PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
AÇORES DE BRUMA
Vistas lá bem do alto, as ilhas açorianas parecem pedaços de um continente desfeito, mas a abarrotar de cheiro a basalto negro e perfume a madressilva, migalhas sobrantes de um ciclone aniquilado pelo silêncio desesperante das madrugadas cinzentas, pegadas verdes de um gigante lávico a chafurdar num oceano atulhado de brumas e gaivotas, cacos perdidos, aqui e acolá, de um enorme jarrão quebrado, mas colorido e a transbordar de sonhos, de saudade e de um medonho sentimento de cumplicidade recíproca.
Mas as ilhas, apesar de possuírem uma diversidade inexaurível e uma beleza ímpar, excedem-se numa singularidade específica e numa especificidade singular. É que todas são feitas de lava adormecida, todas permanecem embrulhadas numa adocicada e atraente maresia, todas escolheram o verde como estandarte da sua pureza original e todas decidiram, desde os tempos primitivos, ornar-se de brumas e caligens e assim permanecerem até hoje. Todas teimaram em dançar a Chamarrita e cantar o Samacaio e todas, mas mesmo todas, inventaram a sublimidade inequívoca da saudade e o desejo destemido da aventura. Todas construíram casas de basalto negro e todas edificaram moinhos nas suas ribeiras ou no cimo dos seus montes, todas malharam o trigo em eiras e mediram o milho com rasoiras. Todas edificaram maroiços, construíram portos e varadouros, encheram os seus matos de hortênsias floridas, plantaram maravilhosas lagoas no seu interior e transformaram as madeiras das suas florestas nos mais belos botes de baleia. Todas acreditaram, tanto ontem como hoje na grandeza profunda do oceano imenso que as rodeia, todas se atiraram e agarraram ao mar como se ele fosse só seu e todas entenderam e sempre souberam que foi do seio da terra que nasceram e todas se cobriram de espuma e de respingos de maresia e nenhuma se esqueceu nunca que foi o mar que as embalou e que é dele que se recolhem as esperanças e se desbrava a aventura e que é na terra que se plantam os destinos, da terra que se recolhem as flores e os cardos.
Mas se iguais, também todas são diferentes. Umas açambarcaram e escolheram para si as maiores e mais belas cidades, enquanto outras se satisfizeram com a pequenez e simplicidade de uma vila ou meia dúzia de povoadas. Umas construíram estradas de sonho, ornadas de jasmins e safiras, outras rasgaram campos construindo canadas de abrunhos e silvados, atrofiadas e desfeitas pelo tempo. Umas pavonearam-se altivas e sonhadoras, outras reduziram-se ao perene silêncio das manhãs enevoadas. Umas povoaram-se de projectos imponentes e megalómanos, outras reduziram-se à simplicidade da sua pureza original. Umas adocicaram o sabor transcendente dos seus frutos, enquanto outras azedaram com o salpico do mar e transformaram em mosto o perfume adocicado das suas flores. Umas afinaram as suas violas e guitarras pelo canto madrugador dos pássaros, outras apenas e somente enriqueceram o seu simples cantar com o silêncio estupefaciente dos seus morros e penhascos, mas todas são e continuarão a ser sempre “as ilhas de bruma onde até as gaivotas vem beijar o chão”.