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SANTUÁRIO DE GELO

Quarta-feira, 27.02.19

Alta madrugada! Um cavaleiro, estranho e enigmático, trajando de negro, com um capuz a tapar-lhe a cabeça e a esconder-lhe uma boa parte do rosto, aproximou-se dos muros circundantes de um vetusto mosteiro. Vinha de longe, percorrera praias de areia dourada mas também atravessara oceanos repletos de baixios e escolhos; calcorreara caminhos amaciados com sombras e aureolados com o esplendor das madrugadas mas também enveredara por atalhos sinuosos e tétricos; hospedara-se em cidades modernas, coloridas e cheias de luz mas também vagueara por desertos atulhados de tempestades e nevoeiros. Montava, com audácia e valentia, com garbo e aprumo, um cavalo branco, com selim de prata e arreios de marfim, correndo acelerado em elegante e destemido trote.

Dentro do mosteiro havia um santuário e o cavaleiro cuidava que era ali, na sombra e no silêncio, em oração e penitência, em contemplação e clausura que havia de penetrar nos meandros apocalípticos duma sublime transformação.

O mosteiro era um enorme edifício, um monumento de rara beleza e excelsa grandiosidade, um cenóbio edificado com excelência e magnanimidade. Rodeado de um alto e portentoso muro, o mosteiro apenas comunicava com o exterior por um robusto portão, a que se seguia um amplo terreiro, com uma escadaria granítica a conduzir à porta de entrada da majestosa e imponente fachada do santuário. Acreditava o cavaleiro que aquele era um santuário de sombras e de silêncios, onde havia de submeter-se ao acto sacramental, à adoração contínua, à iniciação contemplativa e à restauração apocalíptica, na esperança de se redimir e se refugiar da morte ritual.

O cavaleiro de negro bateu a aldraba do portão, uma vez, duas vezes, três vezes. De dentro uma voz rouca e, aparentemente, esbranquiçada pediu-lhe a senha. Nem santo, nem senha. O cavaleiro apenas cuidava que dentro daquele lugar de adoração havia sombras e silêncios. Nova investida. Um cavaleiro de bronze, também ali refugiado em clausura, abriu-lhe o portão, indicou-lhe a travessia do átrio e conduziu-o na subida da escadaria granítica, até à porta do santuário, sem proferir palavra. E o cavaleiro trajando de negro, sempre com o capuz a cobrir-lhe a cabeça e a tapar-lhe uma boa parte do rosto, entrou no santuário, na esperança de encontrar silêncios e sombras. Mas no santuário havia apenas uma estátua, aureolada com um diadema de espuma aveludada, surgindo de entre os silêncios e as sombras que o cavaleiro cuidava ver. Tinha na mão direita um ceptro de cristal e na esquerda um livro aberto, onde se podia ler, a letras garrafais; “A percepção é cega e enganadora. O que se vê não é necessariamente o que existe.” Caminhando na direcção do cavaleiro, a estátua tocou-lhe, ao de leve, com o ceptro de cristal, cravando-lhe, na fronte um estigma esverdeado, desaparecendo, de seguida, no meio dos silêncios e das sombras, sem deixar rasto, ao mesmo tempo que o cavaleiro perdia a consciência. Quando a recuperou, percebeu que, afinal, estava num santuário, mas num santuário branco, guardado pelo cavaleiro de bronze e todo revestido de gelo. Afinal naquele enigmático santuário não havia nem sombras nem silêncios, nem ritos sacramentais, nem iniciação contemplativa, nem virtualidades apocalípticas. Só havia gelo. Tudo o que o formava, rodeava, envolvia, amparava, constituía e até iluminava era de gelo.

“Se o santuário é de gelo, - pensou o cavaleiro - hei-de envolver-me em espuma, até me congelar. Hei-de assumir como meu, o destino do "Esquife de Gelo", domínio secreto do santuário, onde nenhum outro cavaleiro, mesmo que de ouro, de prata ou outra coisa qualquer, possa nele penetrar.

E o cavaleiro de negro refugiou-se, por algum tempo, no santuário, na expectativa de aprender e de dominar as técnicas de domínio, de sobrevivência e de vida no gelo. Mas o seu golpe de congelamento foi de tal modo incurial e extravagante, que provocou uma inesperada rajada de cristais de gelo que, caindo em catadupa, sobre o próprio cavaleiro, o fulminaram mortalmente.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

MANGÃO

Segunda-feira, 25.02.19

Se consultarmos o site oficial da Câmara Municipal das Lajes das Flores e procurarmos em “freguesias” Fajã Grande, poderemos ver, entre outras informações, umas dez linhas dedicadas à gastronomia, nas quais, para além das filhós, do pão doce ou massa sovada e dos doces tradicionais (arroz doce e bolos caseiros) se referem os seguintes pratos típicos, também considerados “iguarias da freguesia da Fajã Grande”: Enchidos, Carne de Porco Salgada, Mariscos, Lapas, Peixe, Pão de Milho, Bolo de Milho, Batata-doce e Inhame.

Na realidade todos estes comeres não se podem considerar propriamente iguarias, ou seja comidas preparadas ou cozinhadas, mas sim produtos ou géneros alimentares com que se confeccionavam e muito provavelmente ainda se confeccionam os tais pratos típicos que o site não refere, embora, na realidade, excepcionando o marisco que não era usual nos cardápios de antanho, todos os outros alimentos indicados faziam parte da alimentação quotidiana fajãgrandense. Obviamente que numa terra pobre e tendo em conta as limitadas condições de vida da época e a falta de produtos, de meios e, até de tempo, não se pode falar de uma cozinha rica, variada e abundante. Apesar disso, confeccionavam-se alguns destes alimentos de forma própria, única, típica e talvez mesmo, nalguns casos, exclusiva da Fajã Grande. É a esses cozinhados ou aos pratos deles resultantes que se pode, em abono da verdade, chamar pratos típicos, como era o caso da caçoila e das sopas fritas ou até da linguiça já referenciados neste blogue.

Havia no entanto alguns outros pratos, um dos quais o célebre Mangão, em que o elemento base era a batata branca e geralmente preparado quando não havia conduto para acompanhar as próprias batatas, o que acontecia com muita frequência. Aliás e pela sua estrutura e ingredientes percebe-se que este é um prato que terá nascido simplesmente do facto de não se ter nada para comer, a não ser as batatas. Assim, duma limitação ou duma ausência cria-se um prato típico, o que não é inédito na culinária portuguesa, bastando para tal recordar a razão que levou os habitantes do Porto a inventar e confeccionar as tripas à moda do Porto: simplesmente porque durante as invasões francesas, os franceses comiam a carne, deixando-lhes apenas as tripas. Houve que inventar e que criar. O mesmo terá acontecido com o nosso Mangão, com a diferença de que não foram nem os franceses nem outro povo qualquer a comer-nos o conduto. Este simplesmente não existia.

Para confeccionar o Mangão, para além das batatas brancas cozidas, era necessária banha de porco, preferencialmente daquela que cobrira a linguiça, cebola e alho picados. Uma vez derretidas duas ou três colheres de banha, num caldeirão de ferro, alouravam-se a cebola e o alho. As batatas, previamente cozidas, eram bem esmagadas com um garfo até ficarem desfeitas e, quando o refogado estava pronto, adicionavam-se ao mesmo. Depois era tudo muito bem mexido para que as batatas e a cebola ficassem bem envolvidas e misturadas. O Mangão estava pronto e era servido directamente do caldeirão de ferro para os pratos, a fim de se comer bem quentinho.

Ainda não há muito tempo, através de um telefonema duma amiga dos meus tempos de infância, fui informado que na casa dos seus pais e possivelmente nalgumas outras, se comia o Mangão polvilhado com açúcar. Penso que este costume, por mim desconhecido, terá a sua origem numa “estória” que se contava, nos meus tempos de infância, de um navio carregado de açúcar que em tempos idos, naufragou na Fajã Grande. Tanto foi o açúcar que se espalhou pelo baixio que o povo encheu sacos e sacos e trouxe-o para as suas casas, utilizando-o como tempero em substituição do sal.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O SOBRINHO DO MAGO

Domingo, 17.02.19

(CONTO TRADICIONAL)

 

Era uma vez um mago que tinha na sua companhia um sobrinho. O mago viajava muito e, sempre que o fazia, pedia ao sobrinho que, durante a sua ausência, lhe guardasse a casa e vigiasse os seus bens para que ninguém o roubasse. Antes de sair, porém, entregava-lhe duas chaves, pedindo-lhe que por nada deste mundo abrisse as duas portas que elas fechavam e que, se o fizesse, morreria.

O rapaz, assim que se viu sozinho, não se lembrou mais do pedido do tio e abriu uma das portas. Ao abri-la, deparou-se com um campo escuro e um lobo que vinha correndo na sua direcção. Cheio de medo, o rapaz fechou a porta imediatamente. Mas o mago quando chegou, algum tempo depois, apercebeu-se de que o sobrinho havia desrespeitado as suas ordens e disse-lhe:

– Desgraçado! Porque desobedeceste às minhas ordens, abrindo aquela porta? Poderias ter morrido!

O rapaz, muito arrependido, chorou e pediu perdão ao tio, acabando este por esquecer e perdoar-lhe. Passado algum tempo, porém, o mago partiu novamente, voltando a fazer as mesmas recomendações, ao sobrinho. Mas o rapaz, muito curioso, não se conteve e abriu a outra porta. De imediato viu um campo muito grande, onde pastava um cavalo branco. O cavalo começou aos saltos e a correr na direcção do rapaz que, lembrando-se das ameaças do tio e já o sentindo subir pela escada, começou a gritar:

– Ai que agora é que estou perdido!

O cavalo branco, correndo sempre na sua direcção, aproximou-se dele e disse-lhe

– Apanha desse chão um ramo, uma pedra e um punhado de areia, e monta quanto antes, em cima de mim.

No entanto, o mago chegou a casa mas o rapaz já saltara para cima do cavalo branco, gritando-lhe:

– Foge! Chegou o meu tio e vai matar-me.

O cavalo branco correu pelos ares fora mais veloz do que o vento, levando o rapaz consigo. Quando já iam muito distantes da casa do tio, o rapaz voltou a gritar:

– Corre, cavalo! Meu tio já me apanha para me matar.

O cavalo branco correu mais, e quando o mago estava quase a apanhá-los, disse para o rapaz:

– Deita fora o ramo.

O rapaz assim fez e apareceu logo ali uma densa floresta. Enquanto o mago tentava abrir caminho para sair dela, o cavalo e o rapaz puseram-se muito longe. Mas pouco depois, este tornou a gritar:

– Corre, cavalo, corre! Que atrás de nós está meu tio, que nos vai matar.

Disse o cavalo branco:

– Bota fora a pedra.

Logo ali se formou uma grande serra cheia de penedias, que o mago teve de subir, enquanto eles avançavam porque sabiam o caminho. Mais adiante, grita o rapaz:

– Corre, cavalo, corre muito! Que meu tio agarra-nos.

– Pois atira ao vento o punhado de areia, disse-lhe o cavalo branco.

Apareceu logo ali um mar sem fim, que o mago não pôde atravessar. Eles, no entanto, atravessaram-no e foram dar a uma terra onde estava muito gente a fazer muitos e grandes prantos. O cavalo branco largou ali o rapaz e disse-lhe que quando se visse em grandes dificuldades chamasse por ele, mas que nunca dissesse como viera ter ali. O rapaz foi andando e perguntou a uma mulher, por quem eram aqueles grandes prantos.

– É porque a filha do rei foi roubada por um gigante que vive em uma ilha aonde ninguém pode chegar.

– Pois eu sou capaz de ir lá.

Foram dizê-lo ao rei e este obrigou o rapaz, sob pena de morte, a cumprir o que dissera. O rapaz valeu-se do cavalo branco, e conseguiu ir à ilha e trazer de lá, consigo, a princesa, porque apanhara o gigante dormindo.

Assim, a princesa, finalmente regressou ao palácio mas estava muito chorosa. Não havia maneira de lhe cessarem as lágrimas. Perguntou-lhe o rei:

– Porque choras tanto, minha filha?

– Choro porque perdi o anel que me tinha dado a fada minha madrinha e, enquanto o não encontrar, estou sujeita a ser roubada outra vez ou ficar para sempre encantada.

O rei mandou lançar um pregão em como dava a mão da princesa a quem achasse o anel que ela tinha perdido. O rapaz chamou o cavalo branco, que lhe trouxe do fundo do mar o anel. O rei mandou, conforme o prometido, fazer o casamento da princesa com o rapaz, os quais viveram felizes para sempre.

 

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AS DUAS IRMÃS

Sábado, 16.02.19

(CONTO TRADICIONAL)

 

Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas. A mais velha parecia-se tanto com ela, que a confundiam com a própria mãe. Mas a mãe e a filha eram tão desagradáveis e orgulhosas que ninguém as suportava. Por sua vez, a filha mais nova, para além de boa e educada, era muito bonita.

A mãe adorava a filha mais velha, mas tinha uma tremenda antipatia pela mais nova, que comia na cozinha e trabalhava sem como se fosse uma criada, pois tinha, a pobrezinha, entre outras coisas, de ir, duas vezes por dia, buscar água a uma fonte que ficava longe de casa, com uma enorme e pesado balde, que trazia sempre bem cheio.

