PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O NAUFRAGO
O Semedo chegou à porta de casa, levantando o “pica-porte” numa hesitação terrível e num sufoco denunciador. Na cozinha, alumiadas por um candeeiro a petróleo, a mulher e a filha seroavam entre cardas, fusos e resmas de lã, admiradas, mais pelo tardio da chegada do que pela apreensão que se lhe estampava no rosto, ofuscada pela frouxa luz que emanava do candeeiro. É que o pavio havia sido tão excessivamente alevantado, que lhe tisnara o vidro quase por completo. A Deolinda foi a primeira a insinuar com suaves laivos de ironia:
- Só agora?! A estas horas, meu pai há muito que havia de estar na cama.
E como o Semedo embatucasse por completo, a mulher, lá do fundo, sem levantar olho das cardas:
- Boa coisa não andaste a urdir! - E levantando o rosto, sem, no entanto, esmorecer a cardação, prosseguiu, – Entra home… Credo! Que cara é essa?! Parece que viste bicho-do-mato!...
O Semedo a crescer numa hesitação que acicatava, cada vez mais, o pasmo das duas mulheres. A medo, lá foi desembuchando: Fora ali, para os lados do Rolinho das Ovelhas… Ele, o Domingos Mantas, o Bosseca, o Zé de Mateus e o Caboz, na mira dos caranguejos que a noite estava escura, o mar manso e a maré vaza. Desde o Canto do Areal ao Redondo. Eis senão quando avistaram uma barcaça – um bergantim ou um brigue - nem deu tempo de ver, - num instante, a aproximar-se de terra, pela calada da noite, mesmo ali junto ao Rolinho das Ovelhas. Eles a correr que até parecia que deitavam os bofes pela boca fora… mas qual o quê?… Quando lá chegaram, a maldita tinha zarpado. Apenas uma pequena chata, abandonada, a balancear no vaivém da maré. Ao voltarem, deparam-se com gemidos angustiantes. Um vulto de homem, estranho, esquisito, sabia-se lá de onde, que nem americano falava, enfiado na aba de uma pedra, a chorar e a gemer… Pelos vistos tinha sido ali abandonado. Trouxeram-no e, ao chegar ali, bonito serviço! Os outros a pisgarem-se, cada um para seu lado e ele a ficar só, com o homem… ali… fora da porta… Haviam de lhe dar guarida, lá e m casa.
A mulher e a filha nem queriam acreditar!... Um homem, sabia-se lá de onde e de que religião, pela porta dentro… A estas horas da noite!... Nem pensar!
Mas no dia seguinte toda a freguesia louvava o Semedo! Fosse da Cochinchina, fosse do Japão, fosse de onde fosse, aquilo era um ser humano. A caridade é para com todos. Um gesto muito bonito, o do Semedo.
Mas os rumores não tardaram. Aquele homem devia ser um ateu, um malvado, um facínora, semelhante ao que, há muitos anos, também ali desembarcara e, de tão mau, após a morte, fora atirado para o Poço do Bacalhau, por castigo, em vez de ter uma sepultura condigna. Que o tivesse deixado, o Semedo, onde o encontrou. Havia de morrer à fome, que é o destino dos criminosos e dos sacripantas! E depois… com uma filha solteira lá em casa… Hum! Não havia de sair coisa boa, dali.
Porém, em casa do Semedo e após os medos e as hesitações iniciais, todos, incluindo a filha, se afeiçoaram, depressa, ao suposto náufrago. O homem era delicado, correcto, submisso, decoroso e de trato afável. Apenas um senão: ninguém o entendia e ele não percebia patavina do que lhe diziam e tinha a estranha mania de, todos os dias, tracejar um risco no muro da cerca do porco. Sabia-se apenas que se chamava Dimitri e que muito provavelmente, devia ser russo e, pelos vistos, não acreditava em Deus.
Os dias passaram e o Semedo já via em Dimitri, o filho que nunca tivera. Os meses passaram e Deolinda apaixonara-se, como nunca. Pior. Dimitri, agora já a balbuciar as primeiras palavras em linguagem que se entendesse, também se declarava em juras de amor, enquanto pela freguesia cada vez mais se comentava, à socapa, que ali havia “marosca” da grossa. Oh!... Se havia!
O Semedo, antes que o inevitável acontecesse, foi bater à porta do Vigário. Havia que casá-los, quanto antes. Mas, na opinião do prebendado, o casamento não servia para encobrir poucas vergonhas, além disso, aquele homem era um ateu, vindo de um pais onde a religião católica, não era apenas esquecida, mas sobretudo odiado e não tinha nenhuns papéis que demonstrassem, quer a sua identidade, quer o seu baptismo. Que tirasse o cavalinho da chuva o amigo Semedo que casamento é que não havia de haver.
E não houve, o que no entanto não foi obstáculo a que Dimitri e Deolinda se envolvessem de amores, cada vez mais escaldantes e, às escondidas dos progenitores, se enrolassem em desvelos e fascinações.
E quando Deolinda não mais pode ocultar a gravidez que lhe transbordava do seio, o falatório, de comentários maliciosos transformou-se em aleivosias insultuosas. A mãe definhou de vergonha e o pai, frio, empedernido, assumido carrasco, pô-los pela porta fora, injuriando-os, ameaçando-os, deserdando-os. Poucos dias demorou a ira do Semedo e a debilidade da sua consorte. Foram os primeiros a acudir aos vagidos de um pequerrucho que, numa tarde solarenga de Setembro, lhes quebrava o veneno do desgosto e lhes despertava o bálsamo da ternura.
E o pequeno Gervásio crescia entre o enlevo refrescante dos pais e a ternura sedenta dos avós. O vigário recusou o casamento dos pais mas não lhe pode negar o baptismo. A alegria, o encanto e a felicidade reinavam em casa do Semedo e na freguesia já ninguém se lembrava que o pai do pequeno Gervásio era, afinal, um náufrago abandonado na ilha, talvez um criminoso, com quem a Deolinda do Semedo vivia amancebada porque não recebera o Santo Sacramento do Matrimónio.
Numa noite, porém, o inesperado aconteceu. Dimitri saiu de casa e nunca mais regressou. De manhã, durante as buscas, o Cardoso da Eira, afirmava a pés juntos, que um bergantim se havia aproximado, durante a noite, da enseada do Rolinho das Ovelhas e nele, tinha visto, embarcar um homem.
… E a parir do dia seguinte, todas as tardes, depois do pôr-do-sol, a Deolinda do Semedo, lavada em lágrimas, sentava-se sobre um rochedo, à beira mar, com o filho ao colo, apontando-lhe um horizonte indefinido.