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NO REGRESSO

Quarta-feira, 03.05.17

Em tempos idos alguns Barões na Galiza leonesa sublevaram-se contra o rei de Leão pelo que abandonaram o território daquele reino ibérico, tentando refugiar-se no Condado Portucalense, governado, então, por Afonso Henriques, na altura ainda príncipe. Quando soube da rebelião D. Afonso Henriques regressava do sul, pelo que ordenou a D. Paio de Farroncóbias, seu foreiro e por ser um dos seus homens da sua confiança, que se separasse da comitiva e que imediatamente se pusesse a caminho de Coimbra, enquanto ele seguiria pelo litoral, na direção do Porto e de Guimarães. Acompanhá-lo-iam a maioria das tropas, enquanto D. Paio, seguiria viagem apenas acompanhado por um pequeno grupo de homens armados. De Coimbra rumaria Viseu, seguindo de seguida para Trancoso.

Encaminhava-se, pois, D. Paio de Farroncóbias, com a sua mesnada, para Trancoso. Foram dias e noites longos e difíceis, por entre montes e vales, dormindo e alimentando-se com a ajuda das populações. Numa dessas noites, a comitiva bélica foi forçada a pernoitar em Lubisonda.

Entrou, pois, o fronteiro de D. Afonso Henriques em Lubisonda, de surpresa, sem que ninguém o esperasse. Mas assim que a comitiva de D. Paio ultrapassou a muralha que circundava a pequena vila beirã, começaram a sair de todas as portas dos humildes casebres de Lubisonda, homens, mulheres e crianças. De repente as ruas e praças da vila encheram-se de povo que, sabendo serem guerreiros do valoroso príncipe Afonso, os aclamavam e louvavam, orgulhando-se de acolher aqueles que lutavam ao lado do seu valoroso príncipe. Era ali, na pequena vila de Lubisonda que iriam pernoitar os heroicos guerreiros que haviam acompanhado o príncipe. Uns numas casas outros noutras…

Foi no pequeno palacete do alcaide da vila Pedro Fogaça que D. Paio de Farroncóbias, cansado de dura peleja e longa viagem, se albergou e onde pernoitou. Pêro Fogaça e os restantes habitantes da pequena vila não cabiam em si de contentamento. A alegria do comerciante, no entanto, ultrapassou em demasia a dos restantes lubisondenses e excedeu todas as limitações, quando soube que D. Paio de Farroncóbias escolhera, premeditadamente, o seu humilde palacete para pernoitar. Há muito que ali se contavam os feitos vitoriosos do famoso conquistador, flagelo dos infiéis, ilustre fronteiro do ditoso príncipe, as suas vitórias sobre os infiéis e as suas investidas, cada vez mais intensivas, para libertar o Condado Portucalense do jugo do monarca leonino e transformá-lo em reino independente. Mas fora agora, sobretudo agora, que a fama da vitória de Ourique se estendia por todo o condado e havia já chegado a Lubisonda.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

AS COUVES

Quinta-feira, 02.02.17

Empinou-se o galo Eiró, de crista levantada e esporões arrebitados, contra o Garnizé, não de raça mas de apelido:

- Ou fazes o que eu digo, ou chamo a estouvada da Genoveva e tens a panela à perna. E que boa canja havias dar!

- Se te achas assim tão forte e com tanta razão, salta! Salta para aqui, e tiram-se as teimas. De galo para galo. Se és tão valente como apregoas, salta para cá… Ah! Metes o rabo entre as pernas...

A Perdiz, armada em amante dedicada, veio logo em defesa do Garnizé:

- Nem lhe toques! – Interpôs-se entre os dois. – Ao caldeirão da Genoveva vais parar tu se não crias juizinho…

O grandalhão do Eiró a acobardar-se e as outras ao redor, incrédulas. Apenas a Cor-de-Pomba ironizou:

- Então agora, que isto vai tão bem encaminhado, é que vocês param. Capoeira sem guerra é como deserto sem areia.

De nada serviu. O Eiró acobardou por completo. Reinou, de novo, a paz, durante um dia, durante muitos dias. Nunca mais se empertigaram os dois meliantes, pese embora capoeira ficasse dividida. Meia dúzia do lado do Eiró e outras tantas a fazer cortesia ao Garnizé…

Até que chegou o Entrudo. Na véspera a Genoveva, como de costume todos os anos, assomara à beira do curral. Assustaram-se as galinhas temeram os dois galos. Pela certa, naquela tarde, um estaria estufadinho no caldeirão da Genoveva.

- E para nada, afinal de contas, o nosso esforço.

- De que serviu a paz conquistada…

- Aquele bandalho, pelo Entrudo, nunca esquece o facalhão…

- Sai uma sentença sem julgamento…

- Ai! Uma galinha fica borrada de medo só de ver o facalhão.

Preocupações de ambos os lados. Das do Eiró mais do que das do Garnizé. Mas o Eiró queria lá saber! Não temia o caldeirão. Ela, a bruta, que se aproximasse dele ou de alguma das suas. Havia de a nicar de uma ponta a outra, de lhe por o as pernas como um Cristo e, depois fugiria. E ela, impotente, como já fizera, no Entrudo passado, com a Coroada e com a Galega, havia de apanhar o maricas que não tivesse nem coragem para se defender e força para fugir.

Mas a Dona Genoveva, naquela tarde, porém, resolvera apenas apanhar na sua courela junto ao curral das galinhas, uma boa mancheia de couves a fim de as cozer com batatas e toucinho. Munira-se do facalhão somente para cortar alguns caules mais grossos e rijos.

 

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UMA ESTÓRIA DE AMOR

Segunda-feira, 26.12.16

Há dias, algures, li esta pequena mais interessante estória de amor. É de autor desconhecido e,  a seguir, reproduzo-a de memória:

Conta-se que aos serviços de urgência do hospital de uma grande cidade chegou, certo dia um homem já de avançada a fim de fazer o curativo de um golpe profundo feito na mão direita.

Muito preocupado com a demora pediu urgência no atendimento, pois tinha um compromisso.

O médico que o atendia, curioso, perguntou-lhe o que tinha de tão urgente pra fazer.

O simpático senhor disse-lhe que todas as manhãs ia visitar a sua esposa que estava internada numa clínica da cidade, pois sofria doença de Alzheimer, já em fase muito avançada.

O médico, cuidando que o tratamento iria demorar bastante, retorquiu com alguma simplicidade, tentando desanuviar a preocupação do velhinho:

– Então hoje ela ficará muito preocupada com o seu atraso, pois o tratamento ainda irá demorar bastante tempo.

O velhinho respondeu:

– Não, ela não se vai preocupar por que ela já não sabe quem eu sou. Há quase cinco anos que ela não me reconhece.

O médico, prosseguindo a conversa, insistiu:

– Mas então para quê tanta pressa em ir vê-la, se ela já não o reconhece?

O velhinho, com um doce sorriso e, batendo de leve no ombro do médico, respondeu:

– Ela, na verdade, já não sabe quem eu sou… Mas eu sei muito bem quem ela é!

Concluía a história que o médico, comovido, teve que segurar suas lágrimas.

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A BATALHA DE OURIQUE

Terça-feira, 29.11.16

Pedro deambulava, solitário, a custo e timidamente, por um caminho ermo, ladeado por árvores gigantescas e sombrias. Aqui e além, alguns transeuntes, mudos, de olhar esbugalhado e ansioso, embrulhados em farrapos acinzentados, amparando-se a grossos bordões, caminhavam vagarosamente. À medida que prosseguia, o caminho ia-se tornando mais apertado e esconso. Finalmente uma cancela, na qual Pedro se pendurou, espreitando para o interior. À sua frente uma enorme campina, despovoada sob um céu pardacento e acinzentado. Lá ao longe bardos de hortênsias floridas, azuis, rosadas e brancas, como que a protegê-la de invasores e separá-la de outras pequenas propriedades. No centro um gigantesco pináculo de basalto negro simulando uma gigantesca catedral. Ao redor uma infinidade de pequenos calhaus, dispostos quase simetricamente ao redor do pináculo faziam lembrar pequenas casas, simulando uma pequena cidade medieval. As próprias ruas e vilelas estavam perfeitamente desenhadas, pese embora se mostrassem muito estreitas, enviesadas e, obviamente, desertas. Um enorme silêncio pairava no ar.

Pedro entrou e subindo o pináculo sentou-se lá bem no alto, como se tivesse subido às torres sineiras da fictícia catedral. Nesse preciso momento, rompendo o silêncio das vielas, entrou uma barulhenta mesnada de besteiros que, exausta, terminara uma enorme e sangrenta batalha. Comandava a mesnada um valoroso cavaleiro que lutava ao lado de um príncipe, combatendo os infiéis sarracenos que teimavam em não o deixavam que o príncipe conseguisse alargar as fronteiras do seu pequeno reino, na tentativa de obter definitivamente a sua independência.

As hostes regressavam apressadamente à cidade. Vinham desfalcadas e a arfar de cansaço mas felizes. O príncipe, os fronteiros, os ricos-homens e senhores de pendão e caldeira, chefes de mesnadas, os cavaleiros, peões e peonagem chegavam exaustos mas plenos de regozijo e satisfação. Esmar, rei de Santarém, juntamente com outros quatro reis haviam sido derrotados, no dia 25 de Julho, dia do glorioso mártir São Tiago, sem apelo nem agravo, em Ourique, numa memorável batalha em que o inimigo incluía no seu ciclópico exército forças conjuntas das praças mouras de Sevilha, Badajoz, Évora e Beja, para além das de Santarém.

A viagem, de regresso à deserta cidade, foi longa e o destino dos guerreiros diferente. O príncipe havia como que sido obrigado a suspender a peleja e a curvar-se perante o monarca tirano, assinando, com ele, um tratado de paz, desistindo, assim, das pretensões de se tornar rei independente, prestando vassalagem ao inimigo.

De repente soaram três ribombares de canhões, seguidos de outros três. Pedro revolveu-se na cama e acordou estrebuchado. Era a mãe que o chamava para ir levar as vacas ao Outeiro Grande. Só depois havia de seguir para a escola. Talvez a senhora professora o chamasse para prestar contas do que, na lição de História, explicara na véspera – A Batalha de Ourique.

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JESUINA GLÓRIA

Domingo, 09.10.16

Rezam as crónicas que Jesuína Glória nasceu no lugar da Caldeira, então pertencente à freguesia das Lajes, corria o ano da graça de 1807. Órfã de pai e mãe foi criada por sua tia Gervásia que, para além de a obrigar a todo o tipo de trabalhos, a espancava e humilhava em demasia. Pior do que isso, ainda criança foi vítima de assédio sexual permanente, de sevícias e de estupro por parte do marido de Gervásia que via na garota a única forma de satisfazer os desejos lascivos que a mulher lhe obliterava. Aos doze anos Jesuína Glória foi oferecida pela tia a um honrado camponês natural das Fajãs e que se deslocara à Caldeira para comprar um bácoro. O homem de nome Felício, residente no lugar da Fajã Grande, era um honrado cavalheiro, bondoso e amável que havia perdido a filha no naufrágio de um barco que baqueara numa tempestade, lá para as bandas dos Fanais e que via nela a imagem da desafortunada filha. O bondoso e probo Felício criou e educou Jesuína Glória com muito amor e carinho, dando-lhe uma esmerada educação. A sua morte repentina, porém, deixou a pequena, novamente órfã, quando tinha apenas quinze anos.

Foi um biltre e reles vizinho, ao tempo simulado amigo de Felício, que lhe deu guarida, voltando Jesuína Glória a ser maltratada e violentada. Mas Jesuína traumatizada pelos horrores que sofrera na infância e da forma como fora violada e perdera sua virgindade, tentou resistir ao assédio do facínora, não cedendo às vontades lascivas do malfeitor.

Porém Jesuína da Glória conhece Jeremias, um jovem pescador e passa a amá-lo de verdade, apaixonando-se, loucamente, por ele. Mas Jeremias era casado, o que tornava impossível o amor entre ambos. Jesuína sofre duplamente. Por um lado o estupro de que era vítima por parte do seu famigerado paraninfo e, por outro, porque o seu amor por Jeremias é impossível. Mas algum tempo depois a esposa de Jeremias adoece gravemente e morre. Jesuína Glória sente, cada vez mais amor por Jeremias, um amor puro e sincero que sabe ser correspondido. Mas eles ainda não tem coragem de se declararem um ao outro, por timidez, por medo de que o povo murmure. Mas o sentimento de respeito mútuo que os une é imenso.

Jesuína Glória continua a sofrer o assédio e estupro do vizinho que, falsamente, a parece proteger. Tenta libertar-se da malvadez do biltre, mas não consegue. Jeremias sabe e desesperado, querendo defender a amada, mata o maldito com uma facada nas costas, ao surpreende-lo em mais uma famigerada violação de Jesuína. Preso e condenado é deportado para a Costa de África, deixando Jesuína numa solidão desesperada e numa amargura terrível.

Após um tempo de muita dor, solidão e sofrimento, sem receber nenhumas notícias de Jeremias, Jesuína Glória, sem no entanto se apaixonar, cede aos amores de Gilberto Leão, um jovem com quem acaba por casar. Desse casamento nasceram três filhos: Luiza, Jeremias e Onofre. Cedo porém, Gilberto se aborrece de Jesuína, por sentir que afinal ela ama outo que, embora distante e em parte incerta, está presente no seu coração em cada hora e em cada momento das suas vidas. Sentindo-se enganado, Gilberto parte para a América na companhia de uma outra mulher que conhecera no Lajedo por ocasião da festa da Senhora dos Milagres. Jesuína Glória fica de novo sozinha, com uma enorme saudade dos filhos que lhe foram tão cruelmente retirados, passando a viver totalmente na miséria mas sonhando sempre com o regresso de Jeremias, o homem da sua vida, que sempre amou perdidamente e em quem sempre confiou. Na verdade continuava a sentir um enorme amor por ele que nunca esqueceu em nenhum momento de sua vida.

E o dia desejado chegou. Bateram-lhe à porta. Jesuína não acreditava no que via. Ficou radiante de felicidade, assim como Jeremias, que lhe confessou o seu grande amor. Sempre foi apaixonado por ela e nunca a esqueceu. Assim essa surpresa do destino acabou fazendo com que a corajosa Jesuína Glória conquistasse o seu grande amor, concretizando o mais belo sonho, o sonho de ter um marido que a amava verdadeiramente e o sonho de ter um lar e de viver para sempre ao lado do seu grande e verdadeiro amor.

Tempos depois, Jeremias e Jesuína Glória abandonaram a ilha e fogem para o Faial, onde se casaram, construíram família e passaram a viver uma linda história de amor, em que os dois superaram todos os obstáculos da vida, tornando-se extremamente felizes e realizados.

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A POÇA DA SEREIA

Terça-feira, 12.04.16

A zona do baixio, situada entre o Calhau da Barra e o Cais, era um mamarracho negro, pétreo, abrupto mas bastante amplo, entrecortado, na orla marítima, por minúsculas enseadas e pequenas baías, umas e outras a separarem-se por promontórios pejados de caranguejos, carregados de lapas e revestidos de algas alaranjadas e roxas, que as ondas, ora altivas e tempestuosas, ora calmas e tranquilas, umas vezes cobriam com fulgor outras acariciavam com ternura. O interior, deserto de vegetação, delineado a nascente, pelo caminho que, logo acima, desembocava na Via d’Agua e no início do qual e à beira do Cais, se encravava um pequeno e débil farol, era povoado de uma inúmera quantidade de poças, de tamanhos e formatos muito diferentes, separadas umas das outras por torreões de lava negra, muitos deles com formas estranhas, altaneiras, a pavonearem-se num universo deserto, mas a fazerem lembrar figuras fantasmagóricas, estátuas irreconhecíveis, monumentos indecifráveis, que a imaginação do povo, através dos tempos, metamorfoseara em ícones lendários ou em símbolos míticos. Eram estas atalaias magmáticas que separavam e delineavam não só as poças mas também as baías e as enseadas e de quem, na maioria dos casos, umas e outras recebiam os nomes.

 Entre as poças, porém, havia algumas maiores e, por conseguinte, possuidoras de uma identidade e de um nome que as distinguia e diferenciava, naquele estranho e enigmático universo. Eram as poças do Cobre, da Sereia, do Farol, da Barra, da Prata, da Pontinha, dos Pargos e muitas outras. A Poça da Sereia era das mais míticas e lendárias. Apesar de muito próxima do mar, mas porque encravada entre altos rochedos, apenas em momentos de maré cheia lhe entrava a água do oceano, toldando-lhe a quietude, renovando-lhe a frescura, azulando-lhe a cor, abarrotando-a de salinidade. Entre os altivos rochedos que a ladeavam e que lhe conferiam contornos flexuosos e lúbricos, havia um, a norte, mais altivo, mais grandioso e, sobretudo, mais singular. Encravado muna espécie de cordilheira em miniatura, uma imponente excrescência magmática a fazer lembrar uma figura elegante figura feminina. Uma mulher! A cabeça, o rosto, os cabelos, os seios, perfeitamente identificáveis, só que ventre, pernas e pés como que haviam desaparecido, confundindo-se e emaranhando-se com o próprio rochedo. Era como se fosse uma sereia que, em tempos idos tivesse dado à costa e não podendo regressar ao mar ali ficara, calcificando-se através do tempo, devorada pela tumescência e pela dureza dos rochedos.

 

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AS PASTORAIS

Segunda-feira, 14.12.15

Naquele verão, o novo bispo visitava a ilha. Para além de ainda não conhecer a maioria do clero, desjava fazer a tradicional visita canónica a cada paróquia. Pretendia assim, à maneira de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, integrar-se na vida e costumes das paróquias, visitando uns e conhecendo outros.

O pároco de São Cristóvão, um dinâmico e ativo sacerdote, saído do Seminário há três anos, era alvo de muitas críticas e mexericos, por parte não só de colegas mas também das autoridades e poderes locais, contra cujas decisões muitas vezes pouco democráticas e favoráveis aos interesses do povo, se insurgia e opunha, pregando a doutrina social da igreja, enriquecendo-a com reflexões e críticas que, por vezes até punham em causa a autoridade da própria hierarquia eclesiástica. Pelo meio, os delatores da sua imagem, não se furtavam de lhe atribuir um ou outro namorico, alcunhando-o de verdadeiro rabo de saias. O bispo disso já havia sido informado pelos elementos do clero que o rodeavam, em salamaleques, mesuras e vénias logo depois que chegara à diocese e, segundo se dizia entre os párocos da ouvidoria, era essa a razão pela qual o bispo revelara tanta urgência em visitar as paróquias da ilha.

O pároco havia-se formado no Seminário, ao eco dos documentos do Concílio Vaticano II e e no estudo das encíclicas Rerum Novarum e Quadragésimo Anno, orientado por mestres exímios, sábios e competentes, formados em Roma, alguns deles recentemente chegados à diocese, trazendo consigo a pureza do pensamento teológico dos grandes mestres das universidades romanas e que punham em causa os velhos manuais de Teologia, de Moral, de Direito Canónico, de Sagrada Escritura e até de História da Igreja. Despojara-se, por completo da indumentária eclesiástica, convivia com o povo, acompanhando-o nos trabalhos, no descanso e nos divertimentos. Não se lhe reconhecia grande atração pela oração e pela penitência, embora fosse exímio e rigoroso nas celebrações litúrgicas, dando-lhe a dignidade e o simbolismo que mereciam.

O prelado chegou à freguesia sem se fazer anunciar nem da hora nem do dia. O jovem sacerdote a essa hora ainda dormia. No dia anterior levantara-se muito cedo. Decidira acompanhar alguns pastores aos matos da ilha, a fim de conhecer melhor e de se inteirar do seu trabalho, dos seus sacrifícios, auscultando os seus problemas, confortando-os nas suas angústias.

Foi um colega que lhe bateu à porta, anunciando-lhe que o senhor bispo, acompanhado do senhor ouvidor estavam na igreja à espera dele. Sua Excelência Reverendíssima queria ouvi-lo. O pároco sorriu entre desconfiado e indiferente. Tanto se lhe dava. O bispo se quisesse falar com ele devia tê-lo procurado em casa. Mas, pelo sim, pelo não, enfiou, à pressa, umas calças e uma camisa, calçou umas havaianas e lá foi.

Recebeu-o o bispo, na sacristia, ornado de púrpura e de ar sombrio, estendendo a mão para que o pároco lhe osculasse o anel. 

- Não tem batina, nem cabeção. – Indagou o bispo com rigor.

