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O CLARINETE

Quarta-feira, 30.10.13

A década de sessenta, embora demarcada por um adocicado sabor de inocência a contrastar com um abrupto despoletar das mais diversificadas manifestações musicais, provocara um enorme e atrofiante desgaste na filarmónica da freguesia. A avalanche de músicos desabrochada nos anos anteriores, transformara-se num reduzidíssimo elenco que ameaçava por em causa a continuidade de um dos maiores orgulhos da terra, a União Musical Santestevense, a muito custo fundada, estruturada e organizada, na década anterior. Uma razia!

A aquisição dos instrumentos havia custado uma fortuna. Os fardamentos e outros acessórios aumentaram, substancialmente, o montante. Não houve subsídios e foi a generosidade do povo da pequena freguesia que, unindo esforços e conjugando sacrifícios, ombreou com uma despesa estonteante. Agora, se não lhe acudissem, estava prestes a fenecer. A maioria dos músicos desertara. Uns haviam partido para a tropa, outros emigrado para América, um outro dos mais velhos falecera, enquanto alguns desmotivando-se, pura e simplesmente haviam desistido. O elenco amplo, excessivo e volumoso dos tempos áureos da sua fundação, ia-se, aos poucos, afunilando e atrofiando, aos solavancos, como se fosse um enorme balão a esvaziar-se, lentamente. Agora, apenas uma dúzia de carolas! Muitos instrumentos dias e dias sem emitirem uma nota que fosse, enferrujavam nos armários.

Impunha-se, pois, recrutar pessoal, a quem os mais velhos haviam de dar formação. Mas a rapaziada, cada vez mais reduzida e, além disso, aliciada pelo aparecimento dos Beatles e pelo despoletar do Rock and Roll, todo o dia de rádio ao ouvido, gravador debaixo do braço, encolhia os ombros. Recrutar mulheres, impossível, naqueles tempos regidos e demarcados ainda por uma pesada oposição ao vacilante dealbar dos movimentos feministas.

A Maria José, uma das mais belas moçoilas da freguesia, fora nada e criada num ambiente de sedutoras vivências musicais. Vivaça, afoita e despida de complexos, a música estava-lhe no sangue. O pai, recentemente falecido, fora um dos mais brilhantes clarinetistas da freguesia e a mãe, quando nova, em festas e serões, dedilhava com alguma habilidade, uma antiga viola da terra que havia lá em casa, habitualmente colocada em cima da cama da sala, envolvida por um belo xaile de merino e que lhe havia sido doada, por um tio-avô.

Corajosa e destemida, apresentou-se, pois, a moça, entre meia dúzia de bigorrilhas, desajeitados, chavascos e desmiolados, como candidata a um lugar na filarmónica da freguesia. A notícia, inesperada e abrupta, correu célere, sofreu cerrada oposição, e originou os mais disparatados e inverosímeis comentários. Nem o respeito que a memória do pai impunha salvou a moça de lascivos e mal-intencionados comentários. Parecia que o céu caía em catadupa. Uma mulher a tocar na banda…metida no meio de homens!... Totalmente inconcebível! Nunca tal se vira, nem nunca tal se havia de ver. Uma vergonha! Uma ofensa! O fim do mundo, em cuecas…

Persistente, voluntariosa e disposta a contrariar tabus e a destruir preconceitos, Maria José lutou contra cerradas oposições, venceu inexcedíveis obstáculos, ultrapassou desmesuradas barreiras, esqueceu malévolos mexericos. Manejando o clarinete com arte, destreza e sabedoria, não se lhe podia negar o desiderato. A sua persistência e uma excelsa apetência para a música, tornou-se numa enorme mais-valia para a banda, assumindo-se também como pioneira duma presença feminina na mesma. Choveram as intimidações, desabaram as críticas, abundaram os comentários malévolos e as apreciações mordazes. Mas tudo ultrapassou, erguendo-se como pioneira da presença feminina uma banda de música.

Depois dela muitas outras jovens, seguindo-lhe o exemplo, se candidataram à aprendizagem da música e ao manejo dos instrumentos, fazendo com que o elenco da União Musical Santestevense crescesse e tornasse sólido e a banda regressasse aos momentos áureos e aos êxitos da sua existência inicial

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publicado por picodavigia2 às 10:27

AFRODITE

Terça-feira, 29.10.13

Cronos era o deus do tempo. Certo dia, após uma esporádica rebelião entre os deuses do Olimpo, decidiu castigar Úrano, castrando-o e atirando-lhe os genitais ao mar. De imediato, formou-se, na água, um enorme remoinho de espuma, da qual surgiu uma bela mulher, Afrodite. Perdida no mar, foi Zéfiro, o vento norte, que, soprando suavemente, a transportou numa concha e a levou até à ilha de Chipre, onde as Horas a esperavam. Vestiram-na com um traje imortal e, adornando-lhe os cabelos com vistosas violetas, conduziram-na ao Olimpo, onde foi apresentada à assembleia dos deuses. A sua excelsa e ímpar beleza foi aclamada por todos. Jamais as divindades celestes tinham visto tão sedutora formosura, pelo que, de imediato, Afrodite foi consagrada e entronizada como a deusa do amor, da sedução e da sensualidade.

Afrodite cresceu e tornou-se tão linda, tão bela, tão atraente e tão sensual, que os deuses temiam que tanta beleza provocasse, entre eles, ondas de ciúme que haviam de por termo à paz e à harmonia, até então, reinantes no Olimpo. É que para além duma excelsa beleza, duma divinal sedução e do seu ar sensual e provocante, Afrodite era voluntariosa, amante do prazer e permanentemente dada a paixões provocantes e a eflúvios amorosos, mas inimiga da sensatez, da estultícia e da fealdade. Representava a doçura dos apaixonados, o ímpeto dos desejosos e o delicioso idílio da entrega dos corpos. Foi ela quem prometeu o amor da bela Helena ao príncipe Paris, comprometendo-os emocionalmente, a fim de que vivessem uma profunda e sublime paixão, sem se importar com as consequências que daí adviriam, consubstanciadas numa guerra sangrenta que devastaria e arrasaria, por completo, a cidade de Tróia.

Mais tarde, Zeus ficou ressentido, pois, tão grande era o poder sedutor de Afrodite que ele e os demais deuses do Olimpo lutavam, permanentemente, uns contra os outros, na disputa pelos encantos da bela diva, enquanto esta os desprezava a todos, como se de nada valessem. Como vingança e punição, Zeus obrigou-a a casar-se com Hefesto, o deus mais horroroso que existia no Olimpo e que, para além de feio, era coxo. Mas, apesar de inconformada com o casamento, a deusa não deixou de viver a voluptuosidade impetuosa das suas paixões. Assim, começou por trair Hefesto, não só com os mais belos deuses, mas também com muitos mortais. Hefesto apercebeu-se a tempo do embuste e, cuidando que estava a usar uma sábia perícia, cobriu-a com as melhores jóias do mundo, oferecendo-lhe, inclusivamente, um cinto mágico do mais fino ouro, mas entrelaçado com filigranas mágicas, com o fim de ela se sentir atraída por ele, não se apercebendo, o palerma, de que, mais do que por ele, aquele cinto mágico, mais a faria apaixonar-se e entregar-se a outros, em permanentes e irresistíveis paixões.

Afrodite sempre adorou o prazer sensual, a volúpia e o glamour. Amou e foi amada por muitos deuses e por outros tantos mortais. De entre todos os seus amantes, os mais famosos foram Anquises e Adónis, este também apaixonado por Perséfone, de quem a deusa era rival, tanto pela disputa do amor de Adónis, como no que se à sua beleza dizia respeito. É que Afrodite não admitia que nenhuma outra deusa ou mulher tivesse uma beleza comparável à sua, punindo os mortais que se atrevessem a desafiá-la, comparando a sua formosura com quem quer que fosse. Adónis era o jovem mais belo de toda a Grécia. Aprendeu com Afrodite a arte do amor, os segredos do corpo e do prazer. Um dia, enquanto a deusa descansava à sombra de uma árvore, Adónis caçava javalis. Ao atirar, atingiu um deles com uma flecha. Mesmo ferido, o animal teve forças para atacar e abater mortalmente o belo caçador. Ao ouvir os gritos de Adónis, Afrodite correu em seu auxílio. Mas chegou tarde demais, encontrando o seu jovem apaixonado, já sem vida. Abatida por uma dor infinita, a deusa recolheu algumas gotas do sangue do amado, regando com elas o chão, onde o jovem havia tombado. Do sangue de Adónis nasceu uma flor, a anémona, de vida efémera, florindo e renascendo em cada primavera, a relembrar o amor perdido pela deusa, também ele passageiro.

Outro dos amantes de Afrodite foi o próprio Zeus que, no entanto, nunca quis divulgar este seu enlevo, uma vez que a sua esposa Hera era muito ciumenta e Zeus tinha medo que Afrodite e ela fizessem algo que prejudicasse o seu casamento.

Outro deus que se apaixonou perdidamente por Afrodite, foi Ares que levava sempre para os seus encontros com a deusa, o jovem Aletcrião, deixando-o de vigília enquanto amava a bela deusa. Uma noite, porém, Alectrião deixou-se adormecer, enquanto Ares e Afrodite se entregaram, voluptuosamente, um ao outro. De manhã, quando Hélio, o deus Sol, despontou o dia, surpreendeu o ilícito idílio dos dois amantes. Indignado, Hélio procurou Hefesto e contou-lhe da traição da esposa. Na sua fúria de marido traído, Hefesto deixou-se abater pela tristeza, mas passado algum tempo, já recuperado, traçou um plano de vingança. Confeccionou uma rede invisível com finíssimos fios de ouro, tão resistente que nenhum homem ou deus a pudesse romper. Hefesto armou a sua rede sobre o próprio leito da traição, dizendo à esposa que se iria ausentar por alguns dias, partindo, de imediato, sem maiores explicações.

Cuidando que Hefesto estaria ausente, Ares e Afrodite entregaram-se, de novo ao prazer louco, enchendo-se de felicidade. Viveram uma noite de amor, descansados, sem o medo de serem surpreendidos. Movidos por uma arrebatadora paixão, deitaram-se, felizes, sobre o leito armadilhado. Só deram pelo ardil minutos depois, quando se viram prisioneiros da rede invisível. Naquele instante, Hefesto surgiu, cheio de cólera, gritando com uma voz tão forte, que se fez ouvir em todo o Olimpo. Todos os deuses acorreram e, presenciando a traição, testemunharam o crime dos dois amantes.

Hefesto estava disposto a deixar para sempre os amantes prisioneiros. Só através da mediação de Apolo se predispôs a soltá-los. Livre e envergonhada, Afrodite partiu para Chipre, sua ilha predilecta, enquanto Ares foi degredado para os campos de batalha da Trácia, a fim de esquecer, na guerra, as dores do amor findado.

Depois do degredo, Afrodite raramente descia à terra, relacionando-se com os mortais, adquirindo uma forma humana, possuindo o sublime poder de manipular um homem não só com a sua beleza e formosura, mas também com o seu olhar, ou simplesmente com o contacto físico ou mental.

Ainda hoje, Afrodite desperta o fascínio dos humanos, e dela se contam lendas das mais difundidas sobre a mitologia greco-romana, sendo o mito do seu nascimento, um dos mais explorados nas artes, nomeadamente, na pintura.

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publicado por picodavigia2 às 15:41

O SEGREDO DA PRINCESA

Domingo, 27.10.13

Era uma vez um rei que tinha uma filha, muito bonita e elegante mas cuja vida estava envolta num grande mistério. Passava os seus dias no palácio, na companhia de damas e pajens, mas à noite, a regressar ao palácio, recolhia-se, apressadamente, solitária, aos seus aposentos. Mais estranho e enigmático ainda, era o facto de que, todas as manhãs, os seus sapatos e roupas apareciam usados, como se tivesse estado a dançar a noite inteira. Ninguém conseguia perceber o que se passava.

Preocupado, o pai fez saber por todo o reino que se alguém descobrisse o mistério casaria com a princesa e herdar-lhe-ia o trono, após a sua morte. Mas aqueles que tentassem e, ao fim de três dias, não o conseguissem, seriam decapitados.

Apareceram príncipes de reinos vizinhos, apareceram jovens, filhos dos mais nobres dignitários da corte, apareceram ilustres varões do reino, jovens valorosos e destemidos, mas nenhum conseguiu descobrir o enigma, apesar de pernoitarem num quarto próximo daquele onde a princesa dormia, deixando a porta aberta, por isso, todos tiveram a mesma sorte, perdendo a vida da mesma forma.

Um rapazito que vivia no reino, perto do palácio, também resolveu tentar a sua sorte. No entanto, quando seguia, a caminho do palácio real, encontrou uma velhota, que lhe perguntou onde ia, ao que ele respondeu:

- Não sei onde vou, ou o que devo fazer, mas o que gostava de saber era onde a filha do rei vai durante a noite e, assim, talvez pudesse chegar um dia a desposá-la e a ser rei.

- Bem, - disse a velha - isso é uma tarefa muito difícil. Simplesmente, tens que ter cuidado e não beber do vinho que a princesa te dará, antes de te deitares. Depois finge que adormeces, mas mantém-te bem acordado.

De seguida deu-lhe uma capa e disse-lhe:

- Mal vistas esta capa, tornar-te-ás invisível, e poderás, então, seguir a princesa para onde ela quer que for.

Quando o rapaz ouviu estes conselhos, ficou ainda mais determinado a tentar a sua sorte e, por isso, foi ter com o rei, dizendo-lhe que estava disposto a desempenhar a tarefa de descobrir o segredo da princesa.

O rei aceitou e, ao anoitecer, o rapaz foi levado ao quarto da princesa. Quando se estava a deitar-se, ela entrou e, amavelmente, ofereceu-lhe um copo de vinho, mas o rapaz, habilmente, deitou-o fora sem que disso ela se apercebesse. Depois, deitou-se na cama e passado um pouco, começou, simuladamente, a ressonar alto, como se estivesse a dormir em sono profundo.

Quando a princesa percebeu que ele estava a dormir, riu-se, cuidando que o desgraçado havia de ter o destino de todos os outros. Assim, levantou-se, de imediato, abriu gavetas e caixas, tirou as suas melhores roupas, vestiu-se ao espelho e começou a saltitar como se estivesse ansiosa por começar a dançar.

Depois de pronta e arranjada, a princesa olhou para o rapaz que continuava a ressonar como se estivesse a dormir. De seguida bateu palmas e logo se abriu um buraco no chão, no qual a cama se afundou. O rapaz viu-a descer pelo buraco e pensando que não tinha tempo a perder, saltou da cama, vestiu a capa que a velhota lhe tinha dado, e saltou para o buraco, seguindo-a.

A meio das escadas, porém, descuidou-se e, com a preocupação de não perder a princesa de vista, pisou-lhe o vestido como pé. Como se voltasse e não visse ninguém, a princesa continuou a descer, até que chegou a uma encantadora clareira de árvores, cujas folhas eram de prata e brilhavam belissimamente. O rapaz partiu uma folha e guardou-a no bolso. Pouco depois, chegaram a outra clareira, onde todas as folhas das árvores eram de ouro e ainda a uma terceira, onde as folhas eram de diamantes. Em ambas o rapaz quebrou uma folha que guardou no bolso. Continuaram a andar até que chegaram a um grande lago, junto ao qual estava um pequeno barco com um príncipe, que parecia estar à espera da princesa. Esta entrou no barco e o rapaz voltou a segui-la entrando, também, para o bordo.

O príncipe começou a remar, mas o barco, praticamente, não andava:

- Não sei porquê, mas apesar de estar a remar com todas as minhas forças, parece que o barco, hoje, não anda tão rápido como habitualmente. O barco parece muito pesado – queixava-se o príncipe

- Deve ser do calor que está, - disse a princesa. - Eu também me sinto muito quente.

Embora lentamente, acabaram por chegar à margem oposta do lago, onde se erguia um belo castelo muito iluminado, de onde vinha música alegre e maviosa. Ao chegar a terra dirigiram-se para o castelo, dando-se início a um baile, em que a princesa e o príncipe foram os protagonistas.

Dançaram até de madrugada, deixando, a princesa, os sapatos tão gastos tão gastos que foi obrigada a abandonar o baile e ir-se embora. O príncipe conduziu a princesa e o rapaz, sempre invisível, até à outra margem do lago e regressaram ao palácio real. Quando subiam as escadas, o rapaz correu à frente e deitou-se sem que a princesa disso se apercebesse. Esta, ao entrar no quarto e, certificando-se de que o rapaz continuava a dormir, deitou-se e adormeceu tranquilamente.

De manhã, o rapaz não disse nada sobre o que tinha acontecido, decidindo proceder de forma idêntica mais duas noites. Tudo aconteceu da mesma forma: a princesa dançava sempre até não poder mais e depois voltava a casa. Na terceira noite o rapaz, cuidando que não voltaria ali, trouxe consigo um dos copos de ouro onde era servido o vinho, durante o baile.

No dia seguinte, decidiu contar o segredo da princesa, ao rei. Foi conduzido à presença do monarca e da princesa, levando as três folhas e o copo de ouro.

O rei perguntou-lhe:

- Onde é que dança a minha filha, durante toda a noite, até romper os sapatos?

O rapaz, sem demoras respondeu:

- Com um príncipe, num castelo subterrâneo, onde todas as noites se realizam grandes festas. – E, de seguida contou ao rei tudo o que tinha acontecido naquelas noites e, como prova, mostrou-lhe as três folhas e o copo de ouro que tinha trazido consigo.

A princesa, ao ver-se descoberta, percebeu que não mais poderia ocultar o seu segredo e, por isso, confessou ao pai toda a verdade.

Nem foi preciso que o pai lhe ordenasse. A princesa prostrou-se diante do rapaz e, admirada com a sua perspicácia, pediu perdão a ele e ao pai. O rapaz ergueu-a e, beijando-a, prometeu amá-la e fazê-la mais feliz mais do que nenhum príncipe, alguma vez, a faria. Passado algum tempo casaram, mas esta história não esclarece, como as outras, se, afinal, foram ou não foram felizes para sempre.

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publicado por picodavigia2 às 16:47

O OUTEIRO

Sábado, 26.10.13

Estava-lhe no sangue. Era como se fosse uma parte de si própria. Estampado, ali mesmo ao lado da casa onde nascera, onde crescera e onde sempre viveu, o Outeiro, sobranceiro ao povoado, fazia parte do seu quotidiano, da sua vida, tal como um amigo fiel, confidencioso e inseparável.

