PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A CASA DE TODOS OS SILÊNCIOS
Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, era como que o centro do mundo, para mim. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas, envergonhadas mas inocentes, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu hipotecava as minhas aparências idolatradas mas arrogantes de um futuro distante e indefinido.
E as portas da casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, abriam-se todos os dias, implacáveis, inflexíveis e destemidas, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes, rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.
A casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade desconcertantes e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas e o pôr-do-sol, estavam sempre abertas.
Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias florescentes, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.
E levada por correntes e marés, a casa navegou, embalada com o deslumbrante cântico das estrelas, adocicada com o permanente vozear dos rouxinóis e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.
Depois?… Depois vieram anos desertos, tempos petrificados, momentos de solidão e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada no alto da colina…
E a claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fosse os destroços de um navio naufragado.
E as portas da casa, branca e altiva, plantada no alto da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.
E agora quando todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes respiram, silenciosas, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e desastradamente desertas, enchendo de silêncios a casa branca do alto da colina.
Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-se, para sempre, transformando-se em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado.
O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho.
O velho “Asónia” arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tiquetaque contínuo, aflitivo mas gracioso.
O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.
Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.
As vozes, os gritos, os cânticos e até os ecos das sombras calaram-se para sempre porque a casa plantada no alto da colina, com vista sobre o mar, tornou-se sombria, cinzenta, deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se em enigmático e terrível ermitério.