- Obviamente que tenho, pois trouxe-os do Seminário. Mas muito raramente os uso.

- E breviário?

- Não tenho.

- Não tem!? – Exclamou o pontífice com ar rigoroso. - E os livros paroquiais? Os paramentos, as alfaias litúrgicas, em suma as Pastorais, onde está tudo isso?

Perante o silêncio do pároco o bispo continuou. Falava austero, em devoção e santidade, em prudência e castidade, em o obediência e responsabilidade. As leis eclesiásticas eram para serem cumpridas e as penas canónicas para serem aplicadas. Quando terminou, o pároco, sorrindo disse-lhe:

- Vou-lhe mostrar tudo isso, se o senhor bispo fizer o favor de me acompanhar.

O bispo hesitou. Como o pároco insistisse sairam da sacristia e entraram no velho automóvel do pároco. Este, dando uma pequena volta pela freguesia, parou em frente a um enorme edifício. Era o Centro Social da paróquia que ele, com a ajuda dos paroquianos, construíra em menos de três anos. Saíram do carro e entraram. Numa sala um grupo de idosos tomava o pequeno-almoço em alegre e animado contubérnio. Noutra sala outros idosos praticavam exercícios físicos sob a orientação duma jovem animadora. Um grupo de crianças, noutra sala, juntamente com uma catequista ensaiavam cânticos para o Natal, enquanto outro grupo aprendia catequese. Algumas mulheres enchiam um atelier no fabrico de artesanato. Um grupo de jovens estudava noutra sala. No bar, alguns homens descansavam e conversavam. Depois de mostrar tudo isto ao prelado, o pároco, parando no hall de entrada do centro exclamou:

- Aqui estão as minhas Pastorais, senhor bispo.

Do lado um velhinho trémulo de corpo mas seguro de espírito, aproximou-se do bispo e puxando-lhe a manga da batina como quem lhe queria dizer alguma coisa, a assoando-se num lenço vermelho, acrescentou:

- E mais, senhor bispo… Ainda nem são dez horas da manhã! O senhor bispo havia de ver isto de tarde… E aos domingos e feriados…

 

NB – Este texto foi inspirado no conto com o mesmo título, do contista Nunes da Rosa, do livro Pastoraes do Mosteiro.

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A RAPARIGA DAS LARANJAS

Sábado, 07.11.15

Conta-se que antigamente havia uma rapariga que vivia no mato, distante do casario e afastada das outras pessoas que viviam no povoado, à beira mar. No meio do silêncio, perdida na solidão, imersa numa enorme tristeza, emaranhada em sonhos e dominada pelo temor e nos sonhos, a jovem passava o tempo à espera de um dia reencontrar o seu príncipe encantado, que as adversidades da vida haviam levado para longe.

Mas o destino compadeceu-se dela e levou-a a encontrar uma feiticeira, a qual, com a sua sabedoria e simpatia, conseguiu arrancá-la do marasmo em que jazia e levá-la para outro lugar, menos tenebroso e mais bonito e luminoso, onde a jovem poderia recomeçar a sua vida, sendo de novo alegre e feliz.

Depois de ser libertada a jovem percebeu que nenhuma das portas que a assombravam, que a rodeavam e que julgara fechadas para sempre, tinham qualquer fechadura. As portas abriam-se a fim de que ela renascesse e recomeçasse a sua vida.

Muito feliz e desejosa de viver como as outras pessoas, começou a deambular pelos caminhos que se encontravam por detrás das portas, até que ao chegar-se a uma dessas portas encontrou caída no chão uma bela laranja coberta de ouro. Admirada, juntou a laranja para não mais a largar. Desde esse dia em diante, a rapariga nunca mais parou de procurar o laranjal indicado pela feiticeira, a qual lhe revelara existir, na verdade, um esplêndido laranjal, no local de onde teria vindo a bela e valiosa laranja que encontrara.

A jovem passou a chamar-se Rapariga das Laranjas e, desde esse dia, deu início a um longo caminho na tentativa de encontrar o laranjal, que era tido por ser o mais sublime e paradisíaco lugar que alguma vez imaginara ou sonhara encontrar. Quando finalmente o encontrou, sentiu-se livre e segura, porque da laranja de ouro que conservara na mão emanou uma luz que lhe permitiu ver a presença subtil do seu amado príncipe que há muito se ausentara. Foi assim que a jovem pode de novo voltar a acreditar no amor.

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O VELHO E O NAÚFRAGO

Sábado, 12.09.15

Era uma vez um pescador pobre e humilde que vivia num casebre, junto do mar com a mulher e uma filhinha de tenra idade. Certo dia, enquanto o pescador se ocupava na sua faina diária, a mulher decidiu ir banho à filha numa pequena enseada que ficava mesmo em frente à sua casa. O mar estava muito calmo e Sol brilhava com grande intensidade. Era um dia de muito calor

De repente e sem que a mãe previsse, surgiu uma onda enorme e bravia que, embrulhando-se contra os rochedos, atirou a mãe ao chão, levando-lhe a inocente filhinha. A pobre mulher muito a custo levantou-se e atirou-se ao mar, gritando, berrando na tentativa de recuperar a filha perdida no meio das ondas revoltas. Momentos depois, a menina emergiu das ondas. A mãe desesperada agarrou-a e apertou-a nos braços, chorando, agora de alegria, por tornar a ver e abraçar a sua menina. Mas, para espanto seu, a menina estava muito diferente: o olhar era mais triste, o sorriso menos cativante, os cabelos outrora castanhos e ondulados estavam hirtos e desalinhados, o seu corpo irradiava reflexos estranhos e melancólicos e toda ela como que exultava uma enorme alienação, uma indiferença desusada. Muito triste e preocupada a mãe regressou a casa mas nunca mais levou a menina a tomar banho no mar, por mais manso e calmo que ele estivesse

Passaram-se anos. A menina cresceu e tornou-se numa bela e graciosa jovem, mas sempre aureolada com o diadema de um estranho mistério, manifestado nos seus comportamentos estranhos, nas suas atitudes inauditas. Os pais, apercebendo-se parcialmente do que se passava viviam em sobressalto, temendo que algo de estranho ou de sobrenatural acontecesse. As vizinhas, coscuvilheiras e maldosas preconizavam que um dia a moça se transformaria numa sereia, por ter recebido os poderes do encanto quando surgira do mar, estranhamente feliz.

Certo dia, um náufrago que viera dar à costa num pequeno batel deslumbrado pelo fascínio irradiante da rapariga. Apaixonou-se loucamente por ela e ela por ele. Mas o facínora não a amava de verdade, apenas seduzindo-a e abusando dela. Pouco depois zarpou, fugindo numa estranha embarcação que, durante a noite demandou a ilha. A rapariga, humilhada e cheia de vergonha, chorou amargamente, aureolando-se ainda de comportamentos mais estranhos. A sua beleza foi-se perdendo, a velhice atingiu-a e, passado algum tempo, morreu. Todos a choraram.

Passaram-se alguns anos. Um novo batel demandou a ilha trazendo um náufrago. O homem cheio de frio e de fome dirigiu-se para o povoado. Muitos dos habitantes da localidade, reconhecendo-o, correram-no à pedrada e espancaram-no com varapaus. Foi o velho pai da jovem que ele atraiçoara que o protegeu e salvou. Levou-o para sua casa, tratou-lhe das feridas, vestiu com roupas quentes e repartiu com ele a sua ceia. O gesto do ancião comoveu a todos. Nunca se vira alguém com um coração tão bom e generoso. Protegera e salvara o algoz da própria filha. Na noite seguinte, enquanto o náufrago dormia, o velho e amargurado pai vigilava à porta da sua casa, quando começou a ouvir ao longe uma voz harmoniosa entoando os versos de uma canção nostálgica. A música, aos poucos, foi-se aproximando, até chegar junto dele. Com mil cuidados, não fosse surpreender e assustar a dona de voz tão bela, espreitou por cima do portão. Para espanto seu, viu sentada, ali perto, uma mulher, extraordinariamente formosa. Acercou-se, cheio de receio e curiosidade. Pareceu-lhe a própria filha. A mulher, porém, ao pressenti-lo, desapareceu misteriosamente. Na noite seguinte, o velho voltou de novo a mesma voz, a entoar a canção triste da véspera que, da mesma forma, se foi aproximando da sua casa. Era a mesma mulher, esbelta e bela. Reconheceu a própria filha.

Mas na manhã seguinte, o corpo do velho foi encontrado inerte junto ao portão da sua casa. Tinha morrido!

 

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FILHA DO MAR

Terça-feira, 28.07.15

Há muitíssimos anos viveu no lugar onde hoje á a Fajã Grande um bravo e valoroso pescador. Era de avançada idade, assim como a sua mulher. Certo dia, como de costume, saiu para o mar, com o seu barco, para pesca e dirigiu-se para a Baía dos Fanais onde sabia que abundavam vejas, sargos, rateiros, bodiões e muitas outras espécies de peixes. Aconteceu, porém, que apesar de lançar as linhas com os anzóis pregados de excelente isco, e de espalhar bom engodo ao redor do barco, passou a manhã e a tarde e até a chegada da noite, sem pescar um único peixe, de forma que teve que se resignar a voltar para terra sem exibir um peixe que fosse.

No entanto, depois de entrar na Barra e de parar junto ao porto para varar o barco, para espanto seu, uma sardinha emergiu à tona de água e saltou para dentro do barco. O pescador apesar de muito admirado, pois nem era costume avistar sardinhas por ali, como não tinha peixe para comer, levou a sardinha para casa assou-a e deu-a à mulher para que a comesse pois não tinha nenhum outro peixe para a ceia.

Passados alguns dias a mulher, apesar da sua avançada idade, sentiu sintomas de gravidez e, passados nove meses, deu à luz uma menina muito bela, da qual emanava um resplendor mais claro do que o da lua. Ao chegar aos dez anos a menina começou a cuidar de si própria, alimentando-se apenas do peixe que o pai continuava a pescar e dos frutos da terra que trabalhavam. Assim foi passando o tempo, até que a menina se tornou numa formosa donzela. Então, abraçando um dia sua mãe, perguntou-lhe:

— Mãe, não é estranho que seja eu um peixe sendo tu um ser humano?

A mãe respondeu, entre lágrimas:

— Minha filha, isso depende dos obscuros desígnios de Deus. - E, a seguir, fez-lhe a narrativa de como, já sendo de avançada idade, havia engravidado depois de ter comido uma sardinha, nascendo ela algum tempo depois.

Ao saber aquilo a menina teve a impressão de que era, na verdade, filha do mar. Sendo assim só poderia ser uma sereia.

No dia seguinte, depois de passar a noite em grande mágoa, despediu-se da mãe e partiu para o mar., Nada houve que a convencesse a desistir de seu propósito de partir para o mar. Pôs-se a caminho, e depressa chegou junto do mar. Ao tocar na água, o seu corpo como que se transformou. Da cintura para baixo passou a ter forma de peixe e os seus pés transforaram-se numa enorme barbatana. Mergulhando no oceano, nadava como se fosse um peixe.

Mergulhou, mergulhou até que chegou junto dum belo palácio situado nas profundezas do mar. Bateu a uma porta e perguntaram-lhe o que desejava e por que assim se apresentava, e ela respondeu que desejava falar com o dono daquele palácio. Este ouviu a sua estória e percebeu que a jovem era sua filha.

Reconheceu-a, recebeu-a e colocou-a junto com outras filhas também elas sereias como ela e com estórias semelhantes. Mas passados alguns dias a menina aborreceu-se e desejou voltar a terra, à casa onde fora criada com o pescador e a sua mulher. O dono do palácio não a deixou partir. Ali ficou mais alguns anos, ao fim dos quais notou que estava grávida, e pouco depois nascia um menino belo, de aspeto semelhante, em tudo a um ser humano.

Ao alcançar os dezoito anos, o menino pediu à mãe que o deixasse partir, para terra, na procura dos seus avós de que a mãe tanto lhe falava. Tanto pediu e tanto insistiu que a sereia o deixou partir.

O menino partiu em direção a terra, onde chegou, passado algum tempo. Reza a lenda que ainda encontrou a avó muito velhinha e vivendo muito triste e desgostosa com a desaparição de sua filha. Logo que o abraçou, ao saber quem ele era, morreu de emoção. O rapaz sepultou-a e por ali ficou trabalhando as terras dos avós, vivendo na sua velha casa. Reza ainda a lenda que casou e teve filhos, mas nunca voltou ao mar nem comeu peixe, mas todos o tratavam pelo da Filha do Mar.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

RASTROS DE SOMBRAS

Quarta-feira, 29.04.15

O Parque era o seu destino. Apenas aos fins-de-semana, que os outros dias eram de trabalho árduo e contínuo. No verão, tempo de dias maiores e mais quentes, aproveitava o ar morno dos fins das tardes. Não se descuidava. Na celeridade da sua destreza, na rapidez das suas passadas, na ligeireza do seu caminhar estampava-se o vigor da sua juventude. O sol iluminava-lhe o rosto, a chuva moldava-lhe o semblante, o vento soltava-lhe os cabelos. Os pássaros cantavam à sua passagem, as flores abriam-se e curvavam-se com a sua voluptuosidade e até o rio, no seu lento rastejar por entre arvoredos e alfombra, parecia apressar o correr das suas águas, com o intuito de a acompanhar. De a perseguir. Nada, na natureza, se alheava do seu doce, sublime e veloz caminhar. Ela, indiferente a tudo. Tanto lhe importava a chuva, o vento, o sol ou as brisas matinais. Caminhava ou melhor corria, corria sempre sem se inquietar com o que quer que fosse, que quebrasse, por uma nesga, a violência do seu querer. Elegante, sublime, esbelta, roupas a desenhar-lhe as formas corporais, esbanjava graciosidade, desferrava encanto, emoldurava-se de ternura. Quem a via entontecia, quem ta acompanhava perdia-se, quem a encontrava delirava e como que se exaltava no envolvimento de um estranho enlevo. E não eram poucos. Entre eles o vizinho da casa em frente. O principal, o eleito. Mal o sol nascia ou mesmo quando entrava no ocaso, atravessava impávido e silencioso a multidão e aguardava, impaciente, a sua passagem, o seu caminhar veloz e decidido. Ela, embora absorta no alvoroço da sua desinibição, depressa se apercebeu de tamanha insistência. Cedo compreendeu o impetuoso alento que ele exalava. Embevecida, deleitada, retribuía, simplesmente, com um meigo, terno e gracioso sorriso. Os outros olhavam invejosos, enraivecidos, terrificados. Às vezes, atiravam ao ar impropérios, protestavam com insultos, estarrecidos de inveja. Ela não se coibia e, no dia seguinte, postava-se com mesmo sorriso, com a mesma doçura, com o mesmo olhar doce e inebriante. Para ele. Só para ele, que orgulhoso, sobrepondo-se à força do vento, ao incómodo da chuva ou ao calor do sol, a admirava, venerava, idolatrava. Como se fosse uma Vénus.

Foi no início do outono. Uma tarde de chuva e ventania. Ela entrou no café onde ele costumava ir todos os dias. Sentou-se e olhou na direção onde ele estava. Privilegiou-o com a doçura de um novo sorriso, semelhante aos do parque. Talvez mais terno, mais meigo, mais comunicativo. Vinha excitada do movimento desusado de casa e da maneira inesperada como o encontrara ali. Olhou-o fixamente. Ele, confuso com tão persistente olhar. Duvidou. A muito custo tentou desfazer o enigma do misterioso olhar que o envolvia. Mas não havia dúvida! Era nele que ela cravejava o segredo da sua intimidade. Era nele que ela depositava a excelência dos seus sonhos malfadados. Num rosto nervoso e inquieto, um sonho sublime, a desfazer a intranquilidade de momentos amargos, dolorosos. Pressentimentos confusos, misturados, por vezes, com lágrimas recusavam-se a sair-lhe do pensamento. Encharcavam-lhe a alma de medos, de incertezas, de intranquilidades. Mas o olhar meigo e carinhoso dele, a adivinhar-lhe a excelência das formas corporais que os jeans, muito justos e colados, deixavam transparecer, tolhia-lhe o sofrimento, secava-lhe as lágrimas, sublimava-lhe a dor. Em dias seguintes, sucessivos, repetiu-se o devaneio que, apesar de regrado por um rígido silêncio, os aproximava cada vez mais. Sem nunca se falarem, entendiam-se. Sem nunca se entregarem, desejavam-se, Sem nunca se unirem, amavam-se.

Mas tudo se sombreou como o fumo duma vela que nunca se acendeu. Ou porque, numa manhã cinzenta e tenebrosa, ela decidiu envolver-se na confluência duma cumplicidade macabra ou, simplesmente porque o café, em falência declarada, encerrou definitivamente.

Agora ela já não corre célere, como outrora. Agora as flores, à beira rio, já não sorriem, os pássaros, ao redor do parque, já não cantam. Nem o vento, sequer, lhe solta os cabelos ou a chuva lhe afaga o semblante, Apenas o Sol, triste e enevoado, de vez em quando e como que a medo, se abre a descortinar os rastros daquelas sombras enigmáticas, desenhadas no seu rosto triste, amargurado, sem sorriso.

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publicado por picodavigia2 às 07:36

EM VIAGEM

Segunda-feira, 20.04.15

Ainda mal tinha assomado ao portaló e o comandante, no cimo das escadas, já vociferava, berrava, barafustava e bufava por tudo, jurando a pés juntos que eu não sairia em mais nenhuma ilha. Que eu estivera quase a perder o barco… Que se eu tivesse ficado em S. Jorge como é que ia ser… Que tinha saído com obrigação de regressar antes do meio-dia e já eram aquelas horas… Não havia ter-me deixado ir a terra… Que isto e que aquilo… Eu bem argumentava ao contrário e atirava as culpas para os outros, mas que não os contrariara porque eles me tinham tratado muito bem. Além disso o senhor comandante não precisava de se ter preocupado absolutamente nada porque, afinal, eu chegara muito a tempo. Porém, não o demovia da sua relutante impertinência.

Para não o ouvir mais e porque o convés da primeira estava a abarrotar e os tripulantes não condescendiam com a minha presença ali, regressei à terceira classe, conforme indicava o meu bilhete. Por ali fiquei a tarde inteira, junto ao porão do gado, enquanto o navio ronceiro e tranquilo navegava lado a lado com a ilha, na direcção da Ponta dos Rosais, com destino à Graciosa, para na manhã do dia seguinte rumar à Terceira. Sentado em cima dum caixote olhava aquela ilha tão estreita e comprida, que me acolhera e que, aos poucos, se ia tornando mais distante e lembrava-me daquela inolvidável manhã, passada nas Velas, onde fora tratado com tanto carinho e, sobretudo, onde fruíra de amável companhia e granjear a estima e consideração. Não poderia nunca esquecer aquela manhã maravilhosa, pese embora a irritação que havia provocado no senhor comandante. E à medida que o navio se ia afastando de S. Jorge, mais eu recordava aquela manhã em terra firme, sem solavancos, sem balanços, sem enjoos, sem maus cheiros, sem fome e, sobretudo, sem a maldita exacerbação do comandante.

Na Graciosa o Carvalho fez serviço na Praia e ali esteve toda a tarde e grande parte da noite. Apenas de madrugada largou em direcção à Terceira, onde chegou na manhã seguinte, fundeando na baía de Angra e permanecendo ali ancorado durante um longo e enfadonho dia.

Grande parte dos passageiros que viajavam no Carvalho e tinham entrado nas outras ilhas, terminavam a sua viagem na Terceira. Por isso, depois do navio ancorar, a confusão no portaló e corredores anexos era grande. Para desespero meu, o senhor comandante ia terra mas voltava. Desde S. Jorge, nunca mais o vira nem ele me procurou ou dirigiu palavra. Revelando ainda algum ressentimento, veio, no entanto, antes de desembarcar, aconselhar-me o máximo cuidado durante o tempo que ainda me restava de viagem até São Miguel e proibindo-me, determinantemente, de ir a terra, para que não me acontecesse o mesmo que acontecera em São Jorge. Agradeci-lhe, mais uma vez a atenção e decidi ficar a bordo durante mais um longo e pesaroso dia, numa autêntica pasmaceira, sem fazer nada ou coisa nenhuma e, pior do que isso, sem me alimentar, pese embora já sentisse muita fome e uma enorme fraqueza. Na véspera à noite, enquanto o navio fazia serviço na Praia da Graciosa, quis armar-se em forte: entrei na terceira classe, com intenção de jantar. A ementa, afixada num placard, à entrada, era apetitosa e convidativa: bife com puré de batata. Ainda consegui o feito brilhante de me sentar à mesa e ser servido com um prato bem cheiinho do anunciado menu. Levei a primeira garfada à boca… Simplesmente intragável! Além disso comecei a ficar mal disposto devido ao ar sufocante da sala, aos maus cheiros que por ali abundavam, aos óleos fritos da cozinha e ainda porque alguém ao meu lado anunciava, em alto e bom, que aquilo era bife de cavalo. Zarpei dali, numa corrida louca, com uma enorme vontade de vomitar, sem comer uma única dentada, jurando nunca mais voltar àquela espelunca, impropriamente denominada sala de jantar, sobretudo, com o exclusivo intuito de matar a fome. De repente, comecei a sentir uma vasca terrificante e nauseativa. Parecia estar possuído de vibrações caliginosas, aflitivas e angustiantes. Muito a custo, consegui aproximar-me da borda do navio. Num ápice, perante o ricto malicioso dos que por ali passavam, entreguei aos peixinhos, gratuitamente e com uma enorme sensação de dor misturada com alívio, o pouco que no estômago ainda me sobrava do almoço nas Velas.