Um dia, enquanto ela estava junto à fonte a encher o balde, apareceu uma pobre velhinha, pedindo-lhe de beber:

- Pois não, boa senhora - disse a linda moça e, pegando no balde, tirou água, dando-lhe de beber com as suas próprias mãos, para auxiliá-la.

A boa velhinha bebeu e disse:

- Tu és tão bonita, minha filha, e tão boa e tão educada, que não posso deixar de te dar um dom. – É que aquela velhinha era uma fada, que tinha tomado a forma de uma pobre camponesa para ver até onde ia a educação daquela menina.

- Quando falares, a cada palavra que proferires - continuou a fada disfarçada de velhinha - da tua boca sairá ou uma flor ou uma pedra preciosa.

Quando a filha chegou a casa, a mãe recriminou-a pela demora.

- Peço-lhe perdão, minha mãe - disse a pobrezinha -, por ter demorado tanto. - E, dizendo estas palavras, saíram-lhe da boca duas rosas, duas pérolas e dois enormes diamantes.

- O que é isso? - Disse a mãe espantada - Acho que estou a ver pérolas e diamantes saindo da tua boca. Como é que conseguiste isso, filha? - Era a primeira vez que lhe chamava de filha.

A pobre menina contou-lhe, então, o que tinha acontecido junto da fonte, saindo-lhe da boca flores e pérolas.

- Meu deus! - Disse a mãe. - Tenho de mandar a minha filha mais velha à fonte.

De seguida chamando a filha mais velha, disse-lhe;

- Filha, vem cá. Vê o que sai da boca da tua irmã, quando ela fala. Quero que tenhas o mesmo dom. Vai à fonte e, quando uma pobre mulher te pedir água, dá-lhe de beber.

- Só me faltava essa! - Respondeu a filha. - Ter de ir até à fonte!

- Estou a mandar-te, filha, - retorquiu a mãe -, e vai já, antes que a mulher desapareça.

Embora contrariada, a rapariga lá foi, levando o mais bonito jarro de prata que havia em casa.

Mal chegou à fonte, viu sair do bosque uma princesa, ricamente vestida, que lhe pedia água. Era a mesma fada que tinha aparecido à irmã, mas que agora se disfarçara de princesa, para ver até onde ia a educação daquela moça.

- Será que foi para te dar de beber que eu vim aqui? – Respondeu a rapariga – Tens aqui um jarro de prata cheio! Tome e bebe do jarro, se quiseres, pois eu não sou tua criada.

- És muito mal-educada - disse a fada. - Pois muito bem! Já que és tão pouco cortês, a cada palavra que proferires, sair-te-á, da boca, uma cobra ou um sapo.

Quando a mãe a viu chegar, perguntou-lhe:

- E então, filha? Encontraste a mulher e deste-lhe de beber.

- Sim, mãe! Encontrei-a e dei-lhe água do meu jarro. - Respondeu a mal-educada, soltando-lhe, de imediato, pela boca duas cobras e dois sapos.

- Meu Deus! - Gritou a mãe, horrorizada. - O que é isso? A culpa é da tua irmã. Ela me paga. E imediatamente foi procurar a filha mais nova. Depois de a espancar, expulsou-a de casa. Sem ter para onde ir, a menina, lavada em lágrimas, foi-se esconder na floresta.

O filho do rei, que voltava da caça, encontrou-a e, vendo como era linda, perguntou-lhe o que fazia ali sozinha e por que estava a chorar.

- Ai de mim, senhor, foi minha mãe que me expulsou de casa.

O filho do rei, vendo sair de sua boca cinco flores e outros tantos diamantes, pediu-lhe que lhe dissesse de onde vinha aquilo.

Ela contou-lhe toda a sua aventura. O filho do rei apaixonou-se por ela e, considerando que tal dom valia mais do que qualquer dote, levou-a para o palácio real. Algum tempo depois casaram.

Quanto à irmã, a mãe ficou tão irada contra ela que a expulsou de casa.

E a infeliz, depois de muito andar sem encontrar ninguém que a abrigasse, acabou morrendo num canto do bosque.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS

Quinta-feira, 14.02.19

(UM CONTO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

 

Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.

Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pequenos pzinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe.

A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando.

Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo.

Depois disso a menininha caminhou de pés nus – já vermelhos e roxos de frio.

Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão.

Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.

Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria!

Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso.

Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo.

Sim: nisso ela pensava!

Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior.

Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão.

O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.

Suas mãozinhas estavam duras de frio.

Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz!

Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se.

Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha…

Que luz maravilhosa!

Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa.

Como o fogo ardia! Como era confortável!

Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.

Riscou um segundo fósforo.

Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito!

Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.

Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante.

Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo.

“Alguém está morrendo”, pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela cala, uma alma subia para Deus.

Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.

 - Vovó! – exclamou a criança.

 - Oh! leva-me contigo!

Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar!

Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!

E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tornou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações – subindo para Deus.

Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.

O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver.

A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. – Queria aquecer-se – diziam os passantes.

Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano­ Novo.”

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O IMPÉRIO DE SÃO PEDRO

Quinta-feira, 07.02.19

Na Fajã Grande existiam 6 Impérios: quatro do Espírito Santo (Casa de Cima, Casa de Baixo, Ponta e Cuada) e dois de S. Pedro (Casa de Cima e Ponta).

Curiosamente a festa organizada pelo Império de S. Pedro da Casa de Cima, assim como o S. Pedro da Ponta, era em tudo ou quase tudo, muito semelhante à festa do Espírito Santo, realizada nos outros Impérios. Apenas as insígnias eram diferentes: não havia bandeira branca, a coroa era muito pequenina e, nos cortejos, era sempre acompanhada por uma imagem de S. Pedro. Como a imagem de S. Pedro, pertencente ao respectivo Império era muito pequenina, no dia da festa e nas procissões e cortejos que se realizavam por essa altura, era a imagem existente na igreja, porque bastante maior, que acompanhava as outras duas insígnias, sendo transportada em andor adequado.

Mas a grande diferença entre o Império de São Pedro e os do espírito Santo era a de que a maior parte dos mordomos pertencentes a este Império eram jovens e crianças. Chamava-se também “Império das Crianças”.

Mas, da mesma forma que na festa do Espírito Santo, na semana que antecedia a de S. Pedro e de forma idêntica, eram cantadas as Alvoradas. Na antevéspera, de tarde, organizava-se o cortejo até rolo da Baía de Água, para a matança do gado, sendo a carne distribuída pelos mordomos na véspera de manhã, acompanhada pela pequenina coroa, pela bandeira, pelos foliões e por muitas crianças.

A festa realizava-se no dia 29 de Junho, dia liturgicamente dedicado a S. Pedro e S. Paulo, quando ainda era “dia santo abolido”. Nesse dia havia idêntico procedimento ao da festa de Espírito Santo, verificando-se apenas uma alteração: da parte da tarde organizava-se uma procissão, com coroa, bandeira e imagem do Santo, até ao Porto Velho, onde os barcos presentes haviam sido devidamente ornamentados e enfeitados. A imagem era colocada num barco juntamente com a coroa e a bandeira, enquanto o pároco, com barco a servir de púlpito, pregava o sermão, procedendo, de seguida, à bênção dos barcos.

O cortejo regressava à Casa de Cima e procedia-se às sortes dos novos cabeças, com um ritual em tudo semelhante ao realizado na festa de Espírito Santo.

A festa terminava, ao início da noite, com o “levar das sortes” aos novos cabeças.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A MATANÇA

Quarta-feira, 06.02.19

O Silvestre todos os anos, uns dias antes do Natal, matava um porco. Engordado ao longo do ano com os cuidados excessivos da mulher que passava horas e horas a alimentar o bicho, os porcos que o Silvestre matava em cada ano eram coisa de se ver. Grandes, gordos, pesados, com uns bons palmos de toucinho no lombo, os porcos do Silvestre eram sempre muito gabados por todos.

Para a matança, um verdadeiro dia de festa, o Silvestre convidava sempre os familiares e os amigos, muitos amigos. E no dia da matança, a casa do Silvestre enchia-se como nunca. Muitos ajudavam-no a apanhar o bicho, a meter-lhe a faca, aparar o sangue, lavá-lo, raspá-lo, barbeá-lo e até a abri-lo. Depois de um lauto almoço, onde não faltava, inhames, peixe assado, polvo guisado, molha de carne e até bifes de toninha, tudo acompanhado com o vinho de cheiro que o próprio Silvestre ia buscar à adega. De tarde era o “desfranchar” do suíno, esquartejando-o, partindo, cortando, serrando, picando a carne para a linguiça, derretendo os torresmos. As mulheres numa azáfama medonha, a lavar tripas, a preparar as morcelas e a fazer os bifes para a ceia.

E à noite a casa do Silvestre enchia-se, não apenas dos que haviam ajudado durante o dia mas também de muitos outros amigalhaços que, a convite do Silvestre, ali chegavam apenas com a intenção de jantar e depois, quiçá talvez jogar as cartas.

Quem nunca faltava â matança do Silvestre era o amigo Matias. Era um costume de há muitos anos, uma espécie de tradição que não podia diluir-se. Todos os anos o Matias, a mulher e os filhos eram presença certa na matança do Silvestre.

Um ano houve em que o Matias tinha em sua companhia um sobrinho, filho duma irmã que morava na Serreta, na Terceira. O rapaz ao acabar os estudos no liceu de Angra, fora estudar economia para Coimbra, onde se formara. Terminado o curso, ao regressar aos Açores, decidiu-se por concorrer para as Finanças. Como rareassem vagas na Terceira, a pedido da mãe, concorreu para o Pico, sendo colocado na Madalena, para gáudio da progenitora, que assim via o filho hospedar-se com segurança e requinte em casa do irmão. Ora o convite que o Silvestre fazia era para toada a família, incluindo o sobrinho.

O rapaz, embora tímido e pouco à vontade, acabou por aceitar o convite, comparecendo em casa do Silvestre, apenas à noitinha, para a ceia. Sentaram-se à mesa, exagerando-se nas atenções e cuidados que em casa nunca lhes havia entrada tão ilustre visitante. O senhor doutor merecia todas as atenções e comidinha à farta. A abundância do cardápio e a excelência do repasto havia de ocultar e sublevar a pobreza e humildade da casa do Silvestre.

Quem mais se esmerou em cuidados e atenções à volta do senhor doutor foi a filha mais velha do Silvestre, a Lucília, muito solícita, a colocar-lhe na frente travessas de inhames fumegantes, bifes de lombo muito bem temperados e rodelas de morcela frita, a cheirar a cebola e temperos. Lucília não era bonita, mas era deliciosamente bela e encantadora. Não era linda, mas era fascinante e atraente. O rosto acentuadamente moreno, com uma boa parte encoberta por um cabelo muito negro, liso e sedoso. Tinha um ar destemido, ousado, quase selvagem embora simulasse, sobretudo ao aproximar-se de tão ilustre hóspede, uma evidente timidez. Tinha um sorriso muito límpido e transparente e resplandecia-lhe do rosto um encanto sublime e uma ternura atraente.

Terminado a ceia os homens fumaram, a maioria tomou um traçadinho, outros, um copo de aguardente pura, boa, da safra do Silvestre. Mas o senhor doutor não estava habituado a estas bebidas… O Silvestre que sim e ele que não… Insistência daqui e recusa dacolá, até que a Lucília veio resolver a contenda com um cálice de angelica, ao mesmo tempo que, com unhas e dentes, defendia o senhor doutro das risotas e graçolas dos outros que afirmavam, à socapa, que aquilo de angelica era bebida de mulheres.

 

Sentaram-se, de novo à mesa para as cartas. E como o senhor doutor, que fizera par com o Silvestre, logo após a primeira partida a dar um capote, fosse muito elogiado pela sua hábil e sábia arte de jogar, Lucília nem por nada quis perder aquele momento. Inquieta, a arfar desejos e a vassalar-se numa tremenda paixão que o primeiro olhar dele, terno meigo e sedutor consubstanciara, veio sentar-se ao seu lado. Pouco depois os seus corpos tocavam-se, ao de leve, num enlevo recíproco que foi crescendo e intensificando-se, ao longo da noite

No dia seguinte foi ela que se adiantou, como era costume, a ir levar uma postinha de carne e uma morcela a casa do amigo Matias. Foi o senhor doutor que a recebeu porque não estava mais ninguém em casa. Ele muito preocupado e aflito e ela nervosa e decidida. Iam despedir-se. O tio Matias havia de agradecer ao pai.

Mas antes de sair, Lucília, no impulso da sua gigantesca e indomada paixão, sem que ele o persentisse, deu-lhe um beijo que havia de selar, para sempre, o enorme amor que entre eles, nascera na noite anterior, na noite da matança do Silvestre.

