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HÁ PROFESSORES QUE NUNCA SE ESQUECEM

Segunda-feira, 26.06.17

Num destes dias ao terminar com sucesso uma operação de Pagamento de Serviços num Multibanco, olhei para o lado e deparei com uma senhora, ainda jovem e acompanhada de um rapazito, a olhar para mim, ao mesmo tempo que emanava um sorriso doce e alegre. Nada que me espantasse, por quanto situações destas ocorrem com alguma frequência.

Voltei a minha atenção para máquina, não fosse ela sugar-me o cartão. Depois guardei-o na carteira assim como o talão comprovativo do pagamento que acabara de efetuar.

Aproximei-me da senhora que, para espanto do rapaz, continuava a sorrir, manifestando uma enorme vontade de falar comigo. Indaguei:

- Foi minha aluna, não foi?

- Claro… É natural que não se lembre… Foi há tantos anos…

Conversamos um pouco. Recordamos, nomes, tempos, datas e algo mais.

Por fim despedindo-se ela concluiu:

- Tinha tanta vontade de falar consigo. É que… Há professores que nunca se esquecem…

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publicado por picodavigia2 às 00:05

DIANAS

Domingo, 20.09.15

Num dos últimos anos do meu percurso como professor, na lista dos nomes dos alunos de uma das turmas que me foram atribuídas, no início do ano lectivo, constavam nada mais, nada menos do que sete “Dianas”. Uma enorme confusão, agravada com a coincidência de cinco serem “Diana Maria” e destas, pior coincidência ainda, serem “Diana Maria Pereira”, com agravante de todas elas teimarem em serem tratadas por nenhum outro nome ou sobrenome que não fosse o primeiro e original - Diana. Um imbróglio de difícil solução. É verdade que a uma fora atribuído o número nove, a outra o dez e à terceira o onze, precisamente e em função dos outros apelidos, mas isso resolvia muito pouco, sobretudo no estabelecimento do nosso relacionamento quotidiano ou na sua própria identificação. Tinha lá algum jeito chamar pela Diana Nove, ou pedir à Diana Dez que se calasse, ou à Diana Onze que viesse ao quadro! Claro que não.

Depois de muita discussão decidiu-se que o melhor era ficar cada qual com o seu nome. Ninguém queria ser Diana Dez, Diana Pequena, Diana de Beire ou Diana de outra coisa qualquer a não ser dos sobrenomes com que foram registadas e que haviam herdado dos seus progenitores. E assim ficaram, cada qual com o nome que era seu, não tendo nenhuma culpa de que alguma outra o tivesse partilhado ou dele se apropriado.

E o ano foi decorrendo, não sem alguma confusão, diga-se em abono de verdade.

Certo dia, já ia o ano letivo no segundo período, uma delas, furiosa, veio ter comigo, a ameaçar que pretendia trocar de nome. Já não aguentava mais aquilo. Estava farta de passar por preguiçosa, desatenta, mal-educada e de ser responsabilizada por fazer coisas que afinal eram as suas homónimas que faziam. É verdade que o seu nome era motivo de orgulho. Mas um grande problema havia surgido. Na secretaria enganaram-se e mandaram uma carta paras os seus pais quando afinal os destinatários deveriam ser os pais de outra com o mesmo nome. Raios! Eles abriram a carta e quase morreram de desgosto e vergonha. Notas negativas, mau comportamento e outras más referências. Foi a mãe que impediu que o pai lhe chegasse a roupa ao pelo. Perante tamanha indignação, bem argumentei que mudar o nome não adiantava nada nem coisíssima nenhuma e que essas trocas, por vezes, aconteciam mesmo com alunos que tinham nomes diferentes. Os pais não liam o envelope, abriam a carta e zás – deparavam-se com uma enxurrada de desagravos que não pertenciam ao seu educando. Mas ela insistia: que estava simplesmente no top escolar da indecência e da má figura, sem, obviamente, ter culpa alguma. Continuei a tentar acalmá-la. Mas nada. A raiva e contestação continuavam viçosas. Tentei demonstra-lhe que em Portugal existem mais de mil cidadãos com o nome de José Pereira da Silva… E que a confusão é iminente e inevitável. Nos tribunais, na polícia, nas finanças, nos hospitais, nos correios, nas portagens das autoestradas e até na igreja. Que um amigo meu ao ir tirar o registo criminal lhe foi passado um documento em que ele estava implicado em processos judiciais por tráfico de drogas e homicídio e que já tinha estado preso. E era tudo falso devido a uma confusão de nomes. Ela nada. Teimava em querer mudar de nome e não havia maneira de a fazer mudar de ideias. Ainda lhe expliquei que mesmo quando os nomes de duas ou mais pessoas são exatamente iguais é possível distinguir uma pessoa da outra, observando, por exemplo, o documento de identidade, uma vez que a diferença se faz na filiação, na naturalidade, na data de nascimento e, principalmente, nas impressões digitais. Que não queria saber de impressões digitais nem de nenhumas outras impressões… Queria simplesmente saber o que havia de fazer para mudar de nome.

- Trocar o nome não é tão fácil. – Expliquei. – É um processo muito complicado e interdito aos menores. Segundo a legislação em vigor: No caso de homônimo, não há previsão legal para a mudança. “Vão depender de um parecer do Ministério Público, em primeiro plano, que pode ser favorável ou não, e em segundo plano do juiz, que pode conceder ou não”. Além disso, - acrescentei. - O processo é demorado, muito demorado. Pode levar anos e anos a ser decidido.

Como ela insistisse, curioso, indaguei:

- Mas afinal que nome gostarias de ter se pudesses mudar?

- Carlos! – Respondeu sem hesitar,

Estarreci, ao mesmo tempo que senti um enorme orgulhozinho!

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publicado por picodavigia2 às 00:05

DIANA

Sábado, 06.06.15

Entrou na sala, pela primeira vez, já o ano letivo teria começado há uns bons quinze dias. Sem se dar conta do feito, armara-se em objetora de consciência ao ensino e, consequentemente, emperrara a sua própria entrada na escola. Contra a sua vontade e para que não se desperdiçasse o abono, uma furgoneta, enferrujada e a desfazer, despejara-a ao portão da escola sem amparo e sem contemplações. Os outros rodopiavam, corriam, saltavam como labregos. Ela com carra de pau, carrancuda e abrupta, enfiada num canto como bicho amedrontado depois de preso em jaula. Nem saco, nem pasta, nem o que quer que fosse trazia, para além daquele corpo esquelético, franzino encimado por um rosto triste e desconfiado, meio coberto por uns cabelos emaranhados, luchosos e desalinhavados. Hesitei aproximar-me. Preferi segui-la, de longe, sem perder de vista, aquele pacote de medo e de indefinição, aquele amontoado de abandono e tristeza. No meio de empurrões e sacudidelas, entrou na aula, apática, indiferente, como se estivesse noutro local, noutro espaço, noutro mundo, onde os seres que a rodeavam falavam uma linguagem diferente da sua. No rosto transparecia-lhe um alheamento perplexo, indefinido e castrador. Passou a aula, em silêncio a olhar para coisa nenhuma. No fim, enquanto os outros vinte e sete saíam aos tropelãos, radiantes e felizes, ávidos de uma coboiada de dez minutos, adiantei-me para que não saísse. Aproximei-me e meti conversa. Muda que nem um cepo. Carrancuda que nem uma tartaruga. Olhos bem cravados no chão, não tugia nem mugia. Insisti e sentei-me em frente, a fim de que nos pudéssemos entender melhor e que ela sentisse que o meu olhar era de respeito, de carinho, de vontade de libertá.la. Começo pelo que, de momento, me parece lhe será mais grato. Tento recorrer a uma linguagem que entenda. Responde com monossílabos, Insisto:

- Teu pai? Onde trabalha?

- Debaixo da terra!

Arrepiei-me. Numa frustrada tentativa de esclarecer percebi que trabalhava em Lisboa, no metro. Depois vieram a mãe, os sete irmãos mais novos, três mais velhos e uma sobrinha. Vida desgraçadas, estraçalhadas, desfeitas, entre escombros, sem recordações, entrelaçadas em percalços, fomes e consumições. Em pequena partira a cabeça contra uma parede, com repercussões na memória e na capacidade de entendimento, que já era frágil. O irmão mais pequeno partiu uma perna e a mãe parira um outro irmão já morto. A casa? Feita de lama e negrume, sem pão, sem alegria, cinzenta e feia. Era ela que cuidava dos irmãos…

- Não gosto da escola. Não gosto dos professores. Os professores são maus.

Na Primária levara porrada da meia-noite. Queria ir para casa. Preferia passar fome do que estar ali presa. Sim, passava muita fome, em casa. Trabalhava que nem uma burra… Mas em casa, agora que o pai se pirara para bem longe, já não levava porrada.

Eu nunca me senti tão impotente e incapaz! Pouco percebia do que ela narrava. Imaginava quase tudo. Entre nós havia uma inquebrável barreira que nos afastava fatalmente, mas que não fora eu, nem ela a construir. Pior! Do lado dela a barreira estava pintada de medo. Medo de tudo. Medo de mim! Medo do professor! Nunca tal me acontecera! Aquietei-me um pouco imaginando quanta dor, quanta angústia, quanto sofrimento lhe enchia o peito. Sorri e, ao de leve, com as costas da mão, acariciei-lhe o rosto negro, intumescido, lavrado de dor e debruado de infelicidade.

Veio mais um dia. Depois dois e três, em que ela alternava vindas com faltas. Quando chegava eu saudava-a com um sorriso meigo e carinhoso e deixava que navegasse no seu mundo de indiferença, onde o ódio que inicialmente imperava, agora parecia ir amolecendo. Diluindo numa esperança fictícia, inexistente.

Uma semana depois, decidi recomeçar, sem saber bem por onde:

- Brincadeiras?

 - Não tenho tempo para brincar. Televisão não tenho. Nunca vou ao café ver. A minha mãe é doente. Está sempre de cama. Não pode fazer nada. Há tempos deu-lhe um fanico. Eu não quero que ela morra. Eu é que limpo, lavo e faço o comer. Agora, meteram-me aqui e não posso ajudar a minha mãe.

- Teu pai? Não vem a casa, pelo menos ao fim de semana?

- Não. Não sei porquê, mas acho que ele anda com outra lá em Lisboa. Se eu pudesse, se me deixassem eu ia era trabalhar. Ganhava dinheiro para comprar café e remédios para a minha mãe. Quero que ela fique boa, não morra. Se ganhasse mais punha o dinheiro no banco para comprar uma casa… Não quero que meu pai venha para casa. Ele já me bateu três vezes com uma corda. Ainda tenho marcas nas costas. A minha irmã fugiu de casa e já teve um filho. Meu pai quase que a matou à pancadaria.

Interrompi aquele turbilhão, aquele mar de mágoas e dores. Apeteceu-me dar-lhe cem escudos, para café para a mãe e pão para ela e para os irmãos. Hesitei. Se alguém soubesse, corria riscos de ser mal interpretado ou até acusado do que quer que fosse.

Á minha frente instalava-se um ano letivo indefinido e indeterminado. Decidi que não me havia de preocupar com o que ela aprendesse ou não aprendesse, mas sim com a maneira como ela se havia de sentir. Para começar, tinha a certeza absoluta de que se ela, que até tinha nome de deusa, Diana, se sentia mal, muito mal.

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publicado por picodavigia2 às 08:01

DAR A VOLTA

Segunda-feira, 02.03.15

No início de um novo ano lectivo, logo na primeira aula, entrou-me pela sala dentro uma aluna já espigadote, com ar displicente, revelando desinteressada motivação, mas bonita, elegante e sedutora, que depois de dar de caras comigo e de se sentar numa carteira vaga, sussurrou, indignada, para a colega do lado:

- Não me faltava mais nada! Eu a cuidar que havia de ter um professor novo, jeitoso, um borrachão…e sai-me este velho, careca, com ar de chato! Em má hora vim para esta turma e, além disso, detesto Português…

A outra encolheu os ombros e, talvez desconfiando que eu tivesse ouvido o repulsivo elogio, sorriu docemente, como que a implorar que a perdoasse, enquanto a primeira, a que se havia indignado com a minha figura, continuava, displicente, alheada de tudo, olhando o infinito, através de uma das janelas, como se nada tivesse acontecido.

Foram feitas as apresentações, estabeleceu-se um diálogo interessante e de seguida apresentei, sucintamente, o que seriam as minhas aulas, insinuando que, mais do que um professor pretendia ser um amigo, uma espécie de colega mais velho, que talvez soubesse mais algumas coisas do que eles, fazendo-os sentir que eles, alunos também sabiam muitas coisas que eu não sabia e que o interessante seria partilhá-las uns com os outros. Pedi-lhes que viessem sempre alegres e que cada aula se transformasse num momento de felicidade e de prazer para eles e para mim.

E as aulas continuaram, de acordo com a metodologia que desde há alguns anos adotara e que privilegiava o trabalho de grupo, a colaboração e a partilha de saberes. Para isso organizei em blocos os conteúdos da disciplina que lecionava, Língua Portuguesa. Os blocos, com duração variável, eram constituídos por vários tempos letivos, na altura de noventa minutos cada, nos quais programava e realizava, primeiro a apresentação do programa das atividades que havíamos de realizar no bloco e expunha de forma clara que incluía registos por parte dos alunos de novos conteúdos, de novos métodos ou técnicas de trabalho. Esta era, segundo lhes dizia, a minha parte. A segunda seria a deles, pois nela cada grupo realizava os vários tipos de trabalhos que lhe eram propostas e que se relacionavam sempre com os conteúdos que lhes havia apresentado. Por fim, havia uma terceira parte, que eu apelidava de nossa e que consistia na apresentação, à turma, dos trabalhos realizados por cada grupo. Claro que não podia descuidar a criação de instrumentos de avaliação, entre os quais e realização de uma para toda a turma. No fim, abolindo o rotineiro e maçador sumário de cada aula, e elaborávamos, coletivamente, um sumário gigante, respeitante a todo o bloco. Os grupos eram pequenos, heterogéneos e de livre escolha. Realizámos sete blocos durante o ano, nos quais todos os alunos se empenharam de forma interessada e admiravelmente participativa. As aulas decorriam alegres, felizes e velozes como o vento.

