Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]



A MULHER COM PÉS DE CABRA DA LADEIRA DAS COVAS

Quinta-feira, 10.10.13

O Bigorna chegou a casa espavorido, misantropo, desfeito, esgazeado, a tremer como varas verdes e branco que nem cal. Enfiou-se na cama vestido, recusou-se a comer ou a beber o que quer que fosse, rejeitou a travesseira e cobriu a cabeça com os cobertores. Não tugiu nem mugiu durante o resto do dia. Um caco!

A mulher sabia que ele se levantara bastante cedo para ir ceifar um molho de erva à lagoa das Covas e, muito provavelmente, havia de demorar-se por lá algum tempo, como era seu hábito. Por isso, quando o viu entrar pela porta dentro, àquela hora e naquele estado, abriu a boca até aos ouvidos, perdeu a fala e ficou estancada na cozinha qual estátua de gesso. Depois, despertando de tão inaudita letargia, de um salto, abriu a porta do quarto, abanou o homem, sacudiu-o, balanceou-o, tentou descobri-lo e forçou-o a levantar-se. Mas nada. Parecia morto. É que quanto mais o sacudia mais ele se aquietava, quanto mais o remexia mais ele afrouxava e quanto mais o puxava para fora dos cobertores mais ele se encafuava quedo e mudo por entre os sulcos das folhas de casca que enchiam o colchão da velha enxerga.

A mulher, de consumida passou a alvoraçada, de alvoraçada a tresloucada e, cuidando que solavancos, repelões e lambadas naquele corpo inerte de nada valeriam para avivar tão estranho e repentino entorpecimento, desata pela vizinhança a gritar, a berrar e a pedir socorro. “Que lhe acudissem. Que acontecera uma grande desgraça. Que o seu homem estava a morrer. Que nunca se vira uma coisa assim.” Tanto foi o alarido e tão grande o berreiro que, em breve, a casa se encheu de vizinhas, de préstimos, de conselhos, mas também de lamentações e, até, de suspeitas e de desconfianças. Ali havia gato. Olaré se havia!

E os alvitres começaram a disparar: “Chama o senhor padre, faz-lhe chá “mastrunços”, põe-lhe um crucifixo nas mãos, tira-lhe os cobertores, põe-lhe um pano molhado na testa, promete um boneco a Santo Amaro, acende uma vela a Santa Luzia, dá-lhe canja de galinha…” Uma enxurrada de sugestões que não tinham fim. Fez-se de tudo e até o vigário veio, com cruz, água benta e livro de exorcismos. Mas nada… O Bigorna quedava-se recolhido no leito, mudo, inerte, estático, indiferente a tudo e a todos, perante o cada vez maior desespero da mulher e o inacreditável espanto dos circundantes.

Passaram-se dois dias, três dias de angústias extremas e de preocupações galopantes e nada. Ao quarto dia, mandada vir do Lajedo de propósito, apareceu por ali a Georgina Benta, muito entendida e experiente em bruxedos e maus olhares. Observou o doente e sentenciou de imediato:

- Há aqui o dedo do mafarrico! Se há… Ou eu não me chamo Georgina Benta. Aqui há bruxedo e dos graúdos. Posso garantir que isto só lhe passa com uma oração do livro de São Cipriano.

A mulher do Bigorna, muito da igreja e muito conceituada junto do pároco e de sua irmã, a princípio não aceitou muito bem a ideia. Mas era o seu homem que definhava dia a pós dia. “Só quem passa por isto é que sabe. Venha de lá a Benta e traga o livro de São Cipriano e todos os livros que quiser e entender. Primeiro que tudo está a saúde do meu homem.”

Entrou-lhe pois, a Benta do Lajedo, pela porta dentro, de vassoura e balde cheio de água benta. Não esteve com meias medidas e atira para cima do Bigorna a oração da “Cabra Preta”, enquanto o ia salpicando com respingues da água retirados do balde e atirados com a vassoura: “Cabra preta milagrosa que pelo monte fugiu, trazei-me o Bigorna que de minha mão sumiu (…) Bigorna, com dois te vejo, Bigorna com três te prendo, com Caifaz, Satanás, Ferrabás. Ámen!”

Não demorou muito. O Bigorna, ou pelo fresco da água ou pela intercessão de São Cipriano, lá foi escapulindo lentamente da letargia em que se encontrava. Esperneou, contorceu-se, escabujou, esticou o corpo prolongadamente, arregalou os olhos, atirou com os cobertores às urtigas e veio pôr-se à janela, a olhar admirado para a meia dúzia de mirones que lhe haviam parado em frente da casa.

Nunca se soube a quem o Bigorna contou o seu segredo. Mas toda a freguesia, algum tempo mais tarde, teve conhecimento do que acontecera naquela iníqua madrugada: o Bigorna cruzara-se na ladeira das Covas com uma mulher, jovem e bela, mas que não conheceu. Voltando-se para trás, por mera curiosidade, seguiu-a durante uns segundos. Foi então que a mulher também se voltou e o Bigorna, estarrecido de medo, viu que da cintura para baixo, tinha o corpo coberto de pêlo negro que parecia pêlo de cabra e os pés, esses eram mesmo bem iguaizinhos aos pés de uma cabra.

A parir de então muita gente da Fajã e da Ponta tinha um medo enorme de passar na Ladeira das Covas, onde uma misteriosa mulher, com pés de cabra, aparecera ao Bigorna.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 10:15





mais sobre mim

foto do autor


pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Outubro 2013

D S T Q Q S S
12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031