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NOVEMBRO

Sexta-feira, 01.11.13

Na ilha das Flores, como provavelmente noutras do arquipélago açoriano, na década de cinquenta, Novembro era um mês estranho, esconso, mítico, repleto de ritos arrepiantes, de emoções tenebrosas e de celebrações fúnebres. É que, para além de, sob o ponto vista meteorológico, ser um mês de mau tempo, de dias invernosos, curtos e escuros, Novembro era o mês da devoção e do culto das almas do purgatório, o mês durante o qual, quer com missas e outras celebrações na igreja, quer com preces e orações em casa, quer ainda com romagens e visitas ao cemitério, devíamos sufragar as almas dos nossos parentes falecidos e pedir pelas almas do purgatório, em geral, “principalmente as mais abandonadas e que mais sofriam ou não tivessem quem intercedesse por elas”.

O mês iniciava-se com a festa de todos os Santos, celebrada exactamente no dia um, e que, mais do que festejar os eleitos que já “gozavam a santa glória” de Deus, se destinava à preparação, limpeza e ornamentação do cemitério e das sepulturas dos nossos antepassados que haviam falecido nos últimos anos, caso ainda não tivessem sido abertas. Mas o que mais caracterizava a festa dos Santos, era o facto de ser nesse dia que se realizava a “derrama” das almas. Sob as ordens e orientação da “Mordoma das Almas”, um grupo de homens corriam todas as casas recolhendo as ofertas de milho para as almas, que iam transportando em cestos e sacos para casa da mordoma. Aqui juntavam-se as mulheres e, formando uma enorme roda à volta das maçarocas que eram recolhidas já descascadas, iam-nas debulhando e enchendo os grãos em sacas de serapilheira, devidamente pesadas, a fim de se venderem mais tarde. O dinheiro resultante dessa venda era destinado a celebrar missas pelas almas do purgatório. Esta operação implicava uma grande movimentação de gentes e recolhia grandes quantidades de milho. Quem não o tivesse ou, se assim o entendesse, oferecia um valor equivalente em dinheiro.

Por sua vez, o dia seguinte, chamado dia de Finados ou dos Defuntos, era um dia de luto, de missas, de orações e de visitas ao cemitério. Nesse dia celebravam-se, durante a manhã três missas, intercaladas com visitas ao cemitério, durante as quais, o pároco paramentado de negro, por entre orações, súplicas, rezas e pregações ia recordando os três “Novíssimos” que constavam do catecismo e que eram: Morte, Juízo e Inferno ou Paraíso. Era também durante este dia que, segundo se dizia, se comemorava a morte e o enterro do “Velho Laranjinho”, uma figura mítica e lendária que morria todos os anos e que simbolizava todos os mortos de cada freguesia. Era montado um catafalco no cruzeiro da igreja, à volta do qual se celebravam os ritos fúnebres como se de um funeral de verdade se tratasse. Os sinos dobravam a finados de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite, convidando ao silêncio, à oração pelas almas e à reflexão sobre a nossa própria morte, que havia de chegar um dia.

 Durante os restantes dias do mês, com excepção dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a devoção ou novena das almas. Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa, geralmente a chamada pelo Missal Romano “missa quotidiana dos defuntos”. A igreja permanecia propositadamente escurecida, sendo apenas iluminada pelas velas do altar-mor e por outras seis encravadas em outros tantos gigantescos castiçais dourados, colocados ao redor de um enorme tapete preto, debruado a amarelo e com uma enorme cruz a meio, estendido bem no centro do cruzeiro, logo a seguir à capela-mor. A escuridão do templo, por um lado, convidava e proporcionava aos crentes um ambiente mais propício à oração e à reflexão sobre o mistério da sua própria morte e, por outro, encenava uma espécie de enquadramento daquilo porque todos, sem distinção, já tinham passado – a lembrança da morte de algum familiar. De seguida o pároco envergando a capa de asperges preta e barrete de três quinas, colocava-se estrategicamente à cabeceira do tapete e, voltado para o povo, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da freguesia, agrupados ao longo dos vários dias. Como as famílias obviamente eram em número superior ao dos dias do mês, o pároco agrupava em cada dia um número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso, o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados.

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publicado por picodavigia2 às 00:02





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