O ano aproximava-se do seu termo. No fim duma aula a Matilde, assim se chamava a aluna que no início do ano, me atirara aquele pouco dignificante piropo, um pouco tímida e hesitante, deixou-se ficar a sós comigo na sala, depois dos outros saíram. Eu sabia do interesse que ela revelara nas minhas aulas, do bom desempenho que tivera e de quanto gostava delas. Dirigindo-se a mim, compulsivamente, atirou-me de chofre:

- Professor, as suas aulas são as de que mais gosto nesta escola e aquelas para as que eu venho mais contente. Também gosto muito de si.

Abracei-a e agradeci-lhe.

Ainda hoje, ao cruzar-se comigo na rua, o que muito raramente acontece, ela vem, com muita alegria cumprimentar-me e dispara:

- O senhor foi o professor de que mais gostei.

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publicado por picodavigia2 às 00:03

A LIÇÃO DO SILÊNCIO

Terça-feira, 03.02.15

Início de mais um ano lectivo. Turma A. Cerca de trinta alunos irrequietos e barulhentos entram, de rompante, pela sala dentro e acomodam-se ao deus dará, arrastando mesas e carteiras, colocando a sala em polvorosa

Interrogo-me de como serei capaz amansar aquele irrequieto batalhão, de como poderei aquietar aquela chusma de rebeldes. Grito, não grito? Berro não berro? O barulho aumenta, assustadoramente, a cada momento e a confusão impera, sem limites. Há lutas por lugares, empurrões por querer ficar junto à janela, atropelos para ficar à frente e choramingas por não se conseguir o lugar almejado. Há um barulho terrível, gritos ensurdecedores. Penso melhor no que vou fazer, na forma ideal e perfeita de por cobro a tão aberrante agitação e cuido que só há uma forma de desfazer, com eficiência, o turbilhão que, à minha frente, se avoluma a cada momento.

Coloco-me em pé e em silêncio absoluto, de braços cruzados, no meio da sala, a olhar para eles com uma atenção desmesurada e um cuidado excessivo. Permaneço assim, somente a olhá-los com o rigor duma primorosa e condenatória observação.

Não demora muito, um deles, um dos mais calmos e atentos, olha para mim muito admirado e logo faz sinal a um colega. Toca-lhe no braço e, com um gesto de rosto, aponta para mim. Ele cala-se, sossega e senta-se. O colega a quem ele tocara no ombro segue o seu exemplo. São menos dois a fazer barulho. Pouco depois, o primeiro aluno, voltando a encarar comigo, resolve fazer o mesmo com um terceiro colega. O outro que já se aquietara imita-o. Já são quatro os que desembraveceram. Depois mais dois e outros dois. O barulho diminui lentamente e a confusão de decresce, aos poucos. Eu não desarmo. Permaneço igual, parado, de olhar atento, concentrada no que observo. Como pedras de dominó, que vão caindo à medida que umas tocam nas outras, eles também se vão tocando uns nos outros, calando e sossegando, sucessivamente. Metade da turma já tomou consciência da sua atitude incorreta. Corrigiu-se. Agora os que se apaziguaram avisam os outros. A estratégia é sempre a mesma: tocam-se, apontam, olham, tomam consciência do descalabro em que navegam e, por fim, calam-se, pacificam-se. Agora são apenas três que ainda se inquietam e fazem barulho. A maioria recrimina-os, avisa-os, incentiva-os a se acomodarem. Eles apercebem-se do que fazem. Finalmente, apenas, dois que, um pouco envergonhados, parecem não querer dar o braço a torcer. De seguida, pasmam, sem perceber muito bem o que se passa. Permaneço em silêncio, de braços cruzados, em pé no meio da sala, a olhar para eles. Eles, os dois retardatários, por fim, também resolvem aquietar-se. Agora há um silêncio absoluto e total na sala. Trinta alunos! Todos sentados à minha frente, silenciosos, atentos, a olhar para mim.

Eu, finalmente, quebro o silêncio:

- Bom dia!

Em uníssono, com dignidade e aprumo, embora em alta gritaria, respondem:

- Bom dia, senhor professor.

Senti, então, que esta tinha sido a minha primeira grande lição, a lição do silêncio.

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publicado por picodavigia2 às 10:06

O CADERNO DIÁRIO (II)

Sexta-feira, 19.12.14

A Dona Madalena era muito exigente, excedendo-se, frequentemente, em repreensões, castigos e reguadas. Eu pelava-me de medo e tremia como varas verdes. Não era pela preguiça ou desmazelo nos estudos, nem sequer pelos erros ou má caligrafia, parâmetros de avaliação em que era exímio, chegando mesmo, nas lições de cor, a ser o melhor da classe. Em História, desembuchava os reis de Portugal a eito e com os respetivos cognomes. Em Ciências definia, com rigor, cada órgão ou parte do corpo humano e em Geografia papagueava rios, afluentes, linhas férreas e até os países da Europa com as respetivas capitais. Onde eu prevaricava era na limpeza e asseio do Caderno Diário. Não havia mês, semana, talvez mesmo dia, em que não me apresentasse junto à secretária da senhora professora com o caderno sujo e besuntado. Esta ignomínia, que a Dona Madalena julgava de falta de cuidado, era fruto das precárias condições que reinavam lá casa. Isso revoltava-me, porque os outros tinham sempre o caderno limpinho e asseado, embora não me igualassem na leitura ou nas lições de cor. Mas quanto à limpeza, o meu caderno era o pior da classe. Uma autêntica vergonha! Todos os outros primavam por uma limpeza que acentuava mais e mais a imundície do meu.

A minha casa possuía umas instalações tão exíguas e precárias que me forçavam a fazer os trabalhos que a senhora professora mandava, em cima da mesa da cozinha, onde remanesciam migalhas de pão, restos de comida e pingos de café, de leite e de graxa. Além disso, a cozinha era mal iluminada de dia e, à noite, acendia-se uma pequena candeia alimentada a enxúndia de galinha, em que flamejava uma chama frouxa e titubeante que mal permitia divisar pessoas e objetos. A mobília era constituída por uma mesa, meia dúzia de bancos e um pequeno armário. Pelo chão abundavam sacos de serapilheira com batatas, inhames, cebolas e maçarocas de milho. Atrás da porta, o balde do porco, onde se iam armazenando os restos de comida, as cascas das batatas, dos inhames e as lavagens que, depois de cheio, constituía a principal refeição do suíno. Por baixo, uma loja dividida entre arrumos e estábulo.

Era nestas instalações que montava sala de estudo e, por essa razão, o meu caderno diário se transformava numa execrável e hedionda sujeira.

Certo dia, em que o esquecera sobre a mesa, caíram-lhe em cima umas brasas que saltaram do ferro de passar roupa, queimando, parcialmente, meia dúzia de folhas. Estarreci. Com que cara me iria apresentar, no dia seguinte, à Dona Madalena, tendo o caderno naquele estado? Ia ser o bom e o bonito! E não me enganei. Para além da chacota de que fui alvo, levei umas reguadas com a rigorosa imposição de, sem falta, ter que arranjar um caderno novo e passar tudo a limpo, para o dia seguinte.

Matutei a tarde inteira na forma de resolver o imbróglio em que estava exprobrado, apesar de inocente e que passava pela compra de um caderno novo, o que me forçaria a ter que desenvencilhar uns cinquenta centavos. Como só tinha amealhado trinta, recorri à generosidade de minha avó que me abonou os vinte que faltavam.

Ao fim da tarde, sentei-me à mesa e comecei a passar tudo a limpo. Estava prestes a chegar à última folha quando, de repente, me emborcaram uma tigela de café sobre o caderno que eu acabara de passar a limpo.

De nada valeram protestos, choradeiras e reclamações. E tive que me apresentar na escola, na manhã seguinte, com aquela espurcícia em riste, imaginando o que me esperava.

Foi então que, num gesto de grande nobreza, o Amâncio, apercebendo-se da minha angústia e atrapalhação, me acalmou. Desde há muito que eu era o seu maior amigo. Tirou um caderno limpo e novo da sua pasta e, com excessivo cuidado e engenho, cortou-lhe a capa, pedindo-me que na mesma escrevesse o meu nome. De seguida, cortou a capa do seu caderno, substituindo-a por aquela em que eu havia escrito o meu nome, colando-a, muito disfarçadamente, com goma-arábica. Quando, algum tempo depois, a senhora professora me chamou, ele, encorajando-me e incentivando-me com grande convicção, disse baixinho, perante a minha perplexidade:

- Vai! Vai! Não sejas parvo! Ela não vai dar por nada.

E não deu. Apenas, em tom de censura, me recriminou:

- Hum! Que caligrafia é esta?! Nem parece a tua – e, de imediato, perguntou - Foste tu que passaste?

- Fui, sim, senhora professora. É que… passei tudo à pressa…

- A caligrafia não está grande coisa. Mas lá que está limpinho, está – concluiu, sem hesitar, a senhora professora.

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publicado por picodavigia2 às 12:12

POESIA

Domingo, 16.11.14

Chegou, em mais um ano letivo, o dia de nas minhas aulas, dando cumprimentos ao programa de Língua Portuguesa, abordar a poesia. Embora devidamente preparado, estava um pouco apreensivo, sobretudo como a forma de os motivar. As aulas, porém, correram de forma magnífica, e todos se motivaram.

Depois de apresentar e ler alguns poemas, lá fomos sintetizando que a poesia é uma arte complexa e diversificada e há textos poéticos de formas diversas, mas fáceis de distinguir da prosa. Para além da diferença da mancha gráfica, a poesia tem mais ritmo do que a prosa. As palavras estão dispostas de acordo com determinadas normas, adequada acentuação e demarcadas pausas, o que lhe confere um ritmo, uma harmonia e uma musicalidade próprias, diferentes da prosa. Além disso, mais do que a prosa, a poesia provoca e excita a imaginação, o sonho e a sugestão.

De seguida fomos à parte formal ou técnica. O verso é o elemento fundamental da poesia. É um conjunto de palavras, correspondente a uma linha, com um certo número de sílabas e com determinada acentuação. Os elementos do verso são: a sílaba, o acento e a rima, todo observado, registado e exemplificado. Mais se descobriu que versos, geralmente, formam grupos, sendo muito populares os grupos de 4 versos com sete sílabas, que se chamam quadras.

Havia muitos tipos de poemas todos eles exemplificados no Manual. Destaquei o Acróstico ou seja um poema no qual se formam palavras com letras duma ou mais palavras, o Caligrama, poema em que as palavras estão dispostas de modo a representar um desenho de objetos, animais, personagens, etc., a Cantilena, poema suave e monótono em que se repetem diversos sons com intenção de iludir alguém, o Romance, um poema que conta uma pequena história e ainda o Soneto, poema rigorosamente constituído por 14 versos, dispostos em 2 grupos de 4 e outros 2 de 3.

Finalmente uma pequena abordagem aos Recursos Poéticos mais utilizados: Adjetivação, Personificação, Comparação, Repetição e ainda referências ao uso da interjeição, da onomatopeia, dos diminutivos, das reticências, etc.

Por fim convidei os alunos a escreverem, livremente, um poema. Todos o fizeram. Da safra, não resisti a selecionar os seguintes, aos quais fiz pequenas correções e cujos nomes dos autores, obviamente omito, até porque alguns foram elaborados em grupo:

 

QUADRA

 

Venho p’ra escola e brinco,

Venho p´ra escola e aprendo,

Só que, no dia seguinte,

Eu já de nada me lembro.

 

NA ESCOLA

 

Vamos sempre p’ra a escola,

Ler, aprender, estudar.

Somos felizes, de sacola,

No trabalho ou a brincar.

 

Nós andamos sempre juntos,

No recreio ou a estudar;

Somos tantos, somos muitos

Ninguém nos vai separar.

 

Sempre alegres e felizes,

Sempre a rir ou a cantar,

É verdade! – Se o dizes,

Ninguém o pode negar.

 

VIDA NA ESCOLA

 

Pela escola vão saltando,

Sem sentido,

Braços, pernas, cabeças...

Os corações palpitando...

Pálida é a cor,

O gesto é bonito,

Lançando pelos ares

Um desejo infinito.

E a escola é já um exército,

Mas um exército grande,

Onde lutam amigos,

Mas amigos de sangue.

E a energia que se perde,

É a força que transforma

A alegria, o amor, a vida,

Em força de norma.

           

SER ALUNO

 

P´ra escola venho aprender,

Conhecimentos partilhar,

Com a alegria de viver

E o sonho de alguém amar.

 

Ser solidário é importante,

E andar por bons caminhos;

Da gente pequena ou grande,

Devemos ter só carinhos

 

E S C O L A

 

Encontro de amigos,

Sempre bem dispostos.

Com empenho e alegria,

Olhando o mundo e a esperança,

Leem, escrevem, brincam e...

Aprendem a viver!

 

A PAZ

           

A paz é a liberdade,

É o mundo quieto, gritando, saltando,

É a alegria de viver.

