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ENTRE A ORIGEM E A OPÇÃO

Segunda-feira, 14.10.13

A cidade assemelhara-se-lhe sempre como um mundo indefinido, confuso e enigmático. É verdade que nela nascera, crescera, estudara e, desde há alguns anos, se iniciara no mundo do trabalho. Não a odiava, talvez até a amasse, mas sentia, cada vez mais, que ela sobrepujava o seu quotidiano, ultrapassando os seus sonhos e desejos. Aqueles prédios altíssimos das Avenidas de Roma e dos Estados Unidos, onde, todos os dias, tomava o transporte para o trabalho, a confusão reinante de veículos e transeuntes, os autocarros apinhados de gente, as filas infinitas e as esperas prolongadas, o barulho ensurdecedor da própria rua onde morava, enfim, o congestionamento, a insegurança e a intranquilidade que cada vez mais devoravam a cidade, afligiam-no e atormentavam-no, de dia para dia.

Lisboa, apesar de ser a sua cidade de origem, aos poucos, ia-se tornando como que um enorme pesadelo de que era urgente libertar-se. Como? Não sabia.

Inicialmente segredara-o apenas à Elvira, a companheira com quem, de há muito, partilhava os momentos de alegria, de prazer e as horas de cansaço e de tristeza. Agora, porém e à medida que o tédio aumentava, sentindo-se incapaz de libertar-se, começava a abrir-se com colegas de trabalho e amigos de ocasião.

O Alves, que se sentava todos os dias, na mesa em frente, no escritório, perante as suas lamúrias, ripostava:

- Ó Guedes, sinceramente que não te entendo! Há lá vida melhor que esta, da cidade?! Trabalho pouco e leve. Divertimentos muitos e variados. Lisboa é um mundo, homem! Para além disto não há mais nada. Vais encafuar-te numa aldeola qualquer como um anacoreta da Idade Média? Estás maluco? Tira essas idiotices da cabeça. Isto aqui é que é vida.... Então não vês que os da província emigram para a capital em catadupa?

Mas para demover o Guedes, não havia argumentos, nem do Alves, nem de quem quer que fosse.

Numa tarde de Domingo em que, com a Elvira engripada, havia optado por ficar em casa, a seu lado, folheando, sem grande convicção, o último número da “Reportagem” deparou com um artigo sobre o Alentejo que de imediato lhe chamou a atenção. Leu-o e releu-o com desmesurada curiosidade.

No fim, o autor da reportagem, ilustrada com algumas fotografias, referia que muitos dos actuais proprietários dos montes alentejanos que os haviam adquirido por herança, estavam a vendê-los, dado que muitas pessoas que vivem nas grandes cidades começam a interessar-se por eles e a comprá-los...

E a ideia de adquirir um monte alentejano não saiu mais da cabeça do Guedes, pese embora a oposição manifestada pela Elvira e as dificuldades que tal aquisição acarretaria.

- Sais de Évora para Reguengos de Monsaraz. Depois de passares o cruzamento para S. Manços e Portel, em S. Vicente do Pigeiro, voltas à esquerda e segues para Montoito. Depois apanhas a estrada para as Falcoeiras, andas meia dúzia de quilómetros e encontras uma placa a indicar “Artesanato do Alentejo”. É aí.

Foi assim que o Guedes explicou ao Alves quando, pelo telefone, o convidou, a ele e à Guida a passarem uns dias no seu monte. 

Já há alguns anos que ali se haviam fixado, ele e a Elvira, concretizando o almejado abandono de Lisboa. Fora um anúncio num jornal. Uma opção difícil, mas consciente e determinada. Numa primeira visita ao local, granjeara a condescendência imediata da Elvira. Era um sítio maravilhoso e paradisíaco, ali, perto de Évora, no coração do Alentejo. Uma planície imensa, onde se vislumbravam searas ondeadas e pintadas a ouro, vinhedos, olivais ramalhudos, montados de sobreiros e azinheiras e terras de pousio onde se apascentavam rebanhos e rebanhos de ovelhas. Além, para Noroeste, a serra de Portel. Para Oeste a planície estendia-se ainda mais, até se perder em Évora. Para o Norte a serra de Ossa e para os lados de Espanha os relevos acidentados de Monsaraz, o castelo de Mourão e as terras espanholas. O seu monte, ali nas Falcoeiras, a20 quilómetrosde Redondo, constituía como que o epicentro daquele paraíso de beleza e de grandiosidade. Era um descampado não muito grande, povoado aqui e além por sobreiros e olivais. Na parte mais alta, o casario, cumprindo a tradição alentejana, pintado de branco, debruado com barras amarelas, com um telhado escurecido e uma enorme chaminé. À frente três janelas de vidros axadrezados e duas portas de madeira alaranjada.

Agora, estava ali, à espera do Alves e da Guida, com o seu monte reconstruído, tendo transformado o celeiro e as arrecadações em loja de artesanato, onde abundavam trabalhos em barro, em cortiça, em chifre e pele de Évora, cestaria e objectos de mármore e madeira de Borba, olaria, tecidos, mantas, chocalhos, buinhos de Reguengos,  cerâmica de S. Pedro do Corval, tapetes de Arraiolos e loiças pintadas de Redondo. De Estremoz recolhera olaria decorativa e utilitária, bonecos típicos, peles, cabedais, trapologia, rendaria, bordados, trabalhos em cana, em vidro e cabaças. No início fora difícil a adaptação e o investimento excessivo mas agora tudo lhe corria de feição.

A chegada do Alves e da Guida foi festejada com grande alacridade. Há muito que se não viam. Era a hora de demonstrar a fascinação do Alentejo, de que o Alves sempre duvidara:

- E tu que quase me forçaste a abandonar os meus planos! – Insinuava, orgulhosamente o Guedes e acrescentava – Isto é uma maravilha! Mas ainda não viste tudo. Hoje vamos descansar e saborear uns petiscos. Amanhã daremos um passeio pelos arredores onde poderás ver uma região onde as marcas aberrantes da industrialização ainda se não fizeram sentir e onde a qualidade ambiental se espelha por toda a parte. Uma região plena de recantos insuspeitos onde, para além da beleza paisagística, proliferam monumentos históricos de grande variedade e riqueza.

Na manhã seguinte o périplo prometido e imprescindível. Redondo com a sua Cerca Medieval e as ruínas do Castelo, a Torre de Menagem, o Pelourinho, a igreja Matriz, a Misericórdia e os Paços do Concelho. A seguir Estremoz: o castelo, a Torre de Menagem, o Paço de Audiência de D. Dinis, as capela da Rainha Santa Isabel e do Anjo da Guarda, a Torre das Couraças, o Pelourinho e a porta dos Currais. Depois Borba com as ruínas do Castelo, as igrejas Matriz, de S. Bartolomeu e da Senhora do Sobral, os Paços do Concelho, os Passos da Via-Sacra e a Fonte das Bicas. Vila Viçosa, outrora sede do ducado de Bragança, com o Palácio Ducal, a Igreja Matriz, o Convento das Chagas, a Porta dos Nós e o jantar: gaspacho, carne de porco à alentejana e bolo do fundo do alguidar. No regresso, já noite escura: Alhandroal, Redondo, Montoito e Falcoeiras.

Foi no dia seguinte que o Alves, despedindo-se do Guedes, lhe segredou:

- Meu amigo! Agora sou obrigado a reconhecer que tinhas razão: a trocar por Lisboa, só o Alentejo.

E partiu, com destino à capital, prometendo regressar em breve.

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publicado por picodavigia2 às 19:21





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