PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FOLHINHA
Antigamente, nos tempos em que a missa ainda era celebrada em latim, existia nas sacristias das igrejas um pequeno livro, vulgarmente denominado por “A Folhinha” que continha indicações muito concretas e normas muito precisas, rigorosas e necessárias aos sacerdotes para que estes pudessem celebrar o Santo Sacrifício de acordo com a liturgia de cada dia. A Folhinha estava escrita em latim, à base de abreviaturas e, para além das indicações e normas necessárias à celebração da Eucaristia, desde a cor dos paramentos até às orações e leituras próprias ou classe da festividade de cada dia, ainda continha indicações relativas à leitura do Breviário para as diversas horas litúrgicas diárias.
Certo dia o Padre Pimentel, numa altura em que já resignara das suas tarefas de pároco e residia na Terceira como manente, foi de férias à Fajã Grande e decidiu ir celebrar missa a meio da manhã. Tocou o sino e voltou a tocá-lo, mas o tardio da hora impediu que o sacristão ou quem quer que fosse conhecedor dos meandros da sacristia ali não aparecesse. Na igreja apenas meia dúzia de mulheres de idade avançada e que pouco mais sabiam de Liturgia do que bichanar Padre Nossos e Ave Marias.
Com o avançado dos anos a alterarem-lhe o discernimento, com o nervosismo e a excitação que sempre possuíra, Padre Pimentel procurou em armários, revirou gavetas, abriu gavetões e voltou a procurar em todos cantos e prateleiras da sacristia… mas nada de encontrar “A Folhinha”. Assim via-se impedido de celebrar o Santo Sacrifício. Desesperado, aflito, atabalhoado, paramentado apenas com o amito, a alva e cíngulo, assomou à grade da capela-mor e, dirigindo-se ao pequeno, enigmático e silencioso grupo de velhinhas que esperava expectante o início da celebração, exclamou em altos brados:
- Alguém sabe da Folhinha? Preciso da Folhinha! Preciso da Folhinha!
Aflitas, espantadas e pasmadas as velhotas olharam umas para as outras, encolhendo os ombros, sem saber o que dizer ou, muito menos, o que fazer. A Glória Fagundes, outrora vizinha do reverendo e frequentadora assídua do passal, sentada ao fundo da igreja, mesmo à porta do tapa vento, muito habituada a meter o nariz em tudo e a inventar e procurar soluções para os problemas alheios, murmurou para os seus botões:
- Ah! Precisas duma folha! Espera que vou buscar uma.
Levantando-se, de imediato, dirigiu-se ali ao lado, à loja da Senhora Dias, aproveitou o exterior do templo para meter mais duas pitadas de tabaco de cheirar no nariz, pediu uma folha de papel almaço de trinta e cinco linhas ao Caetano e, toda contente, arrastando uns chinelos mais velhos do que o Padre Eterno, lá foi muito prazenteira, à sacristia, levá-la ao reverendo.
- Paspalhona! Ignorante! Apedeuta! Não é essa folha que eu quero. - Bradava o eclesiástico, cada vez mais desesperado e colérico. Tanto berrou, tanto gritou e tanto exasperou que a Glória Fagundes saiu da sacristia com os olhos arrasados de lágrimas, perante um cada vez maior pasmo e espanto dos restantes elementos da pequena assembleia litúrgica. Indignada e constrangida com o insucesso da tarefa, realizada com tanta dedicação e tão grande boa vontade, acusando o reverendo de mal-educado e “desagradecido”, sentou-se ao lado da Maria Cristóvão, contando-lhe, em segredo, as suas mágoas. Esta, abstraiu-se das rezas, reflectiu uns segundos e, de imediato, cochichou:
- “Ah! Mulhê! Sabes do que m’alembrei, agora? Nam será que ele quer mesme é uma folhinha de coive? Por que nam vais pedir ua ali, a tua subrinha?”