PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FAJÃ GRANDE OU A EXCELÊNCIA DA RUA DIREITA
Na Idade Média, os burgos ou cidades tinham uma estrutura influenciada, por um lado, pela enorme força e poder da Igreja e, por outro, pelo feudalismo reinante, caracterizado por uma forte ligação e dependência da propriedade agrícola ou da terra, cuja posse significava não só riqueza mas também poder. Assim os tradicionais burgos medievais organizavam-se à volta da catedral, onde pontificava e governava o bispo e para ela se orientavam todas as ruas e vielas. Era também ao redor da Sé e do Paço Episcopal que se concentravam as habitações mais ricas e luxuosas, pertencentes aos senhores de “pendão e caldeira”, ou seja aos nobres ou ricos homens, donos das terras e do povo, que assim, sobretudo por interesses políticos, se agregavam e associavam ao poder episcopal. À medida que se afastavam da catedral e já na periferia da cidade ficavam os casebres dos mais pobres, pertencentes ao povo, onde se incluíam os artesãos, os almocreves, os feirantes e os prestadores de outros serviços e, já nos arrabaldes, ou até fora das portas da urbe, ficavam os paupérrimos tugúrios dos servos da gleba, ou seja dos pobres camponeses que trabalhavam os campos dos nobres como escravos e a quem as portas da cidade apenas se abriam para irem levar os géneros agrícolas aos seus senhores ou para se defenderem em tempo de guerra, dado que a isso os nobres eram obrigados.
Recordando a estrutura geográfica da Fajã Grande, nos anos 50, é fácil constatar que a disposição das habitações era, de algum modo, semelhante à dos burgos medievais, ou seja, a igreja estava situada precisamente no centro do povoado e à sua volta, formando a Rua Direita, as casas maiores e mais luxuosas, se é que se poderia falar em luxos, pertencentes às pessoas mais ricas ou com mais propriedades. É curioso verificar que, embora muitos dos seus moradores possuíssem gado e tendo as casas primeiro andar e rés do chão, ou até lojas anexas, nenhum habitante da referida rua, contrariamente à maioria dos das outras, tinha integrado na habitação, nem sequer ao lado, o palheiro onde guardava o seu gado. O André, o Mancebo e Trancão tinham os seus palheiros na Assomada. O José Tomé e o David na Fontinha. O Mateus Felizardo lá para trás de casa, quase na Tronqueira. Apenas o Josezinho Fragueiro tinha o palheiro das vacas na rua Direita, mas separado da casa onde vivia e também já quase no início da Tronqueira. Notava-se também que a “grandiosidade” dos edifícios ia decrescendo à medida que se afastavam da igreja. A existência de palheiros de gado quer isolados quer no rés-do-chão da própria habitação, só se verificava logo no início de cada uma das restantes ruas: na Assomada, o Antonino Cardoso, na Fontinha o Augusto, na Courelas o António Fagundes, na Tronqueira José Cardoso e na Via dÁgua o José Mariano. A partir daqui, os palheiros de gado seguiam-se em catadupa, por todas as ruas.
Outro facto sintomático e dissimétrico era o de na rua Direita, morarem em geral as pessoas consideradas mais importantes, “os senhores Fulano e Sicrano”, cuja prole era designada por “filhos ou filhas do senhor ou da senhora…” enquanto nos arrabaldes da freguesia, ou seja, na Assomada, Fontinha, Alagoeiro e noutras ruas e lugares, moravam, salvo raras excepções, os “Ti’Antonhos”, os “Ti’Aninas”, os “Sapateiros”, os “Manéis Brancos”, os “Grotas”, os “Chingados” e os “Josés das Mariquinhas”, etc, etc, sendo os seus descendentes tratados por “monços do…”. Eram ainda os moradores daquela artéria que regra geral e em primeiro lugar eram escolhidos ou se impunham por eles próprios, para cargos de responsabilidade na freguesia, como presidente de Junta, cabeças das festas de Espírito Santo e do Fio, ou eram designados para as comissões das festas, para dirigir a Corporativa, ou os que vestiam opas vermelhas para levar o pálio nas procissões do Santíssimo ou o andor nas da Senhora da Saúde.
Era também na rua Direita que se situavam todos os estabelecimentos comerciais da freguesia, num total de seis: quatro mercearias e dois botequins. Era ainda na rua Direita que morava o pároco, que se situavam as duas casas de Espírito Santo e os Correios, sendo, curiosamente, a única rua da freguesia onde havia um chafariz com duas bicas, embora os seus moradores não suplantassem em número os da Fontinha, Assomada, Tronqueira ou Via d’Água.
Era ainda e apenas na rua Direita que passavam as procissões, para baixo e para cima, desde o cimo da Via d’Água até à Praça. A única excepção era a das “Rogações”, nas têmporas de Setembro.
Tudo isto lhe concedia uma excessiva excelência ao ponto de até aparecer como protagonista em representações teatrais e ser cantada por poetas populares, que lhe faziam versos, como os que a seguir se transcrevem:
Rua Direita em que eu hoje moro,
É ela que enfeita a Fajã que adoro.
Novos e velhinhos tem que a passar
E até os parezinhos que vão a casar.
Passam nela namorados,
Sempre contentes, sorrindo.
Passam os sonhos dourados
Das almas que vão sorrindo.