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O PICO OU A VERDADEIRA ILHA DE BRUMA

Terça-feira, 05.02.19

Mesmo que já tenhamos aportado inúmeras vezes à maior ilha do grupo central açoriano, quando, novamente, o fazemos não nos limitamos, apenas, a sentir os pés no terreiro, onde os nossos avós bailaram o pezinho ou a chamarrita. Na realidade e sempre que de novo e mais uma vez se arriba ao Pico, para além dos ecos de um passado egrégio e progénie, emergimos num universo a abarrotar de um sem fim de sensações envolventes e dinâmicas, que nos enlevam em encanto e nos sublimam em deslumbramento. Calcorreiam-se atalhos e veredas atapetados de musgo, balizados por bardos de incenso e faia, caminhos ornados de madressilva e poejo, uns e outros construídos nas encostas pedregosas da ilha, muitos deles, quiçá, nos primórdios do seu povoamento. Depois, envolvidos por um silêncio perturbador, penetramos entre o verde das pequenas florestas, a abarrotar de faias, sanguinhos, paus brancos, folhados e uva do mato. Do chão térreo, anos a fio domesticado por alviões manejados sabiamente pelos nossos avós, emerge um perfume a enxofre e a lava e do mar, onde ainda são visíveis as rilheiras dos botes baleeiros e das traineiras, aflora um sabor a uma maresia destemida e deslumbrante. Por entre as brumas e os nevoeiros matinais, ergue-se um cântico de dolência adormecida. É no Pico, talvez por ser a mais jovem ilha açoriana, que sentimos, mais do que em nenhuma outra, correr-nos, nas veias, um basalto negro, ainda vivo, uma seiva, um suco, um mosto, disfarçado de espuma, umas vezes sublime e delicioso, outras angustiante e perturbador, mas sempre dulcificado e apetecível, personificado naquele torrão pétreo onde o florido das orquídeas e das azáleas se mistura com o desabrochar dos primeiros rebentos das figueiras e das vides. É também este basalto negro, como que ensanguentado, que nos trás à memória a labuta de um povo de pastores e baleiros que escreveu a sua história com cajados e remos, gravando-a, para sempre, nas pedras basálticas das encostas e nos rochedos dos baixios e escolhos da beira-mar. É este gigante adormecido, de magma e enxofre que nos traz à lembrança, cada vez que olhamos os socalcos e andurriais da montanha que o personifica, os fantasmas das sombras enigmáticas da lava dos vulcões e os ecos roufenhos do rugido de abalos e terramotos. É esta tremenda e invulgar força telúrica, adormecida no seu seio e armazenada no seu interior, é esta estranha e paradigmática sensação de se ter a alma presa a um alvoroço extrusivo, profundo e místico, que nos deslumbra e faz sonhar, ao mesmo tempo que nos emaranha nos meandros de uma natureza pura e virgem, donde brotam vinhedos fecundos e de sabor adocicado, ladeados por muros singelos de lava carcomida, encostas recheadas de um bruto esplendor, maroiços a abarrotar de pedregulhos saltitantes, paisagens transparentes de uma pureza diáfana, veredas marcadas com o marulhar contínuo das albarcas e dos pés descalços, campos fecundos, ornados de uma vegetação atrevida, metamorfoseada num verde luxuriante que ora povoa os pastos repletos de manadas, ora cobre as encostas de arvoredos e arbustos ou reveste as pequenas courelas de legumes e cereais.

O Pico é assim, como uma princesa revestida de bruma, que as gaivotas beijam e enternecem com mimos e carinho. Sempre que o revistamos de lés-a-lés, encontramos a dolência embevecida das ondas, o eco oscilante das marés ou, até, a braveza incontrolável do oceano e encantamo-nos, deliciosamente, com a inebriante doçura das lagoas e deslumbramo-nos, em excelência, com a ternura sorridente das hortênsias. E como se isso não bastasse, ainda nos fica, no peito, o estigma da ardência das caldeiras e das fumarolas dos vulcões. Por tudo isso é que o Pico é a primeira entre as verdadeiras ilhas de bruma, porque revestida com o negro do basalto, com o verde da esperança e envolta com o azul do mar e o branco baço dos nevoeiros.

Razão tinha o poeta Manuel Alegre, quando, demandando o Pico, procurava uma ilha de bruma, “… uma ilha sobre o vento e a espuma/Agora tenho-a à minha frente/ilha de bruma./Buscava um lugar santo um canto um cântico/um triângulo mágico uma palavra um fim./E vejo um grande pico sobre o atlântico/e uma ilha a nascer dentro de mim”.

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BOLOS DE VÉSPERA PARA TODOS

Domingo, 03.02.19

O amplo largo fronteiro à assimétrica igreja de Santa Luzia do Pico estava a abarrotar de pessoas, de conversas e de açafates repletos de bolos de véspera, assinalados com chavões e cravejados de flores. Um espectáculo de cor, de aromas e de simplicidade. Aguardava-se a chegada do pároco que havia de percorrer um a um, os quatro corredores, ao lado dos quais se dispunham os açafates, ordenados e arrumados em cima de bancos, como se fossem gigantescos grãozinhos de milho, semeados em regos paralelos, a germinar nos campos, por entre a terra húmida e fortalecida.

A tarde estava sombria e, do lado de São Jorge soprava um vento húmido, aguerrido e dominador. Cuidava-se mesmo que podia chover. Essa a razão por que o “mordomo” da festa e os seus colaboradores haviam equacionado a hipótese de colocar os açafates no salão paroquial, contíguo à pequena capela que ostentava, no frontispício branco, uma coroa granítica, preta, sobrevoada por uma pomba da mesma cor. Paradigmáticos símbolos do Divino Espírito Santo, nas ilhas açorianas! Mas o tempo aparentava melhoras e o povo preferia ver, observar de perto, sentir e presenciar toda aquela celebração em louvor da Terceira Pessoa da Trindade, ali ao ar livre, entre a montanha e o mar, entre o fogo e água, com o céu a servir-lhe de resguardo.

Não tardou muito e o pároco surgiu, lá do fundo, emergindo da igreja, paramentado de alva branca e estola vermelha, acompanhado de um acólito a segurar-lhe a caldeirinha da água benta e o hissope com que o pão havia de ser aspergido. À frente dois foliões, com tambor e pandeireta – pum-pum, pum-pum – trem-trem, trem-trem – entoavam loas ao Paráclito. O pequeno cortejo aproximou-se dos açafates. Os foguetes ribombaram e o povo fez silêncio. Encharcando o hissope que o acólito lhe apresentava na água da caldeirinha, o pároco, percorrendo os corredores delineados entre os açafates, dirigia preces a Deus, ao mesmo tempo que atirava respingos de água benta sobre o pão. O povo, silencioso, benzia-se. Alguns, mais crentes, bichanavam orações. Terminada a bênção de todos e de cada um dos açafates, o pároco, despojando-se das vestes litúrgicas, retirou-se, enquanto a filarmónica do Cais, entoava, com solenidade e mestria, o Hino do Espírito Santo. Muitos dos presentes acompanhavam os acordes musicais e os solos dos clarinetes, das trompetes e dos cornetins requintados, cantarolando em voz baixa: “Alva pomba que meiga, aparecestes, ao Messias no Rio Jordão…”

O bar, ali ao lado, que, em respeito religioso pelo divino, havia parado durante a bênção, ressuscitava, agora, o reboliço inicial das favas guisadas, dos caranguejos, das lapas e dos copos de vinho, perfumado com o negro enxofre da lava basáltica, onde as vides haviam germinado. Foguetes ribombavam em uníssono com o repicar dos sinos. O apinhado de gente cada vez mais volumoso aguardava, expectante e ansioso, a hora de “receber o pão”.

Dezenas, centenas, milhares de bolos de véspera, assinalados na parte superior com os chavões dos que os haviam ofertado, enfeitados com flores multicolores, passavam, agora, das mãos dos distribuidores para as de todos os que ali, pacientemente, haviam aguardado o momento mágico, transcendente e emocional, em que recebiam aquela dádiva do Divino, oferecida pelo humano.

- Ó sinhô, - explicava Ti Manuel da Silveira, ao mesmo tempo que com a mão direita ajeitava a aba do chapéu de feltro a tapar-lhe o cocuruto e estendia a esquerda para receber uma véspera. – Ó sinhô, isto é um costume muito antigo. Foram os nossos antepassados, há muitos, muitos anos que fizeram esta promessa. E pode acreditar que enquanto houver gente nesta freguesia, esta promessa há-de ser cumprida todos os anos. Lá isso há-de... – Depois apontando lá para os lados da montanha, que se ostentava tímida e enevoada: – O sinhô está a ver ali em cima aquele cabeço, e um outro mais além e ainda outro? Pois são sete, ao todo, veja bem, sete e olhe que de todos eles, há muitos, muitos anos, saiu muito fogo, lava pura, vinda de dentro da terra e que deslizou por aqui a baixo, a correr para o mar como se fosse um rio e destruiu isto tudo. Casas, animais, vinhas e campos, tudo… Tudo, o fogo levou. Ficaram poucos, mas foram esses que, naquele momento de enorme agonia, fizeram esta promessa: “Se o fogo parar, os que escaparem hão-de dar pão aos pobres e a todos os que demandarem esta terra, neste dia, enquanto o mundo for mundo, em louvor do Senhor Espírito Santo”.

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O ELOGIO DA LAVA

Sexta-feira, 01.02.19

O Pico, visto de repente e no Inverno, parece um respingue de lava, atirado à toa, para cima do Atlântico. Outrora lava vermelha, incandescente, fumegante e destruidora, mais tarde negra, inturgescida, basáltica e besuntada de enxofre, agora aureolada de verde, benéfica, produtiva, atraente e perfumada de mosto e de salpicos de maresia.

Mas ontem como hoje, esta lava é uma espécie de sangue negro, fecundo e vigoroso, derramado sobre um chão pétreo e consistente, que o alimenta, o tonifica e o transforma em vinhedos, em campos de milho, em pastagens ou em encostas a abarrotar de florestas de faia, de incenso e de árvores de fruto que o vão atapetando do sopé até ao cume, onde, umas vezes, escorrem flocos calcificados de gelo, outras fragmentos caramelizados de neve, e onde sopra sempre um vento destemido, mesmo violento, mas com um ar enternecedor de benfazejo, sobretudo quando acompanhado pelo suave lacrimejar do orvalho acariciador das madrugadas.

A lava é vida neste Pico. A lava é esperança neste mar. A lava é crença deste povo. A lava é suco generoso, é chão amigo. A lava é uma espécie de bálsamo tonificante e fertilizador, que transforma o sofrimento em promessa, a angústia em esperança, destruição em recompensa, o deserto em abundância, o nada em tudo.

A lava, nascida bem lá no fundo da Terra, sobe à tona e alastra por aqui e por além, cobre tudo, verte-se em torrente sobre este chão e nele desliza como se fosse um rio gigantesco e negro, a arfar de desejos inexperientes, sem pontes, sem açudes e a perder-se por entre andurriais angustiantes, a entrincheirar-se entre margens de suplício. Mas um rio cheio de esperança contagiante, a abarrotar de alegria inocente e pura, a transbordar de madrugadas sonhadoras.

A lava do Pico é um rio de espuma incandescente, a deslizar por entre pedaços de chão rachado, a fertilizar os vales, a enrijecer os montes, a calcificar os pântanos e as lagoas, a alimentar os vinhedos e as florestas, a perder-se, como que envergonhado e tímido, no meio de um oceano de desejos indefinidos, transformando-se em gigantescas marés de graça, de solenidade e de ternura

E a lava negra deste Pico, ontem vermelha e destruidora, transformou-se, por mãos calejadas e dolentes, num gigantesco e pétreo manto verde de esperança.

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O ESPIRRO

Quarta-feira, 30.01.19

(CONTO POPULAR DA FAJÃ GRANDE)

 

O conto que a seguir transcrevo era um daqueles que ouvi tantas e tantas vezes em criança e do qual me havia, parcialmente, esquecido. Em boa hora o recolheu, entre 1941 e 1951, Pedro da Silveira, o mais ilustre fajãgrandense de sempre, poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral, o recolheu e divulgou esta preciosidade, publicando-o na Nova Série da Revista Lusitana, nº 7, 1968, permitindo-me assim avivá-lo na memória de quantos, como eu, o ouviram e dá-lo a conhecer.

Pedro da Silveira recolheu-se, na sua originalidade pura e simples, com modos, palavras e ditos utilizados, nas Flores. Transcrevo-o, aqui, tal qual como aquele etnógrafo o reproduziu, na sua forma original, com palavras e expressões então utilizadas na linguagem diária fajãgrandense e a que eu, tomei a liberdade, de acrescentar um pequeno e esclarecedor glossário.

 

“Era ua vez além dos más um casal, ele chomado Nicolau, ela já nã se sabe, só que era de mum mau génio, sempre a atazanar o pobrezito, que aquilo nunca se viu mulher de tã má pinga, nã havia nada que fazer com ela, sempre com tirapuxas, sempre a peleijar, na vizinhança nã na podiam ver nin pintada, era temivle, da pel’ do eiramá. Como o Nicolau a aturava todos se admiravam e por isso ainda más diziam bem dele, um home bem criade com toda a gente, e curzidozo como aí há poucos.

Pois vai um dia, mal o home chegou a casa, horas da ceia deveram de ser, por um coisa de nada os estraloiços e arrebate daquela bisca malina! A pontos que se desintinderam de todo, nem se sabe que ele teve que a malhar, só que a fim dua peleija que parecia vir tud’abaixo, assentaram devedir quanto tinham dentro in casa, cada um p´ra seu lado e sim más se falarem. E como só havia ua barra, o modo de também a devedirem foi por um tabuão pelo meio da cama debaixo arriba, quer-se dezer da tarje aos pés, e cada um a dormir de sua banda. E este amanho durou somanas e somanas, ua grandeza de tempo. O demonho da mulher bem se metia, ora braba ora más à mansa, dia in dia más mansa que brada, mas o Nicolau boca calada, nin ua nin duas, nã le dava troco.

