PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
OS BOIS SEM RABO
Um dos maiores, mais sórdidos e mais terríveis crimes cometidos na Fajã Grande, ao longo do seu historial, foi o do corte dos rabos de uma junta de bois que pertenciam precisamente ao meu avô materno. Era uma junta de bravos e valentes bois de trabalho, que passavam os dias a puxar o arado de ferro, a grade, o arado de pau, o corsão ou o carro e dormiam à noite, geralmente no palheiro, a fim de serem protegidos de eventuais doenças resultantes de esfriamentos subsequentes a um exaustivo cansaço, a uma árdua e persistente labuta diária.
Certo dia em que não trabalharam e em que, por conseguinte, não estavam fatigados, foram deixados, durante a noite, no cerrado das Furnas, a alimentarem-se de uns restos de couves e milho. Era uma noite fresca, de verão. Os animais necessitavam, ao menos por um dia, de repouso, descanso e de serem protegidos do calor e do bafio do palheiro. De manhã, quando alguém os foi recolher, a fim de iniciarem mais um dia de trabalho, um e outro dos bois tinha o rabo cortado. O crime tornou-se ainda mais horrendo, repelente e hediondo, atingindo mesmo a fronteira do sacrílego, porque os rabos dos bois foram amarrados e içados no pau da bandeira da Casa de Espírito Santo de Baixo.
Nunca se soube se este mísero, repugnante e condenável acto foi praticado por vingança, se por inveja ou se pura e simplesmente por mero prazer sádico ou divertimento estúpido, como também nunca se soube quem foi ou quem foram os seus executantes, nem os seus mandantes, se é que os houve. Foram indigitados vários suspeitos e o caso arrastou-se pelo tribunal de Santa Cruz ao longo de meses e anos, mas, e dado que as investigações judiciais, à altura e na ilha das Flores, eram muito limitadas, nunca foram encontradas provas que indiciassem os criminosos e, por conseguinte, o caso nunca foi julgado e os prevaricadores nunca foram condenados. Talvez se tivesse havido maior empenhamento por parte das autoridades de então, se as investigações tivessem sido mais exigentes e profundas e se não houvesse aparente e simulada intenção de poupar alguém, ter-se-iam descoberto os responsáveis. A arma do crime terá sido uma tesoura de cortar lata e, na altura, existiam poucas na Fajã Grande.
Consta que o estado em que os animais se encontraram era simplesmente horroroso, arrepiante e consternador: mugiam em altos brados, soltavam aulidos angustiantes, berravam desalmadamente, saltavam abespinhadamente e rebolavam-se no chão como se estivessem loucos. Numa palavra o seu desespero era tal e tão grande que tiveram que ser abatidos, logo após serem encontrados naquele lastimável estado.