PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
À PROCURA DE UM GUEIXO PERDIDO NO MATO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Domingo, 30 de Junho de 1946
“Estou cansadíssimo. Ainda bem que hoje é domingo para eu descansar um bocado. Ontem, passei o dia inteiro a calcorrear os matos da Fajã, à procura do gueixo do meu compadre Joaquim. O meu compadre Joaquim tem uma relva no Queiroal, que fica muito longe do Cimo da Rocha, lá quase para o meio da ilha, já pertence ao concelho de Santa Cruz. Só para lá chegar foi o cabo dos trabalhos. Mas pior do que isso, foi a caminhada que tivemos que fazer, durante todo o dia, por outras relvas e pelo concelho até encontrar o maldito do gueixo. O meu compadre, naquela relva, apenas cria gado alfeiro, uma vez que, ficando tão distante e com caminhos tão maus para lá chegar, é impossível colocar e manter lá vacas leiteiras, obrigando-o a ir à ordenha todos os dias. Como só vai lá de vez em quando, a última vez que lá foi é que deu pela falta do gueixo. Não o encontrou na relva, procurou ali à volta, mas nada. Muito aflito, no dia seguinte, voltou à relva sozinho, vasculhou tudo à volta… mas nada. Ficou tristíssimo o meu compadre. Era um prejuízo muito grande, pois é um touro que já vale um bom dinheiro. Eu mais um grupo de homens aqui da Fajã oferecemo-nos, de imediato, para o ir ajudar a procurar o animal. Morto ou vivo, havíamos de encontrá-lo. Nós aqui, na Fajã Grande, somos assim. Sempre que alguém tem um problema grave, todos se oferecem para ajudar. Os nossos antepassados ensinaram-nos a ajudarmo-nos uns aos outros, sobretudo nos momentos de grande dificuldade.
E lá partimos. Éramos prá i uma dúzia de homens. Saímos de casa muito cedo, a noite estava escura como breu e os galos ainda não cantavam, por isso, quando amanheceu já estávamos para lá do Caldeirão da Ribeira das Casas. Daí a pouco estávamos a vasculhar o mato todo. Uns foram pelo Curral das Ovelhas até à Burrinha, Eu e os restantes fomos precisamente pelo Queiroal. Mas dispersámo-nos depressa, primeiro porque alguns eram monços novos e muito valentes e outros velhos e trôpegos como eu e, em segundo lugar, porque se fôssemos todos juntos procurávamos todos no mesmo sítio e isso pouco adiantava. Andámos toda a manhã a procurar por tudo o que era sítio, desde da Caldeirinha até à Água Branca, mas nada de encontrar o maldito. A nossa sorte foi que alguns, adivinhando o pior, levaram bolo, queijo e fruta que fomos repartindo uns com os outros e bebendo água fresquinha das nascentes. Voltamos a procurar por toda a santa tarde. Corremos o concelho inteiro como se fosse dia de fio, pois sabíamos que nas relvas que tem dono ele não estava. Só à noitinha, quando já tínhamos perdido as esperanças, o maldito apareceu, lá para os lados das Pontas Brancas, escondido nuns montes, por trás de uns cedros e de umas moitas de junça brava. Os que o encontraram começaram a gritar pelos outros e, com a ajuda dos cães, lá nos juntámos todos. Mas para o amarrar foi muito difícil. Criado no mato, o bezerro estava levado dos diabos, muito bravo e a arremeter contra todos. Foram uns monços mais triqueiros que lhe lançaram uma corda enlaçada pela cabeça e prenderam-no pelo pescoço. Mas foi difícil amarrá-lo e segurá-lo, por que ele é muito forte. Mas por fim, todos juntos lá o conseguimos parar e amansar. Depois meteram-lhe uma argola com uma corda no nariz, passaram-lhe a corda à cabeça e lá o trouxemos até ao Cimo da Rocha. Meu compadre achou que era melhor ele ficar ali amarrado durante a noite. Era muito perigoso o animal descer a Rocha de noite, ainda por cima, estava muito escuro. Hoje de manhã lá o foram buscar e meu compadre já o tem amarrado à manjedoura, no palheiro.
É um bonito gueixo! Meu compadre está muito contente, pois o animal anafado e gordo como está, com mais dois ou três meses a dar-lhe erva e maçarocas, há-de dar perto de um conto de reis.
Esqueci-me de dizer que a minha comadre Inácia prometeu um gueixo de massa sovada de cinco quilos, ao Senhor Santo Amaro e como o gueixo apareceu são e salvo vai cumprir a sua promessