PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A MINHA CASA
A minha casa, ou melhor a casa onde eu nasci, era ali na Assomada, (na Fajã Grande) à beirinha do caminho, muito pobre e pequenina, mas desvanecedora e alegre, rodeada de minúsculos campos onde floresciam girassóis misturados com milheirais e de courelas onde cresciam batatais intercalados com couves e abóboras, circundada por muitas outras casas também pobres e pequeninas, semelhantes à minha e onde moravam as minhas vizinhas, agastadas por trabalhos e canseiras, com o xaile a cobrir-lhes o cocuruto, mas sempre prontas a ajudar, a aconselhar, a disponibilizar préstimos, a conceder favores e muito amigas da minha mãe. A casa onde eu nasci tinha as paredes carcomidas pelo tempo, soalho esburacado e telhas levantadas pelo vento, mas tinha as janelas voltadas para o mar e as portas abertas para a madrugada. A minha casa tinha um quarto onde, junto à cama de meus pais, balouçava um berço, atávico valhacouto da nossa meninice, que nos ia embalando para a vida, uns após os outros. E também tinha uma sala muito ampla, mas com cadeiras a desfazerem e caixas onde se guardavam as roupas que vinham da América e as colchas tecidas no tear, mas que era muito clara e arejada. A minha casa tinha uma cozinha, esconsa e de paredes tisnadas, a abarrotar de fumo e cheiro a leite e pão de milho. A minha casa tinha uma loja onde dormia a Benfeita, a Trigueira e os seus filhotes. A minha casa tinha um pátio onde eu brincava, onde minha mãe punha a roupa a “coarar” e onde ela assomava, vezes sem conta, para dar dois dedos de conversa às vizinha ou para lhes pedir umas folhinhas de salsa. A minha casa era a minha casa, mas muito minha, toda minha, pois foi nela que nasci, brinquei, cresci e entendi que mesmo sendo pobre e pequenina era a minha casa.
E quatro décadas de tempo desfizeram a minha casa toda, de uma ponta à outra e do alto a baixo! Lançaram sobre ela um temível vendaval que a transformou, que a desfez por completo, ocultando-a de meus olhos, destruindo sonhos, emoções e desejos. Mas, mesmo desfeita, transformada, a minha casa ainda lá está, no mesmo sítio, à beirinha do caminho. Mas na minha casa já não há berço, nem cadeiras velhas, nem claridade, nem portas abertas para as madrugadas, nem janelas a abrirem-se para receber refolgos de maresia. Na minha casa já não há paredes carcomidas, nem chão esburacado, nem cheiro a bolo quente e a queijo fresco. A minha casa já não tem pátio, nem loja, nem Benfeita, nem bafo dos animais ou o tilintar das suas campainhas. Ao redor da minha casa já não existem campos repletos de milheirais a sorrirem como os girassóis floridos, nem bardos de faias do norte a separar os campos e protegê-los do vento norte. Ao redor da minha casa já não há vizinhas, nem velhinhas a visitar a minha mãe e disponibilizar-lhe préstimos e ajuda. Pior do que isso: a minha casa tornou-se uma espécie de chão deserto, um catafalco vácuo, um mistério petrificado, um enigma indecifrável e, como se isso ainda não bastasse, a minha casa até deixou de ser a minha casa.