E deu-se antão o caso que andando ele lá nos seus amanhos das terras apanhou ua molhadura e daí veio ua defluxama e uma tosse que o pobre levava o dia naquilo, o dia e a noite, a tossir e a ‘spirrar. Até que uma dessas noites, deitados cada um deles de sua banda da cama, o home deu um tal espirro que a mulher, agora já com pena dele, nã s’aguentou más e disse:

- Deus t’ajude, Nicolau.

Ele ainda quis fazer que nã tinha oivido, que aquilo nã era consigo, mas ao despous intindeu que já era bastante p’ra castigo dela, e Antão respondeu-le:

- Ó mulher, se é do coração tira-se já o tabuão.

E tiraram-no e quanto se sabe e deve ser vardade daí in diente nunca mais hoive inticas nin guerras entre os dous.”

 

Glossário: - Era uma vez além dos más – expressão usada no início dos contos.

                  - Nã – não.

                  - Mum – muito.

                  - Tã – tão.

                  - Temivle – temível.

- De tã má pinga – de tão mau carácter ou mau feitio.

- Tirapuxas – discussões.

- Da pel’ do eiramá – parecida com o diabo.

- Bem criade – educado.

- Curzidozo – perfeito no trabalho.

- Estraloiços – extravagâncias.

- Bisca malina – pessoa de mau feitio.

- A pontos que – a dada altura.

.- Dua – duma.

- Barra  - cama.

- Tarje – cabeceira da cama.

- Uma grandeza de – muitíssimo.

- Demonho – demónio.

- Defluxama – grande constipação.

- Inticas – intrigas.

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VIAJANDO NO CARVALHO ARAÚJO

Quinta-feira, 24.01.19

Era geralmente ao anoitecer que o Carvalho levantava ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde chegava na manhã do dia seguinte. Uma noite inteirinha a marulhar o casco enegrecido contra as ondas, na escuridão e no silêncio do oceano, entrecortado apenas pelo tépido roncar das suas velhas mas portentosas máquinas. Os passageiros, ao lusco-fusco, logo que embarcavam debruçavam-se em chusma, à amarra do convés e entretinham-se a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que o prendera em frente às Lajes, durante várias horas. Alguns marinheiros levantavam a escada e fechavam o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, guinava à retaguarda, apitava por três vezes, orientava-se rumo à saída da baia e zarpava em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.

Alguns passageiros, sobretudo os que viajavam sem beliche, passavam a noite em vai e vens apreensivos e temerários entre a primeira e a segunda classe, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora entrando nas salas que ainda permaneciam abertas, procurando lugar apetecível para pernoitar. Outros mas afoitos e destemidos subiam ao convés da primeira na luta por descortinarem uma espreguiçadeira desocupada. Os que o não conseguiam voltavam à amarra para ver mais uma vez a ilha, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz.

O Carvalho navegava durante toda a noite ronceiro e vagaroso mas sem parar balançando-se sobre as ondas, umas vezes altivas e temerosas outras calmas e tranquilas, enquanto ao longe muito tenuemente brilhavam, até desaparecerem por completo, os dois faróis das Flores. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas.

Com o despontar da madrugada começavam a vagar cadeiras no convés da primeira. Era ali e pelos corredores ou até sobre o convés, ao lado do porão que se acomodavam os passageiros sem beliche, alheando-se, assim, dos solavancos rítmicos, acompanhados pelo som roufenho das máquinas do velho paquete. Os faróis das Flores desapareciam por completo, com o aproximar-se do Faial. Alta madrugada a maioria dos passageiros quer os sem beliche, quer muitos outros, aguardavam expectantes a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.

Quem por ali passou a bordo do Carvalho, entre Setembro de 1957 e Outubro de 1958 afirmava que se via perfeitamente uma enorme e altiva coluna de fogo, a sair do mar. Tudo começara em Setembro 1957. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma grave crise sísmica no Faial e no Pico e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses, pese embora, com o passar do tempo fosse perdendo a pujança e a força iniciais. Mas no início da crise, a lava emersa da terra era tanta e tão forte que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.

Quem viajava, nessa altura, no Carvalho tinha a oportunidade única de observar, aquele fenómeno telúrico, vislumbrando, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão.

 

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MAIS UMA DE BOLO

Terça-feira, 22.01.19

Rezam as crónicas que minha avó paterna, na sua senectude, terá manifestado algumas atitudes e procedimentos menos vulgares ou pouco normais assim como certas excentricidades ou manias, que terão levado, os que a rodeavam e tratavam, a julgar que tinha ensandecido.

Entre as suas extravagantes exigências, resultantes de um quotidiano amorfo e monótono, próprio de quem entra numa senilidade demente, havia uma muito simples mas estranha e cuja concretização onerava, significativamente, o parco e reduzido orçamento familiar: exigia ela comer sopas de café com pão de trigo, todos os dias. Mas isso era quase um luxo, pelo menos, coisa rara na altura, não tanto pelo café, que este era de favas e chicória, mas pelo pão de trigo, dado que os campos na Fajã nunca produziram quantidades significativas deste cereal e comprar farinha de trigo era, na altura, uma espécie de magnificência, que só os ricos e endinheirados, que diga-se de passagem eram poucos, o conseguiam.

No entanto, com algum sacrifício e significativas alterações nos hábitos de vida caseira, lá iam, os meus familiares a quem estava confiada a sua guarda, arranjando, de vez em quando, alguma farinha e, no meio do bolo e do pão de milho, iam cozendo, um ou outro pão de trigo, satisfazendo assim os sonhos que quem, agora demente, tivera uma vida dolente e sofrida. Mas coziam pouco, muito pouco. Por isso, impunha-se poupá-lo. É que acendia-se o forno, apenas, uma vez por semana e padarias, apenas, existia uma, em Santa Cruz. Daí que ensaiassem uma velha estratégia, baseada no ditado popular “com papas e bolos se enganam os tolos”, de, junto com os pedaços do pão de trigo esmigalhados no café, juntar alguns pedaços de bolo. Tinham como objectivo apenas e tão-somente aumentar o cardápio à mãe do meu progenitor, garantindo-lhe a quantidade de alimento necessário a uma vida eficaz e salutar. Bem-intencionados, sem dúvida, estavam os meus parentes, pois pensavam que misturando o bolo ao pão de trigo, minha avó alimentar-se-ia muito bem e, devido ao seu aparente estado de demência, não daria por nada, nem se aperceberia da “batota” engendrada. Enganaram-se radicalmente!

Então não é que a minha avó, sempre que lhe enfiavam, por meio das sopas de pão de trigo, uma colherada de bolo pelas goelas abaixo, gritava ironicamente, em alto e bom som:

 "- Lá vai, mais uma de bolo!”

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PEDRO DA SILVEIRA

Sábado, 19.01.19

Pedro da Silveira, “o Pedro das Senhoras Mendonças” como era conhecido pelos seus vizinhos, nasceu na Fajã Grande, na rua da Assomada,(1) a 5 de Setembro de 1922. Embora fosse meu vizinho, muito amigo dos meus pais e meus irmãos mais velhos, com quem conversava frequentemente e visitasse a Fajã quando eu era criança, apenas tive o privilégio de conversar com ele num encontro de habitantes das ilhas das Flores e Corvo, realizado em Castelo Branco, há alguns anos. Nessa altura tive a honra de lhe entregar um texto meu “Noite de Natal” que ele teve a delicadeza de ler e do qual mais tarde me enviou o seu comentário. Lamentavelmente não mais pude contactar com ele. Faleceu em Lisboa, no dia 13 de Abril de 2003.

Pedro da Silveira, talvez o mais ilustre fajãgrandense de sempre, foi poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral. Fez parte do conselho de redacção da revista “Seara Nova” e é autor de várias obras de poesia e de recensão literária e de duas antologias de poetas açorianos.

Depois de ter completado o ensino primário na Fajã Grande, tendo já demonstrado grande inteligência e interesse pelas letras, partiu para Angra, frequentando primeiro o Seminário e mais tarde o Liceu, o que lhe permitiu completar a sua formação básica e contactar com os mais lídimos representantes da literatura lusófona do tempo e onde, de acordo com as suas palavras «Havia, pelo menos em certos meios, um culto muito fiel por Jaime Brasil e por Aurélio Quintanilha, ambos terceirenses e ambos anarco-sindicalistas. Para aí me inclinei e ainda agora, se alguma ideologia política é capaz de me dizer alguma coisa, essa é o socialismo acrata(2) ou anarquismo.”(1987)

Alguns anos depois radicou-se em Ponta Delgada, cidade onde integrou o grupo intelectual que se formou em torno do jornal “A Ilha”, periódico no qual colaborou assiduamente.

Finalmente fixou-se em Lisboa, onde viveu o resto da sua vida, embora visitando a Fajã com alguma frequência, granjeando, de acordo com o testemunho de muitos dos seus vizinhos e conterrâneos, a simpatia de todos, com os quais partilhava ideias, princípios e conhecimentos. Foi delegado de propaganda médica, promovendo produtos farmacêuticos, iniciando simultaneamente um percurso de estudo e investigação histórico-literária. Mais tarde passou a trabalhar na Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais, chegando a integrar a Comissão de Gestão da mesma.

 Foi um dos promotores da elaboração da Enciclopédia Açoriana e participou ainda em múltiplos estudos relacionados com a cultura açoriana e em especial com a história e a etnografia da ilha das Flores, com destaque muito especial para a Fajã Grande, onde recolheu variadíssimos textos da tradição literária oral, divulgados mais tarde na revista “Lusitana”. Iniciou a sua obra poética com A Ilha e o Mundo (1953) e prosseguiu com Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999). Publicou um primeiro volume “Fui ao Mar Buscar Laranjas”, um conjunto de vinte poemas inéditos, escritos entre 1942 e 1946.

Pedro da Silveira revelou sempre um alto sentido de cidadania e uma formação ideológica e política muito firme, convicta e segura, iniciada na sua adolescência nas Flores, onde conheceu alguns exilados políticos, que “lhe revelaram quem era Salazar e ao que vinha”. Com eles, primeiro, e depois com o grupo anarquista em Angra, consolidou os princípios políticos e ideológicos essenciais que o acompanhariam por toda a vida e que fizeram com que os seus direitos políticos fossem apreendidos por  Salazar que chegou a retirar-lhe o direito de voto e também que fosse permanentemente perseguido e preso pela PIDE.

Notas – (1) Em recente visita à Fajã Grande, pude verificar que a casa onde ele nasceu foi vendida. Creio que poder-se-ia muito bem ter sido transformada em “Casa museu Pedro da Silveira. Pior. A casa onde o pai nasceu, situada à Praça e que, na década de cinquenta, era um palheiro de gado e arrumos, foi totalmente destruída. Era esta a casa que ele descreve num dos seus mais belos poemas.

(2) Chama-se “acrata” a um partidário ou defensor da acracia. A acracia é uma forma de anarquismo, ou seja, uma ideologia politico-filosófica que não aceita a legitimidade de nenhuma imposição. Sendo assim, para que uma acção humana tenha valor moral deve emanar da decisão livre de quem a empreende e, por isso, todas as actividades humanas devem ser resultantes de compromissos voluntários, tomados por livre arbítrio. Na prática, os acratas defendem que as pessoas não nasceram para obedecer mas sim para decidir por si próprias.

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O CARVALHO ARAÚJO

Quinta-feira, 17.01.19

O Carvalho Araújo era um velho paquete pertencente à Empresa Insulana de Navegação que durante anos e anos deteve o monopólio do transporte de passageiros e de carga entre o Continente, a Madeira e as nove ilhas dos Açores, as quais demandava uma vez por mês. Apenas entre as ilhas do grupo central circulavam três pequenos iates. O Carvalho era um barco enorme. Para além dos cerca de noventa e oito tripulantes, tinha capacidade para o transporte de mais de trezentos e cinquenta passageiros e quatro mil e setecentas toneladas de carga. Tinha sido comprado à construtora italiana “Cantiere Navale Trestino” havia uns bons trinta anos. Uma placa colocada na primeira classe, na escadaria que dava acesso à sala de jantar, explicava a razão se ser do nome com que fora baptizado, recordando o episódio em que fora protagonista o comandante Carvalho Araújo. Em Outubro de 1918, durante a primeira Grande Guerra Mundial, o navio S. Miguel fazia uma viagem entre a Madeira e os Açores, transportando passageiros e carga diversa, sendo escoltado pelo navio patrulha Augusto Castilho, sob o comando do tenente José Botelho de Carvalho Araújo. Quando os dois navios se encontravam a algumas milhas da cidade de Ponta Delgada foram atacados a tiro de canhão por um submarino alemão, comandado pelo experiente Lothar Von Arnaul de La Periére. Iniciou-se, então, uma dura e árdua batalha naval que se prolongou durante algumas horas e durante a qual o comandante Carvalho Araújo ofereceu brava resistência à artilharia alemã, salvando muitos companheiros mas acabando ele próprio por sucumbir durante o combate. Para homenagear o comandante Carvalho Araújo foi posto o seu nome ao paquete que navegou mensalmente durante dezenas de anos, entre o Continente e as ilhas açorianas.

