PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O ANTÓNIO
Altaneiro nos seus desejos, insofismável nas suas aspirações, audacioso nas suas atitudes e galhofeiro nas suas palavras, o António entrava-me pela sala dentro, conversava e participava nas aulas com um invejável à vontade, com uma matreira sagacidade e com um aleatório discernimento. Folgazão, galhofeiro e hiperactivo, interrompia, frequentemente, a aula, umas vezes, com a perspicácia e a dignidade de quem queria aprender ou esclarecer uma dúvida, outras, porém, com a subtileza e a argúcia de quem pretendia, apenas e, tão-somente, interromper e boicotar, por uns minutos, uma docência que lhe havia de acarretar mais trabalhos, obrigar a mais estudos, enfim, a reduzir-lhe o tempo de lazer e ociosidade e a cercear-lhe folguedos, flostrias e brincadeiras. Num e noutro caso, porém, interrompia-me com perspicácia, descrição, delicadeza e até com alguma jocosidade, pelo que o ouvia sempre com respeito e estima, respondendo-lhe de acordo com o tipo e acuidade da questão formulada. Ele ouvia-me atentamente e, se a questão fosse relacionada com o tema da aula, orgulhava-se e ufanava-se de ter contribuído para esclarecer, não tanto a si próprio mas, sobretudo os outros que, na opinião dele, “andavam a dormir”. Se, por outro lado, a pergunta era de galhofa ou de alheamento do tema tratado, logo pedia desculpa e prometia emendar-se. Muitas vezes, porém, no meio dessas interrupções, falava de si próprio, dos seus anseios e preocupações, das suas brincadeiras e consumições, das suas travessuras e delineações. Falava sobretudo e frequentemente do seu sonho, do seu grande sonho: adorava a velocidade e, por isso, um dia havia de ser piloto de aviões. Eu bem o aconselhava que era uma profissão difícil de se conseguir, que só com muito esforço, muito estudo, muito trabalho, muita seriedade. Que sim senhor! Que eu havia de ver um dia…
E no fim do ano, mesmo sem estudar muito, as notas do António foram excelentes. Logo que me encontrou, com a pauta recheada de quatros e cincos, aproximou-se e segredou-me:
- Está a ver, professor?! Está a ver como eu vou conseguir! Vou ser piloto de aviões. Ai vou, vou!
Orgulhei-me e encorajei-o.
O António terminou o sexto ano, saiu do Ciclo e matriculou-se no Liceu. Nunca mais nos cruzámos, mas, como quase todos os que tinham lidado de perto com ele, nunca o esqueci, porque a sua presença nas minhas aulas durante dois anos, fora contagiante, geradora duma amizade sincera, promotora de um convívio íntegro e porque os seus sonhos eram delirantes e o seu empenhamento na vida incondicional
Passaram 4 anos. Deparei que um canto da penúltima página do “Progresso de Paredes” registava esta trágica notícia: “Jovem de dezasseis anos perde a vida em Duas Igrejas, ao embater violentamente contra um poste de electricidade, com a mota em que seguia. Teve morte instantânea.”
Era o António!...