PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FEITICEIRA DO ESPIGÃO
No Cimo da Ladeira do Espigão, o caminho, no troço que ligava a Cancelinha aos Lavadouros, era ladeado por vetustas e altíssimas paredes, cheias de musgos e heras. Nas terras de mato circundantes, onde nalgumas belgas cresciam inhames entrelaçados com laranjeiras, ameixieiras e outras árvores de fruto, os incensos e as faias que ali proliferavam eram altíssimos e ramosos, estendendo, sobre o caminho, uma boa parte das suas verdes e frondosas copas. Estas, entrelaçando os seus ramos uns nos outros, quase cobriam o caminho por completo, transformando-o numa espécie de túnel, sombrio, esconso, enigmático e misterioso. Um esteiro de enigmas e temeridades, um antro de superstições e medos, um berçário de mitos e lendas.
Pela freguesia, sobre aquele fatídico local, contavam-se muitas “estórias”, algumas simples e inverosímeis, outras temerosas e, até, assustadoras. Muitos dos que por ali tinham passado, em tempos idos, haviam pressentido sensações esquisitas, ouvido ruídos estranhos, avistado vultos fantasmagóricos, arrostado pessoas misteriosas e, até, um ou outro, jurava que se tinha defrontado com a presença de almas do outro mundo.
O Simão do Justino, um gabarola de meia-tigela, ufanava-se à Praça, na Máquina, no Alagoeiro e em todo e qualquer local onde se falasse do Cimo da Ladeira do Espigão, de ser muito anamudo, de não ter medo de nada nem de coisa nenhum e de passar por ali, a qualquer hora do dia ou da noite e nunca ter visto ou ouvido o que quer que fosse. Lérias, patranhas… Medricas, cambada de cagões eram os outros. Ele não. E os outros, ou porque incapazes de contrariar a gabarolice do Simão ou por não quererem declarar a sua própria cobardia, mudavam de conversa.
Os tempos passaram… embora os medos de transitar no Cimo da Ladeira do Espigão não se esvanecessem por completo.
Certo dia, ao descê-la, já pelo lusco-fusco, o Simão, quando menos esperava, foi atordoado por uma tremenda algazarra - pareciam gritos aflitivos, angustiantes, tenebrosos, saídos de entre os tétricos meandros dos incensos e das faias que povoavam aquele ermo e que pareciam prolongar-se e ecoar na rocha da Lagoinha. Lívido como um círio, branco que nem cal, cadavérico que nem um defunto, sem pinga de sangue no corpo, a escorrer suores frios e com as calças todas borradas, o Simão, apesar de trôpego, débil e cambaleante, desatou numa desmesurada corrida, até ao Largo da Cancelinha, onde, finalmente, parou e, olhando para trás, respirou de alívio – já não ouvia nada. Até a casa, porém, não sossegou e quando a mulher, perante o seu ar desbragado e o seu aspecto exinanido, o interrogou, ele apenas se limitou a encolher os ombros e a jurar, a pés juntos, que tão cedo não havia de ir aos Lavadouros, pelo maldito caminho da Cancelinha.
Mas não demorou muito a sua pertinácia e, passados uns dias, voltou a subir e a descer a Ladeira do Espigão. Nada ouviu, a não ser o suave murmúrio do vento, enrolando-se, deslumbrante e acariciador, nas copas frondosas das árvores. Mas, no dia seguinte, a coisa mudou de figura.
Descia o Simão a Ladeira e, de repente, os mesmos gritos, os mesmos berros e os mesmos ecos, a atordoarem-no, por completo. Embora lânguido, frouxo, quase desfalecido e terrivelmente assustado, o Simão decidiu-se por trepar a parede e espreitar por entre faias e incensos, na tentativa de descortinar tamanho mistério. Fê-lo, a muito custo, porque o cagaço, na verdade, era grande e muito superior às suas forças. Mas lá conseguiu chegar ao cimo da parede e espreitar para dentro. Os gritos, berros e ecos pareciam ainda maiores e mais angustiantes. Foi então que, num ápice, viu um vulto de mulher, passar-lhe em frente, numa louca correria. Não lhe viu a cara, apenas os cabelos louros e, mistério dos mistérios, a mulher tinha asas brancas no lugar dos braços e pés semelhantes aos das galinhas. O vulto saltava, corria, gemia, gritava, emitia rugidos estridentes e angustiantes, desaparecendo, por fim, entre as faias e os incensos. Era, por certo, uma feiticeira – a Feiticeira do Cimo da Ladeira do Espigão, que, pelos vistos, já se havia revelado a muitos outros que por ali haviam passado.
Mais morto do que vivo, transformado em farrapo, o Simão escorregou pela parede abaixo, estampando-se no chão, como se fosse um caco. Muito a custo, levantou-se, desatando em louca correria, enquanto os gritos, os berros e a própria imagem da feiticeira pareciam persegui-lo.
Foi o Greaves que o viu chegar ao cimo da Assomada naquele lastimável estado, carregando uma enorme angústia e o esclareceu, aliviando-lhe, parcialmente, a aflição:
- Mas que grande palerma… Então tu não sabes que aquela terra é do meu compadre Freitas e que ele, a semana passada, levou para lá as galinhas, para elas lhe limparem as mondas dos inhames. O que viste e ouviste foi a mulher dele que para lá vai todos os dias e fica horas e horas a vigiar e a chamar as galinhas, a correr atrás delas, a ver se descobre onde as malditas escondem os ovos.
O Simão, envergonhadíssimo, respirou de alívio e, embora um pouco desconfiado e a medo, uns dias depois, saltando a parede da terra do Freitas, confirmou. Lá estavam as galinhas a cacarejar todas esganiçadas e lá estava a mulher do Freitas, com um xaile branco sobre os ombros, a correr atrás delas, a acocorar-se e a levantar-se, a chamar pelas galinhas em frustradas tentativas de descobri-lhes os ninheiros.
Mas a mulher do Freitas era nova, bonita, elegante e atraente, por isso, nos dias seguintes o Simão, descortinando a hora em que ela ia tratar das galinhas, aproveitava para passar por ali e, trepando a parede, espreitava para dentro, na tentativa de descortinar uma nesga que fosse das pernas da “Feiticeira do Espigão”, que agachando-se, para não esmorraçar a cabeça nos grossos troncos das laranjeiras, de vez em quando, levantava, ao de leve, a beira da saia.