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PAI VELHO

Sexta-feira, 01.11.13

A criançada da Fajã Grande, na década de cinquenta, não era muita, mas era danada para jogos, brincadeiras e partidas recíprocas. Nas quatro classes da escola, onde eu me incluía, andariam cerca de trinta e cinco a quarenta crianças, sendo, mais ou menos metade rapazes outra metade raparigas. Depois havia ainda os mais velhos, saídos da escola há um, dois ou três mas que também se juntavam aos mais pequenos, formando um grupo bem razoável de garotos, ágeis, atrevidotes, irrequietos e brincalhões. Um número mais do que suficiente para saltar, jogar, nadar, gritar, pregar partidas, fazer trinta por uma linha, numa palavra, para virar a freguesia de baixo para cima, praticando jogos audaciosos e diversos e brincadeiras divertidas e variadas. Nas tardes de domingos, sábados e feriados, nos dias de semana depois da escola lá nos juntávamos em grande, com falta de comparência de um ou outro, à Praça, em frente à Casa de Baixo, no pátio da Casa de Cima, no adro, junto ao Chafariz da rua Direita, na Canada do Pico, no Outeiro e em tantos outros enigmáticos lugares, para a folia, para as brincadeiras, para os jogos, para a conversa, para as partidas e, às vezes, até para brigas e para a pancadaria. Mas no fim tudo resultava em grande amizade e camaradagem.

Quando éramos muitos, isto é, quando o número do aglomerado era superior a dez ou doze, entre outros jogos, dedicávamo-nos muito frequentemente a uma interessante e caricata brincadeira, chamada de “Pai Velho”. Consistia aquela espécie de jogo, no seguinte: uma vez todos reunidos, geralmente na Canada do Pico, ali mesmo a seguir à casa do Catrina, por ser lugar recôndito e de pouco acesso por parte dos transeuntes, um dos mais velhos assumia o papel de pai, mas um pai já muito velho e alquebrado por trabalhos e canseiras e viúvo, que passava os seus dias sentado em casa e não conseguia por cobro às asneiras que diziam e aos disparates que faziam os seus numerosos filhos. Estes eram todos os restantes participantes na brincadeira e como não tinham mãe, nem irmãs, aquilo era um reboliço dos diabos lá em casa. Andava tudo desarrumado, ninguém se entendia, cada qual fazia o que lhe dava na real gana e, por vezes, até se maltratavam e agrediam uns aos outros. O pai bem os aconselhava e mandava para as terras a fim de trabalharem e cultivarem os produtos necessários ao seu sustento. Eles, porém, faziam ouvidos de mercador e não davam atenção nenhuma aos conselhos e pedidos do progenitor, não obedeciam às suas ordens, nem cumpriam os seus mandatos. Pelo contrário, fugiam de casa, sem o pai se aperceber, e passavam o dia a namorar, pois cada um tinha a sua namorada virtual, uma pequenita da freguesia pela idade deles, com quem sonhavam casar. Se se soubesse que dois namoravam a mesma era pancadaria pela certa. Estes namoros potenciais eram realizados ao longo do caminho, encostados às paredes, imaginando que a menina amada ou a namorada estava ali, ao lado de cada um e, com quem era possível estabelecer, em pensamento, uma longa, acesa e interessante conversa. Quando viam estes enlevos, os irmãos mais novos ou outros que não tinham namorada, por zanga ou por inveja, vinham fazer queixinhas ao velho pai das atitudes e comportamentos dos irmãos, geralmente, acompanhadas com mentiras exageradas e gravosas. Assim os filhos namoradeiros, ao regressar a casa, levavam uma boa sova do seu velho progenitor, que se opunha, não apenas à preguiça dos filhos mas também à maneira como namoravam e, por vezes, com quem o faziam. Então a barafunda lá em casa atingia, na perfeição e em pleno, o rubro.

Este jogo ou brincadeira muito simples e, aparentemente, bastante ingénuo, baseando-se na vida real dos adultos, talvez reflectisse os anseios, os sonhos e as aspirações daqueles jovens e crianças, já detentores de uma gigantesca vontade de se emancipar, de ser grande, de actuar e ser adulto, conjecturando, no entanto, dissabores provocados por exageradas e inaceitáveis oposições aos seus projectos de vida.

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publicado por picodavigia2 às 11:36





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