 

A paz é um coração entre dois cravos,

É o melhor que pode haver,

É a certeza, a esperança, a verdade,

A paz é o amor,

É a felicidade.

 

A paz é o oposto da guerra,

É o carinho, a ternura,

É o mundo sem sangue,

É a solidariedade partilhada.

 

A paz é a palavra mais bela,

A paz é... tudo!

 

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publicado por picodavigia2 às 17:05

MUDANÇA

Terça-feira, 02.09.14

Entrou-me na sala já o ano lectivo teria começado há uns bons quinze dias.

- Não gosto da escola. Não gosto da escola. – Estrebuchou por entre dentes

Sem se dar conta do feito armava-se, assim, em objectora de consciência à escola, ao ensino e a todo o tipo de aprendizagem. Simplesmente incrível e a tarefa de desfazer este muro de vergonha e casmurrice.

Aproximei-me e fui dizemdo comalguma tranquilidade. Que sim senhora. Que tinha toda a razão, estava no seu direito de não gostar da escola. Mas a contrária também era verdadeira. A escola também não gostava dela. Sem dar grande importância às suas convictas opções. Por fim. apenas murmurei;

- Mas ainda se vão tornar grandes amigas.

Ela arregalou-me os olhos, a indicar que não percebera nada mas que também não estava interessada em perceber o que quer que fosse.

De seguida, agarrou dum saco que trazia, emborcou nele um caderno que lhe pus na frente, debruçou-se sobre a carteira e, aparentemente, adormeceu, alheada de tudo e de todos.

Na sala apenas eu seguia, com atenção, aquele pedaço de gente inerte e inactivo. Para os outros era como se estivesse ali uma estátua de gesso, inerte e inactiva. Permaneceu assim durante toda a aula.

No fim e depois dos mais apressados saírem, meti conversa. Nada. Permanecia inerte. Quando terminei a provocação, levantou-se e saiu da sala como entrara, repetindo vezes sem conta a mesma frase: - “Não gosto da escola.”

No recreio ainda lhe apanhei uma dica:

- Meu pai trabalha de baixo da terra.

(Só mais tarde percebi que o pai trabalhava no metropolitano do Porto.)

Depois outra, mais esclarecedora:

- Quero ser doméstica como a minha mãe. Não preciso de vir para a escola. - Depois num tom colérico – Eu odeio os professores. Não gosto da escola. Não preciso da escola para nada. Quero fazer como a minha irmã. Ela saiu de casa e casou cedo por causa do meu pai. Ele é teso da verga. Quem manda lá em casa é ele. Se não lhe obedecemos… Pimba! Tareia p’ra burro.

Percebi do que necessitava. De quem lhe desse o carinho e a amizade que lhe faltava em casa,

E ano lectivo lá foi decorrendo. Ao princípio um ou outro dia de aulas, intercalado com dias e dias de faltas. Foi chamada a mãe. Veio à quinta convocatória da Directora de Turma.

- Preciso da cachopa e se preciso da cachopa a cachopa não pode vir à escola. Ela nem gosta da escola.

Melhorou. Algum tempo depois, veio o pai:

- Vou meter a cachopa na linha. Vai saber que tem pai…

- O demónio em pessoa – comentava a senhora Otília da secretaria. - O homem não veio por causa da filha. Veio buscar o cheque dos livros… que se calhar nem comprou, porque a pequena anda sempre com a sacola vazia. E os pais sabem, mas não se importam.

Depois do Natal melhorou muito e a seguir à Pascoa, entrava-me na sala com um sorriso rasgado, de orelha a orelha. Fazia o que queria e o que lhe apetecia, Não a recriminava nem reprendia. Apenas lhe dava o que ela mais necessitava: amizade e carinho, sobretudo carinho, porque é um crime deixar viver uma criança sem carinho. É verdade que não aprendeu rigorosamente nada, mas isso, decerto, não era o mais importante.

No fim do ano, na última aula, aproximou-se e, a muito a medo, disse-me:

- Para o ano quero vir outra vez para a escola, mas só se for para a sua sala.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 06:53

O CRAVO E O LENÇO

Segunda-feira, 14.04.14

Num destes dias, numa viagem de avião entre a Terceira e o Porto, a transportadora aérea em que viaja, decidiu, como é seu hábito, servir, durante o percurso, a tradicional refeição ligeira, com que as companhias aéreas portuguesas, normalmente, obsequeiam os seus clientes, nos voos domésticos: uma sande de fiambre com uma folhita de alface, algum molho do tipo mostarda e uma bebida à escolha. Um essencial, como sobremesa, completava o cardápio. Havia de seguir-se, apenas, café ou chá.

Para espanto meu, este famigerado menu foi-me servido por uma jovem, bela e simpatiquíssima hospedeira que não cessava de olhar para mim, sorrindo suave e alegremente. Interroguei-a, no sentido de descortinar o motivo de tão perturbadora, mas ao mesmo tem gratificante, atitude.

- Então, o senhor não me conhece? Já não se lembra de mim?

Que não, que nunca a vira, que não fazia ideia de quem era ela. Se, eventualmente, já a tivesse visto, disso não me lembrava, o que era, no mínimo, lamentável.

- Então?! Fui sua aluna, sua aluna de Português!... Não se lembra?

Expliquei que as minhas alunas foram sempre criancinhas e foram tantas que de muitas delas não me podia lembrar. Além disso, decerto que teria mudado muito…

Mas, tentando avivar a memória e reparando melhor, concluí que aqueles os olhos, as covinhas da face e, sobretudo, aquele doce sorriso começavam a trazer-me a imagem duma doce e meiga menina, minha aluna de outros tempos, que, aos poucos e com as explicações que me deu, se foi definindo e clarificando.

Tratava-se da Sílvia, natural de uma das freguesias dos arrabaldes da cidade onde resido, que, na verdade, em tempos idos, fora minha aluna. Sim senhora! Agora, lembrava-me perfeitamente dela…

E enquanto com agilidade e segurança ora distribuía as caixinhas do cardápio com a tal ligeira refeição, ora servia as bebidas consoante os desejos dos passageiros, a simpática hospedeira lá foi elogiando as minhas qualidades de professor:

- Olhe, foi o melhor professor que eu tive! E foi consigo que eu comecei a gostar de Português e, sobretudo, de poesia. Foi o senhor que me deu o primeiro poema que eu li. Gostei tanto que o decorei e ainda hoje me lembro dele. Era um poema de Eugénio de Andrade… Quer ouvi-lo? Era assim:

 

“Tinha um cravo no meu balcão;

Veio um rapaz e pediu-mo

- mãe, dou-lho ou não?

 

Sentada, bordava um lenço de mão;

Veio um rapaz e pediu-mo

- mãe, dou-lho ou não?

 

Dei um cravo e dei um lenço,

Só não dei o coração;

Mas se o rapaz mo pedir

- mãe, dou-lho ou não? “

 

Os passageiros, ao redor, tão pasmados e embasbacados ficaram que suspenderam a tal ligeira refeição. Um senhor, ao meu lado, comentou com algum exagero:

- Parabéns! Os professores deviam ser todos assim…

Terminado o serviço de refeições, a Sílvia, regressando ao meu lugar, explicou:

- Sabe, professor. Foi por causa de si e do tal gosto pela poesia que o senhor fez despertar em mim, nas suas aulas, que decidi formar-me em literatura portuguesa. Infelizmente, não consegui entrar no ensino. Mas talvez tenha sido melhor, pois foi devido a isso que aproveitei a oportunidade de concorrer a hospedeira. Hoje, já sou profissional. Gosto muito deste trabalho e não o trocava por outro. Mas acredite que, foi por causa de si, que continuo a gostar muito e a ler poesia.

Confesso que me senti lisonjeado.

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publicado por picodavigia2 às 16:23

BLUETOOTH

Sábado, 29.03.14

Nos últimos anos da minha careira como professor, felizmente, tive a possibilidade pedagógica de recorrer ao uso do computador nas minhas aulas. Para além de consubstanciar uma maior motivação para os alunos, a utilização do computador permitia-me não apenas uma melhor planificação e uma mais adequada programação das aulas mas sobretudo permitia-me o recurso a metodologias mais dinâmicas, mais envolventes, mais actualizadas e, sobretudo, mais eficientes.

Comprara um computador simples e, relativamente, barato sem grandes placas ou modernas aplicações mas com o fundamental e que servia, perfeitamente, os meus intentos. Iniciando-me no seu uso e abuso, lá fui dando os primeiros passos nos, para mim, quase intransponíveis e infindáveis meandros da informática. Para além dos registos de textos, tabelas e quadros, comecei a perceber que poderia ir mais longe, servindo-me daquela quase mágica caixinha, para conectar e projectar informações através de um retroprojector, de um câmara ou de outros audiovisuais que a escola já possuía.

Certo dia, numa aula que pretendia mais dinâmica e atractiva, preparei-me para a grande aventura. Carreguei-me de sacos, malas e caixas… Computador, projector, colunas e uma data de fios que nunca mais acabava. Logo no início da aula e a muito custo, tentei ligar aquilo tudo conforme me haviam indicado. É verdade que ajuda não me faltou. Mas aquilo, nada! Quantos mais fios ligava e botões carregava,  maior era a desilusão. No ecrã continuava apenas projectada a imagem da página de fundo do meu computador. Felizmente, na turma, havia alguns experts na matéria que, de imediato, me cercaram, disponibilizando ajuda, dando palpites e propondo soluções. Escolhi aquele que cuidei mais ajuizado e sabedor e mandei os outros para os seus lugares. O artista seleccionado, ligou e desligou fios, acendeu e apagou botões e luzes, mirou as máquinas de fio a pavio e concluiu com uma certeza convicta, profunda e, sobretudo, absoluta:

- Ó professor, isto não pode dar. O seu computador não tem bluetooth.

Estarreci. Então tinha comprado um computador caríssimo, moderno, com tudo o que era necessário para as minhas aulas e ele não tinha blutô! Por isso interroguei-o:

- O que é isso do blutô, que esta porcaria deste computador não tem?

Ele, muito calmo, sereno e, sobretudo, seguro, explicou, pese embora muitos outros também o quisessem fazer:

 - Bluetooth, professor, é uma especificação para as redes wireless que permite ligar e trocar informações entre dispositivos como telefones celulares, computadores, impressoras, câmaras digitais, projectores e consolas de videogames digitais através de uma frequência de rádio de curto alcance. Se o seu computador tivesse Bluetooth a informação ou as imagens que o professor tem passavam para o projector e viam-se no ecrã. Assim não se pode projectar nem ver absolutamente nada.

E eis senão quando, perante o protesto e aborrecimento dos alunos, me preparava para abdicar de tudo aquilo e, recorrer ao manual e ao quadro, mergulhando e arrastando a turma comigo às antigas metodologias de uma aula tradicional, um aluno, lá do fundo da sala, levanta-se e anuncia com grande entusiasmo e um misto de vaidade:

- Ó professor, não há problema. Tenho aqui o meu telemóvel e ele tem Bluetooth! – E abandonando o seu lugar, veio até junto à minha secretária, perante a admiração de todos os outros, mostrar-me aquela intrigante mas magnífica máquina de que tanto se orgulhava. Por isso insistia:

- Pode usá-lo, professor, ele tem Bluetooth!

Amirado com aquela maravilha das novas tecnologias, indaguei:

- Tu tens um telemóvel destes? Quem to deu?

- Foi o meu pai!

- E quanto custou?

- Quatrocentos euros!

Sem que o miúdo se apercebesse, abri o Livro do Ponto e consultei a lista de alunos e os respectivos escalões. Fora-lhe atribuído, no início do ano, o Escalão A!

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publicado por picodavigia2 às 15:18

BICHAS DA QUARESMA

Quinta-feira, 06.03.14

Quando me fixei no norte do país, mais concretamente no Douro Litoral, muito pouco sabia dos costumes, das tradições, dos hábitos, da maneira de ser e até de falar do povo da região duriense. Mas tive sorte, porque abraçando o ensino e, na altura, inspirando-me no Diário de Sebastião Gama, fiz sentir aos meus alunos, logo no início do primeiro ano lectivo em que leccionei, que estávamos ali, não apenas para ser eu a ensiná-los, mas também para aprender com eles tantas coisas que eles sabiam e que eu desconhecia, sobretudo acerca da terra onde viviam e onde eu era um estranho.

Todos aceitaram de bom grado a proposta, cumpriram-na com zelo, gosto e competência e, algum tempo depois, podia orgulhar-me de muito já conhecer sobre a terra que agora assumira como minha.

Entre os variadíssimos temas sobre os quais foram dissertando, um ainda hoje recordo com persistência e que me veio, ontem, à memória, quando transitava, pela minha rua, com uma boa parte dos passeios ladeados por um vasto e amplo pinhal, e verifiquei que o chão estava repleto de lagartas de pinheiro.

Pois foram os meus alunos, há muitos anos, que tudo me ensinaram sobre elas, quando em certa aula, por esta altura do ano, me falaram das “Bichas da Quaresma”, nome pelo qual são designadas pelo povo desta região, as ditas lagartas.

- São umas bichas muito feias, setôr. Meu avô diz que elas atacam os pinheiros, enfraquecem-nos e até os podem destruir. – Afirmava um. Perante a minha assumida ignorância, logo outro acrescentava:

- E também fazem mal às pessoas. Devemos ter muito cuidado e não lhes tocar porque nos irritam a pele, os olhos e o aparelho respiratório.

- Até os cães, se as farejarem ficam com o focinho muito vermelho e inchado.

