PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FACE DO SENHOR
O Caixeiro chegou a casa exausto, esfomeado e, sobretudo, consumido, rabugento e furioso, como nunca. Enquanto fora apanhar uns incensos à Horta das Abóboras, a maldita da Lavrada, à cordada na belga do Batel, havia arrancado a estaca, saltado a parede, enfiando-se pela ribeira abaixo até aos quintos dos infernos. Foi o cabo dos trabalhos para a apanhar, amarrar e trazê-la de novo para o Batel. Parecia que tinha o diabo no corpo! Além disso, a maldita entrou numa terra do José Pureza, desfazendo-lhe uma boa parte do milho e da batata-doce. Parecia que estava doida, aquele estafermo!
Entrou, pois, pela porta dentro, a bradar, a praguejar, a blasfemar e a resmungar consigo mesmo e com quem o quisesse ouvir. “Alma do diabo” para baixo, “raios-te-partam” para cima, “sanababicha” para um lado, “mas o diabo não te comesse viva” para o outro, enfim um interminável rol de impropérios e insultos que nunca mais acabava.
A Rosária, a tia com quem vivia desde miúdo, atarefada nas lides domésticas e afeita a tamanha impertinência e a tão habitual desrespeito, não tugiu nem mugiu e o sobrinho, pouco depois calou-se, emudecendo por completo. Mudos sentaram-se à mesa para a ceia, já lusco-fusco. A Rosária pôs-lhe na frente a tigela do leite e atirou-lhe para cima da mesa um quarto de bolo, acabadinho de cozer no tijolo, ainda a fumegar. Mas no ar pairava um cheiro a queimado, a que o Caixeiro não se alheou, pese embora a face do bolo voltada para cima estivesse perfeitamente cozida. Nem muito clara, nem muito escura.
Mas o Caixeiro desconfiou do embuste e, antes de migar o bolo na tigela do leite, voltou-lhe a face oculta para cima. Horror dos horrores! O Bolo estava negro como a ferrugem! Preto que nem carvão! O bolo, na realidade, estava totalmente queimado.
O Caixeiro, mais furioso do que quando entrara em casa, não tanto pelo excesso de cozedura do bolo mas sobretudo pela atitude simuladora da tia, levantou-se de rompante, gritou, berrou, praguejou e, pegando no bolo, atirou-o com tanta força e tamanho desespero pela porta fora que o dito cujo se foi estampar na parede da casa que ficava em frente, do outro lado da rua, onde morava o Cabral, pois nessa altura o Caixeiro e a tia Rosária moravam na Assomada, num casa muito velha, que mais tarde foi palheiro do Trancão.
A Rosária aflita e de mãos postas, vendo o seu trabalho, cujo produto final ela considerava quase sagrado, tratado tão vil e covardemente, exasperou o sobrinho, gritando:
- Pedaço de malcriado! Atiraste a “Face do Senhor” às empenas de Cabral.
E não lhe cozeu mais bolo, naquele dia, nem nos seguintes.