PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CULTIVO DO TRIGO NA FAJÃ GRANDE
Nos anos cinquenta já eram poucos os agricultores que cultivavam trigo na Fajã Grande, fazendo-o apenas numa ou outra terra, lá para as bandas do Areal, onde os terrenos eram mais arenosos, mais pobres, mais vulneráveis à salmoura e, consequentemente, menos rentáveis para as outras culturas. Em tempos idos, no entanto, não teria sido assim. Na, realidade, no séc XIX e no primeiro quartel do séc XX, o trigo era rei e senhor na Fajã Grande. Diziam os antigos que no Verão, era bonito de se ver a maioria dos campos da beira-mar vestidos de um amarelo doirado, com caules de trigo a abarrotar de espigas louras, entrecortados, apenas, por um ou outro serrado de milho, ornado, paradoxalmente, com o verde fresco e esperançoso dos folhedos e o branco adocicado das espigas e com algumas courelas atulhados de couves ou de batata-doce, também muito verdes e espevitadas.
A existência, nos anos cinquenta, na freguesia, de um bom número de eiras era a prova provada do domínio adquirido por aquele cereal durante as décadas anteriores. Acredita-se que o trigo tenha sido o principal cereal que os primeiros povoadores trouxeram para a ilha das Flores e mais concretamente para a Fajã Grande, embora cultivado apenas nos terrenos mais próximos do mar, mais concretamente, nas Furnas, no Areal, no Porto, no Estaleiro e até na Cambada.
O cultivo do trigo era bastante diferente do cultivo do milho e até mais fácil e menos trabalhoso. Depois de preparado o terreno e semeado, o trigo não necessitava de tantos cuidados e trabalhos como o milho e a única razão que terá originado a que, mais tarde, a cultura do milho se sobrepusesse e acabasse por reduzir quase a zero a do trigo foi, muito provavelmente, a de uma melhor adaptação daquele cereal aos terrenos da Fajã, o que acarretava obviamente uma maior e mais rentável produtividade. Além disso, os trabalhos posteriores ao cultivo, no caso do trigo eram bem mais trabalhosos e difíceis do que os do milho. O trigo, uma vez amadurecido, era ceifado e emolhado em grandes “pavias”, amarradas com fios de espadana e colocadas durante alguns dias, junto às paredes dos serrados, a fim de enxugarem e secarem melhor. Depois, as “pavias” eram transportadas para as eiras em carros de bois, se fosse muito, ou às costas dos homens e à cabeça das mulheres, se a produção fosse menor. Nas eiras procedia-se à debulha. O trigo era espalhado no chão da eira, ao redor do malhão, â volta do qual rodava a grade de madeira, puxada geralmente por uma junta de vacas, com os olhos tapados, a fim de que de tanto andar à roda não caíssem de tontas. Antes de iniciar a debulha, as mulheres escolhiam as melhores palhinhas para delas fazerem chapéus e cestinhas. Para que a grade ficasse mais pesada e debulhasse melhor e mais rapidamente o trigo, colocava-se-lhe em cima calhaus, crianças, o condutor do gado e um auxiliar, que devia estar sempre muito atento e que transportava uma vasilha adequada, com o qual tentava “apanhar” os excrementos e a urina do gado. Se o não conseguisse fazer, havia que parar de imediato a debulha, a fim de se retirar o trigo sobre o qual, inadvertidamente, caíra a bosta ou a urina. Terminada a debulha e retirados os animais e a grade, era junta a palha, guardando-se a mais desfeita para encher colchões e travesseiras. Depois, o trigo era “avantajado”, isto é, colocado na joeira ou crivo e joeirado, ou seja sacudido contra o vento, de forma a que os grãos se separassem da moinha, operação que se repetia tantas vezes quantas fossem necessárias para que o trigo ficasse totalmente limpo. O trigo, finalmente, era guardado em sacos até ser moído e a moinha era recolhida e guardada para alimento das galinhas. Apesar de ser um dia de muito trabalho, o dia da debulha era um dia de festa, de alegria, de cantorias, de refeições melhoradas e de ajuda recíproca, como geralmente eram os dias de mais intensa e prolongada actividade agrícola.
Nos anos cinquenta, porque rara, a farinha de trigo era utilizada para cozer o pão de trigo apenas nas vésperas das festas, nomeadamente na do Espírito Santo e da Senhora da Saúdes e nos dias de matança do porco. Era também com a farinha deste trigo caseiro que, obrigatoriamente, se faziam as hóstias para a celebração das missas nas igrejas da Fajã e da Ponta.