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O INCÊNDIO DA CUADA

Sexta-feira, 29.11.13

Glória era uma das filhas de José Maria de Sousa e Maria José Teodósio, naturais e residentes na Cuada e que casaram na igreja paroquial da Fajã Grande, no dia 8 de Julho de 1877. Quis o destino que Maria José falecesse muito nova e José Maria, passados alguns anos, voltasse a casar, doando os filhos que tivera do primeiro casamento a famílias da Fajã que os criaram e educaram, com excepção de Glória que continuou a viver na casa de seus pais, no pequenino e isolado lugar da Cuada, freguesia da Fajã Grande.

Com muito trabalho e não menos sacrifício, lutando contra a fome e contra a pobreza, vencendo obstáculos e suplantando limitações, conquistando a sua vida por si própria, Glória cresceu, tornou.se moçoila saudável e robusta. Mulher feita ainda jovem, casou com Francisco, recentemente regressado das Américas. Mas, assim como a de Glória, a vida de Francisco não tinha sido fácil. Tal como muitos outros rapazes da Fajã, encafuados entre trabalhos e misérias, debaixo daquelas rochas e penhascos, Francisco também sonhou com a América e, um dia, para lá decidiu partir. Escondeu-se, à noitinha, nas margens da Ribeira das Casas e de madrugada atirou-se à aventura, navegando num pequeno batel que o conduziria a bordo de uma Escuma americana, ancorada nas redondezas do Monchique, carregada de água, verduras, carne, marinheiros e mais dois clandestinos. A guarda do forte da Castelhana, apercebendo-se da fuga e do embuste, atirou a matar sobre o batel. Francisco, temendo ser alvejado ou preso e impedido de fugir, atirou-se ao mar, nadando na direcção da Escuma, por entre os tiros da guarda cada vez mais intensos e certeiros. Francisco escapou e, passados alguns meses, chegou à Califórnia, prometendo, no meio da sua aflição, um jantar em honra do Senhor Espírito Santo, do “Portal ao Risco”.

Mas a vida de Francisco na América não foi fácil, nem a sorte o bafejou, regressando, algum tempo depois à Fajã, pobre, triste e acabrunhado. Foi então que casou com Glória, fixando residência na Cuada e com ela trabalhou, cavou, lavrou, ceifou, adquiriu uma ou outra terra e morreu, ainda novo, deixando onze filhos órfãos, a promessa por pagar  e Glória viúva. Glória chorou-o com dor, lembrou-o com saudade mas decidiu que tinha que ser forte e que havia de ser ela sozinha a criar e educar os seus filhos.

Ainda mal o luto se havia levantado, o dos filhos, porque o seu, Glória havia de guardá-lo para sempre, e nova tragédia havia de acontecer. A casa onde moravam, situada no único largo existente na Cuada e onde o caminho que seguia da Fajã se bifurcava para a Eira da Cuada e para o Vale Fundo, possuía, na parte inferior, duas lojas. Uma delas estava destinada ao gado enquanto a outra servia para guardar, juntamente com as rudimentares alfaias agrícolas, a rama seca, destinada ao alimento dos bovinos no inverno. Uma das filhas, inadvertidamente, numa noite escura, deslocou-se à loja e acendeu um fósforo num sítio onde havia a rama seca e, de um momento para o outro, sem que ninguém se apercebesse ou pudesse fazer o que quer que fosse, o fogo propagou-se pela rama, pelas madeiras e pelos pobres recheios da casa, incendiando e queimando, em instantes, tudo o que ali existia, provocando um enorme alarido em toda a Cuada. Os vizinhos acorreram com baldes e latas de água, chegaram pessoas da Fajã para ajudar, mas já era tarde. A casa ficou totalmente destruída, assim como todo o seu recheio. Glória e os filhos ficaram apenas com a roupa que vestiam no momento.

Mas Glória não desistiu e voltou a arregaçar as mangas. De toda a ilha e da América chegaram roupas e ajuda. Reconstruíram a casa e reorganizaram a vida, embora aquele terrível incêndio deixasse, para sempre, marcas horrorosas e indeléveis na memória e na mente daquelas crianças, algumas das quais, mais tarde e já adultas, acabaram por ser vítimas de doenças mentais com agravados desgastes emocionais e com acentuados desequilíbrios da sua personalidade. Glória, porém, manteve-se sempre firme vigorosa, acompanhando-os, amparando-os e confortando-os nas doenças e tendo ainda que superar os vitupérios e as injúrias de algumas mentes maliciosas e ingénuas que insinuavam que o incêndio teria sido “castigo” do Senhor Espírito Santo porque a promessa do jantar não fora paga.

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publicado por picodavigia2 às 09:22





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