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A "FAEIRA" DO POCESTINHO

Sábado, 05.10.13

Meu pai tinha uma terra de mato, no Pocestinho. Aliás, no Pocestinho todas as terras eram de mato. Mas a do meu pai era especial e diferente das outras, porque nela cresciam incensos enormes, altíssimos e esguios, entrelaçados com loureiros e paus brancos e misturados com um ou outro sanguinho. De resto tudo “faeiras”. “Faeiras” desde a primeira à última belga, “Faeiras” velhíssimas, centenárias, com troncos grossíssimos mas muito belas e elegantes, altas e esguias, a abarrotarem de folhas verdes e de bagas suculentas e arroxeadas. “Faeiras” de caules acastanhados, porosos, cobertos de escamas e enrijecidos pelos anos, mas recheados de seiva adocicada, de suco perfumado, de aromas silvestres e tonificantes.

Entre todas elas havia uma, logo na primeira belga, que eu adorava. Era a minha “faeira” predilecta, preferida, a minha “faeira” de estimação. Era uma árvore de grandes dimensões, altíssima e detentora de uma beleza rara, de um porte imponente, de uma elegância sublime, de uma copa deslumbrante e compacta, com um tronco espesso que se ramificava e prolongava em pernadas mais pequenas que se iam adelgaçando até se tornarem, lá nas pontas, nuns fiozinhos muito delgadinhos, fofos, macios, frágeis, delicados e atraentes. A sua casca era lisa, raramente fendilhada, embora com a idade se fosse tornando um pouco mais áspera, mas também mais acutilante e demolidora, adquirindo uma cor alourada, muito próxima do verde dos tempos da sua juventude e do pardo-amarelo da sua infância.

Contavam-me que a minha “faeira” nascera ali havia muitos anos. Inicialmente um pequeno arbusto com gomos amarelos, muito pequenos e pontiagudos, foi crescendo, lentamente e transformando-se numa bela árvore, ao mesmo tempo que se ia tornando forte, rija e resistente a ventos e temporais, mas delicada, adorável e encantadora. As suas folhas, tingindo-se de um verde, muito vivo e brilhante iam-se metamorfoseando em nervuras paralelas, ora ovadas, ora elíptico-lanceoladas, ou então iam adquirindo a forma de bico, pontiagudas e penetrantes como se de lanças se tratasse. Na Primavera a minha “faeira” cobria-se de flores de cores rosadas, geminadas num invólucro ténue com lóbulos suaves e espinhos brandos. No Verão, das suas flores brotavam frutos magníficos - bagas brilhantes, tintas e arroxeadas a desenvolverem-se aos pares, com um inconfundível sabor acre e doce, muito ricas em gordura e como tal muito procurados e muito apreciados pela fauna bravia e pela passarada das redondezas. Eu próprio as mastigava com júbilo e as saboreava com desvelo. Muitos pássaros serviam-se delas para as suas "dispensas invernais" o que fazia com que os arredores da terra de meu pai do Pocestinho se enchessem de sementes de “faeira”, povoando-se, mais tarde, de um número infinito de pequenas e graciosas arvorezinhas.

Na terra de meu pai do Pocestinho, a minha “faeira” juntamente com todas as outras “faeiras” que por ali proliferavam, formavam uma densa floresta, fortalecendo e enriquecendo o solo, cobrindo-o com um tapete fecundante, formado pelas numerosas folhas que, dia após dia, ano após ano, delas caíam e ali se depositavam. Era, sobretudo, essa massa de folhas, transformada em adubo, que permitia que as sementes germinassem, com vigor, na Primavera. Por sua vez, a sua copa densa e copiosa fazia com que a luz que chegava ao solo fosse como que coada pelas folhas e pelos ramos e se tornasse frouxa e ténue, não permitindo, que ali, outras plantas houvessem desenvolvimento.

Mas o que eu mais adorava na minha “faeira” do Pocestinho era quando, aproximando-me dela, via plantado um ninho, nos seus ramos, bem lá no seu alto. Agarrava-me então ao seu tronco, pendurava-me nos seus ramos e enroscava-me nela, subindo-a com destreza e agilidade mas com enlevo e ternura, até chegar lá acima, ao ninho, Depois deliciava-me com a ternura inocente dos passarinhos, biquinhos abertos, corpos cobertos de penugem, também eles a sibilarem a doçura daquele encontro.

Um dia meu pai decidiu que havia de cortar a minha “faeira”. Na opinião dele, a intensa sombra da sua copa, deslumbrante e audaciosa, impedia de crescerem os inhames e as outras pequenas plantas, plantadas ao seu redor. Além disso precisava de lenha, de muita lenha…

 E eu, frágil e débil, nada pude fazer para o impedir dos seus intentos. A sentença de morte da minha “faeira” havia sido decretada e dela não havia recurso.

E eu que todos os dias ia com meu pai ao Pocestinho, exclusivamente, para ver a minha “faeira”, naquele dia não o acompanhei. E a partir de então, quando ia ao Pocestinho, o que raramente acontecia, esquivava-me sempre de ir aquela maldita belga para não mais ver aquele fatídico e malfadado vazio que o corte da minha “faeira” ali provocara.        

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publicado por picodavigia2 às 21:23





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