PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A POÇA DA SEREIA
A zona do baixio, situada entre o Calhau da Barra e o Cais, era um mamarracho negro, pétreo, abrupto mas bastante amplo, entrecortado, na orla marítima, por minúsculas enseadas e pequenas baías, umas e outras a separarem-se por promontórios pejados de caranguejos, carregados de lapas e revestidos de algas alaranjadas e roxas, que as ondas, ora altivas e tempestuosas, ora calmas e tranquilas, umas vezes cobriam com fulgor outras acariciavam com ternura. O interior, deserto de vegetação, delineado a nascente, pelo caminho que, logo acima, desembocava na Via d’Agua e no início do qual e à beira do Cais, se encravava um pequeno e débil farol, era povoado de uma inúmera quantidade de poças, de tamanhos e formatos muito diferentes, separadas umas das outras por torreões de lava negra, muitos deles com formas estranhas, altaneiras, a pavonearem-se num universo deserto, mas a fazerem lembrar figuras fantasmagóricas, estátuas irreconhecíveis, monumentos indecifráveis, que a imaginação do povo, através dos tempos, metamorfoseara em ícones lendários ou em símbolos míticos. Eram estas atalaias magmáticas que separavam e delineavam não só as poças mas também as baías e as enseadas e de quem, na maioria dos casos, umas e outras recebiam os nomes.
Entre as poças, porém, havia algumas maiores e, por conseguinte, possuidoras de uma identidade e de um nome que as distinguia e diferenciava, naquele estranho e enigmático universo. Eram as poças do Cobre, da Sereia, do Farol, da Barra, da Prata, da Pontinha, dos Pargos e muitas outras. A Poça da Sereia era das mais míticas e lendárias. Apesar de muito próxima do mar, mas porque encravada entre altos rochedos, apenas em momentos de maré cheia lhe entrava a água do oceano, toldando-lhe a quietude, renovando-lhe a frescura, azulando-lhe a cor, abarrotando-a de salinidade. Entre os altivos rochedos que a ladeavam e que lhe conferiam contornos flexuosos e lúbricos, havia um, a norte, mais altivo, mais grandioso e, sobretudo, mais singular. Encravado muna espécie de cordilheira em miniatura, uma imponente excrescência magmática a fazer lembrar uma figura de mulher! A cabeça, o rosto, os cabelos, os seios, tudo perfeitamente identificável, só que o ventre, as pernas e os pés como que desapareciam, confundindo-se e emaranhando-se como o próprio rochedo. Era como se fosse uma sereia que, em tempos idos, se tivesse sentado a olhar o mar e ali permanecesse petrificada para sempre. Era essa a razão por que aquela poça se chamava “Poça da Sereia” e sobre a qual se contava uma curiosa lenda.
Há muitos anos atrás, um certo dia, um pescador que por ali passava, na sua faina diária, ouviu gemidos muito tristes e dolentes. Seguindo no que lhe pareceu ser a sua direcção encontrou uma mulher ali sentada, a chorar. Um pouco amedrontado, cuidando que era um ser humano, o pescador aproximou-se e perguntou-lhe:
- O que se passa para estares aqui sozinha, a chorar?
A sereia explicou que tinha sido empurrada por uma onda até ali e que se sentara sobre os rochedos a apreciar aquela linda terra, as suas rochas e as quedas de água que dela desciam. No entanto, a maré havia vazado sem se aperceber e agora, chorava, porque com a maré baixa não conseguia regressar ao mar, devido à cauda de peixe que lhe substituía os pés. Foi então que o pescador, muito espantado, percebeu que estava frente a frente com uma sereia. Esta pediu que lhe pegasse ao colo e a levasse, novamente, para o mar.
O pescador ficou sem saber o que fazer, mas acabou por pegar na sereia com cuidado e levá-la para o mar, onde ela logo mergulhou com graça e agilidade.
Contava-se que o pescador tinha ficado encantado com a beleza da sereia e, a partir de então, muitas vezes passava por ali, durante o dia e até de noite. Sentava-se sobre um rochedo e ficava, horas e horas, à espera da sereia, mas esta nunca mais voltou, ou antes, o pescador nunca mais a viu.
Durante as longas e longas horas de espera, para acalentar a sua mágoa, o pescador com uma pequenina enxada de apanhar cracas, ia batendo ao de leve sobre os rochedos. Tanto, bateu e voltou a bater que, sem disso se aperceber, acabou por esculpir, ali, sobre um dos bordos da poça, a estátua duma sereia.