O navio dividia-se em três partes, correspondentes a três classes distintas. A primeira classe, a melhor e mais cara e destinada aos ricos, ficava no centro do navio e constituía a sua parte mais alta, mais nobre e mais luxuosa, com três andares. No terceiro para além do enorme convés com uma parte coberta e outra descoberta ficava ainda a sala de estar, com bar, cadeiras estufadas e mesas de jogo e as salas de comando. No segundo a sala de jantar, a cozinha, as casas de banho e os aposentos dos oficiais de bordo. Por baixo destes e já dentro do bojo do navio ficavam as casas das máquinas e os camarotes, mais amplos, menos susceptíveis aos balanços das ondas, mais limpos, mais arejados e, consequentemente mais caros. Na realidade só os ricos e endinheirados podiam viajar em primeira e aos restantes passageiros era vedada a permanência na sua área. A segunda classe, separada da primeira pelo porão de carga, ficava à popa, também tinha dois andares sobre o bojo. O preço dos bilhetes já era mais acessível e destinava-se aos remediados. No segundo andar ficava a sala de estar reservada aos passageiros que compravam bilhetes de segunda, circundada por um pequeno convés. A sala de jantar e a cozinha ficavam no primeiro andar. Os camarotes, por sua vez, situavam-se no bojo, mas à ré, pelo que eram bem mais ruidosos e menos confortáveis do que os da primeira. Finalmente a terceira classe, a mais barata e a pior em todos os aspectos, ficava à proa. Não tinha convés, nem sala de estar, nem bar. A sala de jantar ficava enfiada no bojo, era apertadíssima, muito suja e acumulava também as funções de sala de estar durante o dia e de dormitório, para muitos passageiros, durante a noite. Os camarotes eram poucos, pequenos e mal cheirosos e os beliches desconfortáveis e apertadíssimos. Além disso a sua colocação à proa do barco, tornava-os muito incómodos, sobretudo durante viagens em que a agitação mais acentuada do mar provocava um balouçar maior do navio e extremamente ruidosos, pois ficavam debaixo dos guindastes do porão da frente. Assim como os camarotes todas as instalações desta classe, incluindo a sala de jantar e a cozinha eram tão pequenas, tão apertadas e tão promíscuas que a maior parte dos passageiros que navegava com bilhete de terceira, fugia dali como o diabo da cruz, preferindo acomodar-se ao longo dos corredores, ao lado dos porões, ou até pelo convés das outras classes, embora, neste caso, a permanência fosse sempre condicionada pela tolerância da tripulação. É que por toda a terceira classe proliferava um pestilento e emético cheiro a vomitado, a latrinas nauseabundas, a comida mal cheirosa, ao bafio dos beliches e até a bosta de vaca, dado que ficava porta a porta com o porão onde viajavam os animais.

O Carvalho Araújo, no entanto, perdura na história dos Açores e na memória de todos os açorianos, de modo muito especial dos habitantes das Flores e Corvo, para quem a escala do navio nestas duas ilhas tinha um significado e uma importância transcendentes. Para os habitantes da Fajã Grande o Carvalho tinha um significado especial, porquanto era a única localidade da ilha onde fazia serviço quando havia mau tempo nos portos de Santa Cruz e das Lajes. O Carvalho na Fajã eram dias de festa que ainda hoje perduram na memória de quantos os viveram em criança.

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O MILAGRE DO MILHO

Quarta-feira, 16.01.19

Nos férteis campos do Douro Litoral, pais e filhos trabalhavam de sol a sol porque era deles que tiravam tudo o que era necessário para o seu sustento – milho, legumes, batatas e vinho. Em Março e Abril, quando os dias começavam a tornar-se maiores e mais quentes, jungia-se uma ou duas rezes à charrua, lavrava-se a terra ainda húmida das chuvas invernais e deixavam-se ficar as leivas e os torrões a secarem e como que a aquecerem-se ao Sol, durante alguns dias. Depois desfaziam-nos e transformavam-nos em terra fina que se alisava, umas vezes com enxadas e ancinhos, outras com uma grade puxada por animais, transformando os campos em enormes e fofos tapetes acastanhados. De seguida voltava-se à rabiça do arado, atrelavam-se os bois e traçavam regos paralelos e simétricos uns aos outros, de uma extremidade à outra dos extensos campos. Às mulheres competia a tarefa de semear o milho. Calcorreando os campos atrás do arado, retiravam punhados de grãos de uma cesta que levavam enfiada no braço, atiravam os grãos com tanta agilidade e perícia que eles caiam direitinhos no rego, muito bem alinhados uns à frente dos outros, como se fossem soldadinhos numa parada militar. Cada rego fechava-se com o abrir do seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era de novo gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos e assim germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. Não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Nas extremidades do campo e nos lugares mais abrigados pelos bardos das beiradas ficavam pequenos canteiros de batatas, feijão, ervilhas e melões, misturados com as couves, as alfaces e o cebolo. Em Abril e Maio, quando o milho ainda estava miudinho, homens e mulheres em conjunto sachavam e mondavam os campos, de lés a lés, retirando as ervas daninhas e os pés de milho mais bastos para que os outros crescessem à vontade. Nos dias seguintes o campo transformava-se num enorme tapete de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e as ervilhas e os feijoeiros começavam a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além. Os milheiros cresciam de dia para dia, as suas folhas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os caules, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam os campos com um manto esbranquiçado e fofo. Algum tempo depois nos caules enrijecidos começavam a formar-se espiguinhas cabeludas que iam crescendo e alourando ao Sol do estio. Em Setembro as espigas amadureciam por completo e procedia-se à apanha. As mulheres arrepelavam dos caules já muito amarelados e envelhecidos as espigas maduras e recolhia-as em enormes cestos, enquanto os homens os iam acarretando para os carros ou para as lojas de arrumos, nos campos juntos das casas. Depois cortavam-se as folhas e os caules e guardavam-se para alimento dos animais.

Era o milagre do nascimento dos grãos de milho e do seu crescimento.

Algum tempo depois marcava-se o dia da desfolhada. Todos, mas sobretudo os mais jovens, esperava ansiosamente essa noite de sonho e de magia.

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A GARAGEM DOS TERREIROS

Terça-feira, 15.01.19

Situada bem lá no cimo da Rocha da Fajãzinha, mais para os lados da Caldeira, a Garagem dos Terreiros foi durante muitos e muitos anos um ponto de referência não apenas para a população da Fajã Grande mas também para a da Fajãzinha e do Mosteiro, porquanto representava o fim da única estrada que ligava Santa Cruz e eventualmente as Lajes, mas com um longínquo percurso pela Fazenda, Lomba e Caveira, à zona mais ocidental da ilha.

No início da década de cinquenta havia apenas duas estradas na Ilha das Flores: uma a ligar as Lajes a Santa Cruz e a outra que partindo de Santa Cruz atravessava os Matos, terminando nos Terreiros, precisamente em frente à dita Garagem. Daí a importância, utilidade e interesse que esta assumiu pois, nestas condições e naquela altura, era lá que as pessoas, assim como as mercadorias ou esperavam transporte a Santa Cruz ou, no caso inverso, aguardavam carregamento ou companhia para a freguesia a que se destinavam. As pessoas, muitas vezes, ali descansavam, comiam os seus farnéis e abrigavam-se da chuva ou protegiam-se dos temporais para, sobretudo no caso da Fajã que ficava bem mais longínqua, palmilharem a pé a Rocha da Figueira ou a dos Bredos, atravessar a Fajãzinha, de lés-a-lés, transpor a Ribeira Grande, subir a ladeira do Biscoito até à Eira-da-Cuada e percorrer o Caminho da Missa até entrar na Fajã pelo cimo da Assomada. Também era para lá, onde era guardada à espera de transporte, que era conduzida em mulas toda a manteiga e até a nata destinada à fábrica de Santa Cruz e que a Fajã produzia.

A Garagem era um edifício em pedra, caiada de branco, coberta de telha alaranjada, ficava no lado esquerdo de quem subia o caminho vindo da Fajãzinha e constituiu durante a década de cinquenta não apenas o terminal da Carreira e dos poucos automóveis e carros de praça existentes em Santa Cruz mas também o local de carga e descarga das camionetas dos principais comerciantes da ilha: do Flores, dos Serpa de Santa Cruz e do Germano e da Firma das Lajes. A garagem era portanto, ponto de partida e de chegada obrigatório para as populações do Mosteiro, Caldeira, Fajãzinha, Fajã Grande, Ponta e de grande parte das Flores

Por todas estas razões a Garagem dos Terreiros tornou-se como que um lugar mítico, um ponto de encontro de pessoas que por ali transitavam quase todos os dias em maior ou menor quantidade e que depois seguiam para as vilas ou para outras freguesias, a pé ou de carro. A primeira vez que a vi foi quando fui a pé da Fajã às Lajes acompanhar uma cunhada de meu tio que necessitava de tratar dos papéis para o casamento e me levou por companhia para que não atravessasse os matos da ilha sozinha. Depois por lá passei a pé inúmeras vezes, mesmo depois de construída a estrada que ligava os Terreiros ao Porto da Fajã, dado que a escassez de automóveis a tal nos obrigava. Nessa altura o percurso pelos Bredos e Eira-da-Cuada caiu em desuso, uma vez que a caminhada a pé pela nova estrada era bem mais fácil e acessível e com a vantagem ainda de se encurtar caminho subindo, na volta da Alagoinha, pela Rocha da Figueira, cujo a maior parte do percurso, apesar de tudo, consistia numa autêntica escada de pedra e por isso era bastante íngreme, árduo e cansativo.

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publicado por picodavigia2 às 02:59

O CAIS DAS LAJES

Quinta-feira, 22.11.18

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades: em Santa Cruz , durante a manhã e nas Lajes, ao longo da tarde e até à noite.

Os habitantes da Fajã Grande que nele viajavam, como grande parte dos de toda ilha, normalmente desembarcavam em Santa Cruz. É verdade que a deslocação para a Fajã era um pouco mais longa, mas, em compensação era possível fazer o trajecto até aos Terreiros de carro. Além disso desembarcando da parte da manhã, os passageiros chegavam sempre mais cedo a casa. Pelo contrário, o embarque era quase sempre feito pelas Lajes, permitindo assim sair-se de casa no próprio dia, percorrendo o longo e sinuoso caminho, entre a Fajã e as Lajes, durante a madrugada e manhã.

Por isso no cais da Lajes, em dia de chegada do Carvalho, reinava uma confusão tremenda e uma barafunda descomunal. Homens, mulheres, crianças, malas, baús, grades, bidões, caixotes, barris, sacos de serapilheira, bois, vacas e até alguns cavalos amontoavam-se em desusada caldeação. Aguardava-se a chegada de mais uma das duas pequenas barcaças que iam e vinham, alternadamente, entre o cais e o enorme paquete ancorado a umas duas ou três milhas de terra. Eram lanchas pequenas, vagarosas e frágeis que iam e vinham à vez, chegando carregadíssimas, a abarrotar de pessoas e bagagens. Encostavam-se às escadas de acesso ao porto e dois marinheiros, de calças arregaçadas pelo joelhos e descalços, uma à proa e outra à ré, atiravam as cordas que traziam amarradas nas bordas da embarcação para cima do cais a fim de que as alças das pontas fossem presas nos moitões de ferro cravados no cais, permitindo aos passageiros saltar para terra com maior segurança. Só depois lhes era retirada a bagagem, que, a conta gotas, ia sendo atirada pelos marinheiros para cima do cais onde estavam os bagageiros que a apanhavam com mestria e a seguravam com perícia de forma a que nenhuma mala ou caixote caísse no chão ou escapulisse para o fundo mar. Assim que as lanchas ficavam livres das pessoas e das malas que traziam de bordo, seguia-se uma lufa-lufa medonha, por parte dos que estavam em terra e pretendiam embarcar. Acompanhados da respectiva bagagem, todos queriam ser os primeiros a entrar e a ocupar os melhores assentos nos pequenos batéis, enquanto as malas iam sendo arrumadas à proa e à ré das embarcações.

Mais fora, mas antes do molhe, dois botes maiores do que as lanchas e com motores mais potentes, carregados com sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal ou de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga, também se iam, à vez, encostando ao cais. Em terra, um pequeno e desengonçado guindaste levantava, muito lentamente, toda aquela carga e colocava-a, desordenadamente, em cima do cais. Depois alguns homens entretinham-se a arrumá-la e ordená-la de acordo com os comerciantes da vila a quem se destinava e dos quais se destacavam: o Germano e a Firma.

 

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O MURMÚRIO DOS BÚZIOS

Terça-feira, 20.11.18

Ele vivia junto ao mar, numa casa simples, pequenina ornada com flores de algas e perfumada com os afagos oscilantes das marés. Mas se quisermos ser mais precisos, afinal, não era ele que morava junto ao mar. Era o mar que morava junto dele, que cercava o seu quotidiano duma maresia persistente, decalcada em ondas baloiçantes, a perderem-se num vaivém irrequieto, umas vezes embravecido outras ternurento, mas sempre a trazer-lhe uma salubridade adocicada, uma brisa inebriante, um resfolgo de liberdade.

