha desaparecido assim como toda roupa. Tudo se sumira, como castigo, por não ter respeitado um dia sagrado.

E contavam os antigos que durante muitos anos depois disto ter acontecido, na Sexta-Feira Santa, durante a hora “tércia”, soprava um vento muito forte que fazia eco na Rocha, provocando ruído estranho e assustador semelhante ao bater da roupa nas pedras e aos gritos da lavadeira pecadora. E muita gente tinha medo de lá passar, nesse dia e a essa hora.”

 

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publicado por picodavigia2 às 07:19

AS BATATAS QUE NÃO NASCERAM (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quinta-feira, 17.04.14

Meu avô contava que quando era criança, ora aos anos que isto foi, havia aqui na Fajã Grande um homem que não acreditava em Deus, não cumpria as leis da igreja e não respeitava os dias santos. O homem, pelos vistos, não era de cá da nossa freguesia, pois tinha sido abandonado aqui na ilha, por um barco que por aqui passara. Meu avô dizia que, antigamente, muitos barcos deixavam os condenados aqui na ilha das Flores, em vez de os mandar matar.

Ora aconteceu que numa Quinta-feira Santa, depois do meio-dia, o homem quis ir semear batatas. Na Quinta-feira Santa era pecado trabalhar depois do meio-dia. Passaram por ele uns homens que, vendo que ele ia trabalhar naquela tarde santa, lhe disseram:

- Então, hoje é Quinta-feira Santa e tu vais trabalhar?

- Hoje é que me calha. Já tenho a terra lavrada à espera da sementeira… - Respondeu o homem e acrescentou: - Além disso, tanto se me dá que seja Quinta-feira Santa ou não…

Os outros, com bons modos, disseram-lhe:

- Então não podes esperar para sábado, que é dia em que já não é pecado trabalhar?

O homem riu-se deles e retorquiu:

- Sábado eu tenho outros muitos outros trabalhos para fazer. Hoje é que me convém semear as suas batatas. Além disso eu não acredito nessas patranhas. - Zombou o homem e, rindo dos outros que naquela tarde, em sinal de respeito pela morte de Nosso senhor, não trabalhavam, foi semear as batatas.

E na freguesia toda a gente criticou a atitude daquele homem ímpio, incrédulo e não temente a Deus.

Passaram-se dias e semanas e as batatas do homem não nasciam. As pessoas passavam por ali admiradas. Contava meu avô que aquelas batatas nunca nasceram porque foram semeadas num dia em que não de via trabalhar por ser um dia santo. E as pessoas acharam que isso foi por castigo de o homem ir trabalhar na tarde de Quinta-feira Santa.

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publicado por picodavigia2 às 16:03

TRABALHOS DE ABRIL, TRABALHOS MIL (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quinta-feira, 03.04.14

Sexta-feira, 3 de Abril de 1946

“Afinal eu bem queria escrever mais, muito mais mas não tenho tempo e confesso que também os olhos já não me ajudam muito. De dia não tenho lá muito tempo para as escritas. Há sempre muito que fazer nos campos, sobretudo nesta altura do ano. E à noite com o vidro do candeeiro sempre sujo de tisna ou com a candeia de enxúndia de galinha a tremelicar com a ventania que entra pelos buracos do telhado, vê-se muito pouco. Se o pavio do candeeiro está baixo a luz é fraca, se levanto o pavio suja-me o vidro e ainda vejo menos. Quando é que há-de chegar a esta terra a luz eléctrica que dizem que já há em Lisboa?

 Estamos em Abril e esta é uma altura do ano de muito trabalho. O gado está no oitono, amarrado à estaca, mas é preciso dar-lhe a cordada várias vezes ao dia, levar-lhe vasilhas e vasilhas de água e tirar-lhe o leite de manhã e à tarde. Além disso ainda é preciso levar incensos e erva para que os animais permaneçam mais tempo na terra e a trilhem bem. Eu tenho o meu gado no Mimoio, numa terra de trevo. Tenho apenas duas vacas a dar leite e uma gueixa alfeira. Já me dão trabalho que chegue que a minha Maria já pouco me pode ajudar. A gueixa o outro dia deu-me uma trabalheira dos diabos: tanto e tanto puxou que arrancou a estaca, a maldita. Deu-me cabo do trevo quase todo. Cagou-lhe em cima e agora as outras não lhe pegam. Perdi um dia, pois tive que ir às Lajes, ao ferreiro, comprar um estaca nova, maior e mais grossa e, depois de a bater com o maço e a enterrar ainda lhe enfiei uma pedra em cima. Agora nem uma junta de bois a arranca. Depois já há campos para lavrar e para semear. È tempo de plantar a planta da batata-doce que o canteiro está a abarrotar de rama. Há milhos no Areal já prontos a sachar e desbastar. Há tanto que fazer! Nem sei com dar tafulho a isto tudo. Bem diziam os antigos: Em Abril, trabalhos mil”

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publicado por picodavigia2 às 09:43





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