Passadas algumas horas depois de fundear na baía de Angra, o navio parecia quase deserto. No convés da primeira superabundavam espreguiçadeiras vazias. As pessoas que permaneciam a bordo resumiam-se à tripulação e pouco mais, dado que a maioria dos passageiros em trânsito saíra para terra, visitando a cidade e a ilha. Comecei, pois, a deambular, muito à vontade, para trás e para diante no convés da primeira, ora deitando-me nalguma espreguiçadeira ora assomando à amurada onde me entretinha a observar o Monte Brasil, a Memória, a Igreja da Misericórdia, o Canta-Galo, o Porto de Pipas, enfim, toda aquela maravilhosa cidade que eu apenas conhecia dos livros da escola primária, onde aprendera que tivera um papel preponderante nas lutas liberais, que D. Pedro IV, o Rei Soldado, a apelidara de “Mui nobre, leal e sempre constante cidade de Angra do Heroísmo” e que guardava os restos mortais do irmão de Vasco da Gama, ali sepultado a quando do regresso a Portugal do descobridor do Caminho Marítimo para a Índia. Depois olhava a borda do navio e extasiava-me com aquele frenético vaivém de embarcações que ligavam o navio ao cais da Alfândega, numa árdua e contínua lufa-lufa de transporte de pessoas, animais e mercadorias e que aqui eram bem maiores e mais numerosas do que as chatas das Flores, de S. Jorge ou da Graciosa.

De tarde o navio ainda parecia mais deserto e comecei a sentir uma fome terrível. Desde o almoço em São Jorge, no dia anterior, que não tinha comido rigorosamente nada. Além disso, tinha vomitado uma boa parte dele. Optei, pois, por ficar a bordo. Bem vistas as coisas, indo a terra talvez gastasse nas viagens todo o dinheiro que me sobrava. Por isso decidi que seria preferível investir metade dele no bar da segunda, poupar o restante para se precisasse ao chegar a São Miguel e ficar a bordo o dia inteiro. Comprei um pão com queijo, uma laranjada e um chocolate, o que me serviu de alimento durante todo aquele longo e enfadonho dia.

 

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publicado por picodavigia2 às 08:51

TREVAS

Segunda-feira, 16.03.15

Era uma vez um régulo, facínora e depravado, pertencente a uma draconiana dinastia, que decidiu prender, em intransponível ergástulo, um gerontocrata, membro do conselho do reino, só porque o mesmo opinara publicamente, opor-se à oferta e sacrifício de sete jovens, destinadas ao regalo das suas fantasias execráveis e dos seus apetites depravados.

Foi um período de medo e de terror para o reino daquele régulo malévolo que assim, viveu anos e anos, em constante estado de inquietação e insegurança sofrendo e suportando, na maior das ansiedades, os caprichos, veleidades, sarcasmos e depravações deste e muitos outros governantes enfatuados e instáveis, déspotas destemidos, energúmenos insaciáveis, bárbaros facínoras e janízaros meliantes. Uma dinastia de régulos facínoras e depravados, sem escrúpulos, não olhando a meios para atingir os seus malévolos objetivos.

Porém, desta maquiavélica dinastia, surgiu, finalmente, um monarca heteróclito, perdulário e abstracto que, apesar de tudo, se afastou notória e significativamente das frivolidades lascivas e das ditaduras prementes e opressoras dos seus antecessores.

Uma áurea de esperança surgiu, então, nos ânimos dos habitantes daquele reino, agora libertos de férula governação, candidatos esperançados à liberdade e à vivência dos seus projectos colectivos e das suas realizações pessoais e individuais. Não pesava, agora, tão constante, lasciva e continuamente, sobre a sua vida e costumes, a maquiavélica e diabólica governação dos régulos anteriores. Porém, com o passar do tempo, aqueles súbditos cansaram-se de se sentir enfrascados de aborrecimento, arrecadando e armazenando tédio absoluto e desespero permanente, frutos dum cada vez maior afastamento do novo monarca, dos seus deveres de governante real. O novo rei era louco por caça e passava dias e noites nos bosques e nas florestas, na mira de acertar em tudo o que lhe surgisse pela frente. Mesmo no rigor do Inverno, quando os nevões visitavam as montanhas e bosques do reino, zebrando o ar plúmbeo, impedindo e obstaculizando, na totalidade, a concretização dos apetites cinegéticos do régulo, este ainda menos se ocupava com os seus súbditos e com a governação do reino, entregando-se, então, a extravagantes façunatas e lautas comezainas, as quais, embora, não cerceando o alvedrio quotidiano dos habitantes da serra, permitiam um efluente declínio e um evidente desgaste do erário público.

O povo, embora experimentando a suprema vivência da liberdade, estava, porém saturado. A revolução estava eminente! Se as opressões das décadas anteriores tinham coarctado a liberdade e anulado a dignidade do povo, a alienação do monarca reinante desmoralizava o sentido de viver, confundia os valores constitucionais e provocava uma angustiante insegurança e uma confusa incerteza de viver, geradora dum lenocínio galopante, entre os povos serranos.

Os ânimos exaltavam-se, as opiniões dividiam-se e as teorias contradiziam-se. Forças político-sociais obscuras digladiavam-se nas praças e nas vias públicas. O terrorismo já se fazia sentir por toda a parte. Os gritos da revolta eminente ecoavam pelos esconsos mais recônditos da serra. O monarca, porém, continuava calma, impávida e serenamente a alienar-se de tudo e de todos, preparando-se para a caça, simplesmente caçando, ou saboreando lautamente os manjares subsequentes à mesma.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:22

O ANÃO

Sexta-feira, 13.03.15

Numa manhã, cálida, fulva e etérea do Outono, chegou à serra um viajante solipsista, misterioso e invulgar. Invulgar porque, imaginem, era um anão. Vinha de longe, de muito longe. Percorrera mares, andurriais e páramos, suportando tempestades e procelas, saltando montanhas de espuma e de submissão, sentando-se à sombra de árvores sem folhas e sem esperança, perdendo-se ininterruptamente em ilhas desertas e em oásis mistificados. Atravessara, com extenuante lucubração, um grande e tórrido deserto, com rios de fogo e pináculos de estranha adoração, onde se perdera e onde, simultaneamente, enlapara muitos dos seus sonhos e fantasias. Mas trazia consigo a experiência da liberdade, a fragrância da dignidade, a auréola da fraternidade, a estranheza da sublimidade e do amor, sobretudo do amor. Sonhava, sempre, que as estrelas são de prata, e que para além de cada oceano, há sempre um outro mar. Ensinava que as nuvens quando se desfazem não pretendem apenas jorrar sobre os mortais a incomodidade da chuva. Aprendera nos campos e nos bosques e estudara com as flores e os pássaros. Acolhia com sorriso as manhãs sombrias, escuras, enevoadas e chuvosas. Era amigo da esperança e das florestas. Pernoitava nos bosques, ao relento, dialogando com o destino e com a solidão. Alimentava-se do perfume das flores e dos frutos. Possuía um coração com aromas de alecrim e sabor a hortelã. Mas tinha um grande defeito: dependia total e exclusivamente do sol, para quem olhava constantemente, sonhando poder, um dia, voar ao seu encontro.

Mais! Era gimnosofista, o anão! Vivia permanentemente nas florestas, abstraído das multidões, convivendo com a frescura e a mansidão dos bosques. Considerava a "noite" como a origem de todos os males e produtora de todas as limitações, e a "escuridão" a filha única da ignorância universal. A fuga a estas maléficas divindades, adquire-se através da sabedoria, filha da claridade, mas que permanece longínqua e quase inatingível, porque libertadora de sucessivas, contínuas e constantes migrações, e que consiste, apenas e simplesmente, na capacidade equívoca de fugir aos pesadelos escuros e tétricos da nossa existência atormentada. Isto apenas se consegue mediante um isolamento total e uma entrega às "hamadríades", ou seja, as ninfas dos bosques, que nascem simultaneamente com as árvores, nunca se desvinculando das mesmas, vivendo e morrendo com elas. A vida duma árvore ninfada ou duma ninfa arborizada é, no entanto, perene e infinita, porque umas e outras dependem da única fonte de vida do universo - o Sol. Por essa razão, o anão entendia, que as árvores nunca deviam ser destruídas, pois o aroma das suas folhas, o perfume das suas flores e o sumo dos seus frutos constituem o alimento primordial e único de todo a raça carracena, pelo que a vida depende, necessariamente e em último grau, da luz emanada pelo astro-rei. Este é um armazém infinito de poder e beleza, receptor tranquilizante de todas as inquietudes. Somente através dele é possível atingir a sublimação da beleza absoluta e, consequentemente, atingir a simplicidade. Assim toda e qualquer oposição à força e à beleza solar devia ser eliminada.

Chegou, pois, o anão, à serra e aboletou-se num tétrico e cavernoso antro, isolado de tudo e de todos. Inicialmente, os serranos, supinamente preocupados com as perversas vicissitudes resultantes da famigerada governação dos seus chefes, não se aperceberam da sua presença. Passados alguns dias, porém, numa tarde clara, florida, perene de sol e de ternura, o anão desceu aos povoados e encontrou a serra na posse plena da sua beleza omnipotente e beatificante, isolada e só, mas acolhedora, glorificante e transcendente.

O povo, ocupado em orgias contestatárias e efervescentes, nem se apercebeu da sua presença e o anão perdeu-se, no meio da confusão que então se gerava, vagueando por entre a população envolvida em deslumbrantes manifestações contra o estado da nação. A revolta agigantava-se cada vez mais. O anão foi apanhado pela manifestante enxurrada, sem se aperceber e sem que ninguém o notasse. Foi levado pela confusão até ao palácio real, que de imediato foi invadido. A multidão, difluída junto à platibanda que o cercava, de rompante, encostou-se aos altos portões que a encimavam e que de imediato cederam e entrou, em turbilhão, pelos pátios ajardinados e pelos salões desertos e esconsos.

O monarca, mais uma vez se ausentara, para se dedicar às suas actividades preferidas e satisfazer os seus reais e eficientes instintos cinegéticos. A última sala a ser invadida foi a do trono. Uma multidão furibunda, intransigente, sedenta de esperança e liberdade, encostou-se à porta e esta cedeu facilmente. De repente, todos entraram, à esmo, pela sala dentro. A confusão era enorme e emaranhada em sucessivos e contínuos atropelos. Ninguém podia fugir, libertar-se ou, tão pouco, mover-se. O anão, hesitante, enleado e ilaqueado, ainda tentou fugir. Não conseguiu. Impossível de todo! Estava completamente preso e assolado, amarrado a uma força infinita, invisível e estranha, que o puxava e que, por fim, sem saber-se como, o sentou no próprio trono real.

De repente, fez-se um enorme e sepulcral silêncio na sala.

O anão estava ali, só, mais a multidão, que, faminta de lenimento, fixava o seu olhar  tímido, mavioso e expectante, no rosto aureolado e blandicioso de tão inesperada e inquietante personagem, que, na realidade e a partir de agora, seria a esperança libertadora da sua estigmatização.

Um grito de alívio ecoou por toda a serra! As árvores ficaram mais  verdes e floridas, as flores mais perfumadas e alegres, os frutos mais aromatizados e saborosos. As aves, encheram-se de coragem, perderam os últimos resíduos de medo e de temor e voaram mais alto. Os animais retoiçavam com mais afinco e blandícia. A suavidade ornamentava o destino de toda a serra. O vento soprava paramentado de ternura e graciosidade.

Porém o monarca emérito, ausente do palácio real, continuava abstraído na prática das artes cinegéticas e pantagruélicas, não se apercebendo, de imediato, que ali terminara o seu reinado e que era substituído na governação serrana por um simples, humilde e heteróclito anão.

A noite, porém, decorreu, em toda a serra, sobressaltada, angustiante e repleta de escuridão e incerteza. Mas a manhã seguinte, surgiu, risonha, afável, simpática e perene de sol e de ternura. Os dias seguintes correram céleres, maviosos e flexíveis. Era imperioso, por parte da nova governação, alterar ou suprimir muitas das leis vigentes, estabelecendo novos rumos, mudando a ordem até então estabelecida.

Os ergástulos foram destruídos, as leis maquiavélicas suprimidas e os decretos aniquilantes anulados. Foi decretado que, a partir de agora, o Sol seria a principal razão de ser e de viver dos serranos pradenses. É que o neo-governante bochimane adorava o Sol. Não podia mesmo viver sem ele. A sua dependência do astro-rei era tal que, sempre este se escondia, quer porque chegasse a noite, quer porque surgisse um dia enevoado, cinzento ou chuvoso o anão refugiava-se no seu mítico falanstério e tremia terrivelmente de frio, sofrendo tão violentas e pitónicas convulsões, que se abstraia total e absolutamente da sua governação protectoral.

Por isso a protecção legislativa ao astro-rei era imperativo constitucional. O Sol recebia assim, por decreto, à boa maneira dos sacerdotes assírios e pré-helénicos, os epítetos de ser supremo, paraninfo real, coração do mundo, razão de ser de todo o universo, detentor dum poder, duma força e duma vontade anteriores ao mundo, regulador da marcha do universo, controlador assumido do destino, significante exímio da grandeza, da dignidade e da perenidade e gerador da contagiante simpatia.

Foram, então, publicados decretos cerceadores dos eclipses e eliminadores dos dias enevoados e cinzentos e promulgadas leis que combatiam, de forma radical e imperiosa, as próprias noites. A Lua, quer na sua extravagante ousadia de gerar eclipses, quer na sua prestigiante função de iluminar a noite, foi decretada como inimigo número um. A duração dos dias de Inverno foi aumentada.

Na própria bandeira da nação serrana foi mandada afixar a inolvidável imagem do maior e mais importante astro do universo, na sua postura mais digna, gratificante e criadora - nascendo. Por toda a parte, dentro e fora do palácio real, surgiam desenhos e imagens do Sol. Nos jardins reais, foram mandadas erigir duas estátuas: uma do deus Apolo e outra do rei Hélio e as salas foram ornamentadas com frescos e baixos-relevos representando os episódios mais significativos da vida de Faetonte, o mais importante filho do Sol que, estando um dia a jogar apaixonada e emotivamente com o seu amigo Epapo, este, ao ser derrotado, desentendeu-se com ele e lançou-lhe à cara alguns insultos, nos quais se incluía uma grave e ofensiva suspeita de que ele não era filho do Sol, o que punha linearmente em causa a seriedade da sua mãe. Faetonte foi queixar-se a esta que, de imediato, o mandou certificar-se junto do Sol. Este, encontrando o filho, a quem desde há muito procurava, despojou-se dos seus próprios raios em benefício do filho e jurou conceder-lhe tudo o que ali mesmo lhe pedisse, como real prova da sua efectiva paternidade. O jovem Faetonte pediu-lhe que o deixasse conduzir, apenas por um dia, o seu próprio carro. Não era essa a vontade paternal, mas como prometera em juramento e não podia voltar com a palavra dada, o Sol emprestou-lhe o seu carro puxado por fortíssimos cavalos e deu-lhe a respectiva certificação de condutor. Os verdores de Faetonte levaram-no, em louca correria, até ao horizonte terrestre. Foi aí que os cavalos, ao aproximarem-se da Terra, se assustaram e os raios de Faetonte começaram, de imediato a queimá-la e a incendiá-la, ao mesmo tempo que afastando-se, ela arrefecia. Gerou-se, assim, um caos universal, que culminou em tempestades ciclónicas e diluvianas, trovoadas contínuas, cataclismos destruidores, inundações arrasantes, tendo sido, o próprio Faetonte, fulminado por um raio, caindo o seu corpo no rio Eridano, perante o choro e o lamento de suas irmãs e do seu amigo Cícuo. A desordem no universo foi tal que, durante um ano, não houve Sol e a corrida dos cavalos tão violenta que do carro ficou um rastro no firmamento, que se prolongou até hoje e que ainda se pode observar - a Via Láctea.

Estas imagens, gravadas nas paredes o palácio real, contribuam, significativamente, para valorizar a força, a grandeza e a imperiosa consistência que o Sol, agora, passava a ter, na vida e nos costumes do novo governante. Este acordava todas as manhãs, na esperança de ver nascer o astro-rei. Caminhava pelos campos e pelas bosques, alta madrugada, ansioso e expectante, tímido e submisso, na certeza de que ele em breve, surgiria no firmamento, na sua grandiosidade e omnipotência, espargindo, com os seus raios luminosos, simpatia contagiante, irradiando doçura, emanando dignidade, aquecendo os bosques e as florestas, aconselhando as flores e os pássaros, passeando ao lado das montanhas, dignificando o perfume das flores e transformando em sublimidade a perene doçura dos frutos. O dia surgia, então, pacífico, alegre, e bonançoso. A água dos regatos e arroios corria, agora, mais  límpida e cristalina, a fluidez fora irradiada, a inconstância abolida e a indefinição suprimida. O sol assumia-se, na realidade, na sua total e infinita plenitude - rei e senhor do universo. Era, assim, reposta, nas cercanias serranas, a ordem mitológica, assíria e pré-helénica, desfeita pela perturbante missão da História, acolitada por imperativos religiosos ou racionais.

O povo, cedo, entendeu o que se passava. As alterações eram tais, que era impossível não entendê-las. Preferiu, no entanto, ocultar-se, calar-se, aguardar os acontecimentos, sentindo a perene e constante ternura de sentir que agora fora decretado o direito de sonhar e de imaginar a aventura e a fulgurante consonância de conquistar o próprio destino. Por outro lado, a protecção e o constante acompanhamento que lhe era dado, por parte do novo governante, permitia não apenas que aceitasse a mudança, mas também que a anelasse e que a quisesse ou até mesmo que a procurasse.

Os dias sucediam-se, pois, repletos de paz e de tranquilidade. O povo pradense balsonava-se de ocupar o 1º lugar no top da euritmia e da ataraxia contemplativa. As manhãs consolidavam-se perenes de irradiações solares e erguiam-se acolhedoras e tranquilizantes, geradoras de orgasmos emocionais, transmitindo à serra um potencial de vida, de doçura e simpatia contagiante, nunca antes conseguida. Quando o dia, impelido pela beleza solar, se extravasava na sua delirante bonança, os arbustos cresciam, as árvores davam mais flores e mais frutos, as aves construíam ninhos de raios de luz e de esperança, o povo refugiava-se nas sombras do destino, o anão pura e simplesmente contemplava o sol ou as imagens que dele rodeavam os mistérios do reino.

A vida, na serra, era agora a certeza institucionalizada. Era possível sonhar-se com a perene transcendência de se poder sonhar mesmo não sonhando. O teorema hélénico dos filósofos socráticos fora traduzido para a neo-cultura serrana: "a verdade é que estamos sempre a sonhar, pois quando estamos a sonhar, estamos de facto a sonhar e quando estámos a não-sonhar, também estamos a sonhar que não estamos a sonhar". Por isso, toda a serra sonhava.

Porém, inesperadamente, um dia, sem que ninguém se apercebesse ou desejasse, chegou, o primeiro e grande Inverno. De imediato os dias escureceram totalmente, as flores fecharam-se, as folhas caíram, as árvores murcharam, os animais, em aulidos de dor, refugiaram-se nos seus esconderijos. As encostas serranas cobriram-se com um manto acinzentado de neve. O anão tremeu de frio, como nunca tinha tremido até então e escondeu-se, fechou-se, enclausurou-se e chorou amargamente. É que não havia nem leis, nem decretos que imperassem sobre as leis da natureza e transformassem aqueles frios e terríveis dias de inverno, fazendo regressar à serra a ternura, o calor e a fragrância solares.

