Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]



HOJE

Segunda-feira, 25.11.13

Passaram-se anos, muitos e muitos anos. Mas enfim! Hoje foi possível regressar à Fajã e voltar a ver, lá bem no alto, o “Pico da Vigia”, dos meus tempos idos, mas ainda hoje a manter-se como que coroado com a pequenina vigia da baleia e observar o seu companheiro de sempre, paralelo na direcção do mar, o “Outeiro”, encimado com uma enorme e altiva cruz, cuja origem se desconhece porque perdida no tempo. Por entre um e outro continuam a desfilar, destemida e ousadamente, as pequenas mas sorridentes, casas da Assomada, umas brancas de neve outras velhas, escuras e abandonadas e até a esmoronarem-se de tão antigas e desertificadas. Mas muitas, mesmo muitas das que por ali proliferam são novas, estranhas, desconhecidas, a substituir os antigos milheiras das pequenas mas férteis terras circundantes. Outras, mas mesmo muitas outras, lá para baixo, a transformarem em bairros os amplos e produtivos cerrados do Porto, do Estaleiro, do Calhau Miúdo, das Furnas e até do Areal, ou simplesmente a entrelaçarem-se por entre as velhinhas moradias da Tronqueira e da Via de Água, muito bem demarcadas e delineadas mas a confundirem sentimentos e a desfazerem memórias. A Fajã das sete ruas com duas casas no Porto e uma no Alagoeiro, esfumou-se no tempo, desapareceu. E hoje, ao lado das vivendas de ontem, dos obsoletos e decrépitos palheiros, agora recuperados e transformados em cafés e restaurantes e das casas velhas ou de arrumos recicladas e a abarrotar de uma graciosidade estranha e de um tradicionalismo inexaurível, surge uma gama de novas e estranhas moradias. E lá ao fundo, o mar permanece azulado e roufenho e o baixio, outrora negro e empedernido a abarrotar de lapas e sargaços, agora surge mais calmo e tranquilo, com os seus caneiros, baías e portos transformados em piscinas naturais, quais redutos de água salgada, rodeada de muralhas de cimento que foram aniquilando a sua pertinente e intrínseca negrura e desfazendo o seu brilho lávico e bassáltico. Campos de milho a abarrotar de cizânias e junquilho, courelas de batata-doce atulhadas de feitos e heras, pastagens transformadas em campos de cana roca e incensos esguios. Canadas obstruídas por ervas e silvados, veredas desfeitas e a abarrotar de pedregulhos soltos, caminhos tapados com calhaus e penhascos e descansadouros perdidos na memória dos mortais. Até as altas, rústicas e estranhamente arquitectadas paredes da ladeira do Batel, a própria laje da Silveirinha e o Calhau das Feiticeiras se transformaram em mitos, desfeitos pelo tempo e calcificados pela memória de muitos mas que, apesar de tudo, ainda espreitam teimosamente um ténue regresso à memória dos vindouros. Já não se ouve o tilintar das campainhas das vacas, o chiar dos carros de bois ou o arrastar das alabaças dos corsões sobre as lajes calejadas dos caminhos, apesar de ainda haver cangas e tamoeiros a ornamentar as paredes dos snak-bares. Já não há vergas na rocha, nem moinhos impulsionados pela força jactante das águas, já não se pescam vejas, nem enchovas ou bicudas na ponta do Cais, mas no Porto Velho e na Coalheira ainda há respingos de salmouro e vagas revoltas com os ventos do oeste. Até na igreja paroquial, Santa Teresinha foi colocada no fundo do transepto, o Coração de Jesus mudou de altar e a Senhora do Carmo foi engavetada na sacristia. Nas ruas apenas um ou outro rosto de outrora. É uma Fajã, ora desfeita, ora alterada, ora teimando em manter-se nas roupagens e costumes de antanho mas a querer banhar-se nas exigências duma modernidade cerceada pelos imperativos do isolamento, da desertificação e do abandono.

Talvez por isso mesmo e juntamente com o Pico da Vigia e o com Outeiro, ainda lá, mais no alto, esteja a rocha, altiva e imponente, a ufanar-se com a Fonte Vermelha e a pavonear-se da Furna do Peito, com inúmeras quedas de água a banharem-lhe penhascos e ravinas e a irradiar uma beleza, uma imponência e uma sublimidade contagiantes. Também ainda lá está o mar com o Monchique bem escarrapachado no meio, com a Baixa-Rasa ao lado, a Poça das Salemas a abarrotar de lapas e caranguejos e o Rolo à espera da chegada do sargaço. Também ainda há torresmos, morcela, linguiça e inhames, mas confesso a minha tamanha estupefacção por estranhamente me ter banqueteado com eles, ali, no abandonado palheiro do João Fragueiro, em frente à Casa do Espírito Santo de Baixo, onde funcionava a escola primária e que servia de latrina a quantos a frequentaram na década de cinquenta.

 

Texto publicado no Pico da Vigia em 4/9/11

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 15:00





mais sobre mim

foto do autor


pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Novembro 2013

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930