Logo um, lá do fundo da sala acrescentava, perante o meu espanto:

- É verdade, setôr. Meu tio tinha um cão que andava a farejar as “Bichas da Quaresma”. Meu tio deixou-o continuar e ele abocanhou uma e começou logo a ganir que parecia doido. No dia a seguir tinha a boca toda seca, nem conseguia comer. Foi preciso meu tio ir com ele ao veterinário. O cão esteve quase a morrer.

- Ó setôr, – levantava o braço, uma menina, logo ali à minha frente – elas até fazem ninhos nos pinheiros. A minha avó avisou-me para nunca tocar num ninho de um pinheiro porque eles não são de passarinho, são das “Bichas da Quaresma”. Minha avó também me disse que elas saem do ninho logo de manhãzinha para se alimentarem durante a noite e ficam presas por um fio de seda, através do qual conseguem regressar ao ninho. Também é perigoso tocar no fio.

Finalmente um dos mais expeditos e sabedores, desafiava-me com ar solene;

- E o sector sabe porque é que elas descem dos pinheiros e andam pelo chão, em fila, parecendo um combóio? – Como manifestasse a minha ignorância, ele perseguiu: - É para se enterrarem e depois se transformarem em casulos e a seguir em borboletas para voltarem a por os ovos nos pinheiros e nascerem mais bichas. É nesta altura que elas andam pelo chão e são mais perigosas.

- Então elas têm metamorfoses, como o bicho da sede. – Acrescentei. Depois concluindo: - Sim senhores, bela lição, muito aprendi. Só não percebi ainda por que é que lhes chamam “Bichas da Quaresma”?

E logo eles em coro:

- Porque é nesta altura, na Quaresma que elas descem dos pinheiros e andam pelo chão e é nesta altura que elas são muito mais perigosas.

Fiquei esclarecido e, sobretudo, prevenido. Por isso mesmo, passados tantos anos, ao ver hoje o chão pejado daqueles asquerosos e temíveis vermes, fugi delas como o diabo da cruz.

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publicado por picodavigia2 às 16:42

O PENICO

Terça-feira, 04.02.14

Corriam os famigerados anos da Segunda Guerra Mundial que envolvera a maioria das nações do mundo, organizadas em duas alianças militares opostas: os Aliados e o Eixo. Um conflito tremendo, dramático e o mais letal de toda a história da humanidade, em que todos os países envolvidos se agastavam excessivamente, desfazendo, quase por completo, as suas mais excelsas e dignas capacidades. Açulada pela guerra, a economia mundial suportava um rude golpe, um grande revés e muitos países, para além da angústia e da morte, sofriam o flagelo da fome e da falta de todo o tipo de géneros. Portugal e os Açores, em particular, não foram excepção. Nas ilhas, em cujos mares, em vez dos navios e iates que, tradicionalmente, nelas faziam escala, abastecendo-as e ligando entre si as suas gentes, navegavam, agora, preferencialmente, submarinos alemães, numa zona, para eles, transformada numa espécie de santuário, deserto de navios e aviões inimigos, onde reabasteciam os seus navios de guerra, em trânsito para o teatro das operações ou para as suas bases. Tudo isto fazia com que a vida económica das populações das ilhas começasse a ressentir-se, rareando muitos produtos, nomeadamente, os alimentares e os derivados do ferro.

No Seminário de Angra, nesses tempos a abarrotar de alunos, vivia-se intensamente o drama mundial. Recolhiam-se notícias soltas num ou noutro rádio, liam-se os poucos jornais existentes, discutiam-se as estratégias bélicas e, nos campos de jogos, chegaram a efectuar-se árduas batalhas entre Aliados e Eixo, nem sempre favoráveis aos primeiros. Mas o que mais se fazia sentir era a escassez de géneros, nomeadamente, de alimentos, no minorado pecúlio armazenado nas dispensas anexas à cozinha, e que ia transformando as refeições em momentos de rareza, consubstanciada, sobretudo, na carne, rija, intragável, a originar a lendária “miragaia”. Mas, pior ainda, é que com as restrições à navegação e, sobretudo, com o enfurnar da abastança de muitas famílias, havia diminuído, substancialmente, o acervo de cestas, cabazes, pacotes, sacos, caixas e encomendas que chegavam ao Seminário, quer de São Miguel quer das ilhas de baixo e que, nos intervalos das refeições, alentavam gulosices e sustinham as carências nutritivas que as refeições, cada vez mais limitadas, consubstanciavam. Até a Terceira, por razões mais que óbvias, líder destas remessas, agora fraquejava, tornando-as quase exclusivas de uma ou outra família mais abastada.

Era o que acontecia com o Menezes. A família, residente numa enorme quinta, para os lados da Silveira, possuía bens e terras de tal ordem e riqueza, que por mais que a guerra cravasse as suas garras desoladoras na economia açoriana, não se haviam de esgotar tão cedo. Por isso todos os domingos de manhã, à hora da visita, a mãe e duas tias solteironas, corriam solícitas até à portaria do Seminário, trazendo ao seu menino sacos e caixas com todo o tipo de vitualhas, onde nunca faltava um bolo doce. Mas o Menezes era um sovina, sôfrego, comilão e anafado, incapaz de partilhar com quem quer que fosse uma nica do que tão substantivamente lhe traziam e que tão, avidamente, comia e guardava nas suas malas. À hora do recreio, mal soava a campainha, era vê-lo, de chave na mão, a correr para o porão, a encafuar-se às escondidas, atafulhando-se em bolachas, biscoitos, frutas, filoses e fatias de bolo doce. Os outros, simplesmente, a verem e a crescer-lhes água na boca.

Alguns, mais famélicos, bem o seguiam, a ver se o somítico repartia alguma coisa… Mas ele, nada. Outros, mais atrevidotes, bem o tentavam apanhar de surpresa, surripiar-lhe as chaves, mas ele parecia que tinha olhos no rabo e reflectores nas orelhas. Impossível rapinar o que quer que fosse ao somítico do Menezes.

Revoltado com tamanha sovinice, agastado com tão irritante falta de companheirismo, o Machado jurou a pés juntos que lhe havia de surripiar um bolo, com qual todos se haviam de deliciar. Os outros que não e ele que sim! Que esperassem, que haviam de ver e não demoraria muito.

Foi o Manelinho, o empregado sempre solícito e amigo, encobridor de patuscadas e colaborador na candonga dos cigarros, que comprou um bacio, de alumínio, para não se partir, ao ser arremessado.

Depois, foi aguardar, atentamente, uma manhã de domingo. O Menezes, durante a hora de estudo, chamado à portaria para receber familiares e géneros, foi colocar os sacos e pacotes, na camarata, à espera do recreio seguinte, a fim de os guardar na mala, no porão. Ainda nem tinha regressado o Menezes ao seu lugar e o Machado junto à secretária do prefeito que, muito concentrado, lia o breviário. Tinha uma enorme dor de barriga e precisava de ir à retrete, com urgência. Um desvio pela camarata. Lá estavam as vitualhas do Menezes, entre as quais um bolo doce, excelente, apetitoso, divinal. Retirou-o da caixa de papelão e colocou-o, com cuidado, dentro do penico que, obviamente, nunca tinha sido utilizado.

Mal tocou a sineta para o recreio e o Menezes a correr para a camarata, com o intuito de proteger o seu pecúlio pantagruélico. O Machado e os comparsas com quem compartilhara o ardil, a verem de longe.

Dito e feito. O Menezes, ao deparar-se com a marosca, furioso, pegou no penico e arremessou-o, com violência, para chão da camarata, ficando o bolo, por feliz coincidência, direitinho e inteiro como se, acabado de sair do forno, aguardasse ser retirado da forma. Era o epílogo desejado!

E do bolo, nem uma fevra sobrou.

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publicado por picodavigia2 às 19:40

A LINGUIÇA E A GATA

Segunda-feira, 13.01.14

O teólogo Edmundo, assim como todos os outros teólogos, tinha o seu quarto lá bem no alto, no terceiro andar da ala central, por cima das camaratas dos “Médios” e que dividia o enorme edifício do Seminário em duas partes: os professores, as salas de aula, a capela de baixo, os refeitórios e a cozinha a sul, a Prefeitura dos “Miúdos”, com as suas camaratas, salão de estudo e capela da Natividade, a norte.

Apenas quando, de madrugada ou à tardinha, se deslocavam à capela, ou nos dias destinados a passeios e numa outra vinda casual à portaria, o teólogo Edmundo e os outros teólogos desciam a enorme escadaria, interior, paralela ao frontispício do edifício, que dava para o largo de Santa Teresinha e para o Salão dos “Médios”. De resto, nas suas descidas frequentes e contínuas, quer para as aulas, quer para os campos de futebol ou até para o refeitório. o teólogo Edmundo e os outros teólogos, desciam dos seus altos aposentos por umas escaleiras exteriores e de cimento, situadas nas traseiras do prédio, rés-mines com as paredes de outros prédios contíguos ao Seminário.

Nessas descidas e subidas, repetidas várias vezes ao longo do dia, o teólogo Edmundo passava ao lado da cozinha e, antes desta, da despensa, onde se guardavam batatas, cebolas, farinhas, açúcar, carne e muitos outros géneros necessários à alimentação de alunos e professores, incluindo uns bons pedaços de linguiça, ainda a cheirar a “fogueado”, enrolados e suspensos em barrotes de madeira. A dispensa tinha uma janela que dava para a escadaria por onde transitava, várias vezes ao dia, o teólogo Edmundo. A janela, porém, embora se encontrasse com uma pequena gateira, estava de tal modo trancada, que mais nada por ali cabia ou entrava, a não ser uma mão fechada, sendo impossível, por tanto, do exterior, agarrar o que quer que fosse que estivesse lá dentro, muito menos um pedaço da linguiça, ainda por cima, bem distante da janela e suspensa nos barrotes. Apenas o cheiro desta se evaporava pela gateira, permanentemente aberta, provocando nos transeuntes um apetite devorador, uma vontade indómita de a agarrar, trincar e degustar. Mas qualquer tentativa, relativamente à sua captura, era vã e improfícua, constituindo um desperdício de forças.

Mas o teólogo Edmundo, sem meias medidas, jurou que um dia ainda havia de lhe chegar e de se deliciar com um belo naco da dita cuja. Os outros teólogos riam e julgavam-no tresloucado.

Ora na vizinhança do Seminário havia sempre gatas que pariam, com alguma frequência, ninhadas de gatinhos. Aproveitou o teólogo Emundo para escolher um produto de uma última ninhada, uma bela gatinha, branca, pequenina e fofinha, alimentando-a e tornando-a sua protegida. A bicha cresceu, tornou-se uma bela gatarrona e afeiçoou-se em demasia ao seu protector.

Certo dia o teólogo Edmundo, deixou a bichana sem comida, muniu-se de um cordão, amarrou-o ao pescoço da gata e, ao passar em frente à janela da despensa, enfiou-a pela gateira da janela que permanecia aberta dia e noite. A gata, esfomeada que estava, encaminhou-se abruptamente na direcção da linguiça, atirando-se a ela de unhas e dentes, enquanto o teólogo Edmundo, de fora, lhe ia dando folga na corda. Assim que a gata capturou o primeiro troço de linguiça, puxou-a até junto da janela, retirou-lhe o naco e repetiu o cerimonial, a fim de que a felina lhe trouxesse outro e um outro e ainda mais um outro bocado de linguiça. Todos os que o teólogo Edmundo quis.

E a linguiça foi assada com álcool retirado da enfermaria, e comida pelo teólogo Edmundo e por muitos outros teólogos, expressamente convidados para o bródio. Apenas um ou outro teólogo mais íntimo do teólogo Edmundo, cúmplices indirectos na façanha, soube a verdadeira origem da linguiça, cuidando a maioria que a mesma lhe havia sido enviada da Ribeira Grande, pelos seus progenitores.

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publicado por picodavigia2 às 01:34

A CRUZ AZUL

Sábado, 11.01.14

O Prelado Diocesano era muito solícito nas suas visitas ao Seminário. Para ele, aquela instituição quase centenária era uma espécie de jardim onde floresciam e se formavam aqueles que um dia havia de ordenar e que seriam os seus colaboradores directos no pastoreio da diocese açoriana, onde se havia fixado há mais de uma dezena de anos. Queria os seus seminaristas dóceis, puros, submissos e obedientes, mas também cultos, eruditos e letrados. A sua presença na "santa casa mimosa de Deus", era mensal, solene e devidamente preparada. Sabia-se o dia e a hora em que sua Excelência Reverendíssima, escolhendo a capela como local privilegiado das suas práticas, visitava o Seminário e falava aos jovens qua ali se formavam, fortalecendo-os na fé, incentivando-os a uma vida de práticas evangélicas, exortando-os aos bons costumes.

 Vestiam-se os seminaristas a rigor, entravam em fila no pequeno templo, metiam a mão na pia da água benta, persignavam-se e aguardavam, nos seus lugares a chegada do Prelado Guilherme, sempre pontual, sempre solícito em disponibilizar bênçãos e sempre acompanhado do prefeito Jeremias, do senhor Reitor e outros professores.

 Era o mês de Janeiro e o frio reinante havia de obrigar a que todos, incluindo o senhor bispo, um a um, encharcassem, apenas e ao de leve, a ponta do polegar na água benta, a fim de que com ela assinalassem, na sua testa, o sinal da cruz redentora.

 No silêncio da descrição, um mais audaz e atrevido, antecipadamente e às escondidas, despejara na pia da água lustral um tinteiro de tinta azul. No meio de tão grande enlevo com que era aguardada a chegado do Senhor Bispo, ninguém se havia de se cuidar com o conteúdo da pia, além disso, com a abertura parcialmente tapada.

