PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O JOÃO DE FREITAS
Por toda a vizinhança e, sobretudo, na minha própria casa correu célere a notícia de que a “Velha do Corvo” tinha vindo visitar a senhora Marquinhas do Rosário, trazendo-lhe outro um menino. Entrei em êxtase. Mais um menino ali, nos arredores, a juntar-se a um já por demais reduzido grupo de ganapada, onde pontificavam eu e o Jaime e, por isso mesmo, cismei de que havia de ir ver o “menino”. A minha mãe já tinha falecido e foi minha irmã que, consciente de que os vizinhos deviam disponibilizar-se e oferecer préstimos uns aos outros nestas alturas, decidiu por fazer-me a vontade. Além disso ela lembrava-se e sabia muito bem que a vizinha do Rosário era uma boa vizinha, muito prestável e amiga e que viera sempre a nossa casa dar uma demão à minha mãe, em situações semelhantes. E lá fomos os dois visitar a nossa vizinha: minha irmã com ar de quem queria disponibilizar ajuda e manifestar reconhecimento, eu com a curiosidade de ver, pela primeira vez, uma criancinha acabada de nascer e com a inequívoca dúvida se havia ou não de “enterrar” definitivamente a mítica “Velha do Corvo”.
Mas pouco vi e muito menos descobri ou concluí. O menino dormia e quando acordava era apenas para chorar e para comer e, além do mais, na altura em que ele mamava eu não podia estar presente. Soube apenas que havia de chamar-se João.
O João cresceu e veio fortalecer o precário pecúlio infantil da Assomada, cada vez mais cerceado pelos que, Carvalho após Carvalho, se iam evadindo para a América ou para o Canadá. As vizinhas diziam que era lindo e que à beleza física se aliava uma extraordinária bondade, uma grandiosa ternura e uma profunda meiguice. Enquanto crianças, pouco brincámos, no maroiço que separava a terra de meu pai da canada do Pico e que já fora o local institucionalizado para folguedos e brincadeiras com o José Gabriel, devido à diferença de idades e porque cedo abandonei a ilha, a Fajã e a Assomada. No entanto, mais tarde, ele havia de seguir-me as pegadas, sendo então e somente nas férias que nos encontrávamos, já não tanto para brincar mas para conversar, reflectir e passear. Desses encontros de verão ficou-me a imagem de um jovem extremamente generoso, muito comedido nas suas ideias, excessivamente responsável pelas suas acções e com uma enorme cultura e defesa de valores morais. Além disso era um excelente aluno, um bom conversador e um óptimo colega.
Quis o destino que, anos mais tarde, seguíssemos caminhos diferentes e não mais nos encontrássemos, Soube, apenas, que casara com a Conceição, que fixara residência em Santa Cruz e que trabalhava no aeroporto das Flores. Soube também que era um pai extremoso e um excelente marido, construindo por si próprio com os seus hábitos, costumes e atitudes, todas as condições necessárias e suficientes para ser feliz, como o era de verdade.
Um dia chegou-me a triste notícia de que o João partira. Partira muito novo, partira repentinamente e partira para sempre, deixando atrás de si, sobretudo para os que conviveram de perto com ele, misturado com uma dor inexaurível, um perene e inextinguível rastro de saudade.