Desde pequenina que Carla se habituara a procurar, ali, bem no alto, entre pequenas árvores e grosseiros pedregulhos, o palco apetecido e inócuo das suas brincadeiras e folguedos. Os incensos, os sanguinhos, os folhados e uma ou outra babosa, a crescerem à porfia, forrados de um verde apetecível, deslumbrante e suculento, pareciam-lhe fantasmas encantadores e mirabolantes que povoavam o seu universo sonhador e lhe transmitiam uma alegria e uma felicidade inaudíveis e os enormes calhaus basálticos, soltos e crespidos, caiados de musgos e limos, eram monstros arrebatadores e provocantes, a embalá-la numa fantasia perfumada e deliciosamente infinita. Até a enorme cruz, branca, ingente e altiva, plantada ali sobre o povoado, como que a abençoá-lo e a protegê-lo, parecia-lhe um castelo gigante, morada de príncipes encantados, ornado de vitrais coloridos e em cuja torre de menagem repicavam, festivamente, sininhos de tamanhos diferentes e de sons diversos.

Depois viera a juventude e o Outeiro, outrora oráculo de inocência e fantasia, ora se transformava num companheiro e amigo com quem partilhava sonhos e anseios, ora se metamorfoseava num covil, esmorecido e sombrio, onde desabrochavam desejos e ambições, ou num tugúrio de soturnidade e desencantos, onde despejava o desassossego das suas goradas e desgostosas inebriações. Os fantasmas da fascinação transvertiam-se em horóscopos de deslumbramentos atrofiados e os monstros empolgantes, outrora construídos sob os penhascos, soltavam-se trôpegos, como se fossem gaivotas em voos entontecidas   

Agora, com trinta anos, Carla ainda procurava o Outeiro, mas sentia-o diferente, embora o amimasse com o mesmo carinho da infância, o amasse com o mesmo ardor da juventude e o demandasse numa paixão incontida. Era uma espécie de prodígio petrificado, agreste e desértico, onde o perfume bravio dos incensos e dos sanguinhos, a salubridade telúrica dos rochedos, o sabor dulcificado do alecrim e do poejo se confundiam com uma estranha, indolente e inconstante nostalgia. Ainda se sentia jovem, embora displicente no corpo e selvagem na alma, e continuava a sonhar, ali, embrenhada naquele andurrial, cujo silêncio e o remanso lhe transmitiam uma paz inconfundível e uma tranquilidade abundante. Agora era a vista que dali desfrutava sobre o povoado, que mais a encantava, enternecia e a forçava a galgar horizontes perdidos e intransponíveis. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, mais além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. Encravada, quase no cimo do Outeiro, a cruz continuava branca, ingente, altiva e teúrgica, como se fosse um santuário de sacrifícios, preces e oferendas. Era junto a ela que, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse, quer ventasse, ajoelhava, entoando cânticos e impropérios diversos e prolongados e, por isso mesmo, continuava a impor-se como símbolo duma sacralidade dolente, taciturna e humanizada. Parecia-lhe ouvir, mesmo em pleno dia, as vozes dos cantores ecoando nas encostas dos montes, ressoando e repercutindo-se sobre os velhos telhados dos casebres. Nesses momentos, como em todas as outras casas, ela ajoelhava também e, em simples mas sincera oração, unia-se às preces dos cantores e de todos os habitantes da freguesia e suplicava perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores. Por isso mesmo agora, mais do que na infância ou na juventude, tentava encontrar naquele cerro os ecos dos cânticos e das súplicas que lhe incendiassem o corpo e purificassem a alma. Procurava ali, no remanso da taciturnidade, o enigma do seu próprio destino. Mas a resposta vinha-lhe tão vaga, tão vazia, e tão desnudada, cerceada pelo sopro acutilante do vento norte. E os campos, lá em baixo, cobriam-se de um nevoeiro amarelado, ocultando-se num silêncio abrupto e profundo, misturado com os ecos roufenhos do estonteante estrebuchar das ondas contra escolhos e baixios e com os gritos agonizantes das gaivotas perdidas nos remoinhos do vento norte. Lá em baixo, no povoado, velhos, novos, homens, mulheres e crianças fervilhavam num desassossego perturbador, entre vagas de murmúrios, num labirinto de mexericos, num turbilhão de comentários, de interrogações, de ódios e enganos, entre suplícios e tormentas que ela joeirava, purificando-os e retirando-lhes o doloroso amargo dos espinhos.

E no sempre persistente remanso do Outeiro, Carla escrevia com o fumo emaranhado das fogueiras que nunca acendera, o restolho dos sonhos que ali sempre embalara e que, agora, se perdiam em projectos cheios de um rumor alvoroçado.

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publicado por picodavigia2 às 00:40

NEVOEIROS

Quinta-feira, 24.10.13

Fechou os olhos e sentiu um enorme calafrio. Parecia-lhe que os insensatos e inverosímeis sonhos de criança se esvaziavam por completo. Em todo o caso, manteve-se pensativa, sentindo que aquele doce perfume de luar que a noite, escuramente assumida, trazia, a transfigurava.

Foi então que, nesse momento, sentiu que havia um enorme e enigmático mistério a toldar-lhe a vida, talvez, até, a moldar-lhe o destino. Não queria desperdiçar as ilusões que o futuro parecia reservar-lhe. Em criança tivera um arsenal inteiro de quimeras que se haviam esvaído com a juventude. No dia em que deixou cair toda esses sonhos míticos, esses assombros encantadores, ficou apenas, a envolvê-la, uma enorme dúvida, numa espécie de desintegração total e absurda. Não poderia confessá-lo e, para o esconder, possuía um só argumento: limitar-se a negar todas as evidências, com palavras e com gestos, mesmo de forma disfarçada e denunciadora. Formulava, assim, uma incredulidade inaudita, sobretudo para si própria. Mas diante de uma realidade tão sonora e tão doce, embora incongruente e enigmática, era-lhe impossível encolher os ombros e permanecer indiferente.

No dia seguinte, ele entrou na sala e cuidou, presumidamente, vê-la estremecer, sensibilizar-se e ocultar um sentimento estranho. Não pode deixar de sentir-se lisonjeado. Ela olhava-o com ternura deslumbrante. Muito provavelmente, a amizade transformara-se num mistério frio e estranho, numa credenciação inaudita. Olhou-a de forma a não lhe dar a conhecer a anuência do seu regozijo. Realmente, era graciosa sem ser elegante, bela sem ser bonita e forte sem ser fascinante. Era viva nos gestos, expedita nas atitudes, comedida nas palavras, deslumbrante no sorriso, encantadora nos olhos grandes e cálidos, na boca fina e no espectro global da sua essência, permanentemente, interrogativa. O seu porte grave e sisudo fazia-o estremecer e transformar-se num ingénuo, sem acção, sem iniciativa e sem intuição.

A convivência quotidiana, entre os reflexos da aurora e o estrebuchar do amanhecer trouxe-lhes uma certa intimidade. Como daí chegar ao amor, nunca o souberam, nem muito menos o confessaram um ao outro. Mas verdade é que gostavam de passar as horas juntos, em perfeita harmonia, mesmo que fosse com os olhos fixos no infinito, a olhar coisa nenhuma. As próprias palavras, quando as havia, eram vulgares, fúteis, dispersas e silenciosas. Mas até os silêncios eram sublimes, deleitosos e, estranhamente, eloquentes.

E o crepúsculo da madrugada seguinte, voltou a fechar-lhe os olhos. Ao longe, como em eco, sussurravam as palavras que ele nunca havia de lhe ouvir. A luz era pouca, os degraus carcomidos pelos pés dos transeuntes, o corrimão enferrujado, pegajoso, a abarrotar de um cheiro a bafio. Ele não a viu, nem voltaria a encontrá-la, porque o tecto do mundo, telúrico e agreste, estava coberto de nevoeiros densos e dos montes desciam sombras, como se fossem fantasmas inertes, apodrecidos e inúteis. Nada pairava sobre as nuvens mas a permanente ausência dele, fustigava-lhe o sangue, perturbava-lhe a alma, amordaçava-lhe o destino.

Olhou três vezes ao redor e, outras tantas, bateu à porta. Se esta se abrisse, lá dentro havia de encontrar uma escuridão apenas entrecortada por um ténue fiozinho de luz solar que entrava pela fresta duma janela mal fechada. Mas a porta comunicava com um enorme jardim, povoado de gladíolos, açucenas, begónias e malmequeres e onde havia apenas uma mesa. Lá dentro? Velhos trastes, resíduos de um trémulo regozijo, paredes sombrias, frias, despidas de poemas e vazias de sentimentos. Um ar de pobreza desgastante que lhe aumentava a dor e lhe destruía o fascínio. Abriu a porta com intenção de sentar-se sobre o silêncio da madrugada, diante da mesa, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz que por ali entrava lhe batesse, em cheio, no rosto. Ela partira, para sempre e os nevoeiros do cimo dos montes, haviam descido as encostas, enrolando-se nas árvores, nas casas e entrando pelas portas e janelas abertas. Voltou-se para o mar e fixou o horizonte… Um nevoeiro ainda mais intenso do que o das montanhas, encobria o mar e o céu, desfazendo aquele abraço eterno e infinito.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:15

CIRCE

Segunda-feira, 21.10.13

Ulisses era filho de Laertes, rei de Ítaca, de quem herdou uma enorme astúcia e uma nobre valentia, e de sua mulher Anticleia. Cresceu e sucedeu ao seu pai no trono de Ítaca. Mais tarde, embora apaixonando-se por Helena de Esparta, casou com Penélope, de quem teve um filho, Telémaco.

Terminada a guerra de Tróia, na qual teve um papel de relevo, Ulisses regressou a Ítaca, sendo vítima duma atribuladíssima viagem. No decurso da mesma, juntamente com a sua tripulação, depois de passar por muitos tormentos, foi levado, pelo acaso, até uma praia, na ilha de Eana, aparentemente deserta. Ulisses desembarcou na ilha, subiu a um morro e, olhando ao redor, nada mais viu do que um grande e belo palácio, rodeado de árvores frondosas, situado no interior da ilha. Na tentativa de saber quem o habitava e se haveria ali alguém que o pudesse auxiliar e dar-lhe as informações julgadas necessárias para prosseguir viagem, Ulisses enviou a terra, com destino ao palácio, um grupo de homens, chefiados por Euríloco, para verificar com que hospitalidade poderia contar. Ao aproximarem-se do palácio, os homens viram-se rodeados por leões, tigres, lobos e outros animais ferozes mas que, estranhamente, não os atacavam. Eram domados pelas artimanhas duma bela mulher que habitava o palácio, chamada Circe, uma espécie de deusa com um misto de feiticeira, muito bela, poderosa e deslumbrante que ali vivia, rodeada de luxo e sumptuosidade. Circe era filha de Hélio, deus-sol e da ninfa Pérsia. Por ter envenenado o seu marido, o rei dos sármatas que habitavam o Cáucaso, foi obrigada a exilar-se naquela ilha, cujo nome significava "pranto". Da sua beleza e grandiosidade emanava uma luz ténue e fúnebre, que a identificava como a deusa da Lua Nova, da morte, do amor físico, da feitiçaria, dos encantamentos e dos sonhos precognitivos. Junto ao palácio viviam muitos animais que outrora tinham sido homens e que a bela Circe, com as suas artimanhas e encantamentos, havia transformado em feras.

Os homens enviados por Ulisses não sabiam disso e deixaram-se encantar por uma música suave e, sobretudo, pelo som de uma maviosa voz de mulher, vinda do interior do palácio. Era a misteriosa deusa e feiticeira Circe. Euríloco chamou-a em voz alta, e a deusa apareceu e convidou os recém-chegados a entrarem, o que fizeram de boa vontade, excepto Euríloco, que desconfiou de embuste. A deusa recebeu muito bem os visitantes, cada vez mais encantados com a sua beleza e os seus encantos e convidou-os a se sentarem ao seu redor, servindo-lhes vinho e guloseimas diversas. Os homens divertiram-se à farta, beberam em demasia, embriagando-se por completo. Foi então que Circe lhes deu um licor especial e, tocando-os com uma varinha de condão, fez com que se transformassem, imediatamente, em porcos, com cabeça, corpo e voz de porco, mas conservando a inteligência e os sentimentos de homens.

Euríloco, espreitando por uma janela, viu tudo e apressou-se a voltar ao navio e a contar, a Ulisses, o que se tinha passado. Ulisses, então, resolveu ir ele próprio, tentar a libertação dos seus companheiros. Enquanto se encaminhava para o palácio, atravessando a ilha, encontrou-se com a deusa Minerva que o ajudou, informando-o sobre o triste destino de seus companheiros, transformados em animais pelo poder de Circe, e instruiu-o sobre a maneira como se devia proteger dos seus feitiços. Para tal deu-lhe uma erva mágica, dotada de um poder enorme, capaz de resistir às bruxarias de feiticeira e ensinou-lhe o que deveria fazer, para lhe não acontecer destino idêntico ao dos seus companheiros. Ulisses prosseguiu e, ao chegar ao palácio, foi recebido cortesmente por Circe, que o obsequiou como fizera com os outros. Depois de ele comer e beber, deu-lhe o licor mágico e tocou-o com sua varinha de condão. Mas Ulisses, apenas, simulou beber o licor e, desembainhando a espada, investiu contra Circe, que caiu de joelhos, diante dele, implorando-lhe clemência. Ulisses ditou-lhe uma fórmula de juramento solene que ela havia de proferir e que a obrigava a libertar os seus companheiros e a não cometer novas atrocidades contra eles ou contra o próprio Ulisses. Circe repetiu o juramento e prometeu deixá-lo partir são e salvo, assim como os seus marinheiros. Depois recebeu-os a todos de bons modos e hospitaleiramente.

Circe cumpriu o que prometera - os homens readquiriram as suas formas humanas, o resto da tripulação foi chamado da praia e todos foram tratados magnificamente bem durante vários dias, a tal ponto que Ulisses, parecendo ter-se esquecido de Penélope e de Ítaca, decidiu ficar ali, resignando-se àquela vida de ócio, de prazer e de paixão intensa. Ulisses passou algum tempo na companhia de Circe, da qual teve um filho a que deram o nome de Telégono.

Passado algum tempo, a pedido dos seus companheiros, Ulisses decidiu partir. Circe, inicialmente, solicitou-lhe que o não fizesse, mas depois anuiu e até o ajudou nos preparativos para a viagem, ensinando-lhe como devia proceder para passar são e salvo, ele e os seus companheiros, ao atravessar o mar das Sereias. As Sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com seu canto todos os que o ouvissem, de modo que os infortunados marinheiros, na ânsia de a elas se juntarem, sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirarem ao mar, onde encontravam a morte.

Circe aconselhou Ulisses a tapar com cera os ouvidos dos seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto e a amarrar-se ele próprio no mastro dando instruções a seus homens para não libertá-lo, mesmo que, desesperadamente, lho pedisse.        

Apesar de Circe o impedir de ser engolido no mar das Sereias, Ulisses abandonou-a para sempre, deixando-a só e triste, no seu palácio da ilha de Eana.

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publicado por picodavigia2 às 15:36

O AMERICANO

Domingo, 20.10.13

A notícia correu que nem um foguete: Vinha aí, de visita, um americano, um neto do Fraga das Courelas.

Os parentes mais chegados, num misto de incredulidade e perturbação, começaram a cobrir inhames, a engordar um bácoro e, um ou outro, até caiou a casa. Alguns que não eram parentes começaram numa roda-viva a tentar descobrir se, do lado da mãe ou pela banda do pai, não haveria ainda ali um parentesco desconhecido com o velho Fraga, que fosse coisa de se esclarecer. A jogar pelo seguro, sempre era bom ter uma meia dúzia de galinhas gordas, guardar uns toros de linguiça, plantar mais uma belga de batatas-doces ou uma terra de inhames. Para quem o neto do Fraga era simplesmente “mais um americano”, uma cestinha de maçãs ou uma réstia de cebolas, à mão, podia ser que, de um momento para o outro, “desse um jeitão”.

Porém, na realidade, pouco se sabia, sobre tão ilustre visitante. Apenas depois de chegar à freguesia, num português muito arrevesado, foi explicando que se chamava Johny, era filho do Júlio Fraga (de quem muitos ainda se lembravam) e, consequentemente, neto do velho Manuel Fraga. O pai partira para a Califórnia, ainda muito novo. Fixou-se no Mendoccino County, casou, fez fortuna, mas nunca mais voltou às ilhas. Era ele que agora realizava o que o pai apenas sonhara.

E o neto do Fraga, de um momento para o outro, pôs toda a freguesia em polvorosa. Nunca se vira um americano tão bonito, tão elegante, sempre muito bem vestido, aprumado, a fumar cigarros com filtro, sapatos de verniz e chapéu de palhinha. Tinha bons modos, cheirava que era um consolo e, aos domingos, até usava, ao pescoço, um lacinho muito colorido, em vez da gravata. Mas o que mais atraía a atenção de todos era a fama de que tinha muitas “dólas”. Tornou-se, pois, lendária, na freguesia, a presença do americano, gerando um enorme corrupio para os lados das Courelas, o que aumentava a raiva e o desespero dos parentes que o haviam hospedado e que o queriam só para si.

Foram as meninas solteiras, quem mais se empolgou na apreciação dos gestos, dos gostos, das atitudes e de tudo o que fazia ou dizia o senhor americano. Johny Fraga nunca se vira tão bajulado e idolatrado.

De todas as raparigas da freguesia, foi a Josefina do Louro quem mais se afeiçoou ao moço. Não a atraía a doçura do perfume, o colorido da roupa, o verniz dos sapatos, o filtro dos cigarros, nem sequer “as dólas” que se supunha possuir. Era amor verdadeiro, o da Josefina. Era paixão. E Jonhy, muito experiente na arte de enfeitiçar o mulherio, percebeu logo. Se ela o amava, havia que aproveitar a safra! A novidade propagou-se. O americano e a Josefina estavam noivos.

Agendou-se o casamento, fizeram-se os proclamas, mataram-se duas rezes, cozeram-se fornadas e fornadas de pão e rosquilhas, que a freguesia fora toda convidada. No dia do “casório” repicaram os sinos, tocou a filarmónica, fez-se uma boda como não havia memória na freguesia.

Passou-se um mês, dois meses e Johni Fraga informou a sua consorte que tinha de regressar à América. Os negócios na Califórnia exigiam a sua presença. No entanto, partiria só. Josefina, que até se esmerara na aprendizagem do inglês, havia de ir ter com ele mais tarde. Tudo fácil, “very easy”.