 E lá foram, um a um, seminaristas, professores, prefeito Jeremias e bispo, entrando no templo, não sem antes celebrar o exotérico rito de purificação inicial. Sentou-se o prelado na sua cátedra voltada para a assembleia ouvinte. Sentaram-se os seminaristas frente ao sucessor dos Apóstolos, aguardando as suas sábias e doutas palavras. Mas falar é que D. Guilherme não conseguia, estupefacto e abismado, com o espectáculo que se deparava à sua frente: todos e cada um dos membros da assembleia, incluindo os professores e o prefeito Jeremias estavam indelevelmente assinalados na testa com uma cruz azul.

 Cada vez mais deslumbrantemente embasbacado, D. Guilherme chama junto de si o prefeito Jeremias, interrogando-o da razão de tão estranha e misteriosa assombração. Este aproximou-se e, muito atrapalhado, segredou-lhe ao ouvido:

 - Eu não sei! O Senhor Bispo é que deve saber, porque também tem na testa uma cruz da mesma cor. – E afastando-se comentava, em voz baixa: - Não será isto um desígnio de Deus?

Rezam as crónicas, que nunca se soube quem foi o autor de tão nobre e ousada façanha.

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publicado por picodavigia2 às 16:28

COPIANÇO DE LUXO

Quinta-feira, 19.12.13

O Teixeira era um aluno pouco interessado nas aprendizagens, extremamente preguiçoso nos estudos e bastante descuidado nos trabalhos. Como se não bastasse, condimentava tudo isto com alguma indisciplina e bastante desatenção, prejudicando, vezes sem conta, com as suas atitudes e comportamentos menos correctos, o normal funcionamento das aulas. No entanto, nas fichas de avaliação, embora deixando uma ou outra pergunta em branco, geralmente respondia às questões formuladas com clareza, rigor e correcção, obtendo, assim, bons resultados. - “Hum! Mas ali havia gato, olaré se havia”. – Cuidei eu, comigo próprio.

Era hábito, na altura, que cada aluno, ao terminar a sua ficha de avaliação, a viesse colocar sobre a secretária do professor, regressando ao seu lugar, sendo-lhe, no entanto, atribuído um outro trabalho com que ocupasse, da melhor forma, a restante parte da aula, durante a qual os outros alunos acabavam os seus testes.

Eu, sentado à secretária lia, preparava trabalhos e aulas, corrigia fichas doutra turma, enfim ocupava o meu tempo de forma a evidenciar que não estava ali como polícia mas como professor e amigo. No entanto, o caso do Teixeira, despertava-me extrema curiosidade e, por isso, comecei a dedicar-lhe maior atenção.

Passados uns dias, nova ficha. Como de costume, alguns alunos, ao terminá-la, vieram colocá-la em cima da minha secretária, regressando aos seus lugares, a fim de fazerem os trabalhos propostos. Entre esses alunos, veio a Cláudia, a melhor, a mais estudiosa e a mais brilhante aluna da turma. O Teixeira não perdeu tempo e, de imediato, levantou-se e veio colocar a sua ficha sobre a secretária. Porém, antes de chegar ao seu lugar, voltou-se, de repente, solicitando-me com veemência:

- Setôr, esqueci-me duma resposta. Posso levar a minha ficha para responder ao que me esqueci?

Acenei-lhe afirmativamente e o Teixeira, com muito apuro e alguma e meticulosidade, retirou a sua ficha, regressando ao seu lugar. No entanto e sem que ele se apercebesse, assinalei com um lápis a ficha que estava por cima, de maneira a que, mais tarde, a pudesse identificar.

A aula terminou e todos vieram entregar as suas fichas. Mais tarde, ao corrigi-las verifiquei que a ficha que eu tinha assinalado não era da Cláudia. Pelo contrário a ficha da melhor aluna da turma estava imediatamente antes da do Teixeira. Ao corrigi-las, verifiquei, sem surpresa, que as respostas do Teixeira, estavam rigorosamente iguais às da Cláudia. Sem tirar nem pôr!

Na aula seguinte, ao entregar as fichas, dei os parabéns ao Teixeira, elogiando-o pela qualidade das suas respostas e pelo excelente resultado por ele obtido. E o Teixeira todo vaidoso, a vangloriar-se junto dos outros…

No teste seguinte repetiram-se os procedimentos. Era a Cláudia a colocar a sua ficha sobre a secretária e o Teixeira a levantar-se para também vir entregar a sua. No entanto, eu havia deixado cair ao chão, em frente à secretária, alguns papéis. Quando o Teixeira se aproximou, solicitei-lhe que, por favor, me juntasse aquela papelada. Ele, solícito, correspondeu ao meu pedido, baixando-se para juntar o que lhe pedira, enquanto eu, sem que ele se apercebesse, surripiava a ficha da Cláudia. Por feliz coincidência a que estava a seguir era a de um dos mais fracos alunos da turma. E a cena repetiu-se:

- Setôr, posso levar a minha ficha para responder a uma pergunta que me esqueci? – Solicitou o Teixeira.

Que sim, que estivesse à vontade, que ainda faltava muito tempo para terminar a aula.

O Teixeira regressou ao seu lugar de ficha em riste. Sentou-se, mas aquilo não atava nem desatava. Estrebuchou, esbracejou, bufou, olhou para trás e para diante, completamente perdido e a determinada altura fixou-me, pasmado. Pisquei-lhe o olho e acenei-lhe com a ficha da Cláudia que, apática e admirada, não percebia nada do que se passava.

No fim da aula, quando veio entregar a ficha, o Teixeira, atirando-a com repulsão e agastamento, disse-me em voz baixa:

- O setôr é que me lixou. Foi mais esperto do que eu.

Mas a verdade é que verifiquei com agrado que a partir daí alguma coisa mudou, para melhor, nas atitudes e comportamentos do Teixeira.

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publicado por picodavigia2 às 15:41

DESFOLHADA

Domingo, 15.12.13

Numa aula de Português pedi aos meus alunos que escrevessem um texto sobre alguns costumes antigos das suas freguesias. Se nada soubessem ou desconhecessem costumes antigos que se dirigissem aos seus avós ou a outra pessoa de mais idade, que estes sim, haviam de lembrar-se de muito coisa. Mais lhes disse que ficaria muito satisfeito com tudo o que me dissessem pois, sendo açoriano, desconhecia os usos e costumes do Continente, sobretudo desta região do Douro Litoral, que escolhera para viver.

O Sérgio, um dos melhores alunos que tive ao longo do meu percurso de professor, confessando-me ter recebido uma preciosa ajuda do avô, saiu-se com este belo texto, ao qual eu apenas dei alguns retoques:

“Antigamente, aqui, no Douro Litoral era, geralmente, no fim de Setembro ou no início de Outubro que se cortavam as canas já bem secas do milho, onde ainda estavam presas as espigas, as quais eram transportadas para a eira no típico carro de bois, pois era aí que se faziam as desfolhadas. Para a realização da desfolhada escolhia-se, normalmente, uma noite de Lua Cheia, ou uma das que a antecediam ou procediam. Os adultos, grupo constituído por familiares, vizinhos e amigos do dono da casa, sentavam-se em círculo, em pequenos banquinhos, na eira, à volta do amontoado das espigas e, enquanto lhes iam arrancando o folhelho, contavam histórias e anedotas ou cantavam ao som de um acordeão ou de outros instrumentos. No caso de haver alguém que o soubesse fazer, cantava-se ao desafio. Por sua vez as crianças, dispensadas do trabalho, brincavam, corriam e saltavam em alegres folguedos. À medida que se desfolhava o milho, iam-se amontoando as espigas em cestos de verga, de folhas ou de vime, os quais, depois de cheios, eram despejados no canastro ou colocados, directamente, no espigueiro. Os jovens e sobretudo os rapazes e as raparigas solteiros ou os pares de namorados que participavam em cada desfolhada, regozijavam-se, entusiasmavam-se e empolgavam-se na esperança de encontrarem o milho-rei para poderem dar um beijo ou, no mínimo, um abraço à namorada, na menina dos seus sonhos ou até numa desconhecida, caso não tivesse namorada. A dona da casa, ou alguém por ela, de vez em quando, suspendia a desfolha, levantava-se e ia buscar uma malga cheia de vinho muito vermelho e perfumado, a borbulhar e a escorrer pelas bordas brancas, que todos iam saboreando, à vez. Depois de vazia, voltava a encher a malga outras tantas vezes, quantas fossem necessárias para que todos bebessem e alguns voltassem a beber e todos ficassem saciados. Simultaneamente, algumas criancinhas, trajando aventais bordados, transportavam pequenas cestinhas forradas com panos de linho rendado, a abarrotar de pedacinhos de broa e presunto espetados em palitos e figos secos, que todos comiam. De seguida, homens e mulheres voltavam ao trabalho. De repente e com enorme alarido alguém gritava “Milho-Rei! Milho-Rei!”. A tarefa era suspensa de imediato e fazia-se uma grande festa de regozijo. As crianças, suspendiam as suas brincadeiras e vinham sentar-se ao redor do amontoado do milho. É que o feliz contemplado com a espiga de grãos vermelhos teria que abraçar todos os homens presentes e beijar todas as mulheres, entre as quais, eventualmente, estaria a sua apaixonada. Terminada a desfolha de todas as espigas, varria-se e limpava-se a eira e servia-se uma merenda: broa, presunto, salpicão, chouriças assadas, azeitonas e vinho, enquanto o acordeão continuava a emitir sons alegres e harmoniosos. Então os homens, as mulheres e as crianças formavam pares e dançavam pela noite dentro.

As desfolhadas além de se organizarem numa estrutura de entreajuda entre famílias, entre vizinhos e também entre amigos, tinham um importante papel social, pois era muitas vezes nas desfolhadas que se descobriam amores, que se confirmavam os já existentes, se solidificavam os mais fragilizados, dado que era a única ocasião em que, graças à descoberta de uma espiga de milho vermelho, eram toleradas e permitidas certas ousadias como a de um homem abraçar ou beijar, na face e em público, uma mulher que não fosse sua familiar ou com a qual não era casado.”

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publicado por picodavigia2 às 21:45

BATOTA ELEITORAL

Quinta-feira, 12.12.13

Ele era o terror dos recreios, das aulas, da cantina e até das casas de banho. Nos recreios era cacetada velha em tudo o que lhe surgisse pela frente e, se apanhasse a mochila de um colega perdida por aqui ou por além, eram pontapés certeiros, furibundos e enraivecidos até que, ou a destruísse por completo, ou se aproximasse um funcionário que ameaçasse levá-lo ao Conselho Directivo. E o funcionário não havia de livrar-se de um bom chorrilho de ameaças e insultos. Equipa de futebol onde ele decidisse jogar não encontraria adversário, e os que haviam tido a ousadia de defrontá-lo, desportivamente, bem marcados haviam ficado, com negras, feridas e mamulos. As pernas num Cristo. Na cantina não havia dia em que o Senhor Garcia – o único funcionário da escola que temia – não fosse chamado. Ameaças, apertões nos braços, puxões de orelhas. Era o Senhor Garcia a virar as costas e ele a reforçar a dose.

Mas o pior era nas aulas. Não tanto porque as atrocidades desancadas sobre os colegas fossem mais demolidoras mas, sobretudo, pelo mau ambiente que se criava e pelos actos de indisciplina que protagonizava e que cerceavam aprendizagens e obstruíam a concretização dos trabalhos propostos pelos professores. Uma tragédia! Queixavam-se, em vão, os professores, aborreciam-se, sem proveito, os colegas e reclamavam, sem sucesso, os pais.

Um dia faltou a uma das minhas aulas. Os colegas respiraram de alívio e a maioria desejou que aquele dia se perpetuasse indefinidamente. A calma e a tranquilidade momentaneamente reinantes, levaram, no entanto, a que se abordasse o assunto. Revoltaram-se, ripostaram, reclamaram e, sobretudo, apresentaram diversíssimas propostas para a solução do problema. Foi então que o Delegado de Turma, eleito democraticamente no início do ano lectivo, propôs:

- Setor, se lhe déssemos responsabilidades, se ele se empenhasse a sério em alguma coisa, por exemplo, se fosse ele o Delegado de Turma... Havia de mudar, não havia?

Achei a ideia muito interessante, digna e plausível. Discutiu-se bastante. Muitos, inicialmente, contestaram a proposta, mas verdade é que esta cresceu, tomou corpo e acabou tendo o apoio, mais ou menos explícito, de toda a turma. Ele, o Delegado de Turma, eleito com maioria absoluta de votos, amado e apoiado por todos, sempre atencioso, sempre disponível, sempre solícito, sempre respeitado e querido de todos, na presença dele, na próxima aula, pediria a sua demissão, abdicaria do cargo, proceder-se-ia a um outro acto eleitoral e a turma votaria, massivamente, no terrorista, com o objectivo único de o amansar.

Se bem o pensaram melhor o fizeram. Uns a muito custo, outros com má vontade, alguns com remorsos, um ou outro engolindo em seco, mas todos, mesmo todos, votaram nele que, boquiaberto, incrédulo, pasmado, com cara de parvo, olhava para todos os lados como se afinal fosse ele a ter medo deles.

- Setor, tenho mesmo que aceitar? – Perguntou a medo.

Que sim, que era a vontade de toda a turma, que a partir de agora seria ele o Delegado de Turma, o representante os seus colegas, seria ele a responsabilizar-se por eles, a realizar algumas tarefas em nome deles e, sobretudo, a ajudá-los em tudo o que eles necessitassem.

