PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CLARINETE
A década de sessenta, embora demarcada por um adocicado sabor de inocência a contrastar com um abrupto despoletar das mais diversificadas manifestações musicais, provocara um enorme e atrofiante desgaste na filarmónica da freguesia. A avalanche de músicos desabrochada nos anos anteriores, transformara-se num reduzidíssimo elenco que ameaçava por em causa a continuidade de um dos maiores orgulhos da terra, a União Musical Santestevense, a muito custo fundada, estruturada e organizada, na década anterior. Uma razia!
A aquisição dos instrumentos havia custado uma fortuna. Os fardamentos e outros acessórios aumentaram, substancialmente, o montante. Não houve subsídios e foi a generosidade do povo da pequena freguesia que, unindo esforços e conjugando sacrifícios, ombreou com uma despesa estonteante. Agora, se não lhe acudissem, estava prestes a fenecer. A maioria dos músicos desertara. Uns haviam partido para a tropa, outros emigrado para América, um outro dos mais velhos falecera, enquanto alguns desmotivando-se, pura e simplesmente haviam desistido. O elenco amplo, excessivo e volumoso dos tempos áureos da sua fundação, ia-se, aos poucos, afunilando e atrofiando, aos solavancos, como se fosse um enorme balão a esvaziar-se, lentamente. Agora, apenas uma dúzia de carolas! Muitos instrumentos dias e dias sem emitirem uma nota que fosse, enferrujavam nos armários.
Impunha-se, pois, recrutar pessoal, a quem os mais velhos haviam de dar formação. Mas a rapaziada, cada vez mais reduzida e, além disso, aliciada pelo aparecimento dos Beatles e pelo despoletar do Rock and Roll, todo o dia de rádio ao ouvido, gravador debaixo do braço, encolhia os ombros. Recrutar mulheres, impossível, naqueles tempos regidos e demarcados ainda por uma pesada oposição ao vacilante dealbar dos movimentos feministas.
A Maria José, uma das mais belas moçoilas da freguesia, fora nada e criada num ambiente de sedutoras vivências musicais. Vivaça, afoita e despida de complexos, a música estava-lhe no sangue. O pai, recentemente falecido, fora um dos mais brilhantes clarinetistas da freguesia e a mãe, quando nova, em festas e serões, dedilhava com alguma habilidade, uma antiga viola da terra que havia lá em casa, habitualmente colocada em cima da cama da sala, envolvida por um belo xaile de merino e que lhe havia sido doada, por um tio-avô.
Corajosa e destemida, apresentou-se, pois, a moça, entre meia dúzia de bigorrilhas, desajeitados, chavascos e desmiolados, como candidata a um lugar na filarmónica da freguesia. A notícia, inesperada e abrupta, correu célere, sofreu cerrada oposição, e originou os mais disparatados e inverosímeis comentários. Nem o respeito que a memória do pai impunha salvou a moça de lascivos e mal-intencionados comentários. Parecia que o céu caía em catadupa. Uma mulher a tocar na banda…metida no meio de homens!... Totalmente inconcebível! Nunca tal se vira, nem nunca tal se havia de ver. Uma vergonha! Uma ofensa! O fim do mundo, em cuecas…
Persistente, voluntariosa e disposta a contrariar tabus e a destruir preconceitos, Maria José lutou contra cerradas oposições, venceu inexcedíveis obstáculos, ultrapassou desmesuradas barreiras, esqueceu malévolos mexericos. Manejando o clarinete com arte, destreza e sabedoria, não se lhe podia negar o desiderato. A sua persistência e uma excelsa apetência para a música, tornou-se numa enorme mais-valia para a banda, assumindo-se também como pioneira duma presença feminina na mesma. Choveram as intimidações, desabaram as críticas, abundaram os comentários malévolos e as apreciações mordazes. Mas tudo ultrapassou, erguendo-se como pioneira da presença feminina uma banda de música.
Depois dela muitas outras jovens, seguindo-lhe o exemplo, se candidataram à aprendizagem da música e ao manejo dos instrumentos, fazendo com que o elenco da União Musical Santestevense crescesse e tornasse sólido e a banda regressasse aos momentos áureos e aos êxitos da sua existência inicial