Desde pequenino que a avó lhe segredava: o mar, para além de maior e de mais inquietante, também é mais rico do que a terra. Mas não eram os tesouros dos navios encalhados, nem o ouro das caravelas perdidas, nem os cofres dos piratas naufragados, nem sequer o pescado fluente, quotidiano, despejado sobre o cais, a ressuscitar o reboliço da lota. Por nada disso ansiava. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Lembrava-se muito bem de ter lido no livro da quarta classe um poema que dizia: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Era esse mar salgado, ali presente, paternal e amigo, que lhe atirava respingos de salmoura, o cobria de espuma e o transformava num escudo translúcido que o protegia de nevoeiros e caligens. Belo poema, uma espécie de cântico dos cânticos, um elogia da maresia, talvez o hino daquele torrão azulado, enorme, que, por vezes e em sonhos, lhe parecia tornar o nundo infinito. Mas do mar não queria nem o infinito, nem o azul, nem sequer as lágrimas dos seus heróis, transformadas em cristais de sal. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Terminava assim aquele poema. Não sabia o nome do poeta que o escrevera, mas seria, decerto, um poeta grande, autor de muitos outros poemas, porque este era, deveras, belo, mesmo sublime. E um poeta nunca faz só um poema ao mar. E sobre o mar não faz versos apenas um poeta. Talvez até muitos outros poetas tivessem trovado sobre o mar. Quando morrer quero levar comigo um pedacinho do mar, para recuperar o tempo que vivi sem ele. Mas também do mar não queria os poemas, embora se deleitasse a apreciar alguns deles. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Até nas madrugadas sombrias e enevoadas escapulia para junto do mar. Era um tormento, uma angústia, uma consumição, ver aquele enorme lençol de água, sem Sol, sem uma réstia de luminosidade que, ao menos, tivesse ficado esquecida do dia anterior, a aureolar-se para aos poucos se ir transformando num clarão, que trouxesse um respirar mais folgado às rochas, aos baixios, aos escolhos e até ao sargaço que, arrancado das profundezas pela força das correntes, flutuava suavemente sobre as águas. Mas não queria as rochas mesmo que o Sol as clarificasse em cada manhã, nem queria baixios, nem escolhos, nem sequer o sargaço, mesmo já postado em terra e a secar, no estio. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Depois eram as ondas, umas vezes pequeninas, lisas, sonolentas, outras enormes, gigantescas, altivas, bravias, mas sempre a irem e a virem, num vaivém ritmado, umas vezes mais suave e embelecido outras, agreste, toldado e raivoso, a saltarem por entre os esconderijos das enseadas, repletos de sombras e de mistérios ou a enrolarem-se nos pedestais das baixas e dos ilhéus, cravejados de lapas e assolados por caranguejos. Mas do mar também não queria as ondas, por mais mansas e quietas que fossem, nem a arrogância ingénua dos ilhéus ou negrume basáltico dos baixios. Do mar ele queria, apenas, os búzios.

Estranha obsessão, esta, a dele, de nada mais querer do mar, para além dos búzios. E sabem porque do mar ele, apenas, queria os búzios? Simplesmente para os colocar junto ao ouvido e ali ficar, uma eternidade que fosse, a ouvir o suave sussurrar do oceano. É que dentro dos meandros cavernosos e enroscados das suas conhas, o mar nunca é revolto, não há tempestades nem bravezas e as ondas, ali, ouvem-se sempre, suaves e doces, como se fosse em eco, por que balançam sempre, num vaivém ternurento e meigo, semelhante, talvez mesmo igual, àquele com que as mães embalam os seus filhos.

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TIA LUCINDA

Sábado, 17.11.18
Logo no princípio da Assomada, a seguir à Praça, em frente à minha casa, do outro lado da rua, morava uma velhinha, a Tia Lucinda. De tantos anos que já tinha, da muita doença que a apoquentava e de tanto que se havia cansado da vida, a Tia Lucinda já não ia trabalhar para os campos, nem levar a moenda ao moinho, nem lavar roupa à ribeira, nem sequer apanhar garranchos de lenha, na ladeira que ficava atrás da sua casa, a fim de com eles acender o lume para aquecer o café ou ferver o leite, nem ia às compras às lojas, nem sequer à missa aos domingos, apesar de nem as lojas nem a igreja ficarem muito longe da sua casa. Numa palavra, a minha vizinha Lucinda, ou a viúva de Ti Manuel Rosa, como também lhe chamavam, já não saía de casa a não ser para assomar ao portão do seu pátio, a fim de dar dois dedos de conversa a quem passava pelo caminho ou para chamar minha mãe e pedir-lhe que me deixasse ir comprar-lhe um litro de petróleo, um quarto de barra de sabão, meio quilo de café ou qualquer outra coisa que lhe fizesse falta. Claro que recebia de imediato o beneplácito da minha progenitora e lá ia eu todo vaidoso e contente, a correr, agarrando com quantas forças tinha, para as não perder, as moedas de um escudo ou de cinquenta centavos que a minha vizinha me havia colocado na mão, recomendando-me que tivesse cuidado para não me escapulirem. O que seria de mim se tal acontecesse!... Ia num pé e vinha no outro. É que para além daquele pequeno mandalete não me desagradar absolutamente nada, sabia que no fim seria sempre recompensado pela generosidade da minha vizinha. Mesmo que não trouxesse troco resultante do pagamento da compra de que fora incumbido, ao voltar e ao entrar na casa da Tia Lucinda para lhe entregar as compras, ela suspendia o que estava a fazer e ia buscar uma moedinha de dez centavos que parecia ter sempre guardada de propósito para me dar como recompensa. Se por acaso alguma vez, o que raramente acontecia, não encontrasse a moedinha, não me deixava sair de mãos a abanar. Dava-me uma fatia de pão de trigo barradinha com doce de pêssego, o que também não me desagradava.

A Tia Lucinda, no entanto, trabalhava muito dentro de casa. É que vivia com dois filhos, ambos solteiros, que se dedicavam ao cultivo dos campos e à criação vacas e era ela que cozinhava, lavava a roupa, limpava a casa, cozia o bolo e o pão, tratava das galinhas e do porco e fazia muitos outros trabalhos caseiros, apesar de bastante doente, muito velhinha e excessivamente enfraquecida e de “já não poder fazer nada”, como ela própria reconhecia.

- Quantos anos tem, Tia Lucinda?

- Ui! Muntos, muntos! Já lhes perdi a conta!...

Tia Lucinda, talvez porque não soubesse, nunca me dizia quantos anos tinha, nem há quantos se casara.

Mas o mais interessante é que apesar de nem o marido, (Manuel Furtado Luís Júnior) nem sequer o pai do marido (Manuel Furtado Luís) terem nos seus nomes o apelido de “Rosa”, mas apenas e tão somente porque o avô do marido, nascido há mais de cento e cinquenta anos, se chamava José Furtado Rosa, a minha vizinha Lucinda era tratada por quase toda a gente da Fajã pela “viúva de Ti Manuel Rosa” e os seus filhos o Fernando e o Luís de Ti Manuel Rosa.

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publicado por picodavigia2 às 00:51

A SENHORA D’ALVA

Sexta-feira, 16.11.18

Todas as manhãs a “Senhora d’Alva” aproava ao velho cais, um tapete agreste, rústico e crispado, feito de cimento amassado com areia e misturado com pedregulhos, atirados e colados sobre as pedras negras e virgens do baixio, bem visíveis nos buracos que se haviam aberto com o passar dos anos, com o cirandar das pessoas e com o rolar de pipas e mercadorias. Depois o mar, ali ao lado, com o constante marulhar das suas ondas, umas vezes revolto, agressivo e destruidor, outras meigo e pacato, mas sempre a agastar, sempre a desfazer, sempre a destruir, numa erosão contínua, permanente e afanosa. 

Alheia às asperezas e desgastes do cais, a “Senhora d’Alva” cruzava o oceano, sulcando as suas águas, umas vezes bravas e altivas, outras mansas e suaves, mas sempre tingidas de um azulado enternecedor, a embalá-la com um misto de afeição e suavidade. Carregava sobre si homens, mulheres, velhos e crianças, uns emaranhados nas tarefas do seu labutar quotidiano, outros encastoados nos caprichos de devaneios e lazeres, mas todos a alcandorarem-se num enlevo maravilhoso, num encanto sublime, num êxtase transcendente. A “Senhora d’Alva”, ao rasgar as águas azuladas do oceano, carregava consigo, à mistura com o feitiço das madrugadas, a magia sublime de um navegar mavioso, deslumbrante e enternecedor. 

Depois e já encostada ao cais, prendia-se a ele como se não tivesse medo. Os velhos e enferrujados moitões, ali plantados há séculos, abraçavam-se a ela, seguravam-na nos seus grossos cabos, roçando-os nos beirais agrestes e nas escadas desgastadas, num vaivém embalador, contínuo e mavioso. Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças e até alguns doentes, viajando em macas ou em cadeiras de rodas, evaporavam-se pelo portaló fora, como se o entardecer do mundo inteiro os estivesse a perseguir. Depois era um evadir-se de malas, caixotes, sacos, encomendas e mercadoria diversa. Uma miscelânea de recursos! Uma enchente perplexa que urgia esvaziar. A “Senhora d’Alva”, só, vácua, triste e plangente, emitia sons de sirene, magoados, esbaforidos, que se prolongavam como que em eco e se perdiam sobre o cais, mas logo, sedenta, querençosa e desdenhada, abria-se a abrigar, em nova enchente, os que até então, ali se a haviam postado, à espera de um novo lamento de partida.

E lá ia, noutro recortar de águas, noutro embalar de sonhos, noutra aurora de encantos, noutro desgaste de trabalhos e canseiras. E o mar sempre ali, a seu lado, a bafejá-la com o seu sopro, a acariciá-la com a simulada agressividade das suas ondas e, sobretudo, a encorajá-la com a extravagante força de segurar e prender o seu destino, muitas vezes, cerceado pelas nuvens ou desfeito pelo vento.

Um dia, porém, os homens decidiram que o destino da “Senhora d’Alva” havia de se alterar. Agora atirada, dias e dias a fio, para terras distantes, para mares longínquos, esquecia o velho cais, só o demandando, quando a abarrotar de pescado, sob as ordens de uns marinheiros desconhecidos e estranhos, de calças de cotim arregaçadas pelo joelho, chapéus de palha a contrariar o vento, Urgia aliviar-se e, por isso mesmo, agarrava-se a um cais deserto e abandonado, sem homens, sem mulheres, sem velhos e, sobretudo, sem crianças. Era apenas um patamar seco e árido, sem vida, sem emoção e sem deslumbramento.

Não durou muito este martírio doloroso, apesar de decalcado de esperança inútil. A “Senhora d’Alva”, hoje, jaz em terra, distante do cais, do seu fadário quotidiano, separada daquele mar de ondas bravias mas azuladas, de espuma enfadonha mas adocicada que durante anos a fio lhe traçou as rotas e lhe norteou um destino gratificante, complacente, mavioso e sublime.

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DEA IGNOTA

Terça-feira, 13.11.18

Menina de tranças, de bonecas e de sonhos!

Sonhava, como sonham todas as crianças,

Com aquilo que havia de ser um dia.

Cedo os seus sonhos se realizaram,

Transformando-se, num equilíbrio de apetências,

Em realizações de desejos e vontades.

 

Senhora, de sonhos domados,

Peregrina de estigmas, acompanhante de angústias e sofrimentos.

De noite, de dia, em turnos, ou no silêncio das madrugadas,

Na abnegação duma entrega persistente,

Transformavas o trabalho em amor, reconstruías destinos desfeitos.

 

Em pose de donzela serena,

Irradiavas alegria, bem-estar, felicidade.

E na cumplicidade de um envolvimento compassivo,

Cativavas, com o doce perfume das tuas palavras,

Atraías, com a suave doçura das tuas atitudes

 

Aureolada de um eterno bem-querer,

Não esbanjavas a ternura dos teus abraços,

Nem aprisionavas a suavidade dos teus sorrisos.

Porque eram as dádivas sublimes e perenes

Com que envolvias e acariciavas quantos te rodeavam.

 

Nem o desconforto dos dias mais enevoados,

Nem o negrume das noites mais turbulentas

Ou sequer as horas de serviço mais urgente,

Te traziam mágoa, dor, sofrimento,

Ou destruíam uma nesga da tua indomável persistência.

 

Circulavas, caminhavas, rodopiavas

Por corredores, salas e enfermarias.

Ortopedia, Otorrino, Anestesia - um desfilar de melodias!

Ornavas-te de delicadeza, revestias-te de bondade,

Impunhas-te por uma nobre e singela competência.

 

Baluarte de bondade e paciência.

Anestesia – Circulante – Instrumentista.

Cativavas os adultos e gravavas no coração de cada criança,

Com o encantamento do teu cativante olhar,

A sublime leveza das madrugadas sem dor.

 

Nunca esqueceremos os afetos com que nos fortalecias!

E se, algum dia, vacilarmos frente à adversidade,

Se desesperarmos perante os amargos da vida

Ou se cambalearmos perante o desencanto, o insucesso, o infortúnio,

O testemunho da tua amizade e a força da tua dedicação,

Serão o baluarte das nossas vitórias, o remanso da nossa persistência.

 

Nova caminhada te espera!

Continua a desenhar o teu sorriso no coração dos que te rodeiam

A oferecer o teu carinho aos mais carenciados.

A partilhar a tua coragem com os que não sabem lutar.

Estaremos contigo, no abraço que riscamos sobre as nossas existências

E que o espaço e o tempo nunca apagarão.