Inconsistente nos primeiros dias, entorpecido em inéditos comportamentos, fragilizado na sua contumácia, aos poucos foi-se moldando e era vê-lo, para espanto e admiração de todos a mandar, a solicitar, a pedir, a aconselhar, a serenar os ânimos, a comprometer-se com exigências e a empenhar-se em tarefas.

- Milagre! – Diziam os mais inocentes.

– Milagre da batota eleitoral… - Retorquiam os mais astutos, piscando-me o olho.

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publicado por picodavigia2 às 16:14

REPROVE-ME

Quinta-feira, 05.12.13

Educadíssimo, entrava na sala esquivando-se a atropelos e empurrões, não se emaranhava em confusões nem em barafundas, alienava-se a berreiros e algazarras e agarrava-se à delicadeza e às boas maneiras como se fossem apanágio das suas atitudes e do seu comportamento. Depois sentava-se como que amordaçado na sua cadeira, abria com acentuado esmero e desmedida pachorra a mochila que carregava a tiracolo e ia colocando, arrumadamente, sobre a mesa, à sua frente, livros, cadernos, canetas, enfim, tudo o que fosse indispensável ao trabalho de aluno aplicado.

Os outros num alvoroço excessivo, numa atribulação gritante e numa algazarra desmedida, embebidos na ânsia de que quanto mais curta fosse a aula melhor. Ele, o Bruno, a desejar lá bem no seu íntimo, que se calassem, que se sentassem, que ouvissem o mestre e os seus ensinamentos.

Por fim, açulados com os apelos do professor, os outros lá se iam calando, acomodando, deixando que a aula se iniciasse. E a aula começava, com os outros a perguntar, a questionar, a interromper e, por vezes, a alienarem-se e a distraírem-se. Ele, o Bruno, sempre calado, sempre atento, sempre a observar o que se passava dentro da sala, apenas a responder, adequada e correctamente, quando interrogado. Mas nas fichas e nos trabalhos de avaliação os outros a empenharem-se, a elaborar respostas correctas e a conseguir resultados positivos. Ele, o Bruno, a desmazelar-se, a elaborar, como que de propósito, respostas erradas e a obter resultados negativos.

Nas reuniões dos conselhos de turma os professores, admirados e pasmados, sem entender o que se passava, indignavam-se, constrangiam-se, interrogavam-se, elaboravam planos de recuperação e comprometiam-se a desvendar o enigma. A directora de turma já chamara a mãe à escola, mas a senhora ainda se admirara mais do que ela com o incompreensível e estranho comportamento do filho. Mas prometeu que ele havia de mudar. Mas não mudou. Pelo contrário, quanto mais revelava ser um aluno de comportamento exemplar e de uma boa capacidade de aprendizagem, menos se empenhava nos trabalhos de avaliação.

Tão estranho comportamento levou-me a pensar que ali havia embuste e eu, um dos professores, havia de o descobrir, custasse o que custasse.

 Certo dia, já perto do fim do ano, aproximei-me dele e de rompante, atirei-lhe:

- Sabes uma coisa? Mesmo com todas as negativas que tiveste nos testes, eu vou passar-te de ano.

Foi como se o céu lhe desabasse em cima. Voltou-se para mim com os olhos rasos de lágrimas e começou a implorar-me:

- Professor, não, não faça isso, reprove-me, reprove-me por favor.

Era o que faltava! Havia de passá-lo e até com um quatro ou com um cinco. E ele, o Bruno, cada vez mais lavado em lágrimas, mais indignado, mais revoltado, mais desesperado, a implorar com maior insistência;

- Reprove.me, professor. Reprove-me.

Coloquei-lhe o braço por cima do ombro, pedi-lhe que enxugasse as lágrimas e disse-lhe com alguma serenidade:

- Está bem. Vou fazer-te a vontade. Vou reprovar-te, mas com uma condição. Concordas?

- E qual é a condição, setor? – Perguntou apreensivo.

Respondi-lhe:

- Só te reprovo se tu me explicares porque é que queres que te reprove.

Calou-se por uns momentos e ficou pensativo por mais alguns. Depois olhou-me com uns olhos cheios de verdade e um rosto expectante de ternura e explicou. Explicou que os pais eram muito pobres e que precisavam dele para trabalhar. Explicou que se passasse de ano o pai não o deixava ir para o terceiro ciclo e havia de ir trabalhar… trabalhar que nem um escravo… Além disso, em casa passava fome e ali, na escola tinha almoço do bom e do melhor e com o pratinho sempre cheio. Que o deixasse ficar ali, na escola, pelo menos mais um ano, sem ir trabalhar e a ter comidinha boa e em quantidade

E como mais uma vez me pedisse que o reprovasse, reprovei-o mesmo, eu e alguns dos outros professores.

Acresce dizer-se, que no ano seguinte ele, o Bruno, foi um dos melhores alunos da turma

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publicado por picodavigia2 às 09:43

O ABALO

Domingo, 01.12.13

Em toda a escola não se falava noutra coisa. Um sismo de grau seis na escala de Richter, embora com epicentro no alto mar, a uma razoável distância da costa portuguesa, varrera todo o Norte do país, com maior incidência nas regiões do Minho e Douro Litoral.

Na sala de professores, onde se comentava o catastrófico acontecimento com maior proficiência e sabedoria, não havia um único professor que o não tivesse sentido. Uns tinham apanhado um grande susto, outros não tinham sequer pregado olho toda a noite e alguns afirmavam a pé juntos que tinham saído para a rua e só ao romper do dia haviam regressado a casa. Nos pátios e corredores funcionárias e contínuas, por entre laivos de embaraço e de pânico, afiançavam com acentuados exageros que tinha parecido o fim do mundo e que só por milagre divino ou por graça de algum santo da sua predilecção é que prédios, casas, muros e paredes não haviam desabado sobre nós.

 De facto, na escola, todos eram unânimes em considerar que fora uma noite de medo, de angústia e de sofrimento a que ninguém ficara alheio. Enfim uma catástrofe que, embora não tivesse provocado, ao que se soubesse, prejuízos materiais ou humanos, deixaria marcas indeléveis, por muito tempo, na memória de todos.

A verdade é que eu também sentira um medo enorme. Mas, aproveitando o meu estatuto de único açoriano existente na escola, cuidei que esta seria uma rica oportunidade de ocultar o meu temor, revelando assim uma força superior que afinal não possuía. Por isso, com um misto de desusada bazófia, comecei a armar-me em perito fictício em sismologia, garantindo com algum exagero que aquilo não tinha sido nada comparado com as crises sísmicas tão frequentes e tão dramáticas nas ilhas açorianas e que eu, noutros tempos, vivera tão de perto. É verdade que, durante a minha infância, a ilha das Flores me poupara a tais catástrofes. Não havia registo escrito ou memória de um abalo sísmico na ilha, o que na realidade era confirmado pelo postulado científico de que as estruturas arquitectónicas das Flores e do Corvo estão situadas na placa do continente americano, devido a uma fenda que as separou das outras sete, há milhões de anos, provavelmente, no decurso de uma crise sísmica submarina muito violenta. No entanto, mais tarde, e já em plena juventude, a eles bem me habituara, quer durante a minha permanência em Angra quer mais tarde na ilha do Pico. Mas no fundo bem compreendia a agitação geral provocada pelo sismo da noite anterior a que ninguém escapara e o medo que todos, mas mesmo todos, tinham sentido e a que eu próprio não fora alheio, pese embora o tentasse disfarçar.

Após o toque para a aula das dez, ao atravessar os recreios, verifiquei que a agitação que tal calamidade provocara nos adultos também se estendera às crianças, pese embora a sua média de idades rondasse os dez ou onze anos. Percebia-se perfeitamente nas suas palavras, nas suas atitudes e nas suas brincadeiras uma desusada e como que sinistra tribulação. Por isso, ao entrar na sala e, antes de iniciar a aula, fui forçado, como fazia sempre que ocorria algum acontecimento extraordinário, a dedicar um bom par de minutos, a ouvir e a conversar com os alunos, até porque, neste caso, senti que seria necessário e imperioso, por um lado, desanuviar-lhes algumas inquietações e tumultos e, por outro, transmitir-lhes alguma calma e tranquilidade. Que não tivessem medo. Que tinha sido um abalo pequeno. Que o norte de Portugal era uma zona do globo terrestre onde raramente se verificam abalos de terra e que os que aconteciam eram geralmente de fraca intensidade e sem grandes prejuízos materiais ou humanos. Depois tentei, a muito custo, indicar-lhes alguns procedimentos a ter na ocasião em que, eventualmente, acontecesse um outro sismo. Impossível transmitir-lhes o que quer que fosse! É que todos queriam falar e contar o que tinham sentido e vivido durante aquele trágico momento da noite anterior. Por isso a todos dei a oportunidade de o fazer, obrigando-me assim a abdicar do plano que havia tão meticulosamente elaborado para aquela aula de expressão escrita, transformando-a, de forma improvisada, numa aula de oralidade.

Uns mais outros menos, todos contaram algo do que tinham sentido e vivido e que os havia preocupado na noite anterior e que ainda os preocupava. Todos… excepto o António - um matulão de mais de catorze anos, que habitualmente se sentava sozinho, ao fundo da sala, sempre distraído mas sempre calado, sempre a leste de tudo o que ali se passava e mais sabido nas lides da vida quotidiana do que nas letras e nas ciências. Como não se manifestasse interroguei-o com a denodada intenção de poder apreciar e até, eventualmente, corrigir a sua expressão oral, item pelo qual também o havia de avaliar no final do período:

- Então, António? Não sentiste o abalo de terra, esta noite?

Resposta pronta do molengão:

- Eu?!... Eu, setor?... Eu acordei e ouvi a minha casa toda a tremer, mas pensei que era o meu pai e a minha mãe que, esta noite, estavam mais entusiasmados com “aquilo”.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:18

O ANTÓNIO

Domingo, 27.10.13

Altaneiro nos seus desejos, insofismável nas suas aspirações, audacioso nas suas atitudes e galhofeiro nas suas palavras, o António entrava-me pela sala dentro, conversava e participava nas aulas com um invejável à vontade, com uma matreira sagacidade e com um aleatório discernimento. Folgazão, galhofeiro e hiperactivo, interrompia, frequentemente, a aula, umas vezes, com a perspicácia e a dignidade de quem queria aprender ou esclarecer uma dúvida, outras, porém, com a subtileza e a argúcia de quem pretendia, apenas e, tão-somente, interromper e boicotar, por uns minutos, uma docência que lhe havia de acarretar mais trabalhos, obrigar a mais estudos, enfim, a reduzir-lhe o tempo de lazer e ociosidade e a cercear-lhe folguedos, flostrias e brincadeiras. Num e noutro caso, porém, interrompia-me com perspicácia, descrição, delicadeza e até com alguma jocosidade, pelo que o ouvia sempre com respeito e estima, respondendo-lhe de acordo com o tipo e acuidade da questão formulada. Ele ouvia-me atentamente e, se a questão fosse relacionada com o tema da aula, orgulhava-se e ufanava-se de ter contribuído para esclarecer, não tanto a si próprio mas, sobretudo os outros que, na opinião dele, “andavam a dormir”. Se, por outro lado, a pergunta era de galhofa ou de alheamento do tema tratado, logo pedia desculpa e prometia emendar-se. Muitas vezes, porém, no meio dessas interrupções, falava de si próprio, dos seus anseios e preocupações, das suas brincadeiras e consumições, das suas travessuras e delineações. Falava sobretudo e frequentemente do seu sonho, do seu grande sonho: adorava a velocidade e, por isso, um dia havia de ser piloto de aviões. Eu bem o aconselhava que era uma profissão difícil de se conseguir, que só com muito esforço, muito estudo, muito trabalho, muita seriedade. Que sim senhor! Que eu havia de ver um dia

E no fim do ano, mesmo sem estudar muito, as notas do António foram excelentes. Logo que me encontrou, com a pauta recheada de quatros e cincos, aproximou-se e segredou-me:

- Está a ver, professor?! Está a ver como eu vou conseguir! Vou ser piloto de aviões. Ai vou, vou!

Orgulhei-me e encorajei-o.

O António terminou o sexto ano, saiu do Ciclo e matriculou-se no Liceu. Nunca mais nos cruzámos, mas, como quase todos os que tinham lidado de perto com ele, nunca o esqueci, porque a sua presença nas minhas aulas durante dois anos, fora contagiante, geradora duma amizade sincera, promotora de um convívio íntegro e porque os seus sonhos eram delirantes e o seu empenhamento na vida incondicional

Passaram 4 anos. Deparei que um canto da penúltima página do “Progresso de Paredes” registava esta trágica notícia: “Jovem de dezasseis anos perde a vida em Duas Igrejas, ao embater violentamente contra um poste de electricidade, com a mota em que seguia. Teve morte instantânea.”

Era o António!...

 

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publicado por picodavigia2 às 00:51

O MELÃO

Sábado, 19.10.13

Franzino, escanzelado, rosto macilento e olhos esbugalhados, o Aires aparecia nas aulas muito carrancudo e retraído, consubstanciando simultaneamente rusticidade e negligência. Vestia desajeitadamente umas roupas de aspecto decrépito e com um estado de conservação notoriamente deteriorado, a que se juntava uma assumida falta de limpeza. O rosto expressava um alheamento permanente e global a pessoas e ensinamentos. Os olhos, absortos e perplexos, emperravam todo e qualquer conhecimento e obstruíam notoriamente a capacidade de atingir objectivos. A sua mente vagueava por um universo abstruso, incoerente e quase irracional. Devaneava com frequência, distraía-se vezes sem conta e desvairava continuamente. Em suma – o Aires não aprendia rigorosamente nada.