A vida na serra paralisou totalmente. O frio e a neve destruíram tudo e todos. Apenas a perene certeza do retorno sazonal e ansiado da longínqua primavera, justificava a angustiante mas ousada volúpia de viver.

O anão tremeu de frio dias a fio, semanas inteiras, meses consecutivos. Do sol, apenas a ténue esperança de regressar o mais cedo possível, pondo termo a tão angustiante e tétrica lucubração.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:06

A LENDA DA ILHA DO MONCHIQUE

Quarta-feira, 17.12.14

Hoje o Monchique é um enorme ilhéu, situado a Oeste da ilha das Flores da qual dista cerca de cinco milhas. Situado precisamente em frente à freguesia da Fajã Grande, da qual é uma espécie de ex-libris, aquele ilhéu açoriano constitui, verdadeiramente, o ponto mais ocidental da Europa e, durante séculos, serviu como ponto de referência para acertar as rotas e verificar os instrumentos de navegação das inúmeras embarcações que navegavam entre a América e a Europa.

O ilhéu é um enorme rochedo de sólido basalto, constituindo os restos de um cone litoral desmantelado pela erosão marinha. Eleva-se a partir de uma plataforma sita a 40-50 m de profundidade, constituída por escoadas lávicas de morfologia irregular, o que confere aos fundos circundantes um micro relevo acentuado. São numerosas as cavidades submarinas nas encostas deste ilhéu. A região mais profunda da formação é recoberta por depósitos de blocos, calhaus rolados areias. Nas zonas próximas à linha de costa do ilhéu as escoadas lávicas apresentam grandes fraturas, originando paredes verticais. A baixa profundidade existem covas de gigante de grandes dimensões. O ilhéu está no centro de uma região de grande diversidade biológica, com cerca de uma centena de espécies identificadas. A flora litoral é dominada por uma alga castanha, junto das quais existem cracas. Nas águas circundantes são abundantes, entre outros, os peixes-rei.

Mas o Monchique nem sempre foi um simples ilhéu. Segundo uma lenda muito antiga, acredita-se que em tempos muito recuados, o Monchique terá sido uma bela e grande ilha, com uma área igual ou superior à sua congénere de São Miguel e um com formato, no que à orla marítima diz respeito, em parte semelhante à ilha do Pico, com a chamada “ponta da ilha” voltada a oeste. Isto significa que o que a parte mais oval da ilha, assaz mais volumosa do que a da ilha do Pico mas também onde se situava um cone vulcânico de que o Monchique é o último resíduo, se situava a lesta e, por conseguinte, voltada para as Flores que, assim, disfrutaria de uma vista desta ilha muito semelhante à que do Pico se visiona do Faial. Era esta parte daquela ilha mistério, voltado a este, que delineava uma espécie de canal muito estreito, que, separado das Flores, na direção norte/sul, permanecia, frequentemente agitado, devido à força das correntes marítimas que por ali passavam e dos ventos fortíssimos que se faziam sentir, chamado, por isso mesmo, de “Rio Mau”. Por sua vez a sul, e a unir os extremos do bojo com a aguçada ponta situava-se uma descomunal baía ocupando uma área de aproximadamente metade da superfície da ilha.

Contam outras lendas que os piratas europeus ficavam hipnotizados por essa ilha do Atlântico norte, sobretudo pelo seu tamanho, altitude e beleza, muito descomunal relativamente às vizinhas ilhas do Corvo e Flores, com que formavam uma espécie de segundo arquipélago. Tratava-se, segundo relatos de alguns documentos escritos deixados por aqueles piratas, de uma ilha de rara beleza, que encantava quem por ela passa e se aventurava a penetrar nela e a descobrir as inúmeras belezas, vistas maravilhosas, árvores frondosas e as diversas praias. Em meio do Atlântico, protegidas pelo sol e pelo oceano, abençoada pelos deuses, cheia de montes,

Acredita-se que muito antes do povoamento e colonização dos Açores, conforme consta de alguns portulanos muito antigos, assim como as Flores e o Corvo e em conjunto com estas, a ilha tinha o nome de Insulae Corvis Marinis, nome dado pelos navegadores que ao largo passavam e viam as ilhas cobertas de vultos que pareciam corvos negros. Já por esse tempo, no entanto, a ilha do Monchique parecia destacar-se do conjunto das três. Como estava mais próxima das Flores do que o Corvo, terá sido designada por “mui tcenca” ou seja, muito próxima, o que, mais tarde terá evoluído para Monchique. A ilha possuía uma importância incomum graças a sua posição geográfica estratégica e de proteção à navegação que ancorava na sua enorme baía não só para se abrigar de ventos e tempestades mas também para se abastecer de água e frescos.

Muitas lendas foram criadas à volta desta ilha que ainda hoje se continua a vislumbrar mas apenas nas manhãs de São João e se estas nascerem cobertas de uma densa e inebriante bruma.

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publicado por picodavigia2 às 10:07

VIRGEM

Quinta-feira, 20.11.14

Imaculadamente virgem, Aurora saiu de casa dos pais, com destino à igreja. No altar, esperava-a o padre Silvestre, o Chico do Ferreiro e uma enorme angústia.

Chegara a hora de se aviar a piquena. Era a mais velha e a casa do Rebimbas rebentava pelas costuras. Filhos e filhas, a roçar a dúzia, atarracavam-se em disputas e desejos incontidos, atropelavam-se nos dias invernosas e, à noite, sobretudo na hora de lavar os pés, ameaçavam-se reciprocamente, em murmúrios desgovernados e hostis. Um sufoco!

Primogénita, agora com vinte e dois, Aurora era a candidata natural ao primeiro desbasto e, desde há muito, que o Chico do Ferreiro lhe catrapiscava o olho. Ela nada. Aquela pasmaceira, indiferente e fria, habituada ao trabalho, educada entre rezas e jaculatórias, alheia aos mais simples prazeres da vida. Virgem de corpo e ingénua de alma entendia que casar era um destino normal e comum, mas sem significado e importância. Era como ir lavar um cesto de roupa à Ribeira. Casar era, apenas, partilhar a casa com um homem, cozinhar, lavar, arrumar, ter filhos e ajudar nos campos. Pior. Casar era um martírio, um sacrifício, uma ignomínia a roçar a indignidade.

Simples a cerimónia, pobre a boda. Os tempos eram de miséria e a vida cerceada por limitações. E à noitinha, depois de desertarem os convidados, lá partiu Aurora, com o Chico, a caminho da Via d’Água, onde lhe haviam montado um pequeno, pobre e humilde casebre.

Aurora acendeu o lume, aqueceu água, lavaram-se à vez, na cozinha, numa selha de madeira, e deitaram-se. O Chico, ainda tentou uma, duas e três vezes, procurar-lhe o corpo, acariciando-lhe as mãos e os braços nus. De seguida, galvanizado pela suavidade daquela pele, acicatado pela doçura daquele corpo, incendiado por desejos lascivos, tentou afagar-lhe os seios. Aurora, de imediato, se esquivou, apavorada, expelindo uma inequívoca rejeição. Nem por sombras havia de se deixar ser tocada por um homem. O Chico insistiu. Mas as respostas vinham sempre tão abruptas, tão inveteradas, transformando-se em recusas radicais. E a noite a transformar-se numa aflição para ela e um agastamento para ele. Com o intuito de lhe afastar as tentações, Aurora pegou no terço que a mãe lhe dera como prenda de casamento e começou a dedilhá-lo com acentuado fervor. O Chico, embora convulsivo e revoltado, aquietou-se. Não queria molestá-la, nem muito menos fazê-la sofrer, embora sonhasse, desde há muito, com aquela noite, terna, maviosa, envolvente e sublime, durante a qual se entregaria, total e plenamente, à mulher que escolhera por companheira. Durante o namoro, conciso e intervalado, nunca lhe arrancara sequer um abraço, nem, muito menos, um beijo. Herdara as esquisitices da mãe, sempre a ameaçar, sempre a meter medo com tolices que haviam provocado aquela cegueira com que ela, mesmo agora, depois de casada, o afastava de carinhos e enlevos. Os fantasmas e as palermices que lhe havia arrolhado na cabeça é que a impediam de se entregar na sublimidade e na doçura daquela noite. Se quisesse podia força-la, obrigá-la... Talvez ela, ao sentir-se forçada, cedesse e acabasse por descobrir o prazer da entrega e da paixão e, assim, apagasse as cicatrizes dos medos, das interdições, das ameaças, dos castigos, do inferno. Voltou-se num impulso instintivo, quase animalesco. Ela, acicatada pelo sono, já abdicara do terço e deslizava, agora, sobre o travesseiro, cuidando que ele se aquietara do seu ousado atrevimento. Mas não. Ele, apenas, por momentos, descera ao abismo do silêncio escuro. Mantinha-se vigilante, resistente, disposto a lançar-se numa investida, que protagonizasse todo o seu vigor. Era tão grande a ânsia de desfazer aquele afastamento, anular aquela recusa, ultrapassar aquela oposição. A luz de petróleo há muito que se apagara e o quarto permanecia numa escuridão mórbida e silenciosa. O Chico encostou, parcialmente, o seu corpo ao dela que permanecia apática, indiferente, despegada de desejos e prazeres. Fortes pulsões pediam-lhe uma rapidez de movimentos que ela, antecipadamente, não percebesse. Ardendo em desejos, o Chico esvoaçava aspirações. Uma instintiva pujança diluiu-lhe o corpo, consubstanciando-se numa posse rápida e eficiente, numa comunhão não partilhada pela amante gélida, fria, estática, incapaz de identificar uma nesga que fosse do píncaro do prazer. Num ápice o Chico explodiu…

Aurora levantou-se, confusa, estonteante e indignada. Acabava de pecar, gravemente. Por isso, nenhuma razão tinha para continuar ali, nem fora para isso que viera. Não havia de colocar-se, todos os dias, ao lado daquele homem, com lágrimas, dor, sofrimento e remorsos. Nunca mais havia de consentir que voltassem a pecar.

O Chico, agastado de sublimidade, de um cansaço doce e extasiante, aquietara-se da agitação subsequente ao enlevo, adormecendo. Aurora levantou-se, juntou as suas parcas roupas e, enrolando-as num xaile, fez uma trouxa.

Madrugada, ainda noite escura, a mãe, após toda uma noite alvoraçada, ouviu um leve arranhar de mãos na porta da cozinha. Veio à janela e, de fora, ouviu uma voz trémula e assustada:

- Abra, mãe. Sou eu, a Aurora.

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publicado por picodavigia2 às 09:00

CONDENAÇÕES

Sexta-feira, 14.11.14

Era uma cozinha velha, esconsa e, terrivelmente, escura. No centro havia uma mesa grande com alguns bancos ao redor. Sobre a mesa havia pratos com os rebordos partidos, pão de milho e um bocado de queijo. Pendente numa trave, uma pequena candeia apagada, a abarrotar de gordura nos bordos. No lar panelas velhas e tisnadas, achas de lenha e garranchos à espera de lume. No chão um caixote a servir de parque a um bebé, o balde do porco e um gato a ronronar. A cozinha não continha mais nenhuma coisa ou objeto. Havia uma pessoa, uma menina jovem e frágil. Empunhando uma vassoura, varria e cantava:

“No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo: ”Viva! Viva!” Está dizendo: ”Viva! Viva!”

A quem o queira apanhar, a quem o queira apanhar.

No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo: ”Morra! Morra!” Está dizendo: ”Morra! Morra!”

Morra quem não o souber apanhar…

Sem que ela o esperasse interrompe-a o pai. Entrando de rompante, interroga:

- Amélia, viste o Álvaro? Sabes para onde está?

- Então meu pai não sabe?! É a mesma coisa todos os dias… Vai levar as vacas do primo Luís ao Outeiro Grande e fica por lá a manhã toda… Meu pai é que fez essas combinações...

- Quais combinações, qual carapuça! Não sabes a nossa vida, filha? Como é que eu posso pagar ao Luís para cortar o cabelo a teus irmãos e a mim? Sabes muito bem que o dinheiro que ia gastar por mês para cortar o cabelo a todos dá p’ro sabão, p’ro petróleo e, de vez em quando, comprar um bocadinho de açúcar. E nem fui eu que pedi ao primo Luís… Foi ele que me fez a proposta: se um dos pequenos lhe fosse levar as vacas todos os dias, ele cortava-nos o cabelo de graça e ainda nos soldava as latas do leite quando rompessem. Não achas um bom negócio? É claro que não ia deixar ir o Justino ou o Alípio, que me ajudam muito nas terras e me iam fazer muita falta. Além disso, o Justino tem que ir para a escola… Só podia ser o Álvaro. Só que aquele destróia leva horas para lá ir e vir… E eu aqui feito parvo à espera do sarigaito! E eu bem que precisava dele…

A miúda, sem levantar os olhos do chão e continuando a varrer, contrariava:

 - Meu pai é que tem a culpa toda. Deixa-o fazer tudo o que ele quer e não lhe diz nada. Eu bem precisava dele para me acarretar água, deitar comida às galinhas e tomar conta do Luís, quando ele vem para cá. Só que ele demora horas! E quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar com a ovelha… E não sei se meu pai sabe, - (parando e dirigindo-se convicta pata o pai) - o pior são as queixas que têm vindo fazer dele: a Júlia Beliza já me veio dizer que qualquer dia vem falar com pai porque ele lhe deita as paredes abaixo e ainda o pior é que a Elisa Garcia já foi fazer queixa a avó porque ele entrou na quinta dela para apanhar maçãs. E olhe que já o vi chegar a casa com maçãs nas algibeiras das calças e nas mangas da froca… E o atrevido não me diz onde as apanhou. Eu bem aperto com ele e o belisco… Mas ele… Nada.

O pai ouviu-a, atentamente, calando-se por alguns segundos. Por fim, sentando-se à mesa, concluiu:

- Também há pessoas que se queixam por tudo e por nada… Tenho que o repreender, mas não vai ser hoje. Preciso é que ele vá comigo a Ponta Delgada, esta tarde.

- O quê!?O A Ponta Delgada?! - E arrumando a vassoura, num canto da cozinha, prosseguiu - Meu pai não está bom do juízo! Vai para Ponta Delgada a estas horas? Com o Álvaro?

Entram o Justino e o Alípio, irmãos mais velhos. Vêm cansados, trazem foices aos ombros. O Alípio foi o primeiro a anunciar, em tom triunfante:

- Pai, a Cabaceira ficou pronta, os feitos estão todos cortados.

- E também ceifaram a cana roca da belga do lado do Caminho Velho como vos mandei?

Foi a vez do Justino

- Também ficou toda cortada. Ficou tudo pronto como pai mandou. E ainda cortámos umas faeiras que estavam lá muito bastas, por entre os inhames… p’ra lenha.

- E separaram a cana roca dos feitos? É que o outro dia, na Cancelinha, vocês misturaram tudo e depois foi o cabo dos trabalhos… Não viram o vosso irmão?

O Justino muito admirado:

- Ele ainda não chegou do Outeiro Grande, de levar as vacas do Luís?

- Claro que não chegou. – Esclareceu o Alípio em ar condenatório e de acusação, enquanto tirava um pedaço de queijo de um prato. - Estás a vê-lo? Ele vai e vem é a brincar. Agora tem a mania de levar uma aguilhada.

A irmã, batendo-lhe na mão, ordenava com desusada autoridade:

– Está quieto! Tens mais pressa do que os outros?

– Não mandas em mim! - O José Coutinho contou-me que o viu o outro dia: quando descia o Covão… O palerma vinha a fazer de conta que vem a tocar a Moirata e o Damasco, encangados, puxando um carro de incensos. Depois, de vez em quando parava e punha-se de cócoras, a fazer de conta que estava apertar ou alargar, os parafusos dos queicões. Parece um toleirão!

E o Justino, logo:

- Não parece, é. É mesmo tolo! Precisava era duns toitições  bem dados. Quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar: é com a ovelha, é com vacas de madeira, é de baixo do estaleiro a fazer que está a lavrar…. Passa a vida a brincar e nós…

- E está sempre a fugir para ir brincar com os amigos à pesca da baleia, ao pai-velho e sei lá o quê… - Acrescentou a irmã. - O que sei é que nunca para em casa…

O pai bem tentava apaziguar tanta fúria e alienar-se de tantas condenaçõe

- Ele ainda é uma criança. É muito mais novo do que vocês.

- É muito novo mas já anda a fazer das suas… O Paulino já me disse que ele lhe abriu o portal da relva da Ladeira, para passar com a ovelha e depois pôs-se a andar e não o tapou.

- E o Delfim diz que ele lhe atira pedras às ovelhas. E elas têm crias…

- E demora uma manhã para ir levar as vacas e uma tarde para as ir buscar. E eu é que tenho que ir buscar a água à fonte, acarretar lenha e deitar comida às galinhas… Fazer tudo…

- Ele podia bem pegar numa foice e ir connosco… Podia ir ajudar-nos a ceifar feitos. Ou pelo menos ir atrás de nós fazendo as mancheias. A gente a ceifar e ele a fazer as mancheias era muito mais rápido.

- E podia andar mais depressa… Meia hora dá para ir e vir ao Outeiro Grande…

- E o primo Luís diz que ele sobe o Covão agarrado ao rabo das vacas e a bater-lhes desalmadamente.

- Elas andam que se fartam. Não há vacas na Fajã que subam o Covão tão depressa como as do primo Luís e foi ele que as pôs assim. E a Trigueira deu leite há bem pouco tempo.

E foi a Amélia a colmatar:

- Pai tem que por cobro nisto!... – Depois, dirigindo-se ao pai e aos irmãos - Venham para a mesa que o pão e o queijo já estão partidos. Não vale a pena esperar por ele. Quem não está não come.

           

 

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publicado por picodavigia2 às 22:12

AMIGOS

Quinta-feira, 06.11.14

O pai do Júlio, António Fernandes, era o maior amigo do senhor Resende, um lisboeta que, evadido da capital, há muito se fixara na ilha das Flores, com residência permanente, primeiro em Santa Cruz e agora em Ponta Delgada, na companhia duma antiga empregada, Ana Madruga, que, depois da morte da consorte, adotara como companheira. Muito doente dos rins, acicatado por dores fortíssimas, fora operar-se a Ponta Delgada regressando às Flores, permanecendo, no entanto, em prolongadaem convalescença.

Logo que António Fernandes soube que o amigo voltara de São Miguel, no Carvalho de Março, apressou-se a visitá-lo, atravessando a ilha de lés-a-lés, levando consigo um dos filhos mais novos, o Júlio que os mais andavam na safra da ceifa dos fetos.

António Fernandes e o filho foram recebidos à porta, por Dona Ana, a quem cumprimentaram, já dentro de casa:

- Como está Dona Ana? Dá-se licença?

- Façam favor. Entre, entre. Como está, Senhor António? Ah! E traz um menino consigo!

Mal os ouviu, Resendes, tentando levantar-se, gritou de lá de dentro:

- Ó home essa! É preciso bater à porta e pedir licença? Esta casa é tua, António!... – De seguida abraçando o amigo - Então como estás, homem?

- Como vai essa saúde, Resendes?

- Já esteve pior, muito pior, mas ainda não está bem. Esta viagem no Carvalho custou-me muito, quase me matou. E da Fazenda Santa Cruz para aqui, como não há estradas, nem carros… Olha, tive que vir de palanca. Esta terra não progride. Nunca mais fazem estradas… Admite-se que ainda não haja uma estrada a ligar a freguesia mais importante do concelho de Santa Cruz à vila?! E, como tu sabes melhor do que eu, no concelho das Lajes ainda é pior: quatro das sete freguesias ainda não tem estrada que as ligue à via. Vocês lã na Fajã querem tratar qualquer coisa na vila e têm que ir a pé! Isto não se admite…

Depois de parar um pouco como que para tomar fôlego, retorcendo as pontas do bigode, Resendes prosseguiu

- Bem, mas ainda mal consigo andar, meu amigo. Foi uma operação muito grande! Já me arrependi de ter vindo no último Carvalho! Devia ter ficado mais algum tempo em S. Miguel – e continuando a retorcer as pontas do bigode - Só que se o fizesse teria que lá ficar mais um mês. Não se admite que o navio só venha uma vez por mês às Flores. De duas uma: ou ficava mais um mês em São Miguel, gastando uma fortuna ou vinha-me embora para as Flores, fazendo um grande sacrifício e correndo grandes riscos. Mas vá lá que correu tudo bem e estou a ficar melhor. E voltando-se para o Júlio que permanecia mudo, sentado num canto, encantado com a imponente figura daquele ancião – Então trouxeste um dos pequenos!? E este qual é? É o mais velho? Como estás meu rapaz? Dá cá um abraço.