E numa manhã enevoada e cinzento Johni Fraga partiu, deixando a Josefina envolta numa saudade tremenda, com meia centena de dólares e um filho no ventre.

Esperou Josefina. Esperou e desesperou. Da América, nada. Nem carta, nem notícia, nem muito menos dinheiro para o filho. E o bisneto do velho Fraga nasceu envolto pela caridade dos vizinhos.

Josefina desesperou. Desesperou e chorou. Chorou dias e noites, debruçada sobre o berço do pequeno Tony, que nunca percebeu a razão de ser da dor de sua mãe. Correram vozes estranhas, espalharam-se mexericos humilhantes, soltaram-se comentários maliciosos. Mas do americano nada mais se soube…

Nada mais se soube, até um dia… Já o pequeno Tony trincava côdea de pão de milho, rijo e bolorento, já Josefina secara as lágrimas, quando chegou à freguesia a notícia fatídica: Jonhy Fraga, o americano da Josefina do Louro, fora descoberto, condenado e preso, na Califórnia, por bigamia.

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publicado por picodavigia2 às 00:09

A PONTE DE AMARANTE

Sexta-feira, 18.10.13

Baluarte de uma persistência inglória e vítima de uma loucura vácua, a ponte sobre o Tâmega, em Amarante, possui uma história de beleza singela, ou melhor, uma lenda de encanto inigualável. Consta que foi São Gonçalo que, em vida, miraculosamente a construiu. Mas mesmo com tão santo e douto construtor, a ponte, algum tempo após a sua construção, acabou por ruir e desaparecer, definitivamente.

Reza a lenda que Frei Gonçalo decidiu construir uma ponte, nas margens do Tâmega. O frade havia-se compadecido das dificuldades e agruras dos seus conterrâneos, que ali labutavam, sendo, vezes sem conta, impedidos de atravessar o rio de uma para outra margem, devia à força da sua corrente e ao perigo do seu caudal, sobretudo em momentos de grandes chuvadas. O seu objectivo era, simplesmente, o de ajudar a vida e aliviar a miséria dos pobres e humildes camponeses. Como não tinha dinheiro para fazer a ponte, mandou pedi-lo a um homem muito rico mas também muito avarento. O somítico não queria dar o dinheiro mas também temia recusar um pedido do frade. Para resolver o imbróglio, informou o frade de que lhe dava apenas o dinheiro equivalente ao peso de uma folha de papel. Frei Gonçalo concordou e levou-lhe um papel. O avarento colocou o papel num dos pratos da balança e começou a deitar pequeninas e leves moedas no outro prato mas, por milagre, o papel pesava tanto, tanto que o homem foi obrigado, para não faltar com a palavra dada, a colocar na balança uma grande quantidade de dinheiro. Foi com este dinheiro que Frei Gonçalo conseguiu construir a ponte.

Conta ainda a lenda que, sendo o diabo um ganancioso, quando viu que Frei Gonçalo construía uma ponte sobre o Tâmega, em Amarante, ficou roído de inveja e encheu-se de raiva. Cuidava o mafarrico que os camponeses se haviam de voltar ainda mais para Deus e para o frade. Por isso mesmo, decidiu também construir uma ponte igual, numa outra localidade, próxima d’ali, a fim de também conquistar a gratidão dos fiéis. Se bem o pensou, melhor o fez. Ao terminar a sua obra, o diabo, simulando uma estranha galhardia, veio convidar Frei Gonçalo para ir vê-la, recomendando-lhe, no entanto, que nem por sombras pensasse em tocar-lhe ou, muito menos, benzê-la. Frei Gonçalo aceitou o convite e acabou por reconhecer que, a obra do diabo era, na verdade, melhor do que a sua, pelo que teceu grandes elogios à ponte, enaltecendo a sua beleza, louvando a sua grandiosidade, exaltando o seu encanto, regozijando-se com a sua excelência.

O diabo, pelos vistos, ainda mais vaidoso ficou com tanta galantaria, começou a caminhar à frente de Frei Gonçalo. Mas este vendo o diabo enlevado e distraído com tão grandes gabos, ergueu o cajado na direcção da ponte e fez, no ar, uma enorme cruz, em sinal de bênção. A ponte que o diabo construíra ruiu com enorme estrondo, desfazendo-se por completo.

O diabo ficou furioso e começou a correr espavorido até ao cimo de um monte, sobranceiro à ponte que Frei Gonçalo construíra. Cheio de ódio, de raiva e de fúria, começou a atirar pedras ao frade. Só que estas eram tão grandes e tanto rolaram e voltaram a rolar pelas encostas, atingindo tão grande velocidade que chegaram até a Amarante, acabando por derrubar e destruir, quase por completo, a ponte que Frei Gonçalo construíra para benefício do seu povo.

Como sobrassem alguns vestígios da ponte, Frei Gonçalo ainda encetou algumas tentativas de a restaurar. Porém, sempre que o fazia, o diabo enfurecia-se ainda mais, voltava ao cimo do monte, rolando enormes pedregulhos na direcção da ponte, até que a destruiu por completo, fazendo com que desaparecesse para sempre.

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publicado por picodavigia2 às 00:00

PERSISTÊNCIA

Quarta-feira, 16.10.13

A Doutora Patrícia do Carmo Moreira Alves é, hoje, uma distinta e competente médica. Especializada em Oncologia, para além da sua actividade hospitalar diária, tem desenvolvido um importante trabalho de investigação, pesquisa e estudo nas áreas da imunoterapia e da imunoprofilaxia de doenças infecciosas e parasitárias.

Conheci a Patrícia era ela ainda criança e frequentava a primeira classe. Embora não acompanhando, nessa altura, o seu percurso escolar, soube que, ao longo de toda a sua permanência no primeiro ciclo, foi uma aluna brilhante, estudiosa, inteligente, aplicada e trabalhadora, para além de simples, meiga, carinhosa e ternurenta.

No segundo ciclo, porém, quis o destino, que fizesse parte de uma das turmas que me foi confiada, no início de um novo ano lectivo Uma alegria e um contentamento para ela. Um enlevo e um encanto para mim.

Senhora de uma vontade férrea em aprender, movida por um enorme desejo de estudar impulsionada pela exigência de ser brilhante, participava nas aulas com um interesse desmesurado e uma atenção permanente, estudava com entusiasmo e empenho e realizava com gosto e eficiência as tarefas de aprendizagem que lhe eram propostas. Aliava à excelência das suas capacidades intelectuais e aos excepcionais desvelos de aprendizagem, um enorme sentido de responsabilidade, uma esmerado empenhamento em tudo o que fazia e uma transcendente alegria de viver. Concluiu o segundo e o terceiro ciclos, com excelentes resultados. Um senão, no entanto, pesava no seu quotidiano e obstaculizava a continuidade dos seus estudos. Os pais eram muito pobres e a família numerosa. A obrigatoriedade de começar a trabalhar, após o terceiro ciclo, era, por conseguinte, uma exigência que lhe cerceava a continuidade dos estudos.

No final do nono ano, ao ver barrada a possibilidade de prosseguir os estudos, procurou-me para desabafar as suas mágoas e confessar o seu desalento. O seu sonho era frequentar a Universidade, tirar um curso superior e a sua grande vontade era ser médica.

Tentei compreendê-la e apoiá-la, aconselhando-a de que talvez fosse melhor e sobretudo, mais concretizável, tirar um curso profissional de que gostasse, ligado à área da saúde, porque menos demorado, sem exigências do décimo segundo ano e, além disso, bastante mais económico. Impensável! Podia eu acreditar e um dia havia de ver: custasse o que custasse, demorasse o que demorasse, havia de tirar um curso superior e havia de ser medicina. Perante tamanha convicção e conhecendo, não apenas as suas capacidades intelectuais mas também a vontade férrea de sempre conseguir o que pretendia, encorajei-a e desejei-lhe sorte, muita sorte.

Por exigência dos pais, a Patrícia, começou a trabalhar, numa fábrica de confecções. Cuidei que fosse o termo dos seus sonhos, até porque a morte repentina do pai, pouco tempo depois, veio estigmatizar-lhe ainda mais a vida e o destino. Mais tarde, foi a falência da fábrica que a desempregou e lhe trouxe maiores dificuldades. Mas, pelo contrário, estes e outros dissabores como que lhe acicataram, ainda mais, a vontade de lutar e singrar na vida. Trabalhou no campo, serviu em casas, fez limpezas em condomínios e, finalmente, começou a estudar de noite. Através de concurso, conseguiu um lugar de auxiliar de acção educativa num Jardim de Infância. Aos fins-de- semana, no entanto, continuava a trabalhar em supermercados ou em promoções de vendas. Apenas à noite frequentava as aulas e estudava. Ao fim de três anos completou o Ensino Secundário com a média necessária para entrar em Medicina. Continuando a trabalhar, embora beneficiando do estatuto de trabalhadora estudante e conseguindo um empréstimo, que bolsas de estudo foram-lhe sempre recusadas, ao fim de alguns anos terminou o Curso de Medicina. Fez a especialidade, a pós graduação e o douramento, tendo, no entanto renunciado à carreira de auxiliar de acção educativa.

Hoje é uma médica conceituada com um notável e impressionante currículo, sobretudo, na área da investigação, tendo já diversos trabalhos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. Mantém a lhaneza, a inocência e a simplicidade de criança, a força, a beleza e vontade de querer da juventude. Confessa sentir-se profundamente realizada, não tanto pelo que é, mas por o ter conseguido por ela própria, graças à sua firmeza de vontade, à persistência de lutar, ao transpor de barreiras e, também, às suas capacidades naturais. Lutou e venceu os obstáculos que a vida lhe colocou e conquistou, por si própria, o direito não apenas de identificar e definir a sua missão de vida mas, sobretudo, de conquistar os percursos da sua própria realização profissional.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A POÇA DA SEREIA

Segunda-feira, 14.10.13

A zona do baixio, situada entre o Calhau da Barra e o Cais, era um mamarracho negro, pétreo, abrupto mas bastante amplo, entrecortado, na orla marítima, por minúsculas enseadas e pequenas baías, umas e outras a separarem-se por promontórios pejados de caranguejos, carregados de lapas e revestidos de algas alaranjadas e roxas, que as ondas, ora altivas e tempestuosas, ora calmas e tranquilas, umas vezes cobriam com fulgor outras acariciavam com ternura. O interior, deserto de vegetação, delineado a nascente, pelo caminho que, logo acima, desembocava na Via d’Agua e no início do qual e à beira do Cais, se encravava um pequeno e débil farol, era povoado de uma inúmera quantidade de poças, de tamanhos e formatos muito diferentes, separadas umas das outras por torreões de lava negra, muitos deles com formas estranhas, altaneiras, a pavonearem-se num universo deserto, mas a fazerem lembrar figuras fantasmagóricas, estátuas irreconhecíveis, monumentos indecifráveis, que a imaginação do povo, através dos tempos, metamorfoseara em ícones lendários ou em símbolos míticos. Eram estas atalaias magmáticas que separavam e delineavam não só as poças mas também as baías e as enseadas e de quem, na maioria dos casos, umas e outras recebiam os nomes.

 Entre as poças, porém, havia algumas maiores e, por conseguinte, possuidoras de uma identidade e de um nome que as distinguia e diferenciava, naquele estranho e enigmático universo. Eram as poças do Cobre, da Sereia, do Farol, da Barra, da Prata, da Pontinha, dos Pargos e muitas outras. A Poça da Sereia era das mais míticas e lendárias. Apesar de muito próxima do mar, mas porque encravada entre altos rochedos, apenas em momentos de maré cheia lhe entrava a água do oceano, toldando-lhe a quietude, renovando-lhe a frescura, azulando-lhe a cor, abarrotando-a de salinidade. Entre os altivos rochedos que a ladeavam e que lhe conferiam contornos flexuosos e lúbricos, havia um, a norte, mais altivo, mais grandioso e, sobretudo, mais singular. Encravado muna espécie de cordilheira em miniatura, uma imponente excrescência magmática a fazer lembrar uma figura de mulher! A cabeça, o rosto, os cabelos, os seios, tudo perfeitamente identificável, só que o ventre, as pernas e os pés como que desapareciam, confundindo-se e emaranhando-se como o próprio rochedo. Era como se fosse uma sereia que, em tempos idos, se tivesse sentado a olhar o mar e ali permanecesse petrificada para sempre. Era essa a razão por que aquela poça se chamava “Poça da Sereia” e sobre a qual se contava uma curiosa lenda.

 Há muitos anos atrás, um certo dia, um pescador que por ali passava, na sua faina diária, ouviu gemidos muito tristes e dolentes. Seguindo no que lhe pareceu ser a sua direcção encontrou uma mulher ali sentada, a chorar. Um pouco amedrontado, cuidando que era um ser humano, o pescador aproximou-se e perguntou-lhe:

 - O que se passa para estares aqui sozinha, a chorar?

 A sereia explicou que tinha sido empurrada por uma onda até ali e que se sentara sobre os rochedos a apreciar aquela linda terra, as suas rochas e as quedas de água que dela desciam. No entanto, a maré havia vazado sem se aperceber e agora, chorava, porque com a maré baixa não conseguia regressar ao mar, devido à cauda de peixe que lhe substituía os pés. Foi então que o pescador, muito espantado, percebeu que estava frente a frente com uma sereia. Esta pediu que lhe pegasse ao colo e a levasse, novamente, para o mar.

 O pescador ficou sem saber o que fazer, mas acabou por pegar na sereia com cuidado e levá-la para o mar, onde ela logo mergulhou com graça e agilidade.

 Contava-se que o pescador tinha ficado encantado com a beleza da sereia e, a partir de então, muitas vezes passava por ali, durante o dia e até de noite. Sentava-se sobre um rochedo e ficava, horas e horas, à espera da sereia, mas esta nunca mais voltou, ou antes, o pescador nunca mais a viu.

 Durante as longas e longas horas de espera, para acalentar a sua mágoa, o pescador com uma pequenina enxada de apanhar cracas, ia batendo ao de leve sobre os rochedos. Tanto, bateu e voltou a bater que, sem disso se aperceber, acabou por esculpir, ali, sobre um dos bordos da poça, a estátua duma sereia.

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publicado por picodavigia2 às 23:34

A SENHORA DA SERRA DAS CARPETES

Domingo, 13.10.13

Era uma vez uma serra, chamada “Serra das Carpetes”, distante e inóspita mas atraente e maviosa, onde, todos os invernos, chovia torrencial e ininterruptamente, impedindo os pastores que viviam nas aldeias dispersas, nas suas fraldas, de a ela se deslocarem, no pastoreio dos seus rebanhos. Os invernos, na realidade, ali nas cercanias, eram terrivelmente frios e tempestuosos, cobrindo-se, a serra, de um manto de neve, inicialmente branco, mas que, aos poucos, se ia tornando esverdeado, à medida que os blocos de neve se desfaziam, deslizando sobre a erva e perdendo-se nos regatos. Pelo contrário, no verão, a serra, muito especialmente, na sua vertente voltada a oeste, drenada pelas reconfortantes chuvas do inverno, que ali se haviam aglomerado, barrava-se como se fosse um enorme manto verde e transformava-se num imenso prado, um espaço belo, atraente e paradisíaco. As chuvas frequentes e contínuas do inverno, faziam com que o seu solo, sobretudo na parte mais alta, fosse muito húmido, quente e profundo, propício ao florescimento da fresca alfombra, destinada ao pastoreio. Nas zonas mais baixas, mais quentes e mais hostis às investidas invernais dos nevões, abundava uma floresta de freixos, faias, ulmeiros, carvalhos e outras árvores, que misturavam as suas folhas caídas com as camadas arbustivas de aveleiras e espinheiros e com outras herbáceas, onde sobressaíam os fetos, as campainhas, as prímulas, as anémonas e as violetas que, na primavera, davam, à serra, um tom colorido de amarelo, lilás e azul. Aliás era o seu aspecto aveludado e os tons brancos, verdes, amarelos e arroxeados que a ornavam, que lhe haviam dado o epíteto de Serra das Carpetes. É que a serra, na verdade, revestia-se de um manto de beleza infinita e infindável, um tapete pulquérrimo, aureolado de excelência. Um deslumbramento deslumbrante! Além disso, a serra, como que consubstanciava uma tremenda alegria natural e uma simpatia contagiante, pois atraia e dignificava os que a procuravam, porque se excedia numa beleza singular, radiante, enternecedora e transcendente. A natureza havia-a dotado de tudo. Regatos e rios a correrem suavemente, por vezes entremeados com pequenas cascatas que lhe conferiam uma graciosidade ainda maior, ou, então, perdiam-se, formando pequenos lagos, que a aureolavam duma beleza bucólica, no meio da intensa e variada vida, que, desde os tempos mais remotos, se orgulha de manifestar. A Serra das Carpetes possuía uma sublimidade delirante, uma suave e inconfundível transcendência, misturadas com aromas de silêncio e de sombras e uma doçura de magia e de encanto. O local ideal não apenas para o pastoreio de rebanhos mas também para o nascimento de lendas, mitos e enigmas.

Ora uma das muitas lendas que da serra se contava era a de que, em tempos idos, durante alguns invernos seguidos, não choveu na serra das Carpetes, seguindo-se, então, um prolongado e desolador período de seca. Os rios e regatos ficaram sem água, a vegetação feneceu e, pior ainda, as árvores esmoreceram, os arbustos secaram, os prados tornaram-se estéreis e as pastagens, outrora verdejantes e férteis, definharam, por completo, impedindo os pastores das aldeias serranas de para ali se deslocarem, no pastoreio dos seus rebanhos. Muitos deles, perante as dificuldades em ali pastorear as suas ovelhas porque não encontravam verdura nos pastos daquela serra, deslocaram os seus rebanhos para outras pastagens, enquanto outros, abandonaram a pastorícia e partiram para terras distantes.

Numa das aldeias porém, havia um pastorzinho, pobre e humilde, que possuía um pequeno rebanho. Como não tinha nenhum outro local para levar as suas ovelhas nem dinheiro para o aluguer de outras pastagens, o pequeno pastor decidiu continuar a levar o seu rebanho para as pastagens da Serra das Carpetes. Estas, porém, estavam secas e estéreis, pelo que as ovelhas regressavam de lá, ao fim do dia, esfomeadas e famintas e o pastor muito triste pois nada encontrava para as alimentar. Mas como não tinha alternativa, no dia seguinte conduzia, novamente, o seu rebanho para as mesmas pastagens, na esperança de ali encontrar algum alimento. Mesmo que fossem as folhas amarelas e secas caídas das árvores ou os resíduos apodrecidos das ervas e arbustos de outrora.