Consequência de tudo isto: na pauta, afixada trimestralmente nos placares da escola, ao nome do Aires seguia-se uma enxurrada de negativas em todas as disciplinas, excepto Religião e Moral onde, mais por benevolência do professor do que por mérito do aluno, aparecia bem escarrapachado um três. Mas não ficavam por aqui os malefícios da presumivelmente assumida não aprendizagem do Aires. Os professores passavam horas e horas a discutir, a analisar e a transcrever para a acta as dificuldades do rapaz e a inventar propostas para as superar, atrasando significativamente as reuniões de avaliação e a Directora de Turma, jovem e pouco experiente, via-se e desejava-se para explicar aos pais o mais-que-evidente insucesso do garoto. A própria psicóloga já fora chamada, vezes sem conta, a intervir em tentativas infrutíferas de analisar e compreender tão grave e sério embargo a todo e qualquer tipo de cerebração.

Certo dia, na aula de Ciências, a professora alheando-se um pouco dos conteúdos programáticos, resolveu falar sobre as cucurbitáceas:

- São plantas dicotiledóneas e gamopétalas como a abóbora, a chila, a melancia e o melão – explicou a professora.

Milagre! Enquanto a restante parte da turma se distraia cuidando que aquilo das cucurbitáceas era mais um dos devaneios científicos da professora e que aquela matéria nunca iria sair nos testes, o Aires, sobretudo ao ouvir a palavra “melão”, vai disto e resolve concentrar todas as forças até então perdidas e dispersas no que a professora explicava. Esta, incrédula perante tamanha reviravolta do molengão, procurando uma linguagem mais simples, continuou:

- Vocês conhecem muito bem o melão e a melancia e de certo quase todos já os comeram e apreciaram as suas propriedades refrescantes.

O Aires não pestanejava e, qual abelha a sugar o néctar duma flor, bebia-lhe as palavras uma a uma. A professora insistia:

- O melão é mesmo um fruto bem português, – os olhos do Aires esbugalharam por completo – cultivando-se em grande quantidade aqui, na região do Vale do Sousa. O melão possui propriedades que o tornam, além de saboroso, um excelente auxiliar do funcionamento do corpo humano, pois é uma fonte abundante de fibras e possui grandes quantidades de vitamina A, C e do complexo B. Além disso, é rico em cálcio, fósforo, ferro, potássio, cobre e enxofre e não tem consequências negativas, já que por cada cem gramas de melão ingerimos aproximadamente trinta calorias. O seu alto valor em potássio torna o melão indicado para doentes cardíacos e para pessoas com afecções do fígado. É igualmente recomendado na prevenção e no tratamento da gota, reumatismo e prisão de ventre. Mas, atenção, se ingerido em excesso pode causar cólicas e diarreia.

O Aires estava extenuante e a professora perplexa, por sentir que aquela alma penada pela primeira vez se concentrava e interessava por alguma coisa, sem contudo encontrar uma explicação plausível.

Mas como estava ali para ensinar e o rapaz mostrara grande interesse, no fim do ano não se fartou de partilhar com os colegas o que presenciara naquela aula, manifestando sérias tentativas de o passar. Foram, contudo, improfícuos os seus esforços, esbarrando ingloriamente com a pertinácia dos colegas. Então ia lá passar-se um abantesma daqueles, que afinal dava erros em catadupa, lia mal que se fartava, não dava uma prá caixa em Matemática, não percebia patavina de História e nem sequer sabia distinguir uma colcheia duma semifusa?

E o Aires reprovou mesmo.

Algum tempo depois, ao passar na recta de Sequeiros, na estrada que dá para Lousada, parei para comprar um melão a um dos vendedores que por ali proliferam nos meses de Verão. Qual não foi o meu espanto quando me apercebi que o vendedor, onde casualmente havia parado, era o Aires. Qual Paxá rodeado de donzelas no seu harém, o Aires, sentado em cima de um cesto com a boca para chão e o fundo para cima, tinha à sua volta dezenas e dezenas de melões de todas as espécies, tamanhos e feitios, a que se misturavam algumas melancias. Com invulgar perícia e robusta confiança aconselhava os clientes, escolhia-lhes os melões, convencia-os a comprar, mostrando ainda grande destreza e agilidade nas operações matemáticas inerentes a cada troca comercial. Quando chegou a minha vez, o rosto vermelhou-se ainda mais, revelando um misto de timidez, alegria e confiança. Com acrimónia interrogou-me:

- O setor também quer comprar um melão?

Como acenasse positivamente, acrescentou com enorme empolgamento e invulgar entusiasmo:

- Pó setor vou escolher o melhor. Vai comer um melão como nunca comeu.

Batuca daqui, sacode dali, cheira dacolá, apalpa e volta a apalpar as extremidades do cucurbitáceo. Por fim com os olhos repletos de júbilo e o rosto excessivamente aprazerado, concluíu:

- Este, setor, este! Pode levar! Este é de confiança. Este é mesmo bom!

Conversei um pouco mais, paguei, regressei a casa e deliciei-me com o melão - o melhor melão que comi em toda a minha vida.

Foi então que dei comigo a pensar: se aos professores, nos quais eu obviamente me incluía, que haviam reprovado o parrana do Aires por não saber Português, Matemática, História ou até ler o solfejo, alguém decidisse ensinar como se escolhe um melão, nunca haviam de aprender a fazê-lo com a perícia, a sabedoria e a competência do Aires.

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publicado por picodavigia2 às 17:18

RESSARCIMENTO

Segunda-feira, 07.10.13

Há alguns anos, no início de um novo ano lectivo foi-me atribuída uma turma vinda da, então denominada, quarta classe. Havia de tudo. Um punhado de bons alunos, educados e trabalhadores, possuindo competências e capacidades de aprendizagens invejáveis. Outros, a maioria, assim e assim. Finalmente, uma diminuta parte, constituída por um grupo de pequenos meliantes, pouco interessados, permanentemente distraídos, desanexados dos livros e desleixados nos trabalhos, revelando inúmeras dificuldades de aprendizagem. Como se isto não bastasse, ocupavam os recreios com brincadeiras violentas e, por vezes, estúpidas, que, para além de amachucarem e ofenderem os colegas, punham os cabelos em pé a professores e funcionários.

Entre os primeiros havia um aluno pequeno, franzino e indefeso que aparentava uma origem disfarçadamente burguesa e um feitio revelador de uma excessiva protecção familiar, nomeadamente por parte da avó, que passava os dias à porta da escola e não dava tréguas à Directora de Turma. O aspecto físico do garoto, o feitio ameninado que transparecia dos seus gestos e atitudes e o exagerado proteccionismo por parte avó, transformaram-no em alvo preferido de chacota na turma.

Preocupado com a situação do “Pedrinho” e analisando-a melhor, verifiquei que havia um aluno na turma, um dos mais atrevidotes do grupo dos meliantes, que se envolvia, permanentemente, em confusões, em brigas e em zaragatas, mas com o “Pedrinho nunca se metia. Pelo contrário, protegia-o com notório e exagerado cuidado. Se o insultavam era empurrão garantido ao ultrajante, se lhe batiam era bofetão certo no agressor, se o injuriavam era um chorrilho de ameaças intimidativas.

Tão exagerado proteccionismo inquietou-me. Percebi que algo de especial se passava sem, no entanto, entender o que quer que fosse.

Por isso, certo dia, no fim duma aula, pedi ao Hugo (assim se chamava o suposto paraninfo do “Pedrinho”) para não sair da sala, com os outros. Queria falar com ele. Barafustou, crispou-se, mas lá esperou contrariado.

Depois de todos saírem e de eu ambientar a conversa, perguntei:

- Olha lá. Tu és parente do Pedrinho?

- Não.

- És vizinho ou amigo dele?

-Não?

- Então porque é que estás sempre a protegê-lo quando lhe batem ou o ofendem e não fazes isso aos outros?

Baixou os olhos e calou-se. Como eu insistisse, ele, continuando absorto e sem olhar para mim, respondeu simplesmente:

- Não sei.

Cada vez mais intrigado, insisti. Não respondeu. Depois, sempre com os olhos fixos no chão, indagou:

- Se eu lhe contar o “Setô” não vai dizer nada à Directora de Turma?

- Claro que não. Podes falar à vontade.

- Nem vai fazer queixa ao Conselho Directivo.

Que não ia fazer queixa a ninguém, que estivesse descansado, que aquela conversa ficava entre nós.                                                    

Permanecemos os dois em silêncio, durante algum tempo. Finalmente o garoto levantou os olhos e olhou para mim. Foi então que vi à minha frente um rosto que, apesar de queimado pelo Sol e salpicado de sujidade, revelava um débito indefinido de ternura misturado com uma sinceridade incontroversa. Foi então que eu vi uns olhos azuis, ofuscados por lágrimas, mas sinceros, a difundirem um arrependimento autêntico e um remorso verdadeiro. Foi então que eu vi uma criança fustigada pelo infortúnio, mergulhada na desventura, travada pelo intransponível tapume da injustiça humana, mas ávida de saldar e ressarcir o “seu crime”. Estancando com as costas da mão o monco que lhe escorria do nariz, aos soluços, o Hugo disse-me com medo, com muito medo:

- “Setôr”, eu… uma vez … gamei… gamei… cem paus à avó dele.

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publicado por picodavigia2 às 18:18

VANGLÓRIA

Sábado, 28.09.13

Quando terminei o longo e penoso estágio pedagógico de dois anos convenci-me de que se não era o melhor professor do mundo, pelo menos andaria lá por perto.

Agora é que ia ser! As aulas que eu preparava com um zelo desmesurado e com um cuidado meticuloso, iam decorrer com uma qualidade de se lhe tirar o chapéu e com uma performance de alto gabarito. Sonhava ainda que aquele verniz com que havia sido, pedagogicamente, borrifado durante o estágio, já mais havia de se diluir e eu continuaria assim, perpetuamente, uma espécie de professor embalsamado numa auréola de prestígio pessoal e de dignificação profissional da carreira docente.

Iniciava as aulas convencido de que tudo corria bem e de que motivava os alunos da melhor forma, a fim de que estivessem sempre atentos e fizessem com dignidade, interesse e proveito os trabalhos propostos, o que, inevitavelmente, se havia de reflectir, de forma muito positiva, nas suas aprendizagens. Além disso, cuidava eu que via e que dominava tudo o que acontecia dentro da aula, onde nada, mas mesmo nada, ali ocorreria sem ser do meu conhecimento e, caso se justificasse, ter a minha pronta, eficiente e, pedagogicamente, adequada intervenção.

Certo dia leccionando uma aula de Português que eu destinara a aperfeiçoamento e correcção de texto e que exigia da minha parte grande atenção para com o que se passava no quadro, lá ia, como de costume, olhando, com alguma frequência, para os alunos, na tentativa de que não acontecesse nada de anormal.

A aula decorreu bastante bem e, a muito custo, lá lhes consegui impingir os conteúdos que eu havia programado, cuidando que os objectivos propostos haviam sido atingidos em plenitude.

E eis se não quando, terminada aula, um garoto de palmo e meio, mas muito esperto e desembaraçado, postou-se frente à minha secretária e, ziguezagueando a mão esquerda em frente ao rosto, afirmou com um misto de gozo e regozijo:

- Eu comi um pão com queijo, inteirinho, durante a aula e o professor não viu nada!

Toda a turma confirmou a veracidade do que o fedelho afirmava com uma enorme gargalhada, enquanto eu ficava estarrecido e com cara de parvo a olhar para ele e a sentir o início do desmoronar daquela espécie de castelo de cartas que me haviam impingido durante os dois anos do tal longo e penoso estágio pedagógico.

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publicado por picodavigia2 às 21:29

EMBETUMO

Quarta-feira, 18.09.13

Não havia professor da turma que não tivesse percebido que o Jorge não gostava rigorosamente nada da escola. Revelava-o não só por atitudes mas também e sobretudo com palavras. Nas minhas aulas, apesar de tudo aquelas que aparentemente menos detestava, muitas vezes afirmara que não queria saber daquilo para nada e que quando fizesse dezasseis anos ou quando o deixassem… “Ó pernas!...” “Fugia dali a sete pés!...” A aula de Inglês era uma tragédia, a de Música um castigo e a de Matemática um inferno. Chegou ao extremo de afirmar em plena aula, que Ciências era uma merda, o que, obviamente, lhe valeu uma expulsão. A única disciplina, para além de Português, de que não se queixava, na sua persistente e continua objecção de consciência a todo e qualquer tipo de aprendizagem, era a de Trabalhos Manuais. De resto uma razia completa. Esta pertinaz obstinação à escola, aliada às fraquíssimas capacidades de aprendizagem de que era dotado, trouxe-lhe sucessivas reprovações que ainda mais açularam a sua aversão por aulas, disciplinas e professores.

Certo dia, ao passar num dos pátios da escola, encontrei o Jorge sozinho, acabrunhado e macambúzio, sentado num banco. Para gáudio seu a professora de Matemática tinha faltado e estava ali à espera da cantina abrir. Aproximei-me, pedi-lhe licença para me sentar ao seu lado. Passei-lhe, ao de leve, a mão pelo ombro e atirei de rompante:

- Olha lá, Jorge. Afinal porque é que não gostas de andar aqui, na escola? Porque não gostas nem das aulas, nem dos professores?

Resposta imediata e sucinta mas pouco racional:

- Porque não gosto.