O pai do Júlio apressou-se a esclarecer:

- Este é o mais novo. – E voltando para o filho – Cumprimenta o Senhor Resendes, um grande amigo de teu pai. – E lá em Ponta Delgada, como foi?

- Ó homem tu também já foste, à faca. Sabes como é… Eles são uns carniceiros! Nos primeiros dias, é esperar, esperar, em casa das Senhoras Arrudas, na rua do Amorim, que é o hotel das Flores e do Corvo. Aquilo está sempre cheio de gente das Flores e do Corvo, uns à espera da faca outros de embarcar para a América. Depois lá consegui a consulta no Dr Horta e Câmara. Felizmente ele marcou logo a operação e internou-me imediatamente no hospital. Olha, ali a Ana é que gostou de estar em casa das Arrudas Ficou a saber a vida de toda a gente e os mexericos de toda a cidade.

- Credo, que exagero. – Retorquiu Dona Ana, envergonhada. - Mas olha que eu nunca perguntei nada a ninguém. Só ouvia o que me diziam. E olhem que não era pouco! Aquilo é que é pouca vergonha, naquela cidade. São lugares muito grandes. Se aqui já é o que se vê, o que não seria lá. Este mundo está perdido! Até já dizem que é o terceiro segredo de Fátima que vai ser revelado.

- Ó António, fala-me de ti, homem. Que grande desgraça te aconteceu! E eu que não pude ir à Fajã para te dar um abraço. Naquela altura já estava muito doente… Mas conta-me, como foi que ela morreu?

- Foi uma desgraça. Foi uma grande desgraça!

E dona Ana a meter-se na conversa:

- E ela ainda era muito nova, não era Sr António? E é verdade que estava à espera doutro filho? Coitadinha. Deus dê paz à sua alma.

- Ó mulher, ouve e cala-te.

- Tinha 41 e estava à espera de um filho… estava… Sabes como ela era Resendes. Não parava, nem em casa, nem nas terras. Sempre a trabalhar, sempre a arrumar, sempre a mexer. Ajudava-me muito! E agora que a Amélia, a mais velha, já faz muita coisa em casa ela ajudava-me muito nas terras. Era uma mulher de trabalho! Foi tratar dumas galinhas e um sanababicha dum cricri deu-lhe um bicada numa perna, por azar, numa variz. Depois aquilo nunca mais curava… Fui procurar o senhor doutor… Corri a ilha toda atrás dele… Lá mandou que ela fizesse análises… Ela tinha a albumina muito alta, e ele pediu para a internar no hospital da Vila. Levei-a imediatamente, com muito sacrifício, porque ela já não conseguia andar pelo seu pé. Tivemos que subir a rocha dos Bredos com ela às costas, de palanca. Foi terrível! E, para desgraça minha, já não voltou a sair do hospital….

- Esse sanabagana desse doutor é que é o responsável por muitas mortes nesta ilha. Passa a vida a caçar e em jantaradas. Procura-se por toda a ilha e nunca se encontra. E quando se encontra, só sabe receitar leite de cabra. Mas a culpa não é só dele. É deste governo republicano, dos republicanos que desde o regicídio governam este país. Isto não se admite. O governo não olha por nós. Uma ilha com mais de dez mil pessoas tem só um médico e um hospital com meia dúzia de camas! Um hospital que é uma vergonha! A minha sorte foi nem lá entrar. Esta ilha está totalmente abandonada e desprotegida, homem. Isto é uma vergonha!... As pessoas morrem aqui com uma simples dor de cabeça, porque não há um comprimido para lhes dar. E ninguém faz nada para mudar isto! Eu bem falo e protesto, mas ninguém me ouve. Acusam-me de monárquico, como se fosse um crime desejar outra vez um rei para Portugal. E agora António, como é que vais organizar a tua vida, homem?

- Isso é que me preocupa e muito. Mas tenho que me amanhar sozinho. Os dois mais velhos já me ajudam muito, embora um deles ainda ande na escola, na 3ª classe. Mas eu não o tiro da escola por nada deste mundo! Eles a bem dizer já fazem tudo, menos lavrar com o arado de ferro. E a Amélia, a mais velha, foi muito habituada pela mãe na vida da casa. Já faz tudo sozinha. Coze pão no forno, coze bolo, acarta água, arruma a casa, faz a comida e vai lavar à ribeira. Olha até já remenda a roupa. Este é o meu companheiro! Acompanha-me sempre para todos os lados. Mas custa-me muito vê-los penar assim… e depois sempre a lembrarem-se da mãe… Custa muito, custa! Tudo a faz lembrar. Uma mãe faz muita falta numa casa…

- Se faz Antoninho, se faz. – Repetia dona Ana, limpando uma lágrima solitária com a ponta do avental. Olhe perdi a minha já era uma rapariga e a falta que ela me fez… Só Deus e eu o sabemos. Mas o Antoninho é muito novo. Não vai faltar mulher que o queira! Olhe o José da Grota, aqui de Ponta Delgada… Há pouco mais de um mês que a mulher lhe morreu e já anda com a mais velha da Ana do Outeiro. Dizem que nas terras aí para cima é uma vergonha! Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Para sempre seja louvado.

- Ana, tem tento na língua, não comeces…

- Eu não ponho famas nem aleives a ninguém. Só digo o que oiço dizer.

- Dona Ana, com seis filhos para criar, com as terras para trabalhar e o gado para tratar… Não acha que tenho sarna bastante para me coçar?

 

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publicado por picodavigia2 às 01:31

A HORTA DO SENHOR COSTA II

Sexta-feira, 31.10.14

O Senhor Costa tinha uma horta. Tinha uma horta o Senhor Costa. Horta pequena, simples, modesta, singela mas muito fértil e produtiva, porque muito bem trabalhada, extremamente cuidada e ainda melhor zelada pelo Senhor Costa, que ali passava grande parte dos seus dias, a sachar, a mondar, a cavar, a podar e a semear

Na horta do Senhor Costa havia de tudo, mas apenas tudo o que, normalmente, há, em qualquer horta. No entanto, o que mais produzia a horta do Senhor Costa eram frutos. Frutos de várias qualidades, de tamanhos diversos, de formas e feitios diferentes e de paladares diversificados, que enchiam a sua casa de perfumes e sabores estonteantes. Frutos coloridos, maduros, apetitosos com os quais o Senhor Costa se regozijava e que faziam crescer água na boca a quantos passavam, caminhavam, rodopiavam e cirandavam junto à horta do Senhor Costa, sem poder lá entrar ou sequer colher um único fruto que fosse. É que o Senhor Costa, para a proteger dos assaltantes, construíra um alto e robusto muro ao redor da sua horta. Mas para além dos frutos, a horta do Senhor Costa também produzia legumes, hortaliças e muitos outros produtos de excelente qualidade, com os quais o Senhor Costa se alimentava a si e à sua família.

O Senhor Costa vivia feliz, com a sua horta. Passava lá os seus dias, não apenas a cavar, a sachar, a arrancar ervas e a juntar pedregulhos mas sobretudo a cuidar dos legumes, das hortaliças e das árvores de fruto, a podar umas, a adubar outras, a chegar-lhes terra e estrume e, sobretudo a defendê-la da fúria destruidora de vendavais e intempéries. Depois, nos dias de bonança ou quando não era necessário cavar, limpar ou mondar, o Senhor Costa sentava-se à sombra das árvores da sua horta, a saborear a frescura reconfortante das suas folhas, a deliciar-se com o perfume adocicado das suas flores, a deleitar-se com o colorido aveludado dos seus frutos, a saborear a sua doçura ou simplesmente a ouvir o sibilar melódico do vento nos seus ramos.

A horta do Senhor Costa era uma verdadeira maravilha! Um éden, um paraíso!

Mas um dia, o dia mais triste da sua vida, o Senhor Costa, como tantos senhores Costas e muitos senhores com outros nomes, impelido pela necessidade de dar uma vida melhor aos seus filhos, foi obrigado a partir, para longe, isto é, a emigrar, para a América. E a partir desse dia, a horta deixou de pertencer ao Senhor Costa. Vieram senhores Pereiras, senhores Silvas e senhores Machados e vieram senhores com outros nomes, mas nenhum deles cuidou da horta como cuidava o Senhor Costa. E com o passar do tempo e dos anos, na horta dos senhores que não eram Costa, as árvores foram murchando, as folhas amarelecendo, as flores caindo, os frutos apodrecendo, os legumes definhando e as hortaliças desaparecendo. A horta nunca mais voltou a ser como era nos tempos em que o Senhor Costa a trabalhava e dela cuidava.

Passaram-se muitos anos e, finalmente veio um Senhor que também se chamava Costa, mas que não era nem parente nem amigo daquele Senhor Costa que no início desta história era o dono da horta, e tão mal cuidou e tanto se desinteressou e tão pouco protegeu a horta que outrora fora do outro Senhor Costa, que ela embraveceu, encheu-se de ervas daninhas, de mondas, de silvados, de cana roca, de faias e de incensos e desfigurou-se por completo e de tal maneira que, passados muitos anos, quando o Senhor Costa regressou da sua prolongada estadia na América, à sua terra natal, podre de rico e cheio de vaidade, já nem sequer reconheceu o local onde outrora se situava a sua horta, a tal horta que tinha sido sua, que cuidara com desvelo e dedicação, que estava sempre a abarrotar de hortaliças, legumes e de árvores carregadinhas de frutos coloridos, maduros, apetitosos com os quais se regozijava, naqueles tempos em que ainda nem sonhava com a América.ff

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publicado por picodavigia2 às 09:18

A CASA DE TODOS OS SILÊNCIOS

Sexta-feira, 24.10.14

Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, encastoada a meio da colina, para mim, era como que o centro do mundo. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas e envergonhadas, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu depositava todas as minhas, aparentemente, idolatradas fantasias, os meus inocentes anseios de um mundo diferente, embora indefinido.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada a meio da colina, abriam-se todos os dias, destemidas e acolhedoras, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes, rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.

A casa, branca e altiva, plantada a meio da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas, o pôr-do-sol e o rumo dos navios no horizonte, estavam sempre abertas. Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias inconfundíveis, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.

A casa branca e altiva, encastoado a meio da colina era da minha avó e estava sempre repleta de tios e tias, de primos e primas e de muita outra gente. À noite, com a claridade duma luz trémula mas acolhedora, enchia-se de cardas, de fusos, de novelos de lã e até de rezas e orações, em serões fascinantes, acompanhados de estórias maravilhosas. De manhã ouvia-se o crepitar do lume na grelha, o despejar da água na chaleira e o roncar roufenho do moinho de moer o café, a chicória e a cevada. De fora chegavam o ladrar dos cães, o cantar dos galos, o mugir das vacas na procura das crias e até o sonido acutilante dos grilos em cio.

E a casa como que crescia e se empinava contra os ventos do norte e as tempestades de oeste. Acariciada pelas brisas matinais, purificada pelo sabor da maresia, a casa como que navegava e florescia embalada com o deslumbrante brilho das estrelas, adocicada com o permanente cantarolar dos tentilhões e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.

E depois?… Depois vieram anos desertos, tempos de desmoronamento, momentos de destruição, fugas para a América e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada a meio da colina. A claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fossem os destroços de um navio naufragado.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada a meio da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.

E agora quando a revejo, quiçá pela última vez, todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e, desastradamente, desertas, respiram o silêncio. Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-na, definitivamente, transformando os encontros e as vozes de outrora em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado. O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho. Até o velho “Asónia”, trazido da América por meu bisavô, arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite, está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tiquetaque contínuo, aflitivo mas gracioso.

O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.

Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.

Enfim, as vozes, os gritos, as rezas e até os ecos das discussões calaram-se para sempre porque a casa plantada a meio da colina, com vista sobre o mar, tornou-se deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se num enigmático e terrível ermitério.

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publicado por picodavigia2 às 09:53

O NÁUFRAGO II

Sexta-feira, 17.10.14

O Semedo chegou à porta de casa e levantou a taramela num sufoco. Na cozinha, a mulher e a filha seroavam entre cardas, fusos e resmas de lã, admiradas pelo tardio da chegada A Deolinda foi a primeira a insinuar com suave ironia:

- Só agora?! A estas horas, meu pai há muito que havia de estar na cama.

E como o Semedo embatucasse por completo, a mulher, sem levantar olho das cardas:

- Boa coisa não andaste a urdir! – E, levantando o rosto, sem esmorecer a cardação, prosseguiu – Credo, home! Que cara é essa?! Parece que viste o Eiramá!...

O Semedo, a crescer numa tremulação que acicatava, cada vez mais, o pasmo das duas mulheres, lá foi desembuchando: Fora ali, para os lados do Rolinho das Ovelhas… Ele, o Bosseca, o Zé de Mateus e o Caboz, na mira dos caranguejos, do Canto do Areal ao Rolinho. Eis senão quando avistaram uma embarcação a aproximar-se de terra, junto ao Rolinho. Eles a correr que até parecia que deitavam os bofes pela boca fora… mas qual o quê?… Quando lá chegaram, a maldita tinha zarpado. Apenas uma pequena chata, abandonada, a balancear no vaivém da maré. Ao voltarem, deparam-se com gemidos angustiantes. Um vulto de homem, sabia-se lá de onde, que nem americano falava, enfiado na aba de uma pedra, a chorar e a gemer… Pelos vistos tinha sido ali abandonado. Trouxeram-no e, ao chegar ali, bonito serviço! Os outros a pisgarem-se, cada um para seu lado e ele a ficar só, com o homem… fora da porta… Haviam de lhe dar guarida, lá em casa.

A mulher e a filha nem queriam acreditar!... Meter em casa um homem, sabia-se lá de onde e de que religião… Àquelas horas da noite... Nem pensar!

Mas no dia seguinte toda a freguesia louvava o Semedo. Fosse da Cochinchina, fosse do Japão, fosse de onde fosse, aquilo era um ser humano. Um gesto muito bonito, o do Semedo.

Mas os rumores não tardaram. Aquele homem devia ser um ateu, um criminoso, um facínora, semelhante ao que, há muitos anos, também ali desembarcara e, de tão mau que fora, após a morte, por castigo, fora atirado para o Poço do Bacalhau. Que o tivesse deixado, o Semedo, onde o encontrou. Havia de morrer à fome, que é o destino dos criminosos e dos sacripantas! E depois… com uma filha solteira lá em casa… Hum! Não havia de sair coisa boa, dali.

Porém, em casa do Semedo, todos se afeiçoaram, depressa, ao suposto náufrago. O homem era delicado, correto, submisso e de trato afável. Apenas um senão: ninguém o entendia e ele não percebia patavina do que lhe diziam e tinha a estranha mania de, todos os dias, tracejar um risco no muro da cerca do porco. Sabia-se apenas que se chamava Dimitri e que, muito provavelmente, devia ser russo e não acreditava em Deus.

Os dias passaram e o Semedo via em Dimitri, o filho que nunca tivera e Deolinda apaixonara-se, como nunca. Pior. Dimitri, agora já a balbuciar as primeiras palavras em linguagem que se entendesse, também se declarava em juras de amor, enquanto pela freguesia, cada vez mais, se comentava, à socapa, que ali havia marosca.

O Semedo, apavorado, foi bater à porta do Vigário. Havia que casá-los, quanto antes. Mas para o prebendado, o casamento não servia para encobrir poucas vergonhas e aquele homem era um ateu, vindo de um pais onde a religião católica era odiada. Além disso, não tinha papéis que demonstrassem o seu batismo. Que tirasse o cavalinho da chuva o amigo Semedo que casamento é que não havia de haver.

E não houve, o que não foi obstáculo a que Dimitri e Deolinda se envolvessem, às escondidas dos progenitores, em desvelos e fascinações.

E quando Deolinda não mais pode ocultar a gravidez, o falatório transformou-se em aleivosias insultuosas. A mãe definhou de vergonha e o pai pô-los porta fora, injuriando-os, ameaçando-os, deserdando-os. Poucos dias demorou a ira do Semedo e a debilidade da sua consorte. Foram os primeiros a acudir aos vagidos de um pequerrucho que, numa tarde de Setembro, lhes quebrava o veneno do desgosto e lhes despertava o bálsamo da ternura.

E o pequeno Gervásio crescia entre o enlevo dos pais e a ternura dos avós. O vigário não lhe pode negar o batismo. A alegria, o encanto e a felicidade reinavam em casa do Semedo e na freguesia já ninguém se lembrava que o pai do pequeno Gervásio era, afinal, um náufrago abandonado na ilha, talvez um criminoso, com quem a Deolinda do Semedo vivia amancebada.

Numa noite, porém, o inesperado aconteceu. Dimitri saiu de casa e nunca mais regressou. De manhã, o Cardoso, afirmava a pés juntos, que um bergantim se havia aproximado da enseada do Rolinho das Ovelhas e nele, tinha visto, embarcar um homem. A partir do dia seguinte, todas as tardes, depois do pôr-do-sol, a Deolinda do Semedo, lavada em lágrimas, sentava-se sobre um rochedo, à beira mar, com o filho ao colo, apontando-lhe um horizonte indefinido

 

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publicado por picodavigia2 às 00:04

O GIMBRAS

Sábado, 27.09.14

(TEXTO ADAPTADO)

 

O Gimbras era um menino que vivia com o seu irmão Juvenal e não gostava nada de ir à escola. Sempre que conseguia fugir da escola escondia-se do irmão para que este não o castigasse.

Certo dia foi esconder-se em casa da Dulce Quando ela abriu a porta e o viu debaixo  da mesa da cozinha, perguntou admirada:

- O fazes aqui?

- Chiu! – pediu o Gimbras. – Não fale tão alto senão o Juvenal ouve-me!

- O Juvenal? Mas aqui não há nenhum Juvenal!

- Eu também não disse que era aqui que ele estava. Mas está lá fora. E se me encontrar bate-me.

- Se tu saísses daí debaixo e me explicasses isso melhor?

- E se ele me vê?

- Só se ele fosse capaz de ver através das paredes e das portas fechadas. Ele não está aqui.

Alguns segundos depois o Gimbras saiu debaixo da mesa, resmungando:

- Nunca se sabe… Ele é capaz de tudo… No outro dia deu um murro numa tábua  e partiu-a a meio.

A Dulce pode finalmente vê-lo: era um pequeno e fraquito, teria dez ou onze anos…Tinha o cabelo encaracolado, e a pele da cara era morena.

- Agora vais contar-me quem é o Juvenal, e que estás tu a fazer aqui – disse a Dulce.

- O Juvenal é o meu irmão. É com ele que vivo naquela barraca, ali. Está a ver?

- Estou a ver, estou. Estou a ver que fugiste do teu irmão…

- Quem é que aguenta? Não consigo estar na escola. Os outros rapazes andam sempre a fazer queixa de mim ao senhor professor e é sempre a mim que ele castiga. São todos uns queixinhas e depois eu é que pago as favas. E eu não faço nada!...  Mal lhes dou um encosto vão logo fazer queixa ao professor.

- E é por isso que foges, para o teu irmão não te mandar para a escola?

- É claro! Ele quer que eu vá à escola todos os dias. Para quê? Para aturar aqueles palermas? Para estar sempre a levar do professor, porque sou eu que tenho sempre culpa de tudo? Raio de vida… Foi por isso que hoje não aguentei, safei-me assim que vi o Juvenal à minha espera no largo da escola, e enfiei pela primeira porta aberta que encontrei.

 

 Adaptado de um texto de Alice Vieira, Às Dez a Porta Fecha,

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publicado por picodavigia2 às 19:20

PÔR-DO-SOL NA RIA

Domingo, 21.09.14

Era uma vez uma casa pobre, humilde, modesta e muito antiga. As paredes eram de um branco amarelado mas tão despidas de cal que quase deixavam ver os adobes de barro com que haviam sido construídas, que se assemelhavam a pequenos retângulos moldados em formas de madeira, ligados com argamassa de cal e areia e, que se sobrepunham e entrelaçavam uns nos outros, em camadas simétricas e rendilhadas que iam do chão ao telhado. Circundava-a, pela frente, uma eira, uma espécie de minúsculo terraço, onde se debulhavam, joeiravam e secavam os cereais. A eira comunicava diretamente, através dum alpendre, com o interior do pequeno cubículo. O alpendre era fechado por um telhado suspenso em grossos e toscos esteios de madeira e nele se recolhiam os cereais depois de secados na eira. O interior da casa também era muito pobre, simples, pouco iluminado e compartilhava-se por quatro divisões: uma cozinha e uma sala, vetustas e enormes a contrastarem com a tímida pequenez de dois quartos laterais ao alpendre.