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O “TRANCÃO”

Sábado, 10.11.18

Integrar o elenco das companhas dos botes da baleia na Fajã Grande não era tarefa fácil, nem qualquer um conseguia tal desiderato. Era necessário possuir a arte, a perícia e o engenho de andar no mar, era imperioso ter força e desimpedimento para remar, exigia-se cédula ou carta de marítimo que não era passada a qualquer um – só depois de prestadas as devidas provas - e, além disso, os candidatos eram muitos e as vagas poucas, uma vez que os lugares de marinheiro dos dois únicos botes e da lancha ancorados na Fajã estavam, sistematicamente, preenchidos, época após época. Mas integrar o elenco baleeiro fajãgrandense com a arrojada, dificultosa e destemida função de trancador, era ainda muito mais difícil, para não dizer quase impossível. Para a maioria dos candidatos que a ela aspiravam, não passava de um sonho efémero ou de um desejo esvanecido. É que o Francisco Inácio e o Urbano estavam ali para durar! Não havia concorrente que os destituísse.

O trancador de baleias, que em pé, à proa do bote, à espera de atirar certo e seguro o arpão ao primeiro cetáceo que lhe aparecesse pela frente, tinha que ser forte, destemido, ágil e dotado de excelente pontaria. Acertar à primeira na baleia e acompanhá-la na corrida desenfreada, louca e acelerada que a dita cuja encetava, logo após ser arpoada, era tarefa arrojadíssima, extremamente arriscada e muito perigosa. Apesar de tudo, muitos rapazes sonhavam com ela, pretendendo assim imitar e seguir as pisadas dos dois melhores trancadores de sempre da Fajã Grande: o Francisco Inácio e o Urbano Fagundes.

Alto, esguio mas bastante desajeitado José, como muitos outros da sua idade, sonhou com a pesca à baleia. E sonhou não apenas ser baleeiro. Sonhou mais, muito mais. Sonhou ser trancador. Era safar-se de andar dia e noite agarrado à enxada e ao sacho, libertar-se de percorrer caminhos e veredas atrás das vacas, acarretar molhos e cestos às costas, tirar esterco e despejar a poça, numa palavra era abandonar o árduo e quotidiano trabalho agrícola, quase de escravo, para se dedicar a uma profissão digna, nobre e grandiosa – trancador de baleias.

Consciente das suas limitações, mas convicto das suas possibilidades, José entendeu que era preciso treinar. “Treinar muito” – ouvira ele vezes sem conta. Pois então! Se treinasse, se treinasse muito… seria contratado. Talvez o Francisco Inácio com uma boa junta de bois a dar dias para fora, mais hoje, mais amanhã, abandonasse aquela nobre e arriscadíssima tarefa. Seria ele, José, a suceder-lhe… “É preciso treinar, treinar muito” - pensou com os seus botões. Se bem o pensou melhor o fez. E a primeira oportunidade proporcionou-se. Foi ali perto, mesmo à beira do caminho, quando as abóboras do cerrado das Furnas amadureceram e enquanto aguardavam que as trouxessem para casa, para alimentar os porcos e para o gado… que José decidiu começar os treinos. Muniu-se de um bom pau com um ferro amarrado na ponta a simular o arpão… e vai disto! Começa a desancar, a atirar, a arpoar, a torto e a direito, nas abóboras, acertando numas e falhando noutras, mas desfazendo-as quase por completo!

Nada ganhou com isso pois nunca deu em trancador.

Porém, como na Fajã Grande todos “se pelavam” por arranjar novos apelidos a uns e outros, o José não arpoou em vão nas abóboras e ganhou um apelido, ficando, a partir de então, conhecido por toda a gente e em toda a parte por  “José Trancão” ou simplesmente “O Trancão”.

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MEU BISAVÔ E A MINA DE OURO DE SOIBAR NO CONDADO DE SISKIYOU, NO NORTE DA CALIFÓRNIA

Quinta-feira, 08.11.18

José de seu nome nasceu no longínquo ano de 1855, na Fajã Grande das Flores. Embora tivesse dois dos apelidos mais frequentes na freguesia - Fagundes e Silveira – herdados dos primeiros povoadores da ilha das Flores, foi sempre conhecido por José Bartolomeu, epíteto herdado de seu pai, ou seja de meu trisavô, Bartolomeu Lourenço Fagundes nascido em 1825, e que o povo, com a sua hábil capacidade linguística de facilitar a pronúncia das palavras, traduziu simplesmente por “Batelameiro”. Ainda criança, José começou a ceifar erva e acarretar molhos de lenha, a cavar a terra e a trepar a rocha, a lavrar os campos e a tirar o estrume do palheiro, a saltar paredes e maroiços no tratamento do gado e no amanho das terras. Trabalhava de sol a sol, à chuva, ao vento, durante as tempestades e nevoeiros, com o frio do norte a tolher-lhe os ossos, as brisas matinais a perfurarem-lhe o rosto, o cabo da enxada a desfazer-lhe as mãos e as pedras pontiagudas das canadas e caminhos a esmurrarem-lhe os pés descalços. Cedo porém se tornou objector de consciência às limitadas condições de vida que a freguesia e a ilha lhe proporcionavam e embarcou, às escondidas, fugindo aos tiros da guarda costeira, na Rocha dos Fanais, a bordo duma escuma indo parar à Costa Leste dos Estados Unidos. Mas não era ali o seu destino. O “El dorado” ficava longe, muito longe, do outro lado do Mundo, quase tão distante dali como distante estava ele da ilha onde nascera. E aventurou-se novamente. Atravessou a América de lés-a-lés, de comboio, descansou alguns dias no Colorado e foi parar à Serra Nevada. Aí pastoreou ovelhas, guardou ranchos, ganhou dólares, guardou-as quase todas que os gastos eram poucos e comprou terras. Passados alguns anos vendeu o que tinha comprado, juntou as águias até então guardadas e voltou à terra natal. Apaixonou-se e casou em 1880 com Maria da Conceição, a minha bisavó. Desse casamento resultaram cinco filhos: Maria 1883, José, o meu avô materno, 1886 e Ana em 1887. Novamente intrigado e descontente com a vida precária da ilha e sonhando com algo de melhor para os filhos, resolve regressar à Califórnia, desta feita, levando a mulher grávida de algumas semanas e os filhos ainda pequeninos. Mas a Serra Nevada não era destino aconselhável a quem emigrava com a família, sobretudo com uma mulher prenhe e com crianças de tenra idade. Por isso José tomou novo rumo e foi parar ao Norte da Califórnia, mais concretamente ao novo e promissor condado de Siskiyou que, apesar de ser um dos maiores em superfície era, nessa altura, um dos condados do estado da Califórnia mais pequeno em população. Fundado em 1858, o condado de Siskiyou já na altura fazia jus de grande prosperidade. Tinha fronteira a norte com o estado do Oregan, a leste com o Condado de Del Norte, a Sul com o Trinity e o Shasta e a Oeste com o Modos. Aí nascem mais dois filhos: Francisco, em 1892 e Maria do Céu 1895. José volta a comprar terras e gado. Floresce o negócio, granjeia prestígio e em 20 de Julho de 1892 torna-se cidadão Americano por decisão da “Superior Court” da cidade de Yreka, capital do Condado de Siskiyou. A doença da esposa, porém, obriga José a regressar aos Açores e às Flores, voltando a vender as terras a quem, para desgraça sua, nunca lhas pagou. Minha bisavó faleceu pouco depois do seu regresso à Fajã Grande e, no ano seguinte, José refaz a sua vida, voltando a casar-se, desta feita com Maria Rosa. Não demorou muito este casamento, falecendo a 2ª consorte do meu bisavô em 1904, juntamente com uma criança recém-nascida. Triste e desconsolado José volta a Siskiyou onde havia deixado casa, alguns bens e uma outra terra que não vendera. Aguardava-o ainda o sonho de recuperar o dinheiro perdido na venda das primeiras terras e que nunca lhe tinha sido pago. Esse sonho não se realizou porque como não possuía provas de venda, o verdadeiro devedor negou que tal facto jamais tivesse acontecido. Era a palavra de um contra a do outro e José ficou sem dinheiro e sem as terras. Apesar de tudo e porque era forte, resignado, de fibra rija e sem medo do trabalho, refez a sua vida e com o seu labutar digno e honrado pode recuperar, em parte, o que havia perdido com a vigarice e a desonestidade de outros. Voltou a comprar terras. Os filhos mais velhos, no entanto partiram para outras zonas da Califórnia. José voltou a ficar só, triste e desconsolado, decidindo voltar definitivamente para as Flores e para Fajã Grande, onde viveu sozinho durante alguns anos, dedicando-se novamente ao trabalho agrícola, até que em 1907, com 52 anos de idade casou, pela 3º vez, com Mariana Luísa da qual ainda teve mais três filhas, falecendo no ano de 1923.

Mas a “estória” de José não fica por aqui. Antes de partir para os Açores, sabendo que já não regressaria mais a Siskiyou, vendeu tudo o que ali possuía e também o que nem cuidava possuír. É que, como mais tarde se veio a saber, entre as terras vendidas pelo meu bisavô, havia uma, próximo de Soibar, no condado de Siskiyou, que tinha nada mais, nada menos, do que uma mina de ouro, que mais tarde, muito contribuiu, para o desenvolvimento daquele pequeno condado do Norte da Califórnia.

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VIAJANDO NO CARVALHO ARAÚJO

Quarta-feira, 07.11.18

Era geralmente ao anoitecer que o Carvalho levantava ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde chegava na manhã do dia seguinte. Uma noite inteirinha a marulhar o casco enegrecido contra as ondas, na escuridão e no silêncio do oceano, entrecortado apenas pelo tépido roncar das suas velhas mas portentosas máquinas. Os passageiros, ao lusco-fusco, logo que embarcavam debruçavam-se em chusma, à amarra do convés e entretinham-se a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que o prendera em frente às Lajes, durante várias horas. Alguns marinheiros levantavam a escada e fechavam o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, guinava à retaguarda, apitava por três vezes, orientava-se rumo à saída da baia e zarpava em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.

Alguns passageiros, sobretudo os que viajavam sem beliche, passavam a noite em vai e vens apreensivos e temerários entre a primeira e a segunda classe, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora entrando nas salas que ainda permaneciam abertas, procurando lugar apetecível para pernoitar. Outros mas afoitos e destemidos subiam ao convés da primeira na luta por descortinarem uma espreguiçadeira desocupada. Os que o não conseguiam voltavam à amarra para ver mais uma vez a ilha, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz.

O Carvalho navegava durante toda a noite ronceiro e vagaroso mas sem parar balançando-se sobre as ondas, umas vezes altivas e temerosas outras calmas e tranquilas, enquanto ao longe muito tenuemente brilhavam, até desaparecerem por completo, os dois faróis das Flores. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas.

Com o despontar da madrugada começavam a vagar cadeiras no convés da primeira. Era ali e pelos corredores ou até sobre o convés, ao lado do porão que se acomodavam os passageiros sem beliche, alheando-se, assim, dos solavancos rítmicos, acompanhados pelo som roufenho das máquinas do velho paquete. Os faróis das Flores desapareciam por completo, com o aproximar-se do Faial. Alta madrugada a maioria dos passageiros quer os sem beliche, quer muitos outros, aguardavam expectantes a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.

Quem por ali passou a bordo do Carvalho, entre Setembro de 1957 e Outubro de 1958 afirmava que se via perfeitamente uma enorme e altiva coluna de fogo, a sair do mar. Tudo começara em Setembro 1957. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma grave crise sísmica no Faial e no Pico e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses, pese embora, com o passar do tempo fosse perdendo a pujança e a força iniciais. Mas no início da crise, a lava emersa da terra era tanta e tão forte que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.

Quem viajava, nessa altura, no Carvalho tinha a oportunidade única de observar, aquele fenómeno telúrico, vislumbrando, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão.

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PEDRO DA SILVEIRA

Terça-feira, 06.11.18

Pedro da Silveira, “o Pedro das Senhoras Mendonças” como era conhecido pelos seus vizinhos, nasceu na Fajã Grande, na rua da Assomada,(1) a 5 de Setembro de 1922. Embora fosse meu vizinho, muito amigo dos meus pais e meus irmãos mais velhos, com quem conversava frequentemente e visitasse a Fajã quando eu era criança, apenas tive o privilégio de conversar com ele num encontro de habitantes das ilhas das Flores e Corvo, realizado em Castelo Branco, há alguns anos. Nessa altura tive a honra de lhe entregar um texto meu “Noite de Natal” que ele teve a delicadeza de ler e do qual mais tarde me enviou o seu comentário. Lamentavelmente não mais pude contactar com ele. Faleceu em Lisboa, no dia 13 de Abril de 2003.

Pedro da Silveira, talvez o mais ilustre fajãgrandense de sempre, foi poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral. Fez parte do conselho de redacção da revista “Seara Nova” e é autor de várias obras de poesia e de recensão literária e de duas antologias de poetas açorianos.

Depois de ter completado o ensino primário na Fajã Grande, tendo já demonstrado grande inteligência e interesse pelas letras, partiu para Angra, frequentando primeiro o Seminário e mais tarde o Liceu, o que lhe permitiu completar a sua formação básica e contactar com os mais lídimos representantes da literatura lusófona do tempo e onde, de acordo com as suas palavras «Havia, pelo menos em certos meios, um culto muito fiel por Jaime Brasil e por Aurélio Quintanilha, ambos terceirenses e ambos anarco-sindicalistas. Para aí me inclinei e ainda agora, se alguma ideologia política é capaz de me dizer alguma coisa, essa é o socialismo acrata(2) ou anarquismo.”(1987)

Alguns anos depois radicou-se em Ponta Delgada, cidade onde integrou o grupo intelectual que se formou em torno do jornal “A Ilha”, periódico no qual colaborou assiduamente.