- Mas isso não é razão - insisti. - Tens que te explicar melhor…

- Não quero. Não gosto da escola e pronto.

Era óbvio que por ali não ia a lado nenhum. Mudei de tema:

- E fora da escola? O que fazes quando não estás na escola?

- Vou para casa.

- E o que fazes quando sais da escola e vais a casa?

- Faço muita coisa.

Achei que tinha escolhido o caminho mais certo para manter o diálogo aceso e, por isso, insisti:

- E que coisas são essas que fazes em casa?

Resposta pronta, com um misto de alegria e um olhar de soslaio:

 - Vou ajudar o meu tio, ele tem uma oficina de marceneiro.

Tentei então encorajá-lo para que a conversa não terminasse por ali:

- Ah! Bravo! Muito bem! - E prossegui. - E na oficina do teu tio, o que fazes?

- Muita coisa.

- E o que é “muita coisa”?

- Limpo as máquinas e o pó dos móveis, ajudo a carregá-los na carrinha e embetumo.

- O quê?!

- Embetumo as gavetas e as portas.

- O que é isso de embetumar?

- Embetumar é fazer assim uma coisa como por pasta de dentes para tapar os buracos e as rachas da madeira das gavetas e das portas dos móveis.

- Ah! Então embetumar é por betume nos móveis para lhe tapar os buracos e os alisar. Confesso que não conhecia essa palavra.

- Mas é “fixe”.

- É “fixe” o quê?

- Embetumar. É compor uma coisa de madeira que está furada ou rachada. Até há cinzento, castanho e doutras cores.

- E gostas de fazer esse trabalho e ajudar o teu tio?

- Gosto. Claro que gosto. É onde eu vou trabalhar quando me deixarem sair daqui. Quero ser marceneiro. É mais “fixe” do que andar na escola.

- E tu queres ser marceneiro, quando fores grande?

- Quero, claro que quero. – O seu rosto manifestava agora um enorme regozijo. Confesso que vi o Jorge sorrir de alegria pela primeira vez. Depois de uma pausa e de um respirar de alívio, continuou:

- Gostava era de poder estar lá todo o dia, em vez de andar aqui sem fazer nada. Mas o meu tio é que não me deixa. Quer que eu venha para a escola todos os dias… e eu não gosto de vir. Obriga-me a vir todos os dias só para chatear os professores.

- E o teu tio ensina-te a arte de marceneiro? Sim, porque aquilo é como uma arte, é assim como uma disciplina, não é? Para ser um bom marceneiro é preciso aprender.

- Ensina, claro que ensina. No sábado estive lá a trabalhar até à noite. Aquilo é “fixe”. Trabalha-se até estar pronto.

- E depois de pronto, o que se faz ao móvel?

- Carrega-se na carrinha e leva-se ao polidor.

- E gostas de estar na oficina, mesmo aos sábados?

- Eu gosto. Ficava lá todo o dia. Eu quero é aprender a ser marceneiro. Quando fizer dezasseis anos saio da escola de vez e vou para a oficina aprender. Aos dezasseis já vou trabalhar de marceneiro.

- Quando fazes dezasseis?

- No dia vinte de Julho.

- Então para o ano já não vens para a escola?

- Era o que faltava. Claro que não venho. Já fico todo o dia na oficina a aprender de marceneiro.

- E estás contente por isso?

- Claro que estou. Eu gosto é daquilo. Agora até vou fazer uma cadeira pequenina. Vou pedir madeira ao meu tio e vou fazê-la sozinho. Meu tio só me vai dizendo como é. Eu é que vou fazer tudo sozinho. É “fixe”, não é professor?

- É! Claro que é! E quando não trabalhas, o que fazes?

-Trabalho.

- Mas nos tempos livres, naqueles em que não tens que fazer?

- Eu vou para a oficina na mesma. Vou ver o meu tio trabalhar. Ainda no domingo estive lá toda a tarde.

- E não vês Televisão?

- Vejo, de vez em quando.

- E brincar? Já não brincas?

- Eu brincava antes. Agora já não. Quero é aprender a ser um bom marceneiro.

A cantina abriu e o Jorge pisgou-se. Queria ser o primeiro a almoçar.

Mas aquela conversa perseguiu-me durante dias e dias E não é que, algum tempo depois, dei comigo em plena reunião do Conselho Pedagógico, a propor que o Currículo da Escola fosse enriquecido com uma nova disciplina, Marcenaria, e que o professor até era fácil de arranjar: podia muito bem ser o tio do Jorge.

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publicado por picodavigia2 às 12:08

RITINHA

Quarta-feira, 03.07.13

No início de um novo ano lectivo, caldeada com matulões de ar vadio e entrelaçada entre moçoilas empavesadas, entrou-me pela sala dentro uma pequerrucha, que a muito custo se ia libertando de atropelos e repelões mas que ultrapassava com denodo e subtileza os obstáculos babélicos, subjacentes à primeiro entrada em tão desconhecida destinação.

A Ritinha – assim chamavam à sirigaita - era na realidade tão pequena que, quando sentada, acima do tampo da carteira se lhe divisava apenas o rosto azevieiro, apoiado em ambas as faces por umas mãozitas, dispostas em forma de concha, muito branquinhas e maneiras, enquanto as pernas balouçavam exageradamente em frustradas e improfícuas tentativas de chegar ao chão.

Mas não era apenas o tamanho que a diferenciava dos restantes. Cedo me apercebi que em perspicácia e inteligência era das maiores. Rosto esbranquiçado e franzino, cabelo muito negro e ondulado, com duas madeixas a destaparem uns olhitos muito escuros, muito atentos e afeitos, consubstanciava a um interesse e atenção permanentes uma gigantesca capacidade de aprender e uma desmesurada apetência de estudar.

Talvez porque sentisse que sendo a mais pequena necessitaria de maior protecção, talvez pelo seu ar angélico e doce, talvez pela ternura que transparecia do seu olhar e da firmeza que trazia nas suas atitudes, talvez por isto e por aquilo, afeiçoei-me excessivamente a ela, gerando-se entre nós uma amizade recíproca, uma consideração mútua e uma estima emparelhada. A garota perdia-se e achava-se por estar a meu lado e conversar comigo. Tal enlevo provocou-lhe o hábito de todos os dias, terminada a aula, enquanto preenchia o sumário, assinava o ponto ou arrumava a pasta, vir ela, ansiosa e expectante, postar-se junto à minha secretária, em bicos de pés e, com um misto de vergonha e à vontade, extravasar:

- Professor, hoje tenho uma coisa para lhe dizer – e todos os dias trazia algo de novo, de diferente, sob a forma de notícia, que necessariamente partilhava comigo. Desde o gato que lhe tinha arranhado a cara até ao Satisfaz Plenamente que tirara em Inglês, passando pelo filho da vizinha que fora tomar uma vacina e gritara imenso ou por um rapaz do 6º I que lhe deitara a língua de fora. Tudo, mas mesmo tudo, me caía em catadupa sobre a mesa.

Ouvia-a com atenção, carinho e enlevo, pese embora muitas vezes me atrasasse excessivamente. E não é que me habituei de tal modo à bisbilhotice da pequerrucha que por nada deste mundo trocava tão denodado contubérnio!

Certo dia a Ritinha aproximou-se mais tímida e hesitante do que nunca. De imediato cuidei que algo de estranho a tivesse contrariado. Mas não. A novidade lá estava e saiu jactante e convicta:

- Professor, hoje tenho para lhe dizer…  que nada tenho para lhe dizer.

 

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publicado por picodavigia2 às 16:41

O MILAGRE DO AMOR

Sexta-feira, 21.06.13

Enquanto caminhava pelo Parque da Cidade, num dia destes, uma jovem elegante e, aparentemente, muito simpática cruza-se comigo e sorri com um misto de ternura e sinceridade. Parámos lado a lado. Perante o meu inqualificável espanto, perguntou-me, com um sorriso ainda mais simpático do que o primeiro:

- O senhor já não se lembra de mim? Fui sua aluna.

Não, não me lembrava. As minhas alunas foram sempre meninas entre os dez e os treze anos e que me perdoasse mas ao vê-la já mulher feita, declaradamente elegante e bonita, não a revia a ouvir-me ler o Capuchinho Vermelho ou o Fato Novo do Imperador.

Esclarece daqui, lembra dacolá, nomes para trás e aulas para diante e lá consegui, por entre aqueles olhos de safira e aquele sorriso de ternura e bondade, descobrir a pequenina Alexandra, muito esperta e reguila, que há uns bons anos atrás, me entrava pela sala de aula dentro, em correria louca a disputar aquele lugar da primeira carteira da frente, ali bem juntinho à minha secretária e que, durante a aula, vezes sem conta, me segredava baixinho: - Professor, estou a adorar esta aula.

Sim lembrava-me perfeitamente dela. Meu Deus! Só que sentia que aquilo tinha acontecido há tão pouco tempo que não entendia como tinha crescido tão depressa e como se tinha transformado em mulher tão de repente.

Ela explicou-me. Explicou-me que tinha sido o milagre do amor! Explicou-me que foi quando percebeu que amava alguém que se tornou-se mulher, depois esposa, depois mãe e, finalmente, como muito esforço, com muito trabalho e ainda com mais sacrifício se transformara em professora – professora de Educação Física. Recordava-se muito da escola, dos colegas, dos passeios, das festas e dos professores, especialmente de dois, nos quais eu estava incluído.

Lisonjeado despedi-me e continuei a caminhar. Olhei-a de longe e por entre os ramos acastanhados das árvores e os ziguezagues dos passeios do Parque pareceu-me voltar a vê-la, menina de dez anos, agarrando com ambas as mãos a luz dos sonhos perdidos, erguendo com os braços bem levantados a ternura das quimeras desfeitas mas aspergindo com sorrisos de esperança o alvoroço da felicidade conquistada.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:52

SE NÃO FOSSE O BRASILEIRO

Quinta-feira, 20.06.13

As primeiras aulas de cada ano lectivo destinavam-se, geralmente, ao conhecimento recíproco dos alunos e do professor, o qual, no fim do tempo indicado no horário e no espaço que lhe era reservado, gatafunhava no livro do ponto: “Apresentação professor/aluno”. No entanto, alguns professores, sobretudo os que consideravam aquela tarefa precursora de um eficiente relacionamento pedagógico que decerto havia de reflectir-se positivamente na aprendizagem dos alunos durante os três longos períodos lectivos, dedicavam-lhe mais uma aula, registando, desta feita no livro de ponto: “Apresentação aluno/professor”. Outros, com a denodada intenção de fazer “render o peixe”, chegavam a prolongar a referida tarefa por uma terceira aula. Neste caso, porque o número de alunos por turma era bastante elevado, muito simplesmente escreviam no dito livro:”Continuação da aula anterior”.

No ano do meu quadragésimo quinto aniversário, numa dessas aulas - confesso que geralmente dedicava àquela tarefa apenas  uma aula - ao apresentar-me, esqueci-me de referir um dado que os alunos consideravam importante – a idade. Não me perdoaram o olvido. Foi um garoto de olhos vivos e ar de espertalhote, sentado na fila da frente, que me exprobrou de imediato:

- E a idade?! Esqueceu-se da idade. Que idade é que o “Setô” tem?

Lamentei o meu imperdoável esquecimento. Depois, como que a querer recompensá-lo pela sua atenção e perspicácia, desafiei-o:

- Olha lá! Que idade é que achas que eu tenho?

O Rui, era assim que se chamava o arguto, olhou para mim de alto abaixo, avaliou-me com denodado rigor e atirou sem hesitação:

- Quarenta! Aposto que “Setô” tem quarenta anos.

Fiquei lisonjeado mas, com a maior das inocências, retorqui:

- Mais!... Tenho mais…

Eis senão quando, lá do fundo da sala, um sonso mas bargante mocetão levantou-se e, de rompante, antes que alguém alvitrasse alguma alternativa mais plausível, gritou exasperadamente:

- Cinquenta! Cinquenta!

Fiquei perplexo. Eram cinco a mais. Mas já que me dava cinquenta, decidi continuar, com um misto de expectativa e jocosidade, aquela espécie de leilão pedagógico que ali se iniciava, a fim de tentar descobrir até onde a minha aparência anatómica me poderia levar, perante o inocente mas sincero julgamento dos meus jovens interlocutores. Por isso, em ar de desafio, de maneira que sentissem que eu estava a falar a sério e não descortinassem a minha perplexidade, insisti:

- Mais… Mais…

Uma miúda, tímida, hesitante e como que a arrepender-se a meio da conversa, lá disse:

- Cinquenta e… três?

Logo uma outra, sentada ao seu lado, muito lesta a corrigi-la:

 - Cinquenta e cinco.

Como eu continuasse a insistir no “mais e mais” de forma aparentemente convicta, a fasquia foi subindo assustadoramente. Ultrapassou os sessenta, sessenta e cinco, sessenta e seis, sessenta e oito e fixou-se, provisoriamente, nos setenta.

Confesso que me arrepiei dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que me arrependia de ter provocado semelhante imbróglio, do qual eu era obviamente o culpado número um. Temia, seriamente, que aquilo não parasse por ali…

Foi então que um brasileiro, o único que havia na sala, levantou o braço e pediu autorização para falar. Como lhe acenasse afirmativamente, ele, com um misto de seriedade, de convicção e de certeza, pôs, finalmente, a devida água na fervura, esclarecendo definitivamente a amargosa e desconfortante trapalhada em que eu, minutos antes, me havia metido:

- Puxa, professor! Não pode ser! Você está a mangar co’a gente. Então meu avô tem sessenta e cinco e você parece muito mais novo do que ele.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:13





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