Era nesta casa que morava Alice, com os pais e os irmãos

A casa ficava perto de uma ria, um enorme e quase infinito lençol de águas límpidas e cristalinas, ora calmas e tranquilas ora rebeldes e assediadas por pequenas ondas que, espicaçadas pela ventania, se iam agigantando até se perderem nas margens contra as quais aparentemente se revoltavam. Ao amanhecer, enquanto o crepúsculo se desfazia e o Sol se espreguiçava, lançando os primeiros raios, a ria como que se enchia duma alegria enigmaticamente expectante e as suas águas revestiam-se de um tom alaranjado e fulvo. Durante o dia, se o Astro-rei, mais atrevida e ousadamente, despejava os seus raios com maior força e intensidade sobre a superfície terrestre, as águas da ria matizavam-se de um azul dourado, transformando-se num enorme tapete acetinado, mas se, pelo contrário, surgiam tardes escurecidas e ensombradas, tingiam-se, então, de um pardacento disfarçado onde se desenhavam brumas densas e espessas, retratando tenuemente o colorido esverdeado das margens e das planícies circundantes e, ao cair da tarde, enlevando-se com a penumbra do anoitecer, embelezavam-se de tons de violeta acinzentados. Finalmente, à noitinha, sobretudo nas noites de Lua Cheia, o aspeto da ria assumia-se como uma espécie de gigantesco manto prateado, onde as vedetas se refletiam, salpicando-o de pontinhos dourados, de serenidade e de silêncio.

A avó da Alice havia-lhe ensinado que a ria era uma espécie de ilha ao contrário, isto é, uma grande porção de água rodeada por terra, onde morava uma infinidade de peixes e desabrochava uma vastíssima quantidade de algas. É que a ria era ladeada por uma ampla e esverdeada planície, entrecortada por inúmeras ribeiras e regatos, matizada, aqui e além, por pequenas manchas esbranquiçadas que se aglomeravam, muito aconchegadas, junto das torres sineiras das igrejas, donde, manhã cedo e à noitinha, emanava o toque simples mas solene e doce das Trindades.

Na ria, um enorme sapal, vislumbrava-se um vigor e uma beleza que se refletiam na placidez das suas águas, na imensidade das suas margens, na opulência da sua fauna e na dissemelhança da sua flora. A ria era fecunda, atraente, fértil e serena e, na sagacidade das suas orlas, sentia-se que transbordava uma esperança de tranquilidade quase transcendente e infinita. Havia qualquer coisa de imponente, sublime e harmonizado na lisura reflexiva das suas águas, no seu aspeto lagunar e na lhaneza das suas margens. A ria transportava, quer os que com ela partilhavam as agruras do seu quotidiano quer os que a visitavam esporadicamente, numa contemplação idílica, permanente e bucólica entre o céu e a terra, numa aspiração infinita de sonhos transcendentes e inatingíveis. É verdade que a ria, por um lado, se apresentava como uma espécie de sertão de água, um pantanal ou um brejo, mas por outro, manifestava-se como um recanto ubérrimo, um recinto deslumbrante, onde a paisagem aspergia grandiosidade, onde a beleza se impunha a cada momento e em cada recanto, num comunhão recíproca e única entre a água, a terra e o céu.

Era na ria que o pai da Alice procurava o sustento da família. Era na planície que circundava a ria que mãe extraía da terra o pão de cada dia. A ria e a planície como que se uniam numa simbiose perfeita e recíproca.

O pai, sobretudo nos meses entre Março e Setembro, embrenhava-se na ria, na apanha e recolha do moliço com que se haviam de fertilizar os campos que se estendiam ao longo da planície. Levantava-se alta madrugada, paramentava-se de camisa de estopa esbranquiçada, manaia crua de algodão e barrete de malha preta de lã e partia. Juntamente com os outros homens da companha, ficava na ria horas e horas a fio, arrastando na profundeza limitada das águas os ancinhos presos nos bordos do barco. Quando os homens os sentiam carregados e cheios, retiravam-nos alternadamente de um e outro bordo e colocavam o moliço recolhido no fundo do barco. Voltavam a lançar os ancinhos e o moliceiro deslizava, de novo, ao sabor vento, movido por uma enorme vela branca. Outras vezes, quando não havia vento suficiente ou o fundo da ria se pressentia baixo, empurravam-no à varada, ou puxavam-no à sirga, sobretudo quando era necessário fazê-lo deslizar por entre as passagens dos canais mais estreitos ou junto às margens das ribeiras e regatos que desaguavam na ria, ou até mesmo quando o barco era forçado a navegar contra as correntes ou contra o vento. Amarravam, então, uma das extremidades da sirga aos golfões enquanto a outra era presa e puxada por um ou dois homens que seguiam a pé pelas margens. Os ancinhos eram de novo lançados à água e voltavam a encher-se e a serem recolhidos tantas vezes quantas eram necessárias para que o nível da água se aproximasse o mais rigorosamente possível da fêmea da ré, sinal claro de que o barco estava completamente carregado. O moliço era então retirado e colocado em terra, esperando que os carros de bois, num vai e vem lento e repetitivo, o fossem distribuindo pelos campos mais longínquos e dispersos.

Raramente o mar era o destino laboral do pai da Alice. Apenas quando as tarefas moliceiras o permitiam ou quando a pesca era escassa na ria. Então atravessava as dunas em enorme correria, pisava ao de leve o areal e fazia-se ao mar alto, acompanhando os outros homens nos barcos saveiros, substituindo um ou outro pescador, para que a companha não ficasse depauperada. A Arte Xávega exigia muitos pescadores embora fosse um tipo de pesca artesanal e era um meio de garantir a subsistência da família mais facilmente, embora com maiores riscos e perigos. Ao cair da tarde regressava à praia, com o barco carregado de peixe. Era um barco de fundo chato, com uma proa muito levantada e aguçada para mais facilmente sulcar as ondas e uma ré ou popa cortada para aproveitar a vaga no encalhe. Era movido a remos, com enormes redes lançadas a grande distância para cercar os cardumes de peixe e, depois, puxadas à força de braços ou até com a ajuda de bois.

Ao redor da ria a planície, muito verdinha e alisada, onde se alternavam prados e campos que no Inverno, enquanto aguardavam as sementeiras, tinham um aspeto avermelhado e escurecido mas, na Primavera, revestiam-se com o verde dos milheirais, dos legumes e das vides e no Verão começavam a amarelecer até alourarem por completo no Outono.

Num desses campos, perto da ria, ficava a casa da Alice. Era nele que a mãe, enquanto o pai se ocupava da pesca ou da apanha do moliço, trabalhava de sol a sol porque era dele que tirava o que era necessário para o seu sustento – milho, legumes, batatas e vinho. Em Fevereiro e Março, quando os dias começavam a tornar-se maiores e mais quentes, a mãe e os irmãos mais velhos cavavam e resvalavam a terra, adubada com o moliço extraído da ria e deixavam ficar as leivas e os torrões a secarem e como que a aquecerem-se ao Sol. Depois desfaziam-nos e transformavam-nos em terra fina que alisavam, transformando o campo num enorme e fofo tapete acastanhado. De seguida voltavam a cavá-lo de lés-a-lés, abrindo pequenos sulcos onde a mãe depositava os grãos de milho. Tapavam-nos, alisavam novamente a terra e voltavam a abrir novo sulco, cobrindo sempre muito bem cada grãozinho que ali ficava durante alguns dias, muito bem escondidinho para que assim germinasse mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. Não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado e a espelhar-se nas águas da ria. Nas extremidades do campo e nos lugares mais abrigados pelos bardos das beiradas a mãe semeava o feijão, ervilhas e plantava as couves, as cebolas e os tomateiros. Em Abril e Maio, quando o milho ainda estava miudinho, sachavam-no e retiravam as ervas daninhas e os pés de milho mais bastos para que os outros crescessem à vontade. Nos dias seguintes o campo transformava-se num enorme tapete de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e as ervilhas e os feijoeiros começavam a trepar pelas estacas que eram espetadas aqui e além. Os milheiros cresciam de dia para dia, as suas folhas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como as ondas da ria, ao sabor das brisas matinais e os caules, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam o campo com um manto esbranquiçado e fofo. Algum tempo depois nos caules enrijecidos começavam a formar-se espiguinhas cabeludas que iam crescendo e alourando ao Sol do estio. Em Setembro as espigas amadureciam por completo e procedia-se à apanha. A mãe arrepelava dos caules já muito amarelados e envelhecidos as espigas maduras. Alice e os irmãos acarretavam-nas para a eira. Alguns dias depois marcava-se a desfolhada. Para ajudar vinham alguns vizinhos, os tios, a avó e os primos do Bunheiro. O pai escolhia uma noite de Lua Cheia, em que não fosse para o mar ou para a ria. Sentavam-se todos em círculo, na pequena eira, à volta do amontoado de espigas e, enquanto lhes iam arrancando o folhelho a avó contava histórias e acontecimentos de outros tempos. De vez em quando a mãe levantava-se e ia buscar uma caneca cheia de vinho muito vermelho, que todos iam saboreando à vez. Depois de vazia a mãe voltava a enchê-la tantas vezes quantas eram necessárias para que todos bebessem. De seguida voltava-se ao trabalho. De repente e com enorme alarido alguém gritava “Milho-Rei! Milho-Rei!”. A tarefa era suspensa de imediato e fazia-se uma grande festa de regozijo.

Na manhã seguinte o pai partia de novo para a ria e a mãe para os campos enquanto a Alice seguia para a escola. Era uma escola diferente da dos irmãos – a escola feminina - onde fazia ditados, resolvia problemas, estudava os rios e as serras, os reis e as batalhas, os vertebrados e invertebrados. Outras vezes a senhora professora mostrava-lhes um mapa afixado na parede onde ela observava a ria, tão azulada como era na realidade mas muito pequenina, sem barcos à vela, sem moliço e sem margens verdes. Ao lado a Murtosa, um pontinho negro, dentro do qual a Alice imaginava a sua casa. Na hora de leitura a senhora professora juntava todas as meninas à volta da secretária, por trás da qual ficavam, ladeando um crucifixo pendurado na parede, as fotografias de Carmona e Salazar, para lerem à vez e contarem histórias. Terminadas as aulas ajudava a mãe no amanho dos campos e no arranjo da casa, tomava conta do irmão mais novo e fazia as cópias e as contas que a Dona Gracinda mandava. Apenas os domingos e os poucos dias de festa em que os pais não trabalhavam eram diferentes.

A festa que Mariana mais adorava era o Natal. Todos os anos faziam, na sala, um enorme presépio com as figurinhas de barro: o Menino Jesus, Maria, José, os três Reis Magos, os anjos, os pastorinhos e muitos aldeões que circulavam à volta da gruta, por caminhos cobertos com terra e ladeados por casinhas também de barro e por campos onde pastavam as ovelhitas e a que não faltava a ria – um enorme lago feito com um pedacinho de papel prateado e a ladeá-lo leivas de musgo e areia a imitar os campos e as dunas. Mas o que Alice mais ansiava era a noite de Natal. Nessa noite, contrariamente aos outros dias, a mãe punha a mesa cheia de iguarias deliciosas que enchiam a casa de um agradável cheirinho a canela. Terminada a ceia partiam para a missa do galo, na igreja da Senhora da Natividade. O pai ficava cá fora com os homens, enquanto ela e a mãe entravam na igreja cheia de vultos negros, de tossidelas, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. Sentavam-se e esperavam em silêncio ou rezavam baixinho, até que o sacristão viesse tocar uma enorme campainha. Então os homens que aguardavam lá fora entravam para o coro e para os lugares do fundo, separados das mulheres, enchendo a igreja por completo. Toda a gente se levantava e fazia-se um enorme silêncio. O pároco saia da sacristia, vestido de branco e celebrava a missa no altar-mor, todo forrado a ouro. No fim, enquanto se entoavam os cânticos de Natal, dirigia-se para o presépio e balouçava o turíbulo fumegante diante das gigantescas figuras de Maria, José e Jesus, enchendo o templo de fumo e de cheiro a incenso. De seguida tomava o Menino nas mãos e colocando-se junto à grade que separava a capela-mor do cruzeiro, dava-o a beijar aos fiéis. Alice juntamente com as outras crianças da sua idade, incorporava-se nos primeiros lugares da longa fila que se formava à espera de vez para beijar o Menino Jesus e para depositar, na cestinha que o sacristão mantinha na mão, os vinte centavos que a mãe lhe dera na véspera.

Nos dias seguinte o pai voltava à ria, a mãe à planície e a Alice à escola.

Este trabalho contínuo, desgastante e pouco rentável, no entanto, começava a indignar o pai da Alice. É verdade que gostava da sua terra, sentia prazer na faina de moliceiro e adorava o mar e a ria. Mas que aquilo era uma vida miserável, lá isso era, não havia dúvida. Trabalhava-se, trabalhava-se para ter apenas o mísero sustento de cada dia. Era sobretudo a vida de escrava que a mulher levava, conjugando as lides domésticas com o trabalho do campo, que mais o preocupava e não se lhe tirava da cabeça a ideia de abandonar a terra, a ria, a planície e partir para um país onde a vida fosse mais fácil e tivesse melhores condições. Muitas vezes, à noite, juntamente com a mulher, quando as crianças já dormiam, lamentava aquela vida árdua e cansativa, sobretudo para ela. Não fora para aquilo que a tirara de casa dos pais, dali ao lado, de Pardilhó. E os filhos? Que futuro os esperava? Se ali ficassem para sempre, que condições de vida lhes poderiam dar? Continuarem agarrados aos ancinhos ou ao cabo da enxada para terem uns míseros tostões e um caldo de couves com um bocado de broa ao fim do dia? Não, não podia ser assim. Tinham que pensar em mudar de vida, em construir um futuro melhor, sobretudo para os filhos. Para isso tinham que se aventurar.

A mulher bem o tentava demover de tão melindrosa e sinistra ideia, lembrando que não estava nada incomodada com aquela vida. Além disso estava habituada às lides do campo. Desde criança se habituara à lavoura, ajudando os pais. A mãe sempre lhe dissera que não nascera para princesa. Nem sequer a deixara tirar a 4ª classe.

Mas o sonho de partir não se desvaneceu e a persistente obstinação do pai sobrepôs-se e ultrapassou a frágil resistência da mãe. Partiram numa manhã de nevoeiro, de sombras e de incertezas. Para trás ficavam os tons coloridos da ria, as velas esbranquiçadas dos moliceiros, o cais do Chegado, a frescura esverdeada da planície, a casinha da Murtosa feita de adobes de barro, o som dolente das Trindades na torre igreja da Senhora da Natividade, a romaria de S. Paio e o rumorejar roufenho dos barcos a arrastarem-se nas areias das dunas.

Partiram, cheios de esperanças confusas, de convicções ambíguas e de sonhos vazios, voando sobre ilhas e oceanos, sobre desertos e oásis, com a velocidade do vento e a intranquilidade das nuvens. Chegaram a um país longínquo e desconhecido mas opulento e grandioso, onde abundava trabalho e riqueza. Um país onde viviam povos de todas as raças e cores, gentes de diferentes línguas e credos e onde as pessoas não se conheciam apesar de todos os dias se cruzarem nas mesmas ruas e das casas ficarem muito próximas umas das outras. Um país onde as montanhas, cobertas de neve, se confundiam com o horizonte, onde os rios, negros e cinzentos e com enorme caudal, atravessavam vagarosamente as cidades, onde as estradas se entrelaçavam umas nas outras, num constante rodopiar de automóveis e onde nem o vento nem Sol disputavam a intranquilidade dos dias e das noites. Um país onde o tempo era contado ao minuto, ao segundo, onde o trabalho não tinha sabor a maresia, onde se confundia o perfume das flores com o sabor dos frutos e onde o pão era partido em pedaços muito grandes. Fixaram-se numa cidade gigantesca, com prédios altíssimos e praças ornadas com estátuas de aventureiros e descobridores. Uma cidade onde as ruas se chamavam “streets” e o dinheiro “dólares”. Uma cidade onde não se trabalhava numa ria ou num campo mas em fábricas e “estoas”, onde as crianças eram transportadas em autocarros para as escolas e onde, após a missa dominical, as pessoas não ficavam a conversar umas com as outras no adro da igreja. É verdade que não havia amigos, familiares, festas, romarias, desfolhadas ou matanças de porco, mas havia ruas cheias de automóveis, supermercados atafulhados dos mais variados produtos, esplanadas coloridas e adocicadas com gelados tropicais. É verdade que não havia ria, ribeiras e planícies verdejantes, nem moliceiros carregados de moliço, mas havia museus, catedrais, hotéis de luxo e arranha-céus. 

Aí cresceu Alice e se tornou mulher. Percorreu muitas outras cidades, aprendeu línguas diversas, saltou montanhas, atravessou rios e esqueceu-se do mar, da ria, da planície e da casa pobre, humilde, modesta e de paredes brancas feitas de adobes de barro onde nascera.

Mas os anos passaram e os países do mundo tornaram-se mais semelhantes, mais iguais e, sobretudo, mais próximos uns dos outros. E Alice voltou a sonhar como sonhara outrora. E num desses sonhos regressou ao país, à aldeia, à planície e à ria de onde muitos anos antes, ainda criança, havia partido.

Mas a ria já não era tão matizada de tons coloridos como fora nos tempos da sua infância e que lhe pareciam tão distantes. A planície já não refletia o verde dos milheirais, os moliceiros já não deslizavam, carregados de moliço, ao sabor do vento ou da sirga, os carros de bois, em aflitivas chiadeiras, já não carregavam o moliço para os campos e já não se ouvia, à noitinha, o som doce das Trindades, na torre da igreja da Senhora da Natividade. Apenas o Sol continuava a refletir-se e a projetar os seus raios sobre as águas da ria, ora tranquilas ora revoltas, dando-lhe tons alaranjados, azuis, verdes e violáceos.

A ria transformara-se num paraíso fluvial, aprazível e encantador onde confluíam interesses e projetos. As suas águas eram sulcadas por veleiros em que os antigos moliceiros se haviam transformado e as margens e cais que outrora recolhiam o moliço, haviam dado lugar a portos, marinas e praias de veraneio. A planície, aprisionada de um verde esbatido e melancólico, deixava, tão-somente, evidenciar um rastro branco que ora se exprimia em vestígios do vetusto casario ora se agigantava em novos edifícios que projetavam e difundiam as suas formas geométricas e esguias nas águas prateadas da ria.

Apenas ao entardecer, quando o Sol, descendo por entre as dunas da Torreira alourando o firmamento em enorme mancha áurea e opaca, se projetava e refletia sobre as águas lisas da ria, perdendo-se por completo no horizonte, num deslumbramento de magia e alienação, Alice se recordou de uma aguarela, recortada de um calendário antigo, com que a mãe orgulhosamente ornamentava uma das velhas e carcomidas paredes da sala daquela casita pobre, humilde, modesta, de paredes brancas feitas de adobes de barro, onde nascera e que, numa legenda já meio gasta e apagada pelo tempo, dizia simplesmente:

“Por-do-Sol na Ria, visto da Murtosa”.

 

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publicado por picodavigia2 às 05:52

ATIRO A PORTA

Sábado, 06.09.14

Era uma vez um menino pobre que vivia com sua mãe, nas últimas casas de uma aldeia.
A mãe ia trabalhar, todos os dias, deixando o menino sozinho. Antes de sair recomendava-lhe:

- Não abras a porta a ninguém, nem mostres as nossas verónicas!

O menino dizia-lhe que fosse descansada, porque ele faria conforme ela lhe estava a recomendar.

Mas, certo dia, uns homens, que pareciam boas pessoas bateram à porta e perguntaram ao rapazinho se lá em casa haveria alguma coisa bonita que ele lhes pudesse mostrar.

O menino correu a buscar umas jarras de porcelana, que a mãe guardava na cómoda do quarto. Os ladrões – porque era isso que eles eram – pegando no saco, imediatamente se foram embora.

Pouco depois, chegou a mãe. O menino estava triste e contou-lhe o que se tinha passado. A pobre mulher, vendo-se sem o seu tesouro, lançou mãos à cabeça e começou a correr estrada abaixo, pelo caminho que os ladrões tinham seguido.