Finalmente fixou-se em Lisboa, onde viveu o resto da sua vida, embora visitando a Fajã com alguma frequência, granjeando, de acordo com o testemunho de muitos dos seus vizinhos e conterrâneos, a simpatia de todos, com os quais partilhava ideias, princípios e conhecimentos. Foi delegado de propaganda médica, promovendo produtos farmacêuticos, iniciando simultaneamente um percurso de estudo e investigação histórico-literária. Mais tarde passou a trabalhar na Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais, chegando a integrar a Comissão de Gestão da mesma.

 Foi um dos promotores da elaboração da Enciclopédia Açoriana e participou ainda em múltiplos estudos relacionados com a cultura açoriana e em especial com a história e a etnografia da ilha das Flores, com destaque muito especial para a Fajã Grande, onde recolheu variadíssimos textos da tradição literária oral, divulgados mais tarde na revista “Lusitana”. Iniciou a sua obra poética com A Ilha e o Mundo (1953) e prosseguiu com Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999). Publicou um primeiro volume “Fui ao Mar Buscar Laranjas”, um conjunto de vinte poemas inéditos, escritos entre 1942 e 1946.

Pedro da Silveira revelou sempre um alto sentido de cidadania e uma formação ideológica e política muito firme, convicta e segura, iniciada na sua adolescência nas Flores, onde conheceu alguns exilados políticos, que “lhe revelaram quem era Salazar e ao que vinha”. Com eles, primeiro, e depois com o grupo anarquista em Angra, consolidou os princípios políticos e ideológicos essenciais que o acompanhariam por toda a vida e que fizeram com que os seus direitos políticos fossem apreendidos por  Salazar que chegou a retirar-lhe o direito de voto e também que fosse permanentemente perseguido e preso pela PIDE.

Notas – (1) Em recente visita à Fajã Grande, pude verificar que a casa onde ele nasceu foi vendida. Creio que poder-se-ia muito bem ter sido transformada em “Casa museu Pedro da Silveira”. Pior. A casa onde o pai nasceu, situada à Praça e que, na década de cinquenta, era um palheiro de gado e arrumos, foi totalmente destruída. Era esta a casa que ele descreve num dos seus mais belos poemas.

(2) Chama-se “acrata” a um partidário ou defensor da acracia. A acracia é uma forma de anarquismo, ou seja, uma ideologia politico-filosófica que não aceita a legitimidade de nenhuma imposição. Sendo assim, para que uma acção humana tenha valor moral deve emanar da decisão livre de quem a empreende e, por isso, todas as actividades humanas devem ser resultantes de compromissos voluntários, tomados por livre arbítrio. Na prática, os acratas defendem que as pessoas não nasceram para obedecer mas sim para decidir por si próprias.

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MANGÃO

Domingo, 04.11.18

Se consultarmos o site oficial da Câmara Municipal das Lajes das Flores e procurarmos em “freguesias” Fajã Grande, poderemos ver, entre outras informações, umas dez linhas dedicadas à gastronomia, nas quais, para além das filhós, do pão doce ou massa sovada e dos doces tradicionais (arroz doce e bolos caseiros) se referem os seguintes pratos típicos, também considerados “iguarias da freguesia da Fajã Grande”: Enchidos, Carne de Porco Salgada, Mariscos, Lapas, Peixe, Pão de Milho, Bolo de Milho, Batata-doce e Inhame.

Na realidade todos estes comeres não se podem considerar propriamente iguarias, ou seja comidas preparadas ou cozinhadas, mas sim produtos ou géneros alimentares com que se confeccionavam e muito provavelmente ainda se confeccionam os tais pratos típicos que o site não refere, embora, na realidade, excepcionando o marisco que não era usual nos cardápios de antanho, todos os outros alimentos indicados faziam parte da alimentação quotidiana fajãgrandense. Obviamente que numa terra pobre e tendo em conta as limitadas condições de vida da época e a falta de produtos, de meios e, até de tempo, não se pode falar de uma cozinha rica, variada e abundante. Apesar disso, confeccionavam-se alguns destes alimentos de forma própria, única, típica e talvez mesmo, nalguns casos, exclusiva da Fajã Grande. É a esses cozinhados ou aos pratos deles resultantes que se pode, em abono da verdade, chamar pratos típicos, como era o caso da caçoila e das sopas fritas ou até da linguiça já referenciados neste blogue.

Havia no entanto alguns outros pratos, um dos quais o célebre Mangão, em que o elemento base era a batata branca e geralmente preparado quando não havia conduto para acompanhar as próprias batatas, o que acontecia com muita frequência. Aliás e pela sua estrutura e ingredientes percebe-se que este é um prato que terá nascido simplesmente do facto de não se ter nada para comer, a não ser as batatas. Assim, duma limitação ou duma ausência cria-se um prato típico, o que não é inédito na culinária portuguesa, bastando para tal recordar a razão que levou os habitantes do Porto a inventar e confeccionar as tripas à moda do Porto: simplesmente porque durante as invasões francesas, os franceses comiam a carne, deixando-lhes apenas as tripas. Houve que inventar e que criar. O mesmo terá acontecido com o nosso Mangão, com a diferença de que não foram nem os franceses nem outro povo qualquer a comer-nos o conduto. Este simplesmente não existia.

Para confeccionar o Mangão, para além das batatas brancas cozidas, era necessária banha de porco, preferencialmente daquela que cobrira a linguiça, cebola e alho picados. Uma vez derretidas duas ou três colheres de banha, num caldeirão de ferro, alouravam-se a cebola e o alho. As batatas, previamente cozidas, eram bem esmagadas com um garfo até ficarem desfeitas e, quando o refogado estava pronto, adicionavam-se ao mesmo. Depois era tudo muito bem mexido para que as batatas e a cebola ficassem bem envolvidas e misturadas. O Mangão estava pronto e era servido directamente do caldeirão de ferro para os pratos, a fim de se comer bem quentinho.

Ainda não há muito tempo, através de um telefonema duma amiga dos meus tempos de infância, fui informado que na casa dos seus pais e possivelmente nalgumas outras, se comia o Mangão polvilhado com açúcar. Penso que este costume, por mim desconhecido, terá a sua origem numa “estória” que se contava, nos meus tempos de infância, de um navio carregado de açúcar que em tempos idos, naufragou na Fajã Grande. Tanto foi o açúcar que se espalhou pelo baixio que o povo encheu sacos e sacos e trouxe-o para as suas casas, utilizando-o como tempero em substituição do sal.

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O CULTO DAS ALMAS

Sábado, 03.11.18

O culto das almas, na Fajã Grande, era de tal modo intenso que durante o ano eram feitas, na freguesia, duas “derramas” ou seja recolhas ordinárias de ofertas a favor das Almas do Purgatório: em Janeiro, a das línguas do porco e em Novembro, a do milho. No que concerne à oferta das línguas dos porcos, fenómeno estranho e de esconsa clarificação, cada agregado familiar, se assim o entendesse, salgava a língua do seu porco e, algum tempo depois da matança, levava-a para a missa dominical, finda a qual, era arrematada, no adro da igreja, sendo o dinheiro resultante de cada leilão entregue ao mordomo das almas, que o guardava. A recolha do milho, por sua vez, era feita no dia de Todos os Santos. Grupos de homens munidos de cestos ou sacos de serapilheira percorriam as ruas da freguesia e, batendo à porta cada casa, gritavam: “Milho pr’ás almas”. O objetivo era recolher as ofertas de milho, cujo dinheiro resultante da venda, também era destinado às benditas almas. Esta atividade era devidamente planificada e programada pelo mordomo das almas, que, dias antes, requisitava os homens necessários para fazer o peditório. Convidava também uma grande quantidade de mulheres para, durante e após o peditório, recolher o milho, debulhá-lo e enchê-lo em sacos. O milho, posteriormente, era vendido e esse dinheiro, juntamente com o do leilão das línguas e o de outras ofertas, era entregue, ao pároco. Destinava-se a celebrar missas e rezar os responsos, todos os dias, durante o mês de Novembro, por alma dos defuntos de todas as famílias da freguesia. Além disso, ainda eram feitas, ao longo do ano, mas com maior incidência no mês de novembro e por iniciativas individuais, geralmente resultantes de promessas, outros peditórios e recolhas extraordinárias de produtos agrícolas que também eram vendidos ou leiloados, com o mesmo objetivo.

Assim e tendo em conta o dinheiro obtido através de todas estas derramas e ofertas, o pároco calculava o número de missas a celebrar. Depois dividia o número de casas da paróquia por esse número e estabelecia uma espécie de calendário, sendo que, em cada dia do mês de novembro a missa era celebrada por alma dos defuntos de um conjunto de famílias. Este conjunto era determinado, grosso modo, pelo quociente do número de casas a dividir pelo número de missas. Nenhuma casa era excluída, mesmo que tivesse contribuído com pouco ou nem sequer tivesse colaborado na oferta de géneros ou na recolha de donativos.

Na tarde do dia de Todos os Santos procedia-se à ornamentação e limpeza do cemitério, enfeitando cada família as sepulturas dos seus antepassados. No dia dois, de manhã cedo era celebrada a primeira missa, “Missa in die obito” com paramentos pretos, sendo inicialmente montada a essa no centro do cruzeiro, com seis castiçais ao redor e um tapete negro a cobri-la, como se de um funeral se tratasse. Finda a missa, o pároco trocava a casula preta pela capa de asperges da mesma cor e rezava os responsos dos defuntos. Seguia-se a procissão ao cemitério, durante a qual os sinos “dobravam a finados” e onde, novamente, eram rezados responsos e benzidas as sepulturas. De regresso à igreja eram celebradas mais duas missas, de acordo com as normas litúrgicas então vigentes. As Trindades da noite do dia um e da manhã e noite do dia dois eram acompanhadas do “dobrar a finados”.

Quando nós crianças, ainda indiferentes a tais celebrações, perguntávamos de quem era o enterro ou quem tinha morrido naquele dia, diziam-nos, os adultos, que era o enterro do “Velho Laranjinho”, figura mítica que, muito provavelmente, representava todos os finados da freguesia. Também era costume, no dia 2 de Novembro, cozer pão e assar abóboras no forno, em louvor das almas do purgatório, mas o forno deveria ser apagado sempre antes do toque das Trindades, caso contrário, dizia-se, as almas dos nossos antepassados continuariam a ser queimadas pelo “santo fogo” do Purgatório.

Creio que estas práticas e crenças eram comuns a todo a ilha das Flores, existindo, inclusivamente, uma paróquia – a Caveira – cujo orago era “As Benditas Almas”. Estranhamente o bispo diocesano da altura, provavelmente considerando que “As Almas” não eram santas, entendeu que não deviam ser as padroeiras da freguesia. Foram substituídas pela Senhora do Livramento.

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O MÊS DE NOVEMBRO E AS NOVENAS DAS ALMAS

Sexta-feira, 02.11.18

A devoção e o culto das almas ocupavam literalmente um lugar de relevo no top da religiosidade e das celebrações litúrgicas, na Fajã Grande. Havia entre toda a população uma muito acentuada espécie de “cultura do além”, repleta, por um lado, de mitos, lendas, tradições, extravagâncias, ingenuidades e medos, mas, por outro, eivada de convicções embora limitadas, certezas geralmente inconsequentes, esperanças inexplicavelmente obscuras e de quotidianas e convictas realizações. Daí que o mês de Novembro se tornasse um mês especial, uma espécie de mês mítico, do além, por ser o mês das almas. Todos os dias, com excepção dos dias um e dois e dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a “novena das almas”. Tratava-se logicamente de uma expressão popular pouco correcta, uma vez que as celebrações não se limitavam aos tradicionais nove dias próprios das novenas, mas prolongavam-se por todo o mês. Por isso, o mês de Novembro também era chamado mês das almas.

Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa, geralmente missa dos defuntos, excepto nos dias em que tal não era permitido liturgicamente, por se tratar duma festividade de 1ª classe. A igreja permanecia propositadamente escurecida, sendo apenas iluminada pelas velas do altar-mor e por outras seis encravadas em outros tantos gigantescos castiçais colocados ao redor de um enorme tapete preto debruado a amarelo, estendido bem no centro do cruzeiro, logo a seguir à capela-mor. A escuridão do templo, por um lado, convidava e proporcionava aos crentes um ambiente mais propício à oração e à reflexão sobre o mistério da sua própria morte e, por outro encenava uma espécie de enquadramento daquilo porque todos, sem distinção, já tinham passado – a lembrança da morte de algum familiar.

De seguida o pároco envergando a capa de asperges preta e barrete de três quinas, colocava-se estrategicamente à cabeceira do tapete e, voltado para o povo, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia o número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados.

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ÚLTIMO OESTE

Quinta-feira, 01.11.18

 

(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

A terra acaba aqui.

Além é só o mar – e vento.

A terra acaba aqui…

Com ela tudo o que eu intento.

 

Às vezes imagino-me embalando:

Um porto, onde começa o meu destino.

Mas isso é só um desatino.

Até quando?

 

……………………

 

Lenha verde no lume,

Em sonho cada sonho se resume.

 

Pedro da Silveira, In “Primeira Voz”, Julho de 1942

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