PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TRÊS OVINHOS
Ele era o benjamim da família e o “Ai Jesus” da mãe. Quando nasceu já os irmãos mais velhos acarretavam molhos de incensos e de lenha da Cabaceira e as irmãs iam lavar roupa à Ribeiradas das Casas, sozinhas. Por isso mesmo, açambarcava, em regime de exclusividade, todos os desvelos e carinhos maternais e conjugava com a benevolência excessiva do pai uma fuga contínua e pertinaz a trabalhos, sacrifícios e canseiras. Como consequência, à robustez e corpulência físicas, o petiz aliava uma personalidade maleável, um temperamento acarinhado e uma desenvoltura fragilizada. Amigos e colegas de escola, apercebendo-se da débil e instável personalidade do garoto, cedo se apressaram a ripostar com gracejos às suas atitudes, a macerar com vitupérios as suas intervenções e a desfazer-lhe sonhos e desejos com graçolas e gozo.
Sufocado pelo excessivo proteccionismo maternal e atordoado pelas exprobrações e pelo burlesco a que os amigos o expunham, lá foi sonhando que um dia havia de mostrar e provar a todo o mundo de que também era de fibra rija como eles, tão capaz como os outros de subir a Rocha, de mergulhar da ponta do Cais, ou de trepar à mais alta árvore da Fajã para ir tirar os ovos dum ninho.
Mas pensou melhor. Subir a Rocha era perigoso e afinal nenhum da sua idade o fazia sozinho. Mergulhos na ponta do Cais, que tirassem o cavalinho da chuva que só os rapazes pouco antes de irem às sortes o faziam. Agora subir uma árvore para tirar os ovos de um ninho era tarefa comum e generalizada entre os da sua idade e por isso mesmo havia de conseguir. A mãe empalideceu quando lhe adivinhou o desejo primordial: “Que não senhor! Que nem pensasse tal coisa! Ovos, tinha ela muitos em casa, e grandes.” Mas o projecto já estava delineado e em curso na sua mente. Ele até já sabia que o ninho estava na terra do Espigão, no cimo de um pau-branco muito alto e esguio. Havia de subi-lo, havia de retirar de lá o ninho e até os da quarta classe iriam ficar com a boca aberta, ao ver os ovos. Ai se iam!
Um dia a mãe teve que ir à Ponta. O pai ceifava “feitos” no Pocestinho. O fedelho, vendo-se só, aproveitou e zarpou a caminho do Espigão. As pernas tremiam-lhe como varas verdes e vezes sem conta sentiu uma enorme vontade de voltar para casa. Mas uma voz interior mandava-o seguir em frente. Depressa chegou ao Espigão, saltou o portal e entrou na terra. Deu mais uns passos e aproximou-se da árvore. Um susto enorme dominou-o, desfazendo-lhe sonhos e bloqueando desejos. Afinal nada de grave! Era o pássaro que, ouvindo ruído ali próximo, escapulira do ninho. Se disparassem um tiro de espingarda não fugiria mais rápido. Mas pode ver, para espanto e gáudio seu, que era uma galinhola. A coragem redobrou, a força renasceu e restaurou-se-lhe uma enorme capacidade de subir a árvore e retirar os ovos, até porque ovos de galinhola não era qualquer um que os conseguia.
Abraçou-se à árvore, olhou para o alto e, confiante, iniciou a subida. Era longe, muito longe, lá bem no alto, nos últimos galhos já muito frágeis e maleáveis. As mãos ardiam-lhe e os pés pareciam-lhe fugir. Mas, de nó em nó, já ia a meio e agora era impossível regressar ao chão. Dentro em pouco, teria os ovos na mão. De repente estremeceu e quase se desprendeu das frágeis vergônteas: “E se o ninho não tivesse ovos? E se a galinhola ainda lá não os tivesse posto? Todo aquele esforço seria em vão.” Esqueceu a dúvida, desfez o susto e continuou a subir. E tanto se agarrou, tanto se prendeu, tanto se segurou e tanto subiu que lá chegou. Estava junto do ninho. E o ninho, para gáudio seu, tinha ovos, três ovinhos de galinhola.
A alegria da conquista, a satisfação do sucesso e o contentamento da vitória fizeram-lhe esquecer o perigo da descida. Agora sim! Sonhava que havia de mostrar a toda a gente aquele troféu conquistado com a sua força, com a sua coragem e com ele havia de provar aos da quarta, à Senhora Professora, à própria mãe e a todos que era tão corajoso, tão destemido, tão capaz de conseguir o que queria e de atingir o que desejava, como todos os da sua idade e até como muitos mais velhos do que ele.
Cheio de alegria, exasperando felicidade, regressou a casa, colocando os ovos nas palmas das mãos, gritando em alto e bom para que todos vissem e ouvissem:
- “Olhem! Olhem! Três ovinhos! Três ovinhos de galinhola!
E é verdade que perante toda a garotada da freguesia ganhou fama de forte, robusto e corajoso, recuperou o estatuto de valente, desenrascado e destemido mas não se livrou de conquistar e ficar para sempre com o indelével e estranho apelido de o “Três Ovinhos”