Entretanto, gritava para o menino que a queria acompanhar:

- Fecha a po…o…orta…!!!

- Levo a porta, mãe…e…e? – Perguntava o menino.

- Fecha a po…o…o…orta…!!! – Repetia a mãe.

- Levo a porta, mãe…e…e?

Sem entender o que a mãe lhe gritava, cada vez mais distante dele, o menino levantou a porta e começou a correr, com ela às costas, ao encontro da sua mãe.

Já muito longe de casa, muito cansados e sem verem o caminho, porque, entretanto, o sol já se tinha posto, mãe e filho resolveram passar a noite em cima de uma azinheira, carregando, também, a porta.

A altas horas da noite, sentiram passos… e ouviram conversas… por entre as árvores do bosque. E, qual não foi o seu espanto quando, precisamente debaixo da árvore em que eles estavam, se vieram sentar, discutindo, dois homens carregados com sacos e outros objectos. Eram os ladrões, que se preparavam para dividir, entre si, o que tinham roubado.

Então começaram a distribuição:

- Pataca a ti... pataca a mim… Pataca a ti... pataca a mim…

A mulherzinha e o filho, em cima da árvore, nem respiravam. A criança na sua imprudência, murmurava à mãe:

- Atiro a porta, mãe?

A mãe, com um gesto, tapava-lhe os lábios, gelada de medo. O menino continuava:

- Atiro a porta, mãe?

E atirou!

Os ladrões, pensando que era o céu que lhes caía em cima, puseram-se em fuga e não mais voltaram.

Foi assim que mãe e filho puderam recuperar não só as suas porcelanas, como também, ganhar muitas outras riquezas que os ladrões abandonaram no chão, debaixo da azinheira.

 

(Baseado num conto brasileiro)

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publicado por picodavigia2 às 17:02

A DINASTIA DE UOSTEROL

Sábado, 23.08.14

Outro régulo, facínora e depravado, também pertencente a esta draconiana dinastia, prendeu, em intransponível ergástulo, um gerontocrata, membro do conselho régio, só porque o mesmo opinara publicamente, opor-se à oferta e sacrifício de sete jovens, destinadas ao regalo das fantasias execráveis e dos apetites depravados, do monarca reinante.

Assim, viveu a serra, durante muitos anos, em constante estado de inquietação e insegurança sofrendo e suportando, na maior das ansiedades, os caprichos, veleidades, sarcasmos e depravações de governantes enfatuados e instáveis, déspotas destemidos, energúmenos insaciáveis, bárbaros facínoras e janízaros meliantes.

Desta maquiavélica dinastia, surgiu, finalmente, um outro monarca, heteróclito, perdulário e abstracto, que, apesar de tudo, se afastou notória e significativamente, das frivolidades lascivas e das ditaduras prementes e opressoras dos seus antecessores.

Uma áurea de esperança surgiu, então, nos ânimos dos serranos pradenses, agora libertos de férula governação, candidatos esperançados à liberdade e à vivência dos seus projectos colectivos e das suas realizações pessoais e individuais. Não pesava, agora, tão constante, lasciva e continuamente, sobre a sua vida e costumes, a maquiavélica e diabólica governação dos régulos anteriores. Porém, com o passar do tempo, os serranos cansaram-se de se sentir enfrascados de aborrecimento, arrecadando e armazenando tédio absoluto e desespero permanente, frutos dum cada vez maior afastamento do novo monarca, dos seus deveres de governante real. O rei era louco por caça e passava dias e noites nos bosques e nas florestas, na mira de acertar em tudo o que lhe surgisse pela frente. Mesmo no rigor do inverno, quando os nevões visitavam a serra, zebrando o ar plúmbeo, impedindo e obstaculizando, na totalidade, a concretização dos apetites cinegéticos do régulo, este ainda menos se ocupava com os seus súbditos e com a governação do reino, entregando-se, então, a extravagantes façunatas e lautas comezainas, as quais, embora, não cerceando o alvedrio quotidiano dos habitantes da serra, permitiam um efluente declínio e um evidente desgaste do erário público.

O povo, agora, experimentando a suprema vivência da liberdade, estava, porém saturado. A revolução estava eminente! Se as opressões das décadas anteriores tinham coarctado a liberdade e anulado a dignidade do povo, a alienação do monarca reinante desmoralizava o sentido de viver, confundia os valores constitucionais e provocava uma angustiante insegurança e uma confusa incerteza de viver, geradora dum lenocínio galopante, entre os povos serranos.

Os ânimos exaltavam-se, as opiniões dividiam-se e as teorias contradiziam-se. Forças político-sociais obscuras digladiavam-se nas praças e nas vias públicas. O terrorismo já se fazia sentir por toda a parte. Os gritos da revolta eminente ecoavam pelos esconsos mais recônditos da serra. O monarca, porém, continuava calma, impávida e serenamente a alienar-se de tudo e de todos, preparando-se para a caça, simplesmente caçando, ou saboreando lautamente os manjares subsequentes à mesma.

 

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publicado por picodavigia2 às 12:31

O PRÍNCIPE SAPO

Segunda-feira, 14.07.14

Há muitos, muitos anos, quando os desejos ainda funcionavam e os animais falavam, vivia um rei que tinha várias filhas muito belas e formosas. A mais jovem era tão linda que até o Sol ficava atónito sempre que iluminava seu rosto.

Perto do castelo do rei havia um bosque, grande e escuro, atravessado por um pequeno córrego, rodeado de belos prados e de velhas árvores. Nos dias de muito calor, a princesinha ia ao bosque, aproximava-se do regato e sentava sobre a fresca e viçosa erva que crescia nas suas margens. Quando se aborrecia, pegava numa bola de ouro, atirava-a para o ar, recolhendo-a, de seguida. Esta era a brincadeira favorita da princesinha. Porém aconteceu que, uma das vezes em que a princesa atirou a bola, esta não caiu na sua mão, mas sim no solo, rolando, rolando sobre a relva até cair no regato.

A princesa, ao ver que a sua bola se perdera no fundo do regato, começou a chorar. Tanto chorou, tanto se agastou e tanto lamentou a perda do seu brinquedo preferido, que alguém lhe perguntou:

- O que te aflige, princesa? Choras tanto que até as pedras sentem pena de ti.

A princesa olhou para o lugar de onde lhe parecia que vinha a voz e viu um sapo com a sua enorme e feia cabeça fora da água. Disse-lhe, então:

- Ah, és tu, sapo. Estou a chorar porque a minha bola de ouro, com que gosto tanto de brincar caiu no fundo desse regato.

- Calma, não chores - disse o sapo. – Se quiseres posso ajudar-te. Mas o que me darás tu se eu te devolver a tua bola?

- O que quiseres, querido sapo - disse ela, - Dou-te as minhas roupas, ou as minhas pérolas, ou as minhas jóias. Até te dou esta coroa de ouro que trago na cabeça.

O sapo retorquiu:

- Não me interessam as tuas roupas, as tuas pérolas nem sequer as tuas jóias, nem a tua coroa. Deixa-me, simplesmente, ser teu amigo, brincar contigo, sentar-me à mesa a teu lado, comer no teu prato de ouro, beber do teu copo de cristal e dormir na tua cama de marfim e ébano. Se me prometeres tudo isto eu descerei ao fundo do regato e trarei tua bola de ouro.

- Oh, sim - disse ela – Prometo-te tudo o que quiseres, mas devolve-me a minha bola.

O sapo, depois de ouvir aquela promessa, meteu a cabeça na água e mergulhou. Pouco depois voltou e, nadando com a bola na boca, atirou-a para a relva da margem do regato, onde estava a princesinha que, ao vê-la, logo a agarrou, pondo-se, de imediato a correr, fugindo do sapo. Cuidava ela que um bicho como aquele nunca poderia ser amigo de um ser humano.

- Espera, espera - gritou o sapo. - Leva-me contigo. Eu não posso correr tanto como tu.

Mas de nada serviram os gritos e lamentos do sapo. Aprincesa corria cada vez mais, abandonando o pobre sapo que, assim, se viu obrigado a voltar ao riacho.

No dia seguinte, quando a princesa se sentou à mesa com o rei e toda a corte, comendo no seu pratinho de ouro, bebendo do seu copo de cristal, ouviu um barulho que lhe parecia algo a arrastar-se pela escada de mármore que dava para a sala.

De repente o barulho cessou e ela ouviu uma voz muito ténue e suave que dizia:

- Princesa, jovem princesa, abre-me a porta.

Ela, levantando-se, de imediato, correu para ver quem estava lá fora. Quando abriu a porta, viu o sapo que, de imediato, se sentou-se diante dela, Muito assustada e cheia de medo, a princesa bateu a porta e voltou a sentar-se. O rei, apercebendo-se de que algo de estranho se passava, perguntou:

- Minha filha, o que se passa? Por que estás tão assustada? Há um gigante ali fora que te quer raptar?

 - Ah não, - respondeu ela - não é um gigante, mas um sapo.

- E o que quer o sapo de ti? - Indagou o rei, com espanto

- Ah, querido pai, eu ontem, enquanto estava a brincar no bosque, junto ao regato, a minha bola de ouro caiu à água. Eu gritei muito, o sapo ouviu-me e mergulhou na água, devolvendo-me a bola. Comovida, eu prometi-lhe que ele seria meu amigo e companheiro… Mas nunca pensei que ele fosse capaz de sair da água e vir até aqui.
Entretanto, o sapo voltou a chamar por ela;

 - Princesa, abre a porta. Não te lembras do que me prometeste junto ao regato?
O rei era bom e justo e, por isso, disse à filha:

- Minha filha, deves cumprir o que prometeste. Deixa-o entrar.

 Ela abriu a porta e o sapo, de imediato, deu um salto, seguiu-a até sua cadeira, sentou-se à mesa, ao lado dela e pediu-lhe:

- Aproxima teu pratinho de ouro porque devemos comer juntos.

Contrariada, a princesa fez-lhe a vontade e o sapo aproveitou para comer.

- Comi e estou satisfeito, - disse o sapo - mas estou cansado. Leva-me ao teu quarto, prepara a tua caminha de seda, por que vamos descansar e dormir.
A princesa começou a chorar porque não gostava que o sapo fosse deitar-se na sua caminha. Porém, o rei, indignado, recriminou-a:

- Não sejas ingrata! Não deves desprezar quem te ajudou quando tinhas problemas.

Ela, obedecendo ao pai, pegou no sapo e levou para o quarto, atirando-o para um canto, deitando-se, de seguida. O sapo, muito a custo, arrastou-se para junto dela, dizendo-lhe:

 - Eu estou cansado, também quero dormir, deita-me na tua cama senão conto ao teu pai.
A princesa ficou muito aborrecida e, pegando-lhe atirou-o contra a parede.
- Cala-te, bicho odioso e feio - disse ela.

Mas quando caiu ao chão já não era um sapo mas sim um belo príncipe. A princesa ficou estupefacta e arrependia. Por vontade do pai ele seria o seu companheiro e marido.

Finalmente, o príncipe contou como havia sido encantado por uma bruxa malvada e que só ela o poderia livrar do feitiço.

Na manhã seguinte, quando o sol os despertou, miraculosamente, chegou junto ao palácio uma carruagem puxada por oito cavalos brancos com plumas de avestruz na cabeça. Estavam enfeitados com correntes de ouro. Atrás estava o jovem escudeiro do príncipe, que havia ficado pobre e desgraçado quando seu senhor foi convertido em sapo.

A carruagem levou o jovem rei ao seu reino, acompanhado da esposa. Foram recebidos com enorme alegria pelo povo, que passou a governar com muita bondade, sabedoria e justiça, na companhia da jovem e formosa rainha.

 

(Adaptado de um conto popular brasileiro)

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publicado por picodavigia2 às 16:02

ABANDONADOS

Terça-feira, 27.05.14

Era uma vez um homem muito pobre e que tinha muitos filhos. Viviam todos numa pequena e pobre cabana, no meio duma floresta, sem vizinhos ao redor. Apesar de trabalhar arduamente, de dia e de noite, o homem não conseguia arranjar os alimentos necessários para saciar a fome dos filhos.

Certa noite, depois de cearem um simples caldo de couves, a mulher disse ao marido que não tinha comida para dar aos filhos no dia seguinte. O homem ficou muito preocupado e, depois de muito pensar, disse:

- Não vale a pena eu continuar a viver com os meus filhos juntos para deixar que morram de fome. É melhor abandonar dois deles na floresta. Pode ser que encontrem uma alma caridosa que tome conta deles. Deus há-de ajudá-los.

Ao ouvir isto, o coração da mãe encheu-se de angústia e de dor. Não conseguindo dizer palavra, apenas rezava para que Deus não abandonasse os seus filhinhos.

Ora entre os filhos havia um casal de gémeos, o João e a Maria. Eram muito chegados um com o outro. O João ouviu a conversa do pai e compreendeu tudo.

No dia seguinte, de manhã cedo, o pai mandou-os vestir, dizendo-lhes que ambos o haviam de acompanhar para irem com ele à floresta, buscar lenha. O João, porém, antes de partir, encheu os bolsos com pedrinhas brancas que juntou de pequeno um jardim que havia em frente da cabana. Ao caminhar pelo meio da floresta, o menino ia deixando cair uma pedrinha e depois outra, como que assinalando o caminho por onde passavam. Por volta do meio-dia o pai parou e disse-lhes:

- Fiquem aqui, sentados, descansando, enquanto eu vou além, procurar umas abelhas a fim de recolher mel. Quando ouvirem um assobio grosso, sou eu, a chamar por vocês. Nessa altura, seguindo o som, vão ter comigo. - E, dizendo isto, sumiu-se na floresta.

Os dois meninos sentaram-se e esperaram muito tempo, começando a ficar preocupados pois não ouviam o assobio do pai

Esperaram mais algum tempo. Finalmente o menino disse à irmã que estava a ouvir um som que parecia o assobio do pai. Foram procurar, mas não encontraram nada. A menina começou a chorar cuidando que estavam perdidos. O irmão tentou acalmá-la, dizendo-lhe que haviam de encontrar o caminho para casa.

A menina confiou no irmão e começaram a caminhar, seguindo as pedrinhas que o João deixara no caminho quando acompanhavam o pai. Ao anoitecer chegaram à cabana. O pai, a mãe e os irmãos estavam sentados à mesa a cear. Passara por ali um homem para quem o pai trabalhara e pagara-lhe uns dias de trabalho. Com esse dinheiro haviam comprado alimentos para vários dias. Foi com muita alegria que viram os irmãos de volta, partilhando com eles a refeição. Depois fizeram uma pequena festa e foram dormir.

Passados alguns dias, o dinheiro acabou e a fome voltou de novo. Não havia como alimentar tantas bocas. O homem começou, de novo, a pensar em deixar abandonados os dois filhos no meio da floresta.

Desta vez, porém, o João não pôde apanhar as pedrinhas brancas porque a porta estava fechada e a chave tirada. No entanto guardou um pouco de pão que recebera para a ceia. Quando amanheceu, os dois gémeos seguiram viagem, juntos com o pai. O João, ficando um pouco atrás, espalhava pedacinhos de pão no caminho. Os passarinhos, porém, ao vê-los comiam-nos. O chegar a um lugar ermo o pai disse-lhes o mesmo que dissera da primeira vez em que os abandonara. Os meninos esperaram mas o pai nunca regressou. Decidiram, então, voltar para a cabana mas não encontraram os pedacinhos do pão. Embora tristes e preocupados decidiram caminhar, andando, até anoitecer, cuidando que estavam perdidos. Sem desanimar, o menino subiu uma árvore muito alta, de onde conseguiu ver, ao longe, o fumo que saía duma chaminé. Desceu da árvore, muito depressa e, juntamente com a irmã, começou a andar naquela direcção.

Depois de muito andar encontraram uma casa muito bonita e muito iluminada por dentro. Aproximaram-se e viram que a casinha era feita de bolos e as luzes eram velas açucaradas. O João quebrou um pedaço e entregou-o à irmã e partiu outro para si. De repente, de lá de dentro, ouviram uma voz que perguntou:

- Quem está a mexer em mim?

 Esconderam-se depressa mas, pouco depois, voltaram para comer mais, ouvindo, novamente, a voz, a fazer a mesma pergunta. À terceira vez ouviram a voz bem perto deles:

- Ah! São vocês, meus queridos netinhos? Tão bonitinhos mas tão magrinhos! Entrem...

Entraram e a velha, que era uma feiticeira, ofereceu-lhes uma bela e saborosa ceia. Depois levou-os para um quarto onde havia de tudo. Fechou a porta e deixou-os dormir. No outro dia deu-lhes comida e água, e assim sucedeu durante vários dias. Mas o João, espreitando, descobriu que a velha comia pessoas e que devia estar engordá-los para, mais tarde, os comer. Pensou, então como haviam de libertar-se. Para tal apanhou uma lagartixa, cortou-lhe o rabo e toda vez que a velha trazia comida e perguntava como eles estavam, respondia:

- Vamos bem.

- Mostre o dedinho! – Pedia a velha.

 O João, para a enganar, mostrava-lhe, através do buraco, a cauda da lagartixa. A velha, quase cega, apalpava e dizia:

— Tão magrinhos! Vamos comer mais, meus netinhos!

 E, no dia seguinte, trazia-lhes mais comida. Meses depois os dois meninos estavam gordos, corados e fortes mas sempre mostrando o rabinho da lagartixa.

Certo dia, porém, a Maria, descuidou-se e perdeu o rabo da lagartixa. Quando a velha pediu que mostrassem o dedinho, a menina, muito estouvada e sem juízo, mostrou o mindinho. A velha apalpou-o e lambeu os beiços:

- Hum! Estão no ponto. Saiam, dai, meus netinhos.

 Depois, abrindo-lhes a porta, deixou que saíssem. Na manhã seguinte, a velha pediu ao João que fosse buscar lenha cortada em toros. O menino lá foi, mas, pelo caminho, ouviu uma voz a chamar por ele, que lhe disse

- Leva a lenha, mas quando a velha acender o lume e pedir a ti e à tua irmã para atravessarem a tábua que ela colocou por cima da fogueira, digam que é melhor ela atravessar primeiro para vos ensinar. Nessa altura empurrem a velha para a fogueira e não tenham pena.

Assim fizeram. A velha acendeu uma grande fogueira, atravessou uma tábua por cima, pedindo às crianças que passassem de um lado para o outro. O João pediu-lhe que atravessasse primeiro para eles verem como era. A feiticeira subiu para a tábua e quando ia a meio os dois meninos empurraram-na. Ela caiu e ficou toda queimada. Bem gritava ela, desesperada:

- Água, meus netinhos! Deitem água no lume, para o apagar.

- Azeite, avozinha, azeite. - Respondiam eles. E a velha ficou esturricada, dando, pouco depois, um estouro como se fosse uma bomba.

O João e Maria correram a casa toda, encontrando os quartos cheios de dinheiro, roupas, pedras preciosas e muita comida e bebida.

Encheram uma parte do que encontraram e partiram para a cabana dos pais onde chegaram, muitos dias depois.

O pai, muito arrependido do que tinha feito, ficou muito contente e abraçando os filhos, pediu-lhes perdão. A mãe não cabia em si de alegria e os irmãos também ficaram muito felizes. Com os bens e o dinheiro que os meninos conseguiram trazer construíram uma casa, onde todos passaram a viver felizes.

 

NB - Inspirado num conto popular brasileiro.

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publicado por picodavigia2 às 20:33

LIBERTAÇÃO

Segunda-feira, 19.05.14

Numa manhã, cálida, fulva e etérea do Outono, chegou à serra Prada um viajante solipsista, misterioso e invulgar. Invulgar porque, imaginem, era um anão. Vinha de longe, de muito longe. Percorrera mares, andurriais e páramos, suportando tempestades e procelas, saltando montanhas de espuma e de submissão, sentando-se à sombra de árvores sem folhas e sem esperança, perdendo-se ininterruptamente em ilhas desertas e em oásis mistificados. Atravessara, com extenuante lucubração, um grande e tórrido deserto, com rios de fogo e pináculos de estranha adoração, onde se perdera e onde, simultaneamente, enlapara muitos dos seus sonhos e fantasias. Mas trazia consigo a experiência da liberdade, a fragrância da dignidade, a auréola da fraternidade, a estranheza da sublimidade e do amor, sobretudo do amor. Sonhava, sempre, que as estrelas são de prata, e que para além de cada oceano, há sempre um outro mar. Ensinava que as nuvens quando se desfazem não pretendem apenas jorrar sobre os mortais a incomodidade da chuva. Aprendera nos campos e nos bosques e estudara com as flores e os pássaros. Acolhia com sorriso as manhãs sombrias, escuras, enevoadas e chuvosas. Era amigo da esperança e das florestas. Pernoitava nos bosques, ao relento, dialogando com o destino e com a solidão. Alimentava-se do perfume das flores e dos frutos. Possuía um coração com aromas de alecrim e sabor a hortelã. Mas tinha um grande defeito: dependia total e exclusivamente do sol, para quem olhava constantemente, sonhando poder, um dia, voar ao seu encontro.

