PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
AMARRADAS À ESTACA
As vacas, na Fajã Grande, tinham um papel primordial na economia de cada família, dado que constituíam a sua principal fonte de sobrevivência. Cada agregado familiar, no entanto, possuía apenas uma ou duas vacas. Somente os lavradores mais abastados, e que eram poucos, possuíam três e, muito raramente, quatro. Para além de um excelente e precioso meio auxiliar do trabalho agrícola, as vacas forneciam o leite, elemento fundamental na alimentação quotidiana de então e fonte exclusiva de receita, uma vez que uma boa parte do mesmo era vendida na Cooperativa ou no Martins & Rebelo. Daí que as vacas gozassem de um estatuto especial e de um tratamento cuidadoso e peculiar, não apenas quanto à alimentação, mas até na forma de se apresentarem. Vaca que se prezasse havia de percorrer as ruas da freguesia de manhã e à tarde, limpa, asseada, gorda, de pelo luzidio, de campainha presa ao pescoço com “estrape” de couro ensebado e fivela de latão e com ponteiras de metal nas pontas dos chifres. Uma beleza! Além disso, no Inverno, as vacas eram guardadas cuidadosamente nos palheiros, a fim de serem protegidas dos rigores das noites frias e tormentosas sendo, pela manhã levadas aos pastos, onde ficavam soltas a pastar a erva fresca e tenrinha, até à noite, altura em que eram novamente recolhidas aos palheiros. No Verão invertia-se o esquema: as vacas passavam as noites ao fresco, a pastar nas relvas e durante dia ficavam nos palheiros, protegidas do calor excessivo, da calmaria insuportável e das moscas incomodativas.
Os meses de Março e Abril, porém, constituíam uma alternativa radical a esta rígida transumância. Durante estes meses, as vacas eram “amarradas à estaca” no “outono”.
Nas terras onde habitualmente se verificava o ciclo agrícola do milho, havia um tempo em que os campos ficavam livres daquele cereal. Antes e por entre os milheirais de folhas amareladas e secas, a abarrotar de espigas loirinhas, semeava-se o trevo ou a erva da casta que iam crescendo, crescendo até se tornarem forragens apetitosas, que depois da apanha do milho formavam, com as folhas verdes e as flores vermelhas, azuladas, amarelas e esbranquiçadas, uma variadíssima gama de tapetes multicolores, ondulados pelo vento, ornamentando a freguesia de lés-a-lés.
Era por essa altura que as vacas eram para lá levadas, suspendendo assim o seu vaivém habitual pelas ruas da freguesia, entre palheiros e relvas e entre relvas e palheiros. Antes de lá as colocar, junto ao portal de entrada ou no sítio onde a forrageira era mais fraquita, ceifava-se uma boa parte, a fim de criar o “talho” ou seja o espaço adequado à colocação dos animais que ali ficariam alimentando-se não apenas das forragens verdejantes, mas também de erva e de incensos que para ali eram acarretados a fim de que a permanência dos animais durasse o tempo necessário e suficiente para “trilhar” bem o terreno, preparando-o assim para a próxima sementeira. Cada vaca era presa pela mão esquerda à ponta duma corrente, um pouco mais comprida do que o animal, dividida em duas partes, sendo uma, a da extremidade próxima da mão, mais delgada e curta e a outra mais grossa e presa por uma argola a uma estaca de ferro de tamanho variável, de acordo com a força do animal, para que este não a arrancasse e desse cabo do “outono”. As duas partes estavam ligadas por um “suevo” para evitar que a corrente se enrolasse devido ao esticar e encolher provocado pelo contínuo puxar do animal. Com um enorme maço de madeira as estacas eram enterradas em local que permitisse a cada vaca ter uma “cordada” ou seja, usufruir de um espaço de terreno individual que lhe proporcionasse alimento suficiente. A força da estaca por vezes tinha que ser reforçada com pedras retiradas das paredes circundantes, quer porque o animal fosse muito forte quer porque o terreno estivesse muito mole. No entanto, como o objectivo fundamental era estrumar bem o terreno, os homens passavam o dia a acartar para os campos onde tinham o gado molhos de erva e de incensos, acrescentando assim a cada “cordada” uma boa quantidade de outro alimento para que o animal estrumasse o campo da melhor forma. Junto ao portal a indispensável selha ou bidão com água, que era levada todos dias de manhã e à tarde, precisamente nas latas que depois da ordenha, haviam de vir carregadas aos ombros, suspensas em "caibos" e a transbordar de leite.
À tardinha, depois de terminar a faina agrícola nos outros campos e como as terras de “outono” eram próximas umas das outras, os homens, depois de dar a última “cordada” ao gado, enquanto esperavam a ordenha da noite, agrupavam-se em cima de paredes e maroiços circundantes. Vinham os de perto, vinham os de longe e vinham até os que nem gado tinham e ali ficavam em amena cavaqueira, discutindo sementeiras, planeando ceifas ou passando em revista os acontecimentos mais recentes do povoado, enquanto nós os fedelhos, pedindo as navalhas aos pais, íamos fazer vacas de fava, armas de sabugueiro ou músicas de canas. Quando as vacas, terminavam a “cordada” era a hora da ordenha. Abdicávamos, então, das brincadeiras e íamo-nos posicionar ao lado do ordenhador a fim de beber uma boa tapa de leite que saía morninha, com sabor a trevo e a erva da casta e que nos sabia tão bem.
E quando regressávamos a casa, já lusco-fusco, os animais ficavam no campo, “amarrados à estaca” de mão bem estendida para chegar ao melhor do “eito”, fazendo tilintar as campainhas penduradas ao pescoço, provocando uma delirante e estranha sinfonia.