PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A ABA
Na canada das Águas, um pouco antes da única curva que a delineava e que ficava bastante perto da rocha, no local onde havia uma ligeira subida constituída por vários degraus em ziguezague, havia um enorme calhau caído da rocha, sabia-se lá há quantos anos. Ali estava há um horror de tempo e nem os avós dos mais velhos se lembravam do seu desabamento. Era um gigantesco e descomunal penedo, bastante áspero e excessivamente tosco. O seu peso estimativamente excessivo e a presumível velocidade que teria atingido ao despegar-se daquele desmedido aclive encravaram-no de tal maneira no chão que aparentava ter sido ali plantado. Nem todas as juntas de bois que na altura existiam na Fajã, atreladas umas à frente das outras, seriam capazes de arrancar dali aquele mamarracho ou sequer de o mover um centímetro que fosse. Só com meia dúzia de velas de dinamite enfiadas em buracos bem profundos e com um rastilho bem alongado. Por coincidência ou por inteligente aproveitamento dos que construíram aquela sinuosa via, o calhau ficava mesmo à beira da canada, servindo, naquele sítio, de divisória e natural entre o caminho de servidão e a relva de Ti Manuel Rosa, situada mesmo ali pertinho.
Do lado que confinava com a via pública, na parte superior, o calhau tinha uma enorme aba e, na parte inferior desta, uma concavidade ou buraco, que com as chuvas, sobretudo com as oriundas do sul, se enchia de água. Só que, por caprichos da natureza, o buraco era uma espécie de poço, tão perfeito e tão bem elaborado que nem o cinzel de um pedreiro o talharia melhor. Além disso, na parte inferior, a aba do calhau possuía uma espécie de plataforma para que quem quisesse ou desejasse ali se sentasse a molhar distraidamente as mãos na água e a observar aquela pequena maravilha da natureza.
Meu pai possuía duas relvas por ali perto, uma um pouco mais adiante e outra já perto da rocha, por isso eu passava junto daquele calhau, vezes sem conta. Além disso tinha um pequeno curral, o qual, devido ao seu exíguo tamanho, era destinado exclusivamente a pasto da ovelha, que ficava mesmo em frente àquela espécie de monumento paleolítico. Embora não gostasse muito de ir para as Águas, com receio de que caíssem pedras ou ribanceiras, nos momentos em que por ali deambulava, eu adorava aquele calhau. Sempre que passava por ali, quando ia buscar ou levar as vacas, subia a plataforma, sentava-me e ficava a contemplar o pequeno lago, sobretudo quando cheinho de água, quase a transbordar, com formas e recortes tão semelhantes aos do baixio, como se fosse um mar. Havia mesmo um enclave em tudo igual ao Boqueirão, outro parecido com o Caneiro das Furnas e no meio, eu próprio lhe escarrapachava uma pedra a fazer de Monchique. Então nos dias em que meu pai por lá se demorava a ceifar feitos ou quando eu levava a minha ovelha a pastar no curral era um enlevo, pois enchia o lago de folhinhas de faia e de incenso a fazer de barcos. Depois sentava-me na plataforma e ficava ali horas e horas a brincar. Tocava com as mãos na água e esta agitava-se como se fossem ondas e o lago crescia, crescia até se transformar num enorme mar cheio de barcos, de gasolinas, de iates e de navios, uns ancorados fora do porto, outros partindo para a Europa, para a América, para outros mundos. Eu imaginava-me então piloto de um deles e seguia pelo mar fora até chegar a um país longínquo e distante onde não havia rochas de onde caíam pedras e ribanceiras e onde os caminhos não eram sinuosos nem repletos de pedregulhos Um país onde todas as árvores eram floridas, onde as casas eram palácios, as ribeiras eram rios, onde os campos se enchiam de trigo e onde os pássaros não debicavam os frutos. Um país onde o pão tinha um sabor adocicado, onde as manhãs clareavam com veemência, onde os homens não eram escravos da miséria e onde as mulheres se deliciavam a ouvir o canto dos pássaros. Um país onde havia candys, bolachas biscoitos e chocolates. Um país onde havia roupas perfumadas e limpas e sapatos para proteger os pés. Um país onde todas as crianças tinham mães a dar-lhes carinho e amor.