Mais! Era gimnosofista, o anão! Vivia permanentemente nas florestas, abstraído das multidões, convivendo com a frescura e a mansidão dos bosques. Considerava a "noite" como a origem de todos os males e produtora de todas as limitações, e a "escuridão" a filha única da ignorância universal. A fuga a estas maléficas divindades, adquire-se através da sabedoria, filha da claridade, mas que permanece longínqua e quase inatingível, porque libertadora de sucessivas, contínuas e constantes migrações, e que consiste, apenas e simplesmente, na capacidade equívoca de fugir aos pesadelos escuros e tétricos da nossa existência atormentada. Isto apenas se consegue mediante um isolamento total e uma entrega às "hamadríades", ou seja, as ninfas dos bosques, que nascem simultaneamente com as árvores, nunca se desvinculando das mesmas, vivendo e morrendo com elas. A vida duma árvore ninfada ou duma ninfa arborizada é, no entanto, perene e infinita, porque umas e outras dependem da única fonte de vida do universo - o Sol. Por essa razão, o anão entendia, que as árvores nunca deviam ser destruídas, pois o aroma das suas folhas, o perfume das suas flores e o sumo dos seus frutos constituem o alimento primordial e único de todo a raça carracena, pelo que a vida depende, necessariamente e em último grau, da luz emanada pelo astro-rei. Este é um armazém infinito de poder e beleza, receptor tranquilizante de todas as inquietudes. Somente através dele é possível atingir a sublimação da beleza absoluta e, consequentemente, atingir a simplicidade. Assim toda e qualquer oposição à força e à beleza solar devia ser eliminada.

Chegou, pois, o anão, à serra Prada e aboletou-se num tétrico e cavernoso antro, isolado de tudo e de todos. Inicialmente, os serranos, supinamente preocupados com as perversas vicissitudes resultantes da famigerada governação dos seus chefes, não se aperceberam da sua presença. Passados alguns dias, porém, numa tarde clara, florida, perene de sol e de ternura, o anão desceu aos povoados e encontrou a serra na posse plena da sua beleza omnipotente e beatificante, isolada e só, mas acolhedora, glorificante e transcendente.

O povo, ocupado em orgias contestatárias e efervescentes, nem se apercebeu da sua presença e o anão perdeu-se, no meio da confusão que então se gerava, vagueando por entre a população envolvida em deslumbrantes manifestações contra o estado da nação. A revolta agigantava-se cada vez mais. O anão foi apanhado pela manifestante enxurrada, sem se aperceber e sem que ninguém o notasse. Foi levado pela confusão até ao palácio real, que de imediato foi invadido. A multidão, difluída junto à platibanda que o cercava, de rompante, encostou-se aos altos portões que a encimavam e que de imediato cederam e entrou, em turbilhão, pelos pátios ajardinados e pelos salões desertos e esconsos.

O monarca, mais uma vez se ausentara, para se dedicar às suas actividades preferidas e satisfazer os seus reais e eficientes instintos cinegéticos. A última sala a ser invadida foi a do trono. Uma multidão furibunda, intransigente, sedenta de esperança e liberdade, encostou-se à porta e esta cedeu facilmente. De repente, todos entraram, à esmo, pela sala dentro. A confusão era enorme e emaranhada em sucessivos e contínuos atropelos. Ninguém podia fugir, libertar-se ou, tão pouco, mover-se. O anão, hesitante, enleado e ilaqueado, ainda tentou fugir. Não conseguiu. Impossível de todo! Estava completamente preso e assolado, amarrado a uma força infinita, invisível e estranha, que o puxava e que, por fim, sem saber-se como, o sentou no próprio trono real.

De repente, fez-se um enorme e sepulcral silêncio na sala.

O anão estava ali, só, mais a multidão, que, faminta de lenimento, fixava o seu olhar  tímido, mavioso e expectante, no rosto aureolado e blandicioso de tão inesperada e inquietante personagem, que, na realidade e a partir de agora, seria a esperança libertadora da sua estigmatização.

Um grito de alívio ecoou por toda a serra Prada! As árvores ficaram mais  verdes e floridas, as flores mais perfumadas e alegres, os frutos mais aromatizados e saborosos. As aves, encheram-se de coragem, perderam os últimos resíduos de medo e de temor e voaram mais alto. Os animais retoiçavam com mais afinco e blandícia. A suavidade ornamentava o destino de toda a serra. O vento soprava paramentado de ternura e graciosidade.

Porém o monarca emérito, ausente do palácio real, continuava abstraído na prática das artes cinegéticas e pantagruélicas, não se apercebendo, de imediato, que ali terminara o seu reinado e que era substituído na governação serrana por um simples, humilde e heteróclito anão.

A noite, porém, decorreu, em toda a serra, sobressaltada, angustiante e repleta de escuridão e incerteza. Mas a manhã seguinte, surgiu, risonha, afável, simpática e perene de sol e de ternura. Os dias seguintes correram céleres, maviosos e flexíveis. Era imperioso, por parte da nova governação, alterar ou suprimir muitas das leis vigentes, estabelecendo novos rumos, mudando a ordem até então estabelecida.

Os ergástulos foram destruídos, as leis maquiavélicas suprimidas e os decretos aniquilantes anulados. Foi decretado que, a partir de agora, o Sol seria a principal razão de ser e de viver dos serranos pradenses. É que o neo-governante bochimane adorava o Sol. Não podia mesmo viver sem ele. A sua dependência do astro-rei era tal que, sempre este se escondia, quer porque chegasse a noite, quer porque surgisse um dia enevoado, cinzento ou chuvoso o anão refugiava-se no seu mítico falanstério e tremia terrivelmente de frio, sofrendo tão violentas e pitónicas convulsões, que se abstraia total e absolutamente da sua governação protectoral.

Por isso a protecção legislativa ao astro-rei era imperativo constitucional. O Sol recebia assim, por decreto, à boa maneira dos sacerdotes assírios e pré-helénicos, os epítetos de ser supremo, paraninfo real, coração do mundo, razão de ser de todo o universo, detentor dum poder, duma força e duma vontade anteriores ao mundo, regulador da marcha do universo, controlador assumido do destino, significante exímio da grandeza, da dignidade e da perenidade e gerador da contagiante simpatia.

Foram, então, publicados decretos cerceadores dos eclipses e eliminadores dos dias enevoados e cinzentos e promulgadas leis que combatiam, de forma radical e imperiosa, as próprias noites. A Lua, quer na sua extravagante ousadia de gerar eclipses, quer na sua prestigiante função de iluminar a noite, foi decretada como inimigo número um. A duração dos dias de Inverno foi aumentada.

Na própria bandeira da nação serrana foi mandada afixar a inolvidável imagem do maior e mais importante astro do universo, na sua postura mais digna, gratificante e criadora - nascendo. Por toda a parte, dentro e fora do palácio real, surgiam desenhos e imagens do Sol. Nos jardins reais, foram mandadas erigir duas estátuas: uma do deus Apolo e outra do rei Hélio e as salas foram ornamentadas com frescos e baixos-relevos representando os episódios mais significativos da vida de Faetonte, o mais importante filho do Sol que, estando um dia a jogar apaixonada e emotivamente com o seu amigo Epapo, este, ao ser derrotado, desentendeu-se com ele e lançou-lhe à cara alguns insultos, nos quais se incluía uma grave e ofensiva suspeita de que ele não era filho do Sol, o que punha linearmente em causa a seriedade da sua mãe. Faetonte foi queixar-se a esta que, de imediato, o mandou certificar-se junto do Sol. Este, encontrando o filho, a quem desde há muito procurava, despojou-se dos seus próprios raios em benefício do filho e jurou conceder-lhe tudo o que ali mesmo lhe pedisse, como real prova da sua efectiva paternidade. O jovem Faetonte pediu-lhe que o deixasse conduzir, apenas por um dia, o seu próprio carro. Não era essa a vontade paternal, mas como prometera em juramento e não podia voltar com a palavra dada, o Sol emprestou-lhe o seu carro puxado por fortíssimos cavalos e deu-lhe a respectiva certificação de condutor. Os verdores de Faetonte levaram-no, em louca correria, até ao horizonte terrestre. Foi aí que os cavalos, ao aproximarem-se da Terra, se assustaram e os raios de Faetonte começaram, de imediato a queimá-la e a incendiá-la, ao mesmo tempo que afastando-se, ela arrefecia. Gerou-se, assim, um caos universal, que culminou em tempestades ciclónicas e diluvianas, trovoadas contínuas, cataclismos destruidores, inundações arrasantes, tendo sido, o próprio Faetonte, fulminado por um raio, caindo o seu corpo no rio Eridano, perante o choro e o lamento de suas irmãs e do seu amigo Cícuo. A desordem no universo foi tal que, durante um ano, não houve Sol e a corrida dos cavalos tão violenta que do carro ficou um rastro no firmamento, que se prolongou até hoje e que ainda se pode observar - a Via Láctea.

Estas imagens, gravadas nas paredes o palácio real, contribuam, significativamente, para valorizar a força, a grandeza e a imperiosa consistência que o Sol, agora, passava a ter, na vida e nos costumes do novo governante. Este acordava todas as manhãs, na esperança de ver nascer o astro-rei. Caminhava pelos campos e pelas bosques, alta madrugada, ansioso e expectante, tímido e submisso, na certeza de que ele em breve, surgiria no firmamento, na sua grandiosidade e omnipotência, espargindo, com os seus raios luminosos, simpatia contagiante, irradiando doçura, emanando dignidade, aquecendo os bosques e as florestas, aconselhando as flores e os pássaros, passeando ao lado das montanhas, dignificando o perfume das flores e transformando em sublimidade a perene doçura dos frutos. O dia surgia, então, pacífico, alegre, e bonançoso. A água dos regatos e arroios corria, agora, mais  límpida e cristalina, a fluidez fora irradiada, a inconstância abolida e a indefinição suprimida. O sol assumia-se, na realidade, na sua total e infinita plenitude - rei e senhor do universo. Era, assim, reposta, nas cercanias serranas, a ordem mitológica, assíria e pré-helénica, desfeita pela perturbante missão da História, acolitada por imperativos religiosos ou racionais.

O povo, cedo, entendeu o que se passava. As alterações eram tais, que era impossível não entendê-las. Preferiu, no entanto, ocultar-se, calar-se, aguardar os acontecimentos, sentindo a perene e constante ternura de sentir que agora fora decretado o direito de sonhar e de imaginar a aventura e a fulgurante consonância de conquistar o próprio destino. Por outro lado, a protecção e o constante acompanhamento que lhe era dado, por parte do novo governante, permitia não apenas que aceitasse a mudança, mas também que a anelasse e que a quisesse ou até mesmo que a procurasse.

Os dias sucediam-se, pois, repletos de paz e de tranquilidade. O povo pradense orgulhava-se de ocupar o 1º lugar no top da euritmia e da ataraxia contemplativa. As manhãs consolidavam-se perenes de irradiações solares e erguiam-se acolhedoras e tranquilizantes, geradoras de orgasmos emocionais, transmitindo à serra um potencial de vida, de doçura e simpatia contagiante, nunca antes conseguida. Quando o dia, impelido pela beleza solar, se extravasava na sua delirante bonança, os arbustos cresciam, as árvores davam mais flores e mais frutos, as aves construíam ninhos de raios de luz e de esperança, o povo refugiava-se nas sombras do destino, o anão pura e simplesmente contemplava o sol ou as imagens que dele rodeavam os mistérios do reino.

A vida, na serra, era agora a certeza institucionalizada. Era possível sonhar-se com a perene transcendência de se poder sonhar mesmo não sonhando. O teorema hélénico dos filósofos socráticos fora traduzido para a neo-cultura serrana: "a verdade é que estamos sempre a sonhar, pois quando estamos a sonhar, estamos de facto a sonhar e quando estamos a não-sonhar, também estamos a sonhar que não estamos a sonhar". Por isso, toda a serra sonhava.

Porém, inesperadamente, um dia, sem que ninguém se apercebesse ou desejasse, chegou, o primeiro e grande Inverno. De imediato os dias escureceram totalmente, as flores fecharam-se, as folhas caíram, as árvores murcharam, os animais, em aulidos de dor, refugiaram-se nos seus esconderijos. As encostas serranas cobriram-se com um manto acinzentado de neve. O anão tremeu de frio, como nunca tinha tremido até então e escondeu-se, fechou-se, enclausurou-se e chorou amargamente. É que não havia nem leis, nem decretos que imperassem sobre as leis da natureza e transformassem aqueles frios e terríveis dias de inverno, fazendo regressar à serra a ternura, o calor e a fragrância solares.

A vida na serra paralisou totalmente. O frio e a neve destruíram tudo e todos. Apenas a perene certeza do retorno sazonal e ansiado da longínqua primavera, justificava a angustiante mas ousada volúpia de viver.

O anão tremeu de frio dias a fio, semanas inteiras, meses consecutivos. Do sol, apenas a ténue esperança de regressar o mais cedo possível, pondo termo a tão angustiante e tétrica lucubração.

 

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publicado por picodavigia2 às 14:05

ÁUREA D'ESPERANÇA

Sábado, 29.03.14

Um régulo, facínora e depravado, pertencente a uma draconiana dinastia, prendeu, em intransponível ergástulo, um gerontocrata, membro do conselho régio, só porque o mesmo opinara publicamente, opor-se à oferta e sacrifício de sete jovens, destinadas ao regalo das fantasias execráveis e dos apetites depravados, do monarca reinante.

Isto fez com que a Serra Prada, onde reinava o famigerado facínora, vivesse anos e anos, em constante estado de inquietação e insegurança sofrendo e suportando, na maior das ansiedades, os caprichos, veleidades, sarcasmos e depravações deste e de muitos outros governantes enfatuados e instáveis, déspotas destemidos, energúmenos insaciáveis, bárbaros facínoras e janízaros meliantes. Uma dinastia maquiavélica de régulos facínoras, da qual surgiu, anos mais tarde, um monarca heteróclito, perdulário e abstracto que, apesar de tudo, se afastou notória e significativamente das frivolidades lascivas e das ditaduras prementes e opressoras dos seus antecessores.

Uma áurea de esperança surgiu, então, nos ânimos dos serranos pradenses, agora libertos de férula governação, candidatos esperançados à liberdade e à vivência dos seus projectos colectivos e das suas realizações pessoais e individuais. Não pesava, agora, tão constante, lasciva e continuamente, sobre a sua vida e costumes, a maquiavélica e diabólica governação dos régulos anteriores. Porém, com o passar do tempo, os serranos cansaram-se de se sentir enfrascados de aborrecimento, arrecadando e armazenando tédio absoluto e desespero permanente, frutos dum cada vez maior afastamento do novo monarca, dos seus deveres de governante real. O rei era louco por caça e passava dias e noites nos bosques e nas florestas, na mira de acertar em tudo o que lhe surgisse pela frente. Mesmo no rigor do Inverno, quando os nevões visitavam a serra, zebrando o ar plúmbeo, impedindo e obstaculizando, na totalidade, a concretização dos apetites cinegéticos do régulo, este ainda menos se ocupava com os seus súbditos e com a governação do reino, entregando-se, então, a extravagantes façunatas e lautas comezainas, as quais, embora, não cerceando o alvedrio quotidiano dos habitantes da serra, permitiam um efluente declínio e um evidente desgaste do erário público.

O povo, embora, experimentando a suprema vivência da liberdade, estava, porém saturado. A revolução estava eminente! Se as opressões das décadas anteriores tinham coarctado a liberdade e anulado a dignidade do povo, a alienação do monarca reinante desmoralizava o sentido de viver, confundia os valores constitucionais e provocava uma angustiante insegurança e uma confusa incerteza de viver, geradora dum lenocínio galopante, entre os povos serranos.

Os ânimos exaltavam-se, as opiniões dividiam-se e as teorias contradiziam-se. Forças político-sociais obscuras digladiavam-se nas praças e nas vias públicas. O terrorismo já se fazia sentir por toda a parte. Os gritos da revolta eminente ecoavam pelos esconsos mais recônditos da serra. O monarca, porém, continuava calma, impávida e serenamente a alienar-se de tudo e de todos, preparando-se para a caça, simplesmente caçando, ou saboreando lautamente os manjares subsequentes à mesma.

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publicado por picodavigia2 às 23:03

UOSTEROL OU O REI MALDITO

Quinta-feira, 13.02.14

Vários foram os chefes tribais, que, desde os tempos mais remotos e longínquos, se fixaram na serra Prada e impuseram, geralmente à força, regimes totalitários e despóticos, que massacraram, sacrificaram e, por vezes, quase destruíram a dignidade, a felicidade e a própria liberdade dos seus habitantes, os serranos pradenses. Esses régulos assumiam-se, geralmente, de forma disfarçada, como autênticos tiranos que apenas conheciam, tentavam impor e faziam vigorar dois princípios: o da força brutal e o da falsa superioridade. Leis draconianas foram promulgadas, ergástulos megalómanos construídos, imposições draconianas tomadas.

De todos estes pérfidos ditadores, sobressaiu, pela sua excessiva barbaridade e cônscio despotismo, um tal monarca, que o povo alcunhou de "Uosterol", epíteto originado a partir duma incorrecta pronúncia do inglês "The worst of all", ou seja, "O pior de todos". Tratava-se, na realidade, dum monarca que reinou alguns anos, num despotismo galopante e que, para saciar os seus caprichos e fanatismos desenfreados, terá desbastado, destruído e incendiado sete aldeias da serra, matando e arrasando as respectivas populações, só porque desconfiou que, numa delas, se encontrava refugiada uma jovem donzela, que fugira dos arredores do palácio real, quando se apercebeu que sua majestade a iria recrutar para o seu harém. A jovem foi degolada publicamente, ao mesmo tempo que eram destruídas todas as aldeias que, supostamente, lhe tinham dado acolhimento. Eu vou contar pra todos a história de um rapaz

Uosterol tinha, na realidade e desde sempre, a fama de ser um rei mau, perverso e maligno. O povo temia-o, apenas ao ouvir o seu nome. Para além de grosseiro, estúpido e violento, não gostava de alguém e nunca amou, de verdade, quem quer que fosse. Passava a vida em caçadas, duelos e batalhas, provocando mal-estar, tédio e, sobretudo terror, entre os seus súbditos.

Certo dia, porém, chegou à Serra, governada por Uosterol, um homem bom, digno e justo, mas valente e destemido. Com intenção de destruir o facínora e libertar o povo da tirania, dispôs-se a lutar contra o tirano. O povo tremeu e temeu, cuidando que o pior acontecesse. Mas como o homem era bravo e destemido, o povo aceitou que lutasse

Marcaram o duelo no cimo de uma montanha, longe do povoado, antes do pôr-do-sol. Todos já sabiam que um deles havia de morrer. O povo desejava que fosse o fim de Uosterol, pensando, assim, ver-se livre do facínora.

Subiram a montanha. Perante a coragem daquele homem, nesse dia, pela primeira vez, o Uosterol tremeu e teve medo. Nunca encontrara alguém que o desafiasse, que se lhe opusesse e que, sem medo algum, se dispusesse a lutar contra ele, rei poderoso e soberano invencível. Quem seria aquele desconhecido?

Uosteroç, durante a viagem de subida da montanha, entrou num bar bebeu. Bebeu tanto que perdeu a força tirânica, transformando-se num fraco, considerando-se, ele próprio, pela primeira vez na sua vida, um inútil imbecil.

Chegando ao cimo da montanha, ao lugar onde tinham combinado o duelo. Contrariamente ao habitual era Uosterol que tremia, enquanto o desconhecido se mantinha, calmo e firme com a arma na mão, apontada ao facínora. Uosterol preparou-se para atirar, com intenção de matar o desconhecido. Soaram tiros pelos ares, houve tão grande tiroteio como jamais se vira. Toda a Serra estremeceu e emudeceu. Apenas um grito se ouviu, após o qual Uosterol caiu por terra morto.

Algum tempo depois, a paz voltou à Serra.

 

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publicado por picodavigia2 às 18:50





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