Ora num dia em que, mais uma vez, o pastor se deslocou para a serra com o seu rebanho, enquanto se postava, triste e pesaroso, junto a um cabeço, porque as ovelhas nada encontravam para comer, estranhamente, encontrou uma grande moita de erva muito fresca e verdejante que se distinguia de todas as outras plantas secas, estéreis e a apodrecer, que se encontravam ao redor. As ovelhas viram a moita e foram logo a correr na demanda da fresca ervinha. Comeram e voltaram a comer até se saciarem e, no fim, para pasmo e espanto do pastor, a moita continuava cheia de ervinha fresca e apetitosa como se as ovelhas lhe não tivessem tocado. O pastor achou aquilo muito estranho, foi lá ver o que aquela moita tinha de tão especial e encontrou, no meio da erva, uma luz brilhante, parecia uma estrela. Muito admirado com o seu achado, e sobretudo muito contente por as ovelhas virem bem alimentadas, regressou a casa. Perante a admiração dos outros pastores, contou-lhes o que se tinha passado, mas eles não acreditaram, embora não percebessem como se tinham tão fartamente alimentado as ovelhas. Muito confuso, o pastor voltou à serra, no dia seguinte, e encontrou a mesma moita, onde novamente as ovelhas saciaram a sua fome. Cheio de curiosidade e de espanto, o pastor aproximou-se e em vez da estrela brilhante que vira no dia anterior deparou-se com a imagem de uma Senhora. Era uma Senhora mais bela do que as madrugadas, mais brilhante do que as estrelas, mais sorridente do que as flores. Tentou agarrá-la mas não conseguiu. Pareceu-lhe ser a imagem da Virgem Maria. Seria que a Mãe de Deus que se compadecera dele e do seu rebanho e lhe colocava ali aquele manancial de erva fresquinha? Tímido, o pastor não contou o seu segredo a ninguém, embora os outros pastores se movessem de cuidados em perceber como o pastorzinho alimentava as suas ovelhas.

A partir de então, o pequeno pastor dedicava aquela moita, uma atenção, um carinho, uma devoção muito especial. Todos os dias a moita alimentava o seu rebanho e todos os dias permanecia repleta de erva tenra e fresquinha como se as ovelhas a não tivessem comido. Os dias passaram e o rebanho do pequeno pastor foi prosperando e crescendo tornando-se o maior rebanho de quantos existiam nas aldeias das cercanias da Serra das Carpetes.

O pastor, passado algum tempo enriqueceu e, de imediato, mandou construir uma pequena capela, onde colocou uma imagem da Virgem, semelhante àquela que encontrara na moita e que passou a chamar “Nossa Senhora da Serra das Carpetes”. Inexplicavelmente o êxito do pastor nunca se tornou notícia nas aldeias serranas, nem nunca se soube que ele tinha construído uma capelinha em honra da Senhora da Serra das Carpetes. Apenas uns lenhadores que por ali passaram, certo dia, contaram na aldeia que haviam encontrado, na serra, um miúdo inanimado, dentro de um cabana, que, aparentemente, ele próprio havia construído com troncos e ramos de árvores e, em cima da qual colocara uma cruz.

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publicado por picodavigia2 às 10:08

A FEITICEIRA DO ESPIGÃO

Sexta-feira, 11.10.13

No Cimo da Ladeira do Espigão, o caminho, no troço que ligava a Cancelinha aos Lavadouros, era ladeado por vetustas e altíssimas paredes, cheias de musgos e heras. Nas terras de mato circundantes, onde nalgumas belgas cresciam inhames entrelaçados com laranjeiras, ameixieiras e outras árvores de fruto, os incensos e as faias que ali proliferavam eram altíssimos e ramosos, estendendo, sobre o caminho, uma boa parte das suas verdes e frondosas copas. Estas, entrelaçando os seus ramos uns nos outros, quase cobriam o caminho por completo, transformando-o numa espécie de túnel, sombrio, esconso, enigmático e misterioso. Um esteiro de enigmas e temeridades, um antro de superstições e medos, um berçário de mitos e lendas.

Pela freguesia, sobre aquele fatídico local, contavam-se muitas “estórias”, algumas simples e inverosímeis, outras temerosas e, até, assustadoras. Muitos dos que por ali tinham passado, em tempos idos, haviam pressentido sensações esquisitas, ouvido ruídos estranhos, avistado vultos fantasmagóricos, arrostado pessoas misteriosas e, até, um ou outro, jurava que se tinha defrontado com a presença de almas do outro mundo.

O Simão do Justino, um gabarola de meia-tigela, ufanava-se à Praça, na Máquina, no Alagoeiro e em todo e qualquer local onde se falasse do Cimo da Ladeira do Espigão, de ser muito anamudo, de não ter medo de nada nem de coisa nenhum e de passar por ali, a qualquer hora do dia ou da noite e nunca ter visto ou ouvido o que quer que fosse. Lérias, patranhas… Medricas, cambada de cagões eram os outros. Ele não. E os outros, ou porque incapazes de contrariar a gabarolice do Simão ou por não quererem declarar a sua própria cobardia, mudavam de conversa.

Os tempos passaram… embora os medos de transitar no Cimo da Ladeira do Espigão não se esvanecessem por completo.

Certo dia, ao descê-la, já pelo lusco-fusco, o Simão, quando menos esperava, foi atordoado por uma tremenda algazarra - pareciam gritos aflitivos, angustiantes, tenebrosos, saídos de entre os tétricos meandros dos incensos e das faias que povoavam aquele ermo e que pareciam prolongar-se e ecoar na rocha da Lagoinha. Lívido como um círio, branco que nem cal, cadavérico que nem um defunto, sem pinga de sangue no corpo, a escorrer suores frios e com as calças todas borradas, o Simão, apesar de trôpego, débil e cambaleante, desatou numa desmesurada corrida, até ao Largo da Cancelinha, onde, finalmente, parou e, olhando para trás, respirou de alívio – já não ouvia nada. Até a casa, porém, não sossegou e quando a mulher, perante o seu ar desbragado e o seu aspecto exinanido, o interrogou, ele apenas se limitou a encolher os ombros e a jurar, a pés juntos, que tão cedo não havia de ir aos Lavadouros, pelo maldito caminho da Cancelinha.

Mas não demorou muito a sua pertinácia e, passados uns dias, voltou a subir e a descer a Ladeira do Espigão. Nada ouviu, a não ser o suave murmúrio do vento, enrolando-se, deslumbrante e acariciador, nas copas frondosas das árvores. Mas, no dia seguinte, a coisa mudou de figura.

Descia o Simão a Ladeira e, de repente, os mesmos gritos, os mesmos berros e os mesmos ecos, a atordoarem-no, por completo. Embora lânguido, frouxo, quase desfalecido e terrivelmente assustado, o Simão decidiu-se por trepar a parede e espreitar por entre faias e incensos, na tentativa de descortinar tamanho mistério. Fê-lo, a muito custo, porque o cagaço, na verdade, era grande e muito superior às suas forças. Mas lá conseguiu chegar ao cimo da parede e espreitar para dentro. Os gritos, berros e ecos pareciam ainda maiores e mais angustiantes. Foi então que, num ápice, viu um vulto de mulher, passar-lhe em frente, numa louca correria. Não lhe viu a cara, apenas os cabelos louros e, mistério dos mistérios, a mulher tinha asas brancas no lugar dos braços e pés semelhantes aos das galinhas. O vulto saltava, corria, gemia, gritava, emitia rugidos estridentes e angustiantes, desaparecendo, por fim, entre as faias e os incensos. Era, por certo, uma feiticeira – a Feiticeira do Cimo da Ladeira do Espigão, que, pelos vistos, já se havia revelado a muitos outros que por ali haviam passado.

Mais morto do que vivo, transformado em farrapo, o Simão escorregou pela parede abaixo, estampando-se no chão, como se fosse um caco. Muito a custo, levantou-se, desatando em louca correria, enquanto os gritos, os berros e a própria imagem da feiticeira pareciam persegui-lo.

Foi o Greaves que o viu chegar ao cimo da Assomada naquele lastimável estado, carregando uma enorme angústia e o esclareceu, aliviando-lhe, parcialmente, a aflição:

- Mas que grande palerma… Então tu não sabes que aquela terra é do meu compadre Freitas e que ele, a semana passada, levou para lá as galinhas, para elas lhe limparem as mondas dos inhames. O que viste e ouviste foi a mulher dele que para lá vai todos os dias e fica horas e horas a vigiar e a chamar as galinhas, a correr atrás delas, a ver se descobre onde as malditas escondem os ovos.

O Simão, envergonhadíssimo, respirou de alívio e, embora um pouco desconfiado e a medo, uns dias depois, saltando a parede da terra do Freitas, confirmou. Lá estavam as galinhas a cacarejar todas esganiçadas e lá estava a mulher do Freitas, com um xaile branco sobre os ombros, a correr atrás delas, a acocorar-se e a levantar-se, a chamar pelas galinhas em frustradas tentativas de descobri-lhes os ninheiros.

Mas a mulher do Freitas era nova, bonita, elegante e atraente, por isso, nos dias seguintes o Simão, descortinando a hora em que ela ia tratar das galinhas, aproveitava para passar por ali e, trepando a parede, espreitava para dentro, na tentativa de descortinar uma nesga que fosse das pernas da “Feiticeira do Espigão”, que agachando-se, para não esmorraçar a cabeça nos grossos troncos das laranjeiras, de vez em quando, levantava, ao de leve, a beira da saia.

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publicado por picodavigia2 às 10:02

ANDRÓMEDA

Quinta-feira, 10.10.13

Há muitos e muitos anos, num longínquo e legendário reino, vivia um poderoso monarca, chamado Cefeu, casado com a rainha Cassiopeia. Tinham, apenas, uma filha, de nome Andrómeda. Mãe e filha eram detentoras de tão grande e invulgar beleza, que reis e príncipes vinham, em caravana, das mais recônditas partes do mundo, exclusivamente, para contemplá-las. A mãe, porém, era vaidosa, soberba e arrogante enquanto Andrómeda era humilde, modesta e bondosa.

Certo dia, a rainha que se considerava a mulher mais bonita do mundo, perante uma multidão que a aclamava, ousou proclamar que era mais bela do que as próprias Nereidas, as princesas do mar, muito belas, gentis e generosas, sempre prontas a ajudar os marinheiros em perigo e que, pela sua beleza conquistavam os corações dos homens. Poseidon, deus dos mares, decidiu punir a rainha Cassiopeia por tão grande e arrogante atrevimento e por tão inusitada ofensa às mais belas criaturas do orbe - as filhas do seu amigo e companheiro Nereu, um velho e pacato deus marinho, com quem elas compartilhavam as águas do mar e que era justo, benevolente e sábio, sempre pronto a perdoar e, por isso mesmo, representando a calma e a serenidade das águas do oceano. Para castigar Cassiopeia, por tamanha ousadia, Poseidon enviou à terra um monstro marinho, chamado Ceteu, que havia de atacar e destruir por completo o reino de Cefeu e da sua vaidosa e arrogante consorte. Desesperado, Cefeu, ao tomar conhecimento de tão catastrófica ameaça, foi consultar um oráculo que lhe revelou que o seu reino só poderia ser poupado à hecatombe e salvo das ferozes garras de Ceteu, se ele sacrificasse a sua própria filha Andrómeda, entregando-a ao monstro, a fim de que este a devorasse. Cefeu decidiu salvar o seu reino e imolar a sua própria filha, acorrentando-a a um rochedo de uma ilha longínqua, para que o monstro a devorasse.

No entanto, algum tempo depois, passou pela ilha onde Andrómeda estava acorrentada, um jovem, chamado Perseu, que a salvou.

Perseu era filho de Zeus e de Dânae. Logo após o seu nascimento, seu avô Acrísio meteu-o numa arca, juntamente com a mãe e atirou-a ao mar, a fim de que ambos perecessem. Assim Acrísio, um velho e ambicioso monarca, via-se livre deles para sempre. A correnteza das ondas, porém, arrastou a arca em que foram metidos Perseu e Dânae, até a ilha de Sérifo, no reino de Polidectes. Foi o próprio Polidectes que os encontrou na praia, os recolheu e os levou para o seu palácio, onde os hospedou. Passado algum tempo Polidectes apaixonou-se por Dânae e tomou-a como esposa e rainha. No entanto, com receio de que Perseu se opusesse, Polidectes decidiu afastá-lo do palácio e de junto da mãe. Para isso impôs-lhe uma tarefa, aparentemente, impossível: Que lhe trouxesse a cabeça de Medusa, uma perigosíssima górgona que transformava em pedra todos os que se aproximassem e olhassem para ela. Cuidava assim o déspota que Perseu nunca havia de vencer o monstro. Ao contrário, seria transformado num pedregulho e, por conseguinte, ver-se-ia livre dele, para sempre. Mas o jovem Perseu, com a ajuda da deusa Atena, que lhe emprestou as suas próprias armas e escudo, venceu Medusa, decapitando-a enquanto ela dormia. Perseu, triunfante, decidiu, regressar ao reino de Polidectes para resgatar a mãe e vingar-se do facínora.

Foi nessa viagem de regresso à ilha de Sérifo, que Perseu, ao passar por uma outra ilha, encontrou uma jovem acorrentada a um rochedo. Ao perguntar-lhe quem era e porque estava ali amarrada, a donzela, lavada em lágrimas, respondeu-lhe:

- Eu sou Andrómeda, filha do rei Cefeu. A minha mãe, Cassiopeia, ousou comparar a sua beleza com as filhas de Nereu, as ninfas do mar, e fomos castigados por isso. Poseidon mandou o monstro Ceto destruir, por completo, o reino do meu pai que, assim, me ofereceu como sacrifício, para o resgatar da ira de Poseidon.

- Salvar-te-ei, bela Andrómeda, se prometeres casar comigo. – Retorqui Perseu.

Palavras não eram ditas e eis que uma gigantesca onda se abriu no meio do mar, trazendo consigo um terrível monstro. Ao vê-lo, Perseu aproximou-se o mais que pôde e mostrou-lhe os olhos petrificantes da cabeça de Medusa que havia guardado e trazia consigo, para mostrar a Polidectes. Imediatamente o monstro transformou-se numa enorme pedra que se precipitou no fundo do oceano. No entanto, quando o perigo parecia ter terminado e Perseu se aproximou-se de Andrómeda para soltá-la, uma gota de sangue da cabeça de Medusa, caiu no mar. É que Poseidon também era apaixonado por Medusa, uma das três górgonas que povoavam os mares e que eram extremamente belas mas desregradas e sem escrúpulos. Mas a gota de sangue em contacto com a água provocou um estrondo medonho e transformou-se em espuma branca, da qual emergiu um belíssimo cavalo alado - Pégaso. Era, afinal, um presente de Poséidon a Perseu, para que ele abandonasse a ideia de vingar-se de Polidectes e de Dânae, casasse com Andrómeda e fugissem ambos, montados no cavalo Pégaso. Mas Andrómeda, tempos antes havia sido prometida em casamento, por seus pais, a Phineus e, por isso, no dia do seu casamento com Perseu, voltou a ocorrer nova adversidade - uma desavença entre Phineus e Perseu, pela disputa de Andrómeda. Mas Perseu, mais uma vez, servindo-se da cabeça da górgona Medusa, transformou Phineus num grotesco rochedo que também se afundou, para sempre, no oceano.

Andrómeda e Perseu, finalmente, casaram e viveram uma vida de alegria, de enlevo e de felicidade. Tiveram filhos, netos e construíram um reino de sonho, de paz e de magnificência. Para recompensar a dignidade, a nobreza e os sacrifícios que Andrómeda fizera em vida, após a sua morte, Atena, a quem Perseu oferecera a cabeça de Medusa, a fim de que a deusa também se visse livre da temível górgona, transformou Andrómeda numa bela constelação e colocou-a, para sempre, no firmamento, entre as mais brilhantes constelações do universo, onde ela, ainda hoje serve de guia aos humanos.

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publicado por picodavigia2 às 00:39

O NAUFRAGO

Quarta-feira, 09.10.13

O Semedo chegou à porta de casa, levantando o “pica-porte” numa hesitação terrível e num sufoco denunciador. Na cozinha, alumiadas por um candeeiro a petróleo, a mulher e a filha seroavam entre cardas, fusos e resmas de lã, admiradas, mais pelo tardio da chegada do que pela apreensão que se lhe estampava no rosto, ofuscada pela frouxa luz que emanava do candeeiro. É que o pavio havia sido tão excessivamente alevantado, que lhe tisnara o vidro quase por completo. A Deolinda foi a primeira a insinuar com suaves laivos de ironia:

- Só agora?! A estas horas, meu pai há muito que havia de estar na cama.

E como o Semedo embatucasse por completo, a mulher, lá do fundo, sem levantar olho das cardas:

- Boa coisa não andaste a urdir! - E levantando o rosto, sem, no entanto, esmorecer a cardação, prosseguiu, – Entra home… Credo! Que cara é essa?! Parece que viste bicho-do-mato!...

O Semedo a crescer numa hesitação que acicatava, cada vez mais, o pasmo das duas mulheres. A medo, lá foi desembuchando: Fora ali, para os lados do Rolinho das Ovelhas… Ele, o Domingos Mantas, o Bosseca, o Zé de Mateus e o Caboz, na mira dos caranguejos que a noite estava escura, o mar manso e a maré vaza. Desde o Canto do Areal ao Redondo. Eis senão quando avistaram uma barcaça – um bergantim ou um brigue - nem deu tempo de ver, - num instante, a aproximar-se de terra, pela calada da noite, mesmo ali junto ao Rolinho das Ovelhas. Eles a correr que até parecia que deitavam os bofes pela boca fora… mas qual o quê?… Quando lá chegaram, a maldita tinha zarpado. Apenas uma pequena chata, abandonada, a balancear no vaivém da maré. Ao voltarem, deparam-se com gemidos angustiantes. Um vulto de homem, estranho, esquisito, sabia-se lá de onde, que nem americano falava, enfiado na aba de uma pedra, a chorar e a gemer… Pelos vistos tinha sido ali abandonado. Trouxeram-no e, ao chegar ali, bonito serviço! Os outros a pisgarem-se, cada um para seu lado e ele a ficar só, com o homem… ali… fora da porta… Haviam de lhe dar guarida, lá e  m casa.

A mulher e a filha nem queriam acreditar!... Um homem, sabia-se lá de onde e de que religião, pela porta dentro… A estas horas da noite!... Nem pensar!

Mas no dia seguinte toda a freguesia louvava o Semedo! Fosse da Cochinchina, fosse do Japão, fosse de onde fosse, aquilo era um ser humano. A caridade é para com todos. Um gesto muito bonito, o do Semedo.

Mas os rumores não tardaram. Aquele homem devia ser um ateu, um malvado, um facínora, semelhante ao que, há muitos anos, também ali desembarcara e, de tão mau, após a morte, fora atirado para o Poço do Bacalhau, por castigo, em vez de ter uma sepultura condigna. Que o tivesse deixado, o Semedo, onde o encontrou. Havia de morrer à fome, que é o destino dos criminosos e dos sacripantas! E depois… com uma filha solteira lá em casa… Hum! Não havia de sair coisa boa, dali.

Porém, em casa do Semedo e após os medos e as hesitações iniciais, todos, incluindo a filha, se afeiçoaram, depressa, ao suposto náufrago. O homem era delicado, correcto, submisso, decoroso e de trato afável. Apenas um senão: ninguém o entendia e ele não percebia patavina do que lhe diziam e tinha a estranha mania de, todos os dias, tracejar um risco no muro da cerca do porco. Sabia-se apenas que se chamava Dimitri e que muito provavelmente, devia ser russo e, pelos vistos, não acreditava em Deus.

Os dias passaram e o Semedo já via em Dimitri, o filho que nunca tivera. Os meses passaram e Deolinda apaixonara-se, como nunca. Pior. Dimitri, agora já a balbuciar as primeiras palavras em linguagem que se entendesse, também se declarava em juras de amor, enquanto pela freguesia cada vez mais se comentava, à socapa, que ali havia “marosca” da grossa. Oh!... Se havia!

O Semedo, antes que o inevitável acontecesse, foi bater à porta do Vigário. Havia que casá-los, quanto antes. Mas, na opinião do prebendado, o casamento não servia para encobrir poucas vergonhas, além disso, aquele homem era um ateu, vindo de um pais onde a religião católica, não era apenas esquecida, mas sobretudo odiado e não tinha nenhuns papéis que demonstrassem, quer a sua identidade, quer o seu baptismo. Que tirasse o cavalinho da chuva o amigo Semedo que casamento é que não havia de haver.

E não houve, o que no entanto não foi obstáculo a que Dimitri e Deolinda se envolvessem de amores, cada vez mais escaldantes e, às escondidas dos progenitores, se enrolassem em desvelos e fascinações.

E quando Deolinda não mais pode ocultar a gravidez que lhe transbordava do seio, o falatório, de comentários maliciosos transformou-se em aleivosias insultuosas. A mãe definhou de vergonha e o pai, frio, empedernido, assumido carrasco, pô-los pela porta fora, injuriando-os, ameaçando-os, deserdando-os. Poucos dias demorou a ira do Semedo e a debilidade da sua consorte. Foram os primeiros a acudir aos vagidos de um pequerrucho que, numa tarde solarenga de Setembro, lhes quebrava o veneno do desgosto e lhes despertava o bálsamo da ternura.

E o pequeno Gervásio crescia entre o enlevo refrescante dos pais e a ternura sedenta dos avós. O vigário recusou o casamento dos pais mas não lhe pode negar o baptismo. A alegria, o encanto e a felicidade reinavam em casa do Semedo e na freguesia já ninguém se lembrava que o pai do pequeno Gervásio era, afinal, um náufrago abandonado na ilha, talvez um criminoso, com quem a Deolinda do Semedo vivia amancebada porque não recebera o Santo Sacramento do Matrimónio.

Numa noite, porém, o inesperado aconteceu. Dimitri saiu de casa e nunca mais regressou. De manhã, durante as buscas, o Cardoso da Eira, afirmava a pés juntos, que um bergantim se havia aproximado, durante a noite, da enseada do Rolinho das Ovelhas e nele, tinha visto, embarcar um homem.

… E a parir do dia seguinte, todas as tardes, depois do pôr-do-sol, a Deolinda do Semedo, lavada em lágrimas, sentava-se sobre um rochedo, à beira mar, com o filho ao colo, apontando-lhe um horizonte indefinido.

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publicado por picodavigia2 às 00:59

ESTER

Terça-feira, 08.10.13

Assuero era um rei poderosíssimo, vivendo num belo palácio, luxuosamente decorado, com cortinados de púrpura, presos por cordões de algodão branco e com anéis de prata, a colunas de mármore. Os leitos eram de ouro e prata, o pavimento de mármore branco e o tecto de nácar. Em sua companhia vivia a rainha Vasti, esposa exuberante e bela, mas altiva e presumida.

Certo dia, Assuero ofereceu um grande e lauto banquete a todos os reis e príncipes da vizinhança, a fim de lhes mostrar todo o esplendor da sua glória. No final do festejo, Assuero convidou-os para passarem, na sua companhia, sete dias, durante os quais seriam seus hóspedes, convivendo no seu palácio. Todos os presentes aceitaram e, chegado o sétimo dia, Assuero ordenou aos seus eunucos que trouxessem, à presença de todos os convidados, a rainha Vasti, que havia de vir vestida com as melhores roupas e ornada com o diadema real, a fim de que a exibisse, perante todos, a sua beleza, a sua formusura e, sobretudo, o seu luxo e a sua riqueza, A rainha recusou-se a obedecer a tal ordem e o rei, tomado de uma enorme ira, reuniu os conselheiros do reino e decidiu que iria destituí-la, despojando-a de todos os bens e retirando-lhe todos os direitos de rainha e esposa. Cuidava o monarca que com o seu exemplo, daí em diante, no seu reino, todas as mulheres haviam de obedecer aos seus maridos e todo o homem, desde o mais alto dignitário da corte até ao mais humilde camponês, passaria a ser o senhor da sua casa e a fazer-se respeitar pela sua esposa.

Mas Assuero ficou muito triste com esta decisão e, pouco tempo depois, ordenou que se procurassem, por todo o reino, donzelas virgens e belas de aspecto. Trazidas à presença do rei, Sua Majestade havia de escolher, entre elas, a que mais lhe agradasse, a qual se tornaria rainha, ocupando o lugar da rebelde Vasti. Hegai, o eunuco do rei encarregado de zelar pelas mulheres do palácio, havia de providenciar às necessidades do seu toucador, preparando, também, os seus aposentos.

Ora, havia na cidade, uma jovem, chamada Ester, filha adoptiva de Mardoqueu. A moça, apesar de órfã de pai e mãe, era de belo porte, agradável de aspecto e ornada de virtude e sabedoria. Ester foi apresentada ao rei, juntamente com numerosas jovens, mas foi ela quem mais agradou a Assuero, granjeando as graças de sua Real Majestade que, de imediato, lhe ofereceu roupas, jóias, unguentos e perfumes para seu adorno. Além disso, providenciou-lhe sete damas que a acompanhariam e a serviriam dia e noite, reservando-lhe o melhor apartamento do palácio. Ester não lhe revelou a sua vida, simples e humilde, nem sua família, nem do seu povo, porque Mardoqueu lhe tinha proibido falar sobre isso.

O rei todos os dias passeava diante do pátio do apartamento de Ester, para a ver e para ter notícias dela, admitindo-a, ele próprio, no seu apartamento, à tarde e até pela manhã, não a tendo mais junto de si, a não ser que disso tivesse manifesto o desejo ou exígua oportunidade.

Assuero amou Ester mais do que todas as outras mulheres que, assim, granjeou todas as graças e favores reais e, por isso, lhe colocou sobre sua cabeça o diadema real e a fez rainha.

Passado algum tempo o rei deu, novamente, um grande banquete, desta feita, em honra de Ester, para o qual convidou todos os reis e príncipes da vizinhança. Ora Ester tinha um inimigo chamado Hamã, que era amigo e ministro do rei Assuero e que também foi convidado para o banquete. Hamã odiava Mardoqueu, o pai adoptivo de Ester, por ele não se inclinar perante ele e, por isso, elaborou um plano diabólico para o destruir, assim como o seu povo. Durante o banquete, Assuero, exaltando a beleza e a virtude de Ester, disse-lhe:

- Minha adorada Ester, pede-me o que quiseres e eu to darei de imediato.

- Eis o meu desejo, senhor: salva Mardoqueu da morte e salvando-o a ele salva também o seu povo. - Disse Ester, com firmeza e acrescentou - Mardoqueu e o seu povo, foram votados ao extermínio, à morte, ao aniquilamento. Se tivessem sido vendidos como escravos, eu me calaria, mas eis que agora o opressor não poderia compensar o prejuízo que causa ao meu rei e senhor.

- Quem é esse tirano, – perguntou o rei, - e onde está quem maquina tal projecto em vosso coração?

- O opressor, o inimigo, - disse a rainha, - é Hamã. Eis aí o infame!

Hamã ficou tomado de terror diante do rei e da rainha. Assuero, num acesso de cólera, levantou-se, abandonou o banquete e dirigiu-se para o jardim do palácio, enquanto Hamã permanecia ali, a fim de implorar o perdão de Ester, porque via bem que no espírito do rei estava decretada a sua sentença de morte. De nada serviram os seus choros e pedidos. Passado algum tempo, Assuero mandou suspendê-lo na forca que ele próprio tinha preparado para Mardoqueu.

Nesse mesmo dia Assuero ofereceu à rainha Ester a casa de Amã, que ela de imediato deu a Mardoqueu. Ester voltou de novo à presença do rei e, prostrada a seus pés, desfeita em lágrimas, suplicava-lhe que destruísse as maquinações que Hamã tinha, perversamente, urdido também contra o seu povo. O rei estendeu o ceptro de ouro a Ester, a qual se pôs em pé diante dele.

- Se parecer bem ao rei, - disse ela, - e se achei graça diante do meu senhor e se isso que lhe peço parecer justo e se sou agradável a seus olhos, revogue as cartas, que Hamã, redigiu para perder o seu povo, destruindo todas as províncias do reino. Como poderia eu consentir nas desgraças que aguardam o meu povo, sem vos implorar que tal não permitais?

Então o rei Assuero, comovido com a bondade de Ester, mandou aos escribas, que escrevessem cartas a todas as cidades do reino para que não fossem executadas as leis que o déspota Hamã havia decretado, sem o seu consentimento.

Foi assim que Ester provou ser uma sábia e muito digna mulher, permanecendo humilde e respeitada não só pelo rei Assuero mas também por todos os seus súbditos.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:07

A GLICÍNIA BRANCA

Segunda-feira, 07.10.13

No jardim da senhora Manuela nasceu uma glicínia. Estranho e surpreendente acontecimento, porquanto a senhora Manuela no seu jardim apenas havia plantado, craveiros, orquídeas, roseiras e semeado girassóis, sécias e malmequeres. Além disso, a senhora Manuela não gostava de flores com nomes esquisitos e estranhos, com gladíolos, buganvílias, nem de plantas que davam flores roxas ou rosadas como as hortênsias, as flores-de-lis e, logicamente, as glicínias. Isto porque a senhora Manuela, em tempos, havia lido que existiam diversos simbolismos para as flores, nomeadamente para as roxas, as quais estão ligadas ao amor. Na realidade, acreditava a senhora Manuela, depois das suas leituras sobre flores, que a flor roxa da glicínia é conhecida como a flor que simboliza o primeiro amor. E o que menos a senhora Manuela pretendia era ter a seu lado algo que lhe fizesse lembrar o seu primeiro amor. Por isso, a senhora Manuela, que não só detestava como até odiava flores roxas, numa passagem ocasional pelo seu jardim, temendo que daquela glicínia que tão estranha e misteriosamente ali nascera e que, agora, crescia a olhos vistos, sem ser adubada ou sequer cultivada, havia de florescer, mais tarde, uma flor roxa que lhe viesse atormentar o viver tranquilo dos seus dias, arrancou-a, de maneira a que dela não ficassem raízes nem muito menos sementes.

Não se sabe por que estranha e invulgar carga d´água, passados alguns meses e para ainda maior espanto da senhora Manuela, no mesmo sítio do seu jardim, onde rigorosamente não havia deixado nenhum vestígio daquela estranha intrusa, voltou a nascer uma outra glicínia. Os procedimentos da senhora Manuela foram exactamente os mesmos e a possibilidade da glicínia crescer, florir e reproduzir-se foi reduzida a zero. A senhora Manuela arrancou-a, calcou-a aos pés, injuriou-a, desfê-la, reduziu-a a estrume e atirou com ela para bem longe, fazendo assim com que, no seu jardim, da estranha e enigmática criatura não ficassem quaisquer vestígios. Os meses passaram monótonos, desinteressantes e com a mesma lentidão do costume e, para espanto, desta feita incalculavelmente surpreendente, da senhora Manuela, voltou a nascer uma terceira glicínia naquele malfadado lugar do seu jardim. Encastoada entre o desespero e a incredulidade, a senhora Manuela mandou chamar alguém que certificasse a identidade daquele mistério que ali estranhamente florescia. Podia, muito bem, estar a enganar-se, a senhora Manuela e aquilo não ser uma glicínia. Vieram curiosos, técnicos e especialistas e até um jardineiro da Câmara e foram todos de opinião unânime. Não havia dúvida: era uma Wisteria Floribunda, perfeitamente identificável, semelhante às anteriores, única na sua espécie por ali, isolada lá bem longe, nos arrabaldes do jardim, ladeada por craveiros e malmequeres que a protegiam de ventos e temporais. A senhora Manuela, porém, muito admirada e com algum laivo de apreensão, decidiu, desta feita, não arrancar a estranha plantinha que lá foi crescendo, semelhante a uma ervilha-de-cheiro, uma trepadeira volúvel, lenhosa e decídua, florescendo deslumbrantemente e com um ar muito decorativo. As suas folhas eram como que pintadas, com uma coloração avermelhada e pubescentes, mas que aos poucos se foram tornando glabras e verde-brilhantes, intercaladas com inflorescências longas, pendulares, carregadas de numerosas e pequeninas flores, que a senhora Manuela, muito apreensiva, cuidava que haviam de ser roxas ou róseas. Mas nada. As flores da estranha glicínia do jardim da senhora Manuela eram de um branco alvíssimo e puro.

Foi essa a razão por que a senhora Manuela, a partir de então, passou a cultivar, no seu jardim, juntamente com craveiros, orquídeas, roseiras, girassóis, sécias e malmequeres, glicínias que continuavam a produzir flores brancas, de uma beleza invulgar. E o jardim da senhora Manuela encheu-se de glicínias, transbordou de glicínias, extravasou de glicínias, mas brancas. Todas brancas? Não, porque um dia, no jardim da senhora Manuela, no meio de todas aquelas glicínias brancas, nasceu uma glicínia diferente, estranha, muito semelhante à que muito tempo antes havia nascido num canto do jardim e que a senhora Manuela arrancara com desdém, a qual, novamente e para maior espanto da senhora Manuela, cresceu e floresceu como as outras, mas a sua flor era, simplesmente, vermelha.

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publicado por picodavigia2 às 00:18

A CASA DE TODOS OS SILÊNCIOS

Domingo, 06.10.13

Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, era como que o centro do mundo, para mim. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas, envergonhadas mas inocentes, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu hipotecava as minhas aparências idolatradas mas arrogantes de um futuro distante e indefinido.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, abriam-se todos os dias, implacáveis, inflexíveis e destemidas, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes, rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.

A casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade desconcertantes e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas e o pôr-do-sol, estavam sempre abertas.

Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias florescentes, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.

E levada por correntes e marés, a casa navegou, embalada com o deslumbrante cântico das estrelas, adocicada com o permanente vozear dos rouxinóis e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.

Depois?… Depois vieram anos desertos, tempos petrificados, momentos de solidão e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada no alto da colina…

E a claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fosse os destroços de um navio naufragado.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada no alto da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.

E agora quando todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes respiram, silenciosas, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e desastradamente desertas, enchendo de silêncios a casa branca do alto da colina.

Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-se, para sempre, transformando-se em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado.

O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho.

O velho “Asónia” arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tiquetaque contínuo, aflitivo mas gracioso.

O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.

Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.

As vozes, os gritos, os cânticos e até os ecos das sombras calaram-se para sempre porque a casa plantada no alto da colina, com vista sobre o mar, tornou-se sombria, cinzenta, deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se em enigmático e terrível ermitério.

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publicado por picodavigia2 às 09:01

A "FAEIRA" DO POCESTINHO

Sábado, 05.10.13

Meu pai tinha uma terra de mato, no Pocestinho. Aliás, no Pocestinho todas as terras eram de mato. Mas a do meu pai era especial e diferente das outras, porque nela cresciam incensos enormes, altíssimos e esguios, entrelaçados com loureiros e paus brancos e misturados com um ou outro sanguinho. De resto tudo “faeiras”. “Faeiras” desde a primeira à última belga, “Faeiras” velhíssimas, centenárias, com troncos grossíssimos mas muito belas e elegantes, altas e esguias, a abarrotarem de folhas verdes e de bagas suculentas e arroxeadas. “Faeiras” de caules acastanhados, porosos, cobertos de escamas e enrijecidos pelos anos, mas recheados de seiva adocicada, de suco perfumado, de aromas silvestres e tonificantes.

Entre todas elas havia uma, logo na primeira belga, que eu adorava. Era a minha “faeira” predilecta, preferida, a minha “faeira” de estimação. Era uma árvore de grandes dimensões, altíssima e detentora de uma beleza rara, de um porte imponente, de uma elegância sublime, de uma copa deslumbrante e compacta, com um tronco espesso que se ramificava e prolongava em pernadas mais pequenas que se iam adelgaçando até se tornarem, lá nas pontas, nuns fiozinhos muito delgadinhos, fofos, macios, frágeis, delicados e atraentes. A sua casca era lisa, raramente fendilhada, embora com a idade se fosse tornando um pouco mais áspera, mas também mais acutilante e demolidora, adquirindo uma cor alourada, muito próxima do verde dos tempos da sua juventude e do pardo-amarelo da sua infância.

Contavam-me que a minha “faeira” nascera ali havia muitos anos. Inicialmente um pequeno arbusto com gomos amarelos, muito pequenos e pontiagudos, foi crescendo, lentamente e transformando-se numa bela árvore, ao mesmo tempo que se ia tornando forte, rija e resistente a ventos e temporais, mas delicada, adorável e encantadora. As suas folhas, tingindo-se de um verde, muito vivo e brilhante iam-se metamorfoseando em nervuras paralelas, ora ovadas, ora elíptico-lanceoladas, ou então iam adquirindo a forma de bico, pontiagudas e penetrantes como se de lanças se tratasse. Na Primavera a minha “faeira” cobria-se de flores de cores rosadas, geminadas num invólucro ténue com lóbulos suaves e espinhos brandos. No Verão, das suas flores brotavam frutos magníficos - bagas brilhantes, tintas e arroxeadas a desenvolverem-se aos pares, com um inconfundível sabor acre e doce, muito ricas em gordura e como tal muito procurados e muito apreciados pela fauna bravia e pela passarada das redondezas. Eu próprio as mastigava com júbilo e as saboreava com desvelo. Muitos pássaros serviam-se delas para as suas "dispensas invernais" o que fazia com que os arredores da terra de meu pai do Pocestinho se enchessem de sementes de “faeira”, povoando-se, mais tarde, de um número infinito de pequenas e graciosas arvorezinhas.

Na terra de meu pai do Pocestinho, a minha “faeira” juntamente com todas as outras “faeiras” que por ali proliferavam, formavam uma densa floresta, fortalecendo e enriquecendo o solo, cobrindo-o com um tapete fecundante, formado pelas numerosas folhas que, dia após dia, ano após ano, delas caíam e ali se depositavam. Era, sobretudo, essa massa de folhas, transformada em adubo, que permitia que as sementes germinassem, com vigor, na Primavera. Por sua vez, a sua copa densa e copiosa fazia com que a luz que chegava ao solo fosse como que coada pelas folhas e pelos ramos e se tornasse frouxa e ténue, não permitindo, que ali, outras plantas houvessem desenvolvimento.

Mas o que eu mais adorava na minha “faeira” do Pocestinho era quando, aproximando-me dela, via plantado um ninho, nos seus ramos, bem lá no seu alto. Agarrava-me então ao seu tronco, pendurava-me nos seus ramos e enroscava-me nela, subindo-a com destreza e agilidade mas com enlevo e ternura, até chegar lá acima, ao ninho, Depois deliciava-me com a ternura inocente dos passarinhos, biquinhos abertos, corpos cobertos de penugem, também eles a sibilarem a doçura daquele encontro.

Um dia meu pai decidiu que havia de cortar a minha “faeira”. Na opinião dele, a intensa sombra da sua copa, deslumbrante e audaciosa, impedia de crescerem os inhames e as outras pequenas plantas, plantadas ao seu redor. Além disso precisava de lenha, de muita lenha…

 E eu, frágil e débil, nada pude fazer para o impedir dos seus intentos. A sentença de morte da minha “faeira” havia sido decretada e dela não havia recurso.

E eu que todos os dias ia com meu pai ao Pocestinho, exclusivamente, para ver a minha “faeira”, naquele dia não o acompanhei. E a partir de então, quando ia ao Pocestinho, o que raramente acontecia, esquivava-me sempre de ir aquela maldita belga para não mais ver aquele fatídico e malfadado vazio que o corte da minha “faeira” ali provocara.        

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publicado por picodavigia2 às 21:23

SARGAÇO

Sexta-feira, 04.10.13

Noite escura. A manhã tardava em alvejar. Clara sentiu um bater martelado na janela do seu quarto. A mãe já se levantara e, alumiada pelo brasido do lar, cirandava na cozinha, no meio duma penumbra confusa e impertinente. De fora um vozeirão grave e solene:

- Ó vocês, levem garfos, cestos e um pingo de café para o Rolo. Tá a sair uma grandeza de sargaço.

Não foi preciso esclarecer ou perguntar o que quer que fosse. Clara levantou-se de um salto e entrou assarapantada pela cozinha a alertar a mãe. Bem conhecera a voz do Ricardo. O pai, saíra de casa, com destino às Covas para ceifar um molho de erva, Decerto que se havia enfiado no Rolo, na retirada daquele maldito sargaço.

- E aquele homem que já não pode com nada e a meter-se sempre em grandes trabalheiras. Eu me benzo do Coiso Mau! Tanto que o aviso e lhe peço, Não há maneira de se aquietar. E eu sem o poder ajudar!

- Deixe lá mãe. Faça o café que eu vou levar-lhe os garfos e os cestos. Hei-de ajudá-lo como puder.

Pouco depois, com a escuridão ainda a aguçar-lhe o medo, Clara abriu a porta da cozinha que dava para os pátios traseiros. Cestos à cabeça, enfiados uns dentro dos outros, dois garfos alçados sobre o ombro direito e uma lata de café com leite, onde a mãe havia migado umas fatias de pão, com uma colherada de açúcar.

A Rua Direita ainda estava deserta mas na Tronqueira, para lá da casa do Belchior, já se viam muitos vultos apressados e cambaleantes que, como ela, se encaminhavam para o Rolo, na demanda do sargaço.

Todos os anos era aquela efervescência, desprezível para alguns, indiferente para outros mas gratificante para muitos. No Outono, com os ventos de oeste, com o mar a abarrotar de maresia e com as ondas a encapelarem-se alteradas, de vez em quando, o Rolo cobria-se de um extenso tapete aveludado, fofo, castanho e amarelado que ia do Pesqueiro de Tera até à Ribeira das Casas. Era o sargaço que, arrancado das profundezas do oceano, trazido por correntes e marés, ali vinha encafuar-se, sendo depois atiçado para terra pelo reboliço das ondas e pela correnteza da maré. O Reboredo era sempre dos primeiros a chegar. Assenhoreava-se de uma bom pedaço do Rolo, demarcava com canas e paus o seu território e, a partir de então, todo o sargaço que o mar ali trouxesse era seu. Depois era só atirá-lo à mão, à garfada, aos cestos, bem mais para cima a fim de que a maré, ao encher, assim como o trouxera, agora o não levasse.

Quando Clara chegou ao Rolo já os primeiros raios da aurora, embora tímidos, espreitavam sobre a Rocha dos Paus Brancos. Um reboliço enorme espalhava-se sobre todos aqueles calhaus, agora atapetados de algas mortas. Homens descalços e de calças arregaçadas até aos joelhos lutavam contra a braveza das vagas, na mira de arrecadar o maior quinhão. As ondas num vai e vem tremendo, assustavam os homens, afugentando-os quando subiam mas incentivando-os quando desciam. Muitos já haviam amontoado uma boa safra, mas todos se aventuravam na conquista de mais. O pai alapara-se mesmo ali, logo no início do Rolo, junto ao ilhéu do Constantino. Fora dos primeiros a chegar.

Clara saltitando de pedregulho em pedregulho, aproximou-se do eito, onde o pai todo molhado retirava das ondas temerosas e altivas, mancheias de sargaço encharcado. Colocando a latinha do café em lugar seguro, depondo cestos e garfos, atirou-se de rajada sobre o montículo de sargaço que o pai já havia armazenado, afastado das ondas. Ali tudo era cheiro a maresia e sabor a salinidade, ali, tudo era um tactear fofo, um saltar acolchoado, um contacto sublime e terno com o aroma delicado e doce do mar. E enquanto o pai, fazendo uma pausa na safra, se entretinha nas sopas, Clara, descalçando-se, aproveitou para retouçar, rebolar, pinchar, saltar, pular e espinotear sobre o montículo de sargaço que o pai ali já retirara do mar.

Depois, ora fugindo às ondas, ora deixando-se banhar pela frescura inebriante das águas lá foi, com galhardia e excelência, ajudando o pai. Ao meio-dia, quando a mãe ali chegou trazendo, num cesto, à cabeça, o almoço, o monte de sargaço do Reboredo era um dos maiores do Rolo.

O diabo era agora, de tarde, quando a maré subisse ao ponto de recusar a cedência sequer de mais uma febrinha que fosse, acarretá-lo para o “lago”, onde ele havia de ficar a fermentar, durante meses, até se transformar em precioso adubo. Ele, Reboredo, a encher os cestos, ela, Clara, no “lago” a despejá-los e a acalcar o sargaço… O problema era acarretá-lo, em cestos pesadíssimos, muito cheios, bem acuculados e a escorrerem água por quantas juntas tinham!...

E foi o Câncio, o filho do Machado, que, de boa vontade, se veio oferecer para ajudar. Perante a anuência do Reboredo, o rapaz que desde há muito catrapiscava o olho à Clarinha, cuidou que aquele seria um dia de esperança – esperança de, através da ajuda no sargaço, conquistar, para sempre, o coração da moça.

E não se enganou, o bisbórrias.

 

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publicado por picodavigia2 às 14:55

ROSAS BRANCAS

Quinta-feira, 03.10.13

A noite estava escura e do céu caíam flocos de neve que aos poucos iam atapetando o chão, transformando a verde alfombra num gigantesco e esbranquiçado tapete.

Joana há muito que se refugiara na cabana. No inverno, a noite caía bem mais cedo e naquela tarde, o frio descambara sobre os montes, sem dó nem piedade, mais violento, mais agressivo e mais abrupto. As ovelhas, que durante a manhã e uma boa parte da tarde haviam pastado, famintas, as ervinhas verdes e apetitosas, manifestaram, ao fim da tarde, uma enorme vontade de se recolherem, de se enfiarem dentro da cabana, de se enrolarem e enroscarem umas nas outras, protegendo-se do forte nevão que os flocos de neve caídos ao relento, anunciavam aproximar-se, cada vez com mais evidência. Até o Fiel, o seu amigo e companheiro de pastorícia, se apressara a enfiar-se porta dentro e enroscar-se junto ao brasido que Joana, num dos cantos da cabana, acabara de acender. Tirou o leite à “Danada”, migou-lhe uns pedaços de pão e repartiu o cardápio com o Fiel. Pouco depois, espreguiçando os braços como que a convidar e a abraçar o sono, repartiu o feno pelas ovelhas, despediu-se delas, uma a uma e deitou-se sobre uns montículos de bracéu, embrulhando-se num velho e grosso cobertor de papa.

Todos os dias repetia este ritual, embora, noites frias como aquela rareassem. A mãe, há muito que falecera e o pai, pobre, doente, sem eira nem beira, tinha nela e na guarda do pequeno rebanho que pastoreava nos montes contíguos à aldeia, os proventos que lhe adocicavam, levemente, uma existência dolorosa, sofredora, quase mesmo angustiante.

Nos primeiros tempos, após a morte da mãe, o pai, ocupado durante o dia no cultivo duma pequena courela, junto de casa, apenas à noite, abandonava o povoado e subia as íngremes encostas dos montes, levando-lhe o pão, ensinando-a na ordenha e no fabrico dos queijos, pernoitando, ele próprio na cabana para que a menina se habituasse, de futuro, àquele ermitério. De manhã, ainda lusco que fusco, descia a encosta, umas vezes com um queijo que ia vendendo na aldeia, outras, apesar do choro e dos protestos de Joana, com um cordeirinho que, eventualmente, algum lavrador mais abastado lhe encomendava. Joana ficava só, durante o dia, ansiando pela noite e pela companhia do pai. A doença, no entanto, fora galopando assustadoramente. A petiza compreendera. As visitas do progenitor começaram a rarear durante uns meses, passados os quais cessaram por completo. Agora já se habituara a ficar sozinha, com o Fiel, o seu amigo e companheiro de sempre e com as suas ovelhas. Apenas desejava que a morte, impiedosa e cruel, não levasse o pai como fizera com a mãe, era ela ainda uma criança.

Aos poucos Joana habituara-se aquela vida de solidão, de isolamento, de afastamento do povoado. Ao seu redor, para além da frescura e singeleza dos campos, do vigor e serenidade dos ares, do silêncio eloquente das madrugadas e do vento a confundir-lhe os desejos, tinha a amizade de cada uma das suas ovelhas e a protecção do Fiel. Conhecia as ovelhas uma a uma, chamava-as pelo nome, dialogava como elas como se fossem pessoas e tinha a firme certeza que elas a entendiam. Mas era o Fiel, um portentoso e meigo pastor alemão, o seu grande amigo e destemido protector.

Naquela noite, porém, uma enorme nostalgia perfurava-lhe o espírito e uma tremenda angústia trespassava-lhe o peito. Não adormecia. Revoltava-se sobre a palha, enrolava-se mais no cobertor e sobressaltava-se com o menor ruído. De repente, ouviu um barulho mais forte e prolongado. Erguendo-se, escutou mais atentamente. Pareciam-lhe passos, mas passos leves, suaves, sublimes, dir-se-ia, deliciosos. Tão afáveis e doces que nem o Fiel deles se havia apercebido. Aproximou-se, apreensiva, da única fresta que a cabana possuía e viu que desciam, em rancho, entre cânticos de glória e de louvor, um grupo de pastores e os três Reis Magos. Foi então que se lembrou que aquela era a noite de Natal. Os pastores e os reis, decerto, que se dirigiam, apressadamente, para o estábulo onde Jesus acabara de nascer e onde estaria em palhas deitado, junto de Maria e José. Os pastores levavam presentes simples e pobres mas generosos. Os três Reis Magos, levavam ricas ofertas: ouro, incenso e mirra.

Joana, apressada e sem que o Fiel desse por nada, pegou num cordeirinho que nascera dias antes. Assim como os outros pastores, levá-lo-ia ao Menino Jesus. No entanto, a mãe, apercebendo-se de que lhe era retirado o filhote, entrou num berreiro desolado, triste e sofredor. Joana entendeu, de imediato, que não podia, nem devia levá-lo retirando-o da pobre mãe. O Menino Jesus, decerto não exigia tal sacrifício à sua querida ovelhinha. Mas o que havia de levar se não tinha mais nada? Agasalhou-se, abriu a porta e saiu, cuidando que no exterior da cabana havia de encontrar algumas flores. O chão porém estava coberto de neve branca e nem uma flor se via. Desesperada, na ânsia de se juntar ao rancho dos pastores e aos Reis Magos, Joana arrancou do chão uma mão cheia dos primeiros arbustos que encontrou, cujas folhas estavam cobertas de neve e largou numa correria louca, na senda da gruta.

Ao chegar junto da gruta, donde emanava uma luz brilhante e resplandecia um brilho acariciador, Joana ficou muito triste. Os Reis e todos os outros pastores de joelhos diante do Menino, de Sua Mãe e de São José, estavam muito contentes e felizes pois todos haviam oferecido os seus presentes. Ela não tinha nada para oferecer ao Menino Jesus, a não ser aqueles pequenos arbustos, cobertas de neve. Começou a chorar. De repente, um anjo, que descera sobre a gruta, ao ver tamanha tristeza misturada com tão sublime inocência, passou junto de Joana e, enquanto as suas lágrimas caíam na terra gelada, tocando-lhe ao de leve com a brancura das suas asas, transformou os pequenos arbustos em lindas rosas brancas, que Joana, com o coração carregado de alegria e felicidade, ofereceu ao Menino Jesus.

Na manhã seguinte, ainda noite escura, bateram à porta da cabana, onde Joana dormia. O Fiel, sempre atento e vigilante, latiu. Joana acordou. Veio abrir. Era o pai! Estava melhor. Trazia uma cestinha com doces e vinha passar o dia de Natal com ela.

 

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publicado por picodavigia2 às 22:32

ENCANTO

Quarta-feira, 02.10.13

Desde o primeiro dia de aulas que, insistentemente, procurava um dos lugares nas carteiras da frente, onde se sentava todos os dias, bem junto à minha secretária. Embora me parecesse que a garotita, no início do ano lectivo, revelasse alguma indiferença, hesitação ou receio em procurar-me, cedo me apercebi que, afinal, manifestava um enorme carinho, uma excessiva admiração e um cativante deslumbramento por mim. Revelava um interesse desmesurado em ouvir-me, alegrava-se quando a ela me dirigia para a interrogar ou até para a repreender e, no fim da aula, não se coibia de ser a última sair, a fim de me ajudar no arrumo da sala, no apagar do quadro e no fechar da porta, acompanhando-me, em amena cavaqueira na descida das escadas que davam para os recreios e, por fim, despedindo-se, já na rua, com um simples mas terno e meigo “Até amanhã, professor”. E até nos dias em que, por exigências dos horários, não tínhamos aulas, ela, açudada por uma enorme vontade de me ver, de me encontrar, de conversar comigo, postava-se estrategicamente nos pátios, de maneira que, lhe fosse possível saudar-me com um cumprimento, por vezes, até com uma pequena e inocente brincadeira.

O desenrolar do ano lectivo e o ambiente de bem-estar, alegria e salutar aprendizagem que se ia cada vez mais agigantando nas minhas aulas, trouxe-lhe, necessariamente, uma cada vez maior afeição por mim, despoletando, entre nós, uma amizade simples, terna, meiga e verdadeira.

Eu próprio perante o sublime assédio da garota, me fui afeiçoando às suas brincadeiras, interessando-me pela sua presença, fantasiando-me com as suas atitudes, enlevando-me com as suas palavras, ufanando-me com os seus elogios e regozijando-me com a sua afeição e amizade.

Não era uma aluna brilhante porque não muito inteligente, mas era trabalhadora, estudiosa e interessada, o que lhe trazia, como consequência, a obtenção de resultados escolares bastante positivos. Era jovial, alegre, simples e detentora duma beleza invulgar. Cabelos loiros, quase doirados, olhos esverdeados, muito vivos e um rosto macio e aveludado, sobre um corpo débil e franzino, consubstanciavam uma doçura invulgar, uma simplicidade deslumbrante e um encanto sublime.

Passou um ano, passaram dois e a amizade recíproca e o respeito mútuo que nutríamos um pelo outro, agigantaram-se e transcenderam-se de tal forma que, no final do segundo ano, eu próprio senti uma enorme pena dela abandonar a escola e partir, com a agravante de não querer seguir os estudos, no ensino secundário. Despedimo-nos com melancolia, separámo-nos com mágoa, abraçamo-nos com tristeza e perdemo-nos, por completo, no espaço e no tempo. Nunca mais a encontrei, não deixando, no entanto, de me recordar do encanto singelo e sublime que, permanentemente, emanava da sua personalidade.

Passaram-se anos. Certa tarde em que deambulava pelas ruas da cidade, uma jovem dirigiu-se-me, acompanhada de um belo e simpático rapagão e, com um sorriso do tamanho do mundo, interrogou-me, sem que eu lhe pudesse responder. Perante a minha indesculpável ignorância, exclamou em êxtase, graciosamente, desesperado:

- Parece impossível! O Setor não me conhece? Não se lembra de mim? E tão amigos que nós éramos…

Não senhor, não me lembrava e por uma razão muito simples: ela agora era um jovem de uma beleza invulgar, duma graciosidade inexaurível, duma formosura estonteante e duma elegância inigualável. Abraçamo-nos como se ela ainda fosse aquela menina sublime e graciosa que se sentava junto à minha secretária e eu o velho professor que por ela me encantara.

Apresentou-me o namorado. Depois recordámos aulas, leituras, festas, brincadeiras, histórias e o tempo que havíamos partilhado em comum: eu como mestre e ela como aluna. Falámos sobre o futuro dela e sobre o jovem que a acompanhava e por quem, me confessava estar totalmente apaixonada:

- Sim senhor! Tens bom gosto, - acrescentei, virando-me para o rapagão, - escolheste uma menina que, para além de muito bonita, tem um excelente coração. É um encanto! Parabéns!

Despedimo-nos e virei-me, novamente, para o rapaz, como que ameaçando-o, em tom jocoso:

- Trata-a bem, caso contrário, prometo que havemos de ajustar contas.     

E ela sem demoras, num riso perdido mas um pouco envergonhado:

- Olha que o meu Setôr cumpre sempre o que promete!...

E partiram, muito felizes e apaixonados, na demanda do futuro.               

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publicado por picodavigia2 às 10:17

A BAÍA DAS ROSAS

Terça-feira, 01.10.13

Conta-se que, há muitos, muitos anos, (há tantos que já se lhes perdem as contas), havia um rapaz e uma rapariga que viviam, isolados e sozinhos, numa ilha algures perdida na imensidão do Atlântico e cuja existência ninguém conhecia. Os jovens, ao que parece, viviam num verdadeiro estado de pureza original, de inocência absoluta e nem sequer sabiam quem eram, onde tinham nascido ou quem eram os seus progenitores. Ela era jovem e bonita, mas débil, inocente, desmaliciosa, sem conhecer a malvadez e a concupiscência humana. Ele mais velho, mais forte e, embora mais experiente, mas também não conhecia nem a maldade do mundo, nem a ganância danosa dos homens. Como eram os únicos habitantes da ilha, passavam os dias andando pelos campos, passeando pelas florestas, apreciando a natureza, alimentando-se do que ela lhes dava e, conta a história, que até falavam com as plantas, conviviam com os animais, visitavam, com frequência os peixes, os búzios e as algas, dançavam no vai e vem das marés e tinham-se apaixonado por todas as criaturas da ilha, nas quais eles próprios se incluíam.

Assim viveram em liberdade e inocência, em amor, pureza e simplicidade, até que um dia chegou à ilha uma estranha e inaudita embarcação. Era uma galé que, ostentando sinais de realeza, atracou numa enorme baía que existia no local onde os jovens viviam. Algum tempo depois de ali ancorar, a galé lançou ao mar um pequeno batel que se dirigiu em direcção à ilha, transportando um estranho visitante. Pelas vestes e falar, pela coroa cravejada de pedras preciosas e pelo ceptro que ostentava numa das mãos, parecia ser um rei, talvez um rei Mouro que por ali passava, na demanda de novas terras que pretendia conquistar. Ficou a estranha figura e suposto monarca muito entusiasmado com a presença ali dos dois jovens, pois considerava desertas e despovoadas aquelas paragens. Aproximando-se dos jovens, trocou com eles algumas palavras, que não entenderam. O jovem, porém, através da postura do estranho visitante, depressa se apercebeu das suas malévolas intenções, consubstanciadas numa aparente e disfarçada benignidade. Mas os seus olhares perversos e maliciosos não cessavam de cair de rajada sobre a jovem que, vendo-se assim e pela primeira vez lisonjeada e desejada, se rendia, inocente e deslumbrada, aos exagerados e lascivos desejos que a sua beleza provocava, no malicioso e concupiscente monarca.

Pouco depois, o estranho visitante, cada vez mais maléfico, libidinoso e afeito à jovem, simulando afastar-se e regressar à sua galé, escondeu-se, sem que os jovens se apercebessem ou disso dessem conta, numa esconsa gruta que por ali existia. Cuidando, na sua ingénua inocência, que estavam aliviados de tão heteróclito visitante, os jovens regressaram à sua vida simples, pacífica, inocente e feliz, na ilha. Em plena noite, porém, o suposto rei, saindo do esconderijo, aproximou-se dos jovens e, à socapa, matou o rapaz e raptou a moça "que era tão bonita, tão fresca, tão bela, tão doce e tão atraente que fazia apaixonar o coração de qualquer homem". O rei pegou na jovem que, desolada, chorava a morte do seu companheiro, e levou-a para junto do mar, na mira de a conduzir à galé real. A jovem, porém, embora infrutiferamente, tentava resistir, mas o poderoso monarca arrastou-a até aos baixios que ornavam de escuro a orla marítima, exigindo que o acompanhasse até à galé real. A jovem, porém, apesar de inocente e ingénua, apercebendo-se das malévolas intenções do facínora, recusou-se a acompanhá-lo, oferecendo uma forte e tenaz resistência. O rei aproximou-se, enraivecido, tentando puxá-la para o batel. A jovem multiplicou-se em resistência e oposição, transformando-se numa enorme e esguia pedra de baixio, semelhante a tantas outros que por ali proliferavam. E tanta, tão forte e tão tenaz resistência foi a da jovem transformada em rochedo que o monarca não a conseguiu puxar, nem mesmo com a ajuda dos seus vassalos, que, ouvindo os seus gritos e chamamentos, se haviam aproximado de terra para o ajudar. Incapaz de puxar aquele rochedo, ali encravado, cada vez mais preso e seguro, o rei, desiludido, mandou destruí-lo, atirando-o para o fundo do mar, no meio da enorme baía.

Para espanto seu e de quantos o acompanhavam, pouco tempo depois, no lugar onde a pedra havia caído, começaram a brotar e a nascer da água rosas – as mais belas rosas que o monarca alguma vez vira sobre a face da terra. Essa a razão por que aquele rei mouro, arrependido dos seus actos, vis e concupiscentes, afastando-se dali, deu àquela baía, o nome de “Baía das Rosas”

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publicado por picodavigia2 às 09:07

AMANHECER EM SÃO CAETANO

Segunda-feira, 30.09.13

Em São Caetano, bem no coração do Pico, ao amanhecer, mal se abrem as janelas e se arredam as cortinas, logo se sente um perfume desenfreado a maresia e um sabor adocicado a frescura, vindo bem lá do alto, do cimo da montanha e vislumbra-se, de imediato e tanto ao longe como ao perto, um intrigante assédio de alvura derramado sobre o lusco-fusco do amanhecer, a desfazê-lo, a transformá-lo em claridade titubeante, idónea e, estranhamente, desejada.

Depois, muito lentamente vão-se desfazendo negrumes e encerrando-se nebulosidades, até que se desamarram por completo as apoitas sonolentas que prendiam uma agradável e consoladora sonolência. O ar, então, torna-se fresco como o murmúrio das fontes, suave como o silêncio das florestas e leve como a espuma branca que lá, ao longe, no meio do oceano, parece arremeter-se, indignada, contra ao vento, também ele ainda, parcialmente adormecido mas já quezilento e audaz.

A montanha começa a despir-se da escuridão e a vestir-se de um verde suculento e luminoso, indicando que Sol arribará, em breve, da sua quietude nocturna. Há gritos de estrelas a tremelicarem, entoando estertores agonizantes e o crepúsculo transforma-se num desperdício desinteressante e, inconscientemente, indesejado.

Do mar, chega, apressada, uma brisa irreverente e atrevida, esvaziam-se as marés, aquietam-se as ondas e a Lua, em acentuado vazante, é um novelo desfeito, um farrapo despedaçado e sem encanto, arrumada lá nos rebordos do horizonte.

Surgem os primeiros raios de Sol a desfazerem um relento desencorajado. A claridade é o estandarte da esperança e rolam sobre o chão, ainda borrifado de lava, chumaços entumecidos de negrume, sombras que a madrugada, lentamente, destruirá.

As plantas e os arbustos sacodem os respingos adocicados de salmoura e lançam aromas de fragrância aos quatro ventos, as árvores espreguiçam-se amotinadas como que em cardume, os pássaros saltitam de telhado em telhado e os galos ressuscitam um canto esganiçado e turbulento.

Até as pedras, torrões de lava seculares, que haviam passado a noite adormecidas parecem agora sorrir e erguerem-se, testemunhando em versos silenciosos, o inebriante contentamento de ver nascer um novo dia. É o Pico no seu inconfundível esplendor matinal.

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publicado por picodavigia2 às 00:22

A PAZ E O SILÊNCIO

Domingo, 29.09.13

A Serra era um desterro inebriante de memórias e recordações. Recoberta de um verde desmazelado, sombrio e indigente, aureolada de um cinzento enevoado e constrangedor, consubstanciava na secura das encostas a ânsia de se encharcar no desassossego aguado das lagoas que povoavam o seu interior. Dominada por um marasmo instigador compelida por uma atonia provocante, a Serra, se não deserta, emaranhava-se num ermo povoado de nevoeiros, perplexidades e desencantos.

Certo dia, demandou a Serra uma donzela trazida pelo vento norte. Conduzia um rebanho, mas o que mais a notabilizava era o facto de empunhar a bandeira da paz. Desenvolta e bela, a moça transpôs precipícios e grotões, saltou penhascos e ravinas, emaranhou-se por caminhos desertos e chegou à Serra deixando-se ali ficar, com o seu rebanho e a sua bandeira, imersa naquela letargia contagiante, envolta naquela aridez desértica, comungando uma imperturbabilidade inconsequente, partilhando uma pulcritude, que aos poucos se ia diluindo na infecundidade perturbadora da Serra.

Passaram-se dias, meses e anos, durante os quais, a pastora viveu só, pastoreando o seu rebanho e empunhando, contra a aridez da Serra, a bandeira da paz. Finalmente, numa manhã de Sol e de intransigente quietude, chegou à serra um anjo – o anjo do silêncio. Trazia gravado no peito o estigma da taciturnidade, acolhia-se em enigmas misantropos e desfilava um triste rosário de memórias perdidas. Caminhava na senda de um destino atrofiado.

Maravilhou-se, o anjo do silêncio, ao ver a jovem pastora, mensageira da paz e cumprimentou-a ternamente:

- Quem sois, linda pastora? Apenas sei que carregas a bandeira da paz, desfraldada pela luz das estrelas, cujo brilho se reflecte na simbologia do teu olhar. Conjugas a aridez inebriante desta Serra com os aromas dos teus sonhos e desejos.

A jovem sorriu, envergonhada e respondeu com voz trémula:

- Sou uma simples e humilde pastora, a mensageira da paz. Vejo que tu também carregas um estigma - o silêncio de um desespero amortalhado, conjugado com a tristeza de esperanças perdidas.

Então, o anjo do silêncio aproximou-se e, dando-lhe a mão, conduziu a transportadora da bandeira da paz, ao cume da Serra, onde o silêncio era mais suave e menos perturbante. O anjo solicitou-lhe que cravasse para sempre, ali, bem no alto a bandeira de que ela intransigente nunca se havia separado. E a jovem pastora colocou, para sempre, sobre a montanha ornada de silêncio, a bandeira inebriante da paz

O anjo e a pastora, em silêncio e à sombra da bandeira da paz trocaram as suas juras, como se apenas aquela Serra fosse o mundo e eles, os dois únicos seres a povoá-lo.

Sabe-se que, algum tempo depois o anjo teve que partir e a pastora ficou só. Mas ficou muito triste e chorou tanto, tanto, que o caudal das suas lágrimas se transformou num rio que, descendo as encostas da Serra, as transformou, ornando-as com as mais belas quedas de água.

E, a partir daquele dia, a Serra da aridez e do silêncio perturbante transformou-se num oásis de sublimidade inebriante, de memórias e recordações e vestiu-se de um verde jubiloso, alegre e cativante, aureolou-se de uma claridade inebriante e sonhadora, consubstanciando-se na frescura das encostas, na ânsia de se encharcar na paz aguada das suas lagoas. Dominada por uma alegria entusiasta, compelida por uma serenidade provocante, a Serra transformou-se, para sempre, numa atractiva e atraente sublimidade.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:22

O CAMBULHÃO

Sábado, 28.09.13

O ano fora forte em milhos. Chuvas gratificantes em Agosto e um Setembro soalheiro haviam transformado o cerrado do Picanço, no Areal, numa safra de bonança. A apanha do milho, iniciada alta madrugada, prolongou-se por toda a manhã, terminando, apenas, ao meio dia. Carros e caros de bois, estacados à porta do Picanço, a abarrotar-lhe a cozinha de maçarocas graúdas, recheadas de grãos suculentos. Uma riqueza! Um pecúlio como há muito não havia memória!

De tarde era a hora de encambulhar. Sentados em pequenos bancos ou sobre cestos virados com o fundo para cima, formaram círculo ao redor daquela espécie de pirâmide de maçarocas, o Picanço, a mulher, os filhos, uns parentes mais próximos, alguns amigos e um ou outro vizinho. A Engrácia, a filha do Mendonça, é que também não quis faltar, aparecendo de surpresa. Vinha oferecer os seus fracos e míseros préstimos. Mas, até era muito bem-vinda. Por parte do velho Picanço que via nela mais uma ajuda benfazeja e primorosa, por parte do filho mais novo, o Chico, que desde há muito, à sorrelfa, lhe andava a catrapiscar o olho.

Mal entrou Engrácia, levantou-se o Chico, muito solícito e mais apaixonado do que interessado na ajuda que a moça consubstanciava. Trouxe-lhe um banquinho e sentou-a a seu lado, partilhando não apenas os baraços de espadana com que se haviam de amarrar os cambulhões, mas também atirando-lhe olhares comprometedores, sussurrando-lhe disfarçados galanteios e até, provocando, propositadamente, um ou outro roçar de joelhos, camuflado pelo permanente arrepanhar das cascas das maçarocas. Não era bonita a Engrácia, mas era bela e encantadora. Não era linda, mas era fascinante e atraente. O rosto salpicado, junto aos olhos, por aglomerados de sardas que se iam dispersando e diluindo ao longo das faces, não era angélico mas revelava-se encantador e, delirantemente, sublime, por quanto, estampado numa espécie de esquelética agressividade, consubstanciava um encanto impar e uma fascinação invulgar. E ele, com o cabelo levemente acastanhado a sombrear-lhe a profundeza do olhar, impunha-se com uma rigidez cativante, atlética e com uma magnanimidade, inebriantemente, sedutora. Amavam-se sem, no entanto, o confessarem.

A safra do encambulho não parava e o monte, inicialmente desenhado pirâmide transformara-se, a meio da tarde, numa espécie de mastaba e esta, algum tempo depois, em eira. Se os fios de espadana rareavam, o Chico, na mira de aumentar o pecúlio dos atilhos, levantava-se e a moça não tirava os olhos dele. Voltava a sentar-se e, ao puxar do monte uma maçaroca, descambava sobre os ombros da moçoila, já inclinada, como que a adivinhar-lhe o enlevo. Apenas a Josefina – uma alcoviteira assumida, que não tirava o olho deles – impedia que olhares, toques e gracejos desandassem e se transformassem em requebros mais íntimos e comprometedores.

A tarde chegava ao fim e o monte das maçarocas era agora um eirado, derramado sobre o velho e carcomido soalho da cozinha. O velho Picanço, apercebendo-se que se aproximava o princípio do fim de tão farta azáfama, deu ordens. Era o Chico que havia de ir pendurar os cambulhões no estaleiro. Mas que o fizesse com cuidado; maçarocas bem apinhadas e com a casca mais grossa bem veadinha para fora. Era necessário proteger os grãos indefesos da chuva e do gorgulho. Aos mais novos e afoitos competia ajudar no carrego e transporte dos cambulhões para junto do estaleiro. Alguém havia de os “alcançar” ao Chico, quando encavalitado nas ripas do estaleiro ou pendurado numa escada anexa.

Engrácia, vermelha que nem um pero, ofereceu-se, de imediato. Se era o Chico a pendurar os cambulhões havia de ser ela a ajudá-lo. E ao aproximar-se do estaleiro, já ao lusco-fusco, ao alcançar-lhe o primeiro cambulhão, despendeu-o das mãos, simuladamente desajeitadas, deixando que o dito cujo se estatelasse no chão. Sempre solícito e adivinhando-lhe o intento, o Chico baixou-se para ajudá-la. Ao erguerem-se, fizeram-no tão ajeitadamente, que os seus rostos emparelhados se colaram num sufoco terno e emocionante, selando uma indelével paixão.

Entre choros e soluços, meses depois, era o Chico a partir para a América e a Engrácia, aflita e conturbada, com o coração despedaçado. No primeiro ano não havia vapor que não trouxesse carta do Chico e não havia carta que não viesse carregada de promessas e juras amor. No segundo as cartas rareavam e as promessas e juras esquecidas e, ao fim de três anos, o Chico já nem lhe escrevia. A Engrácia, no entanto, só e amortalhada, retinha dele um enorme e indelével amor, consubstanciado na memória permanente daquele cambulhão, caído propositadamente do estaleiro do velho Picanço, no escuro da noite daquele dia em que fora ajudar a encambulhar o milho do Picanço.

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publicado por picodavigia2 às 09:47

O PÁSSARO DAS FLORES LILASES

Sexta-feira, 27.09.13

Era uma criança loira, de olhos azuis, cabelos ao vento, sorriso radiante e olhar sublime. Tinha um porte leve, digno e suave. Caminhava, como se voasse, sobre o aveludado das nuvens, sonhava com o brilho cativante das estrelas e sorria por entre o vidrado das madrugadas primaveris. A vida, o tempo e, talvez, até o destino, porém, haviam-na cravejado de terríveis e lúgubres dissabores. Vivia acorrentada entre os solavancos da inconstância, trilhava as mágoas das privações e caminhava por entre os estilhaços dos estigmas. Abria as janelas ao florir das madrugadas nuas, acomodava-se no sibilar incauto do vento e envolvia-se, ao relento, na obscuridade das tardes desertas. Colhia espigas em trigais putrificados, enfrentava o rigor de invernias tormentosas e atravessava, solitária, caminhos e veredas exsicados. Iluminava as noites com candeias trémulas e vacilantes, deitava-se, ao luar, sobre as lajes frias dos eirados e dormia embalada pelo cantar sussurrante de fontes estéreis. E quando o Sol se inquinava de luminosidade, trepava às árvores despejadas de frutos, subia as fragas irrigadas de regatos, saltava os barrancos apinhados de silvados mas sorria para as flores, mesmo que estivessem murchas. Alimentava-se de pão rijo, ressequido e o leite sabia-lhe a mel. Mas, apesar de todas as limitações e dissabores, surgia, em cada dia, em cada hora e em cada momento, radiante como a aurora, doce como a alegria, terna como a saudade, meiga como o perfume das flores e jovial como o canto das cotovias.

 De manhã, ao acordar, assomava às janelas e os raios volúveis da alvorada pareciam esboçar-lhe, no horizonte, um caminho sem luz e sem rumo. Mas levantava-se, vestia-se, penteava os seus cabelos de oiro e caminhava na procura do destino, transportando os encantos da infância, sulcando, à porfia, as intempéries da escuridão, demandando o rastro das aves sem ninhos. E quando, à tarde, o Sol desfazia a estranha fantasmagoria das nuvens, ela não mais regressava a casa. Corria sozinha, alegre e desinibida, carregando, por entre o encanto desregrado da beleza, a fascinação idílica do seu olhar azul, o brilho doirado dos seus cabelos loiros e a limpidez suave da sua virtude angélica. Mas encaminhava-se, fatal e impreterivelmente, para uma lúgubre e sinistra Floresta Oculta. Abria, com premeditado estrondo, o enorme e pesado portão daquele antro hierático, onde se aninhava, camuflada, a audácia heróica e valorosa da virtude. Depois, entrava, caminhava, seguia e penetrava, segura, destemida, serena e radiosa, deslizando sobre a candura infantil da sua beleza, rasteando a elegância do seu corpo humilde e pequenino mas nobre, esbelto, gracioso e atraente. Tudo lhe dava o ar soberbo, nobre e altivo duma deusa romana, em miniatura.

 

Um dia, a criança de cabelos loiros e olhos azuis, ao entrar na Floresta Oculta, olhou para o alto e viu, por entre o eirado aterrador dos abutres, empoleirado numa árvore de flores lilases, um pássaro, pequenino, inocente e encantador. Parou, estagnou e cantou-lhe uma canção. O pássaro das flores lilases ouviu-a e adornou-a da mais serena e emotiva fascinação. E, no dia seguinte, os raios da alvorada, doces e perfumados, pareciam vislumbrar, no horizonte, para aquela criança pura, inocente e bela, um caminho repleto de luz e com a esperança a assinalar-lhe o destino.

 Mas a esperança estava morta e o destino povoado de fantasmas porque os raios da alvorada, desenhados no horizonte, eram apenas sombras frias, incoerentes e enigmáticas de uma estagnada e inverosímil perplexidade.

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publicado por picodavigia2 às 09:18

O DIA EM QUE A TIA AUGUSTA PARTIU PARA A AMÉRICA

Quinta-feira, 26.09.13

O dia em que a tia Augusta partiu para a América foi o mais triste e desventurado da minha vida.

De todas as minhas tias, tanto paternas como maternas, a que eu mais gostava, diria mesmo, a que mais amava, era a tia Augusta, a mais nova irmã do meu progenitor. Para além, de elegante, bonita, esbelta e graciosa, a tia Augusta tinha um coração generoso e era meiga, benevolente, simpática e, mais do que isso, era minha amiga, muito minha amiga. Por isso desabei num choro imenso, num pranto desolado e num sufoco inconformado no dia em que ela partiu para a América.

Desde de pequenino que a tia Augusta me cobria de mimos, me doseava de desvelos e me atafulhava de carinhos. Como não era casada, nem tinha filhos, eu era o seu menino preferido. Em casa sentava-me no seu colo, aconchegava-me ao seu regaço, brincava e enleava-se comigo. Quando saía para trabalhar nos campos, para visitar uma amiga ou, simplesmente, para dar uma volta por aqui ou por ali, levava-me sempre consigo, nunca me largava a mãozinha e, muitas vezes, cuidando que eu havia de estar cansado com tão exaustas caminhadas, até me levava ao colo, e, pelo menos uma vez que me lembre, transportou-me às cavalitas. Um encanto e um enlevo, esta tia Augusta.

Ora certa tarde, em que eu em casa, triste e macambúzio, aguardava, ansiosamente, uma das habituais visitas da tia Augusta, para mais um momento de enlevo, talvez uma brincadeira, quiçá um passeio, fui abalroado por esta trágica, cruel e fatídica notícia: A tia Augusta tinha partido, definitivamente, para a América. Não me contive e desatei num berreiro inconsolável, dilacerante, angustioso e inaudito que me analgizou por completo do evento.

Só três dias depois, já exangue de lágrimas mas não conformado com a desdita, dei comigo a pensar no motivo que teria originado tão, aparentemente, abrupta, despropositada e incompreensível decisão da minha tia Augusta, tão querida, tão meiga, tão afável. As amigas mais chegadas, deprimidas com tão oculta e inesperada deliberação, cuidavam que fossem amores desconcertados. As vizinhas, mexeriqueiras de ofício, ciciavam que ali havia paixão proibida, pois sempre a viam - e se a não viam imaginavam vê-la – de conversas escondidas com o filho mais velho do Graveto, homem casado e pai de família. Minha avó, pasmada e sentida, cuidava que haviam sido intrigas da tia Joaquina, sempre quezilenta e alcoviteira. A Júlia do Moleiro, uma bendita que passava a vida a por famas e aleives a umas e a outras, teve a distinta lata de afirmar que a tia Augusta tinha fugido para se “desarranjar”. Eu, triste e desconsolado, cuidei que a tia Augusta tinha partido porque já não gostava de mim.

E só, alguns anos mais tarde, já feito homenzinho, eu entendi os motivos por que, afinal, a minha tia Augusta partira para a América naquele fatídico dia: É que a tia Augusta não queria continuar a trabalhar e a viver mais como uma escrava, a andar de gatas a esfregar a casa duma ponta a outra, a ir lavar cestos e cestos de roupa à Ribeira, a padejar a urina da poça do gado, a tirar o esterco da cerca do porco, a acarretar à cabeça molhos de lenha e cestos de batatas, a rapar inhames e ordenhar as vacas, a semear milhos e apanhar batatas, a ceifar feitos e a rachar lenha e, pior do que isso, a fazer todos estes e muitos outros árduos trabalhos sem ganhar um tostão que fosse, com que pudesse, ao menos, comprar um par de sapatos.

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publicado por picodavigia2 às 15:21

A MONTANHA COBRIU-SE DE NUVENS

Quarta-feira, 25.09.13

Álvaro impulsionado pelo assombro de uma estranha crença, levantou-se de rompante e assomou à janela, há muito aberta e por onde, filtrados por uma leve cortina de tule esbranquiçado, entravam refulgentes, os primeiros raios matinais. O espectáculo que se apresentava era deslumbrante, maravilhoso e soberbo: totalmente descoberta, a montanha ostentava-se na sua beleza pura, original e genuína. O Pico retratado ali, na grandiosidade da sua montanha, era assim, belo, imponente, altivo e dominador. Álvaro conhecia por demais todas as outras ilhas. O que nelas, banhado por uma verde maresia, era beleza, simplicidade e doçura, no Pico, embrenhado na imponência e altivez daquela montanha, era um silêncio escuro mas deslumbrante e agreste, uma braveza destemida e contumaz, uma imponência rude e descomunal, uma escaleira de lava basáltica a tentar unir a terra ao céu.

Álvaro retirou-se por uns momentos como que a espicaçar uma sonolência de que ainda se não havia libertado por completo. Mas não se conteve e voltou à janela, atraído pela sublimidade do espectáculo que acabara de presenciar. A montanha continuava, ali, à sua frente, escancarada e nua, agora já aureolada com o dourado da claridade nascente, cada vez mais deslumbrante, mais emotiva e mais atraente. Com o Sol lá ao fundo, a impor-lhe um cerco de transparência, a aureolar-lhe o negro basáltico da lava, parecia que lhe escorriam, pelas encostas laminadas, refluxos de uma luz acariciadora e aconchegante.

Ali ficou mais uns momentos a cuidar que, dentro de momentos havia de agarrar-se aquela montanha, embrenhar-se nela como se fosse um rolo de neve, de a galgar até ao cume. É verdade que a subida do Pico armazenava relatos contraditórios, mas todos eram unânimes: a escalada consubstanciava-se sempre numa inesquecível noite, bem lá no alto, entre pedregulhos e fumarolas, com a Lua a impor-se teimosamente nos céus e a iluminar uma estranha e metafórica paisagem, espelhada num mar prateado quase infinito a prolongar-se até ao horizonte. Lá no alto, quase a beijar o céu, o silêncio sufocava os murmúrios e o sibilar acutilante do vento agreste salpicava desejos imperceptíveis. Depois era o florescer da madrugada, a apagar o rumo das estrelas e agigantar ainda mais a infinidade do oceano, agora ensopado com as manchas luxuriantes das ilhas que, lá em baixo se erguiam ao redor, como se fossem pérolas de um colar: o Faial aqui tão perto, mais além a Terceira, São Jorge do outro lado e, lá ao fundo, a Graciosa.

Álvaro, finalmente, despertou por completo, mas, quando de novo regressou à janela, a montanha, estranha e inexplicavelmente, era um enorme chumaço de neveiro acinzentado A montanha havia-se coberto de um denso manto que obstruía sonhos e obliterava desejos.

Ainda não seria naquela manhã que havia de escalar aquele alcantil imponente, altivo e sublime que ali estava a sua frente, agora, emerso no mais denso e incompreensível véu de nebulosidade.

De mansinho, fechou a janela e voltou a deitar-se. Talvez amanhã estivesse melhor. No folheto turístico colocado em cima da mesa-de-cabeceira, pode ler: Pico, a segunda maior ilha dos Açores, com uma superfície de cerca 447 quilómetros quadrados, possui uma altíssima montanha, ao redor da qual proliferam campos carregados de vinha…

Pouco depois, voltou a adormecer, enquanto a montanha, lá ao longe, anulando desejos, se cobria com um véu de nuvens, cada vez mais denso e escuro.

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publicado por picodavigia2 às 15:21

A GAROUPINHA ENCANTADA

Terça-feira, 24.09.13

Conta-se que há muitos, muitos anos, ainda Angra não era cidade nem vila, mas sim um minúsculo lugarejo, povoado por lavradores e pescadores, os primeiros entregues às árduas tarefas de arroteamento das encostas ou ao cultivo dos campos já arados, os segundos a sulcarem, dia após dia, o mar, na busca do sustento que, por vezes, a terra não lhes dava.

Ora certo dia um grupo de pescadores juntou-se, como muitas vezes o fazia, e partiu para o mar. O engodo era bom, o isco ainda melhor, sendo que, além disso, naqueles tempos recuados, nos mares ao redor da ilha, abundavam muitas e boas espécies de peixes, com destaque para as garoupas. Arrearam o barco, apetrecharam-se com isca e engodo apanhados nos subúrbios da costa, remaram na direcção desejada, encodaram e começaram a pesca. Um excelente montão de peixe, onde predominavam garoupas, começou a acumular-se no fundo do pequeno e frágil batel.

Terminada a safra e satisfeitos com a pescaria, rumaram a terra, cuidando que, assim, teriam alimento para as suas famílias ou para trocar por outros alimentos, durante alguns dias. Vararam o barco no pequeno porto, arrumaram-no numa tosca ramada e amontoaram as garoupas em cima de um rochedo alcantilado de lava basáltica, a fim de formar os quinhões que seriam atribuídos a cada um.

Qual não foi o seu espanto quando verificaram que, entre o amontoado das garoupas, havia uma que, para além de muito pequenina e bastante diferente das outras, na cor e no aspecto, era a única que permanecia com vida.

Ao princípio não deram importância, cuidando que se estava viva é porque tinha sido a última a ser pescada. Mas quando o pescador mais velho e dono do barco lhe tentou pegar, a garoupa deu um salto enorme, escapulindo-lhe das mãos. O velho pescador vendo a enorme quantidade de peixe que ali tinha, cuidou que aquela garoupa de tão pequenina que era nem sequer serviria para assar e, pegando nela, novamente e com desdenho, atirou-a para bem longe dali. Inexplicavelmente, na altura em que o fez começaram a brilhar, lá ao longe, no horizonte uma revoada de relâmpagos, como nunca se vira por ali. Cuidando que era um temporal que se anunciava, os pescadores apressaram-se a regressar a casa, carregando cada um a parte que lhe coubera do peixe que haviam pescado.

Ao chegar a casa, porém, um dos pescadores, o mais novo de todos, apercebendo-se de que afinal os relâmpagos continuavam, mas não havia nenhum sinal de intempérie, decidiu regressar ao porto onde haviam varado o barco. Qual não foi o seu espanto quando viu que a pequenina garoupa abandonada e desprezada, se encontrava ali, aos saltos e com vida, como se tivesse acabado de sair da água. Admirado com aquele estranho fenómeno e condoendo-se do pobre peixinho, agarrou num balde de madeira, encheu-o com água do mar e, colocando dentro dele a garoupinha abandonada, trouxe-a para sua casa. Como a garoupa ainda permanecesse viva no dia seguinte, começou a alimentá-la com pedacinhos de peixe, lapas e búzios que ia apanhar nas rochas, à beira-mar, ao mesmo tempo que trazia baldes de água para ir renovando aquela em que, feita prisioneira, nadava, dia e noite, a garoupa. Assim, com os esmerados cuidados do pescador, aquele pequenino peixe ali viveu durante, dias, meses e anos.

Tão exagerados desvelos provocaram a curiosidade de amigos e vizinhos, que demandavam o casebre do pescador, para ver, apreciar e admirar aquele estranho fenómeno da natureza – a garoupinha.

Certo dia, entre os visitantes curiosos que a casa do pescador se dirigiam para ver e apreciar a garoupinha, apareceu uma velha. O seu aspecto era estranho, mas tinha um sorriso que atraía e cativava. Quando todos os outros visitantes já se tinham ido embora, a velha, no lusco-fusco da noite, de repente, começou a brilhar como se tivesse possuída por uma luz tão brilhante como a do Sol, que se reflectia e projectava dentro da água. Nesse instante, a pequena garoupa desapareceu e, acreditem ou não, no lugar dela, apareceu uma jovem e bela donzela. O pescador ao vê-la, não cabia em si de contente e mais se extravasou de alegria quando a jovem lhe pediu que a deixasse ficar na sua casa, pois não tinha para onde ir. Conta ainda a história que, passado algum tempo, se apaixonaram, casaram e viveram felizes para sempre. Há quem cuide que é por esta razão que ainda hoje existe, na cidade de Angra, uma rua chamada “Rua da Garoupinha”.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 16:12

A PRAÇA DA MENINA DOS BALÕES

Domingo, 22.09.13

Era uma vez uma menina simples, humilde, delicada e bela, como tantas outras meninas mas, na verdade, não tinha a alegria e a felicidade delas. Os seus olhos, embora carregados de um verde sublime e de um fulgor deslumbrante, escondiam um enorme rastro de tristeza, ocultavam um imenso acervo de mágoa, derramarem um fluxo de lágrimas plangentes, ofuscadas, estranhas e encastoadas numa ansiosa inquietude.

O pai partira há muito e para sempre. A mãe exacerbava-se entre doenças e maleitas e definhava lentamente, amortalhada de sofrimento e consumições. E ela, outrora o “ai Jesus” de um e outro, agora, apesar de criança frágil e débil, exorbitava-se de esforço, imiscuía-se em preocupações e tarefas, na mira de libertar a mãe do sufoco, aliviando-lhe a penúria. 

Todas as manhãs, colocando a melhor roupa que tinha, penteada, limpa e asseada, percorrendo quilómetros, rompendo a escuridão do lusco-fusco, desfazendo o silêncio deserto das ruas, carregada de esperança amarga e de balões multicolores, caminhava na direcção da grande cidade, onde havia uma enorme praça. Era lá que, sentada ou de pé, segurando uma enorme rima de balões, presos a uma cavilha de ferro, com cores, formas e feitios diferentes, os apregoava e vendia, um agora e depois outro, até os vender todos, regressando a casa com os bolsitos abarrotados de moedas.

Ao princípio os clientes rareavam e ela chegava ao fim do dia, apenas com dois ou três balões vendidos. Mas depressa o negócio cresceu e prosperou. Por vezes, ainda a meio da manhã, abandonava a praça, com todos os balões vendidos. O pai, outrora palhaço num circo, ensinara-lhe a arte de enchê-los e com a mãe, vendedora na feira do “Cortiço”, aprendera a sabedoria de bem os apregoar e vender. Mas era sobretudo a persistência da sua graciosidade, o perfume da sua inocência, a empatia da sua presença, a ternura da sua voz e os sonhos escondidos no seu olhar que aliciavam, atraíam e chamavam os clientes, permitindo que vendesse tantos balões quantos transportava para a praça. Crianças, jovens, casais de namorados, homens, mulheres e até velhinhos, todos paravam ali e compravam balões, fascinados pelo encanto da dócil e meiga vendedora, pela simplicidade e deslumbramento daquela inocente e angélica negociante. E a praça, outrora deserta, escura e sinistra, enchia-se, agora, em cada manhã, de sons, de cores, de pessoas e de alegria. A praça que tinha um nome tão estranho e esquisito, o nome de um senhor que ninguém sabia quem fora e alguns nem o sabiam pronunciar, passou a chamar-se, por todos os que a demandavam, “A Praça da Menina dos Balões”.

Mas um dia, numa manhã, cinzenta, escura, amordaçada por uma chuva incomodativa e sacudida por um vento assolador, a menina lá não estava a vender balões. A princípio cuidou-se que fosse do tempo mas, como a menina não viesse no dia seguinte, pensou-se que, talvez, estivesse doente. Mas não estava doente, a menina dos balões, porque passou uma semana, duas semanas, muitas semanas e muitos meses e ela nunca mais voltou a encher a praça com balões, com cores, com sons, com doçura e encantamento. E as pessoas ficaram muito tristes e desoladas porque a menina nunca mais voltou à Praça da Menina dos Balões.

É que naquela manhã, cinzenta, escura, amordaçada por uma chuva incomodativa e sacudida por um vento assolador, a mãe da menina dos balões, assim como o pai, partiu para sempre, deixando-a só. De longe vieram tios, primos e alguns amigos. Falaram, discutiram, opinaram e, por fim, deliberaram, sobre o destino da menina dos balões. O seu futuro, mais conveniente e menos embaraçoso, havia de ser na companhia de uns tios que moravam lá na Serra, bem longe da cidade onde ficava a Praça da Menina dos Balões.

Conta também a história que a menina cresceu, tornou-se ainda mais bela do que em criança, apaixonou-se e casou, evaporando-se por entre os densos nevoeiros da serra, nunca mais voltando à cidade onde ficava a praça que ainda hoje é chamada, por todos o que a demandam “A Praça da Menina dos Balões”  

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publicado por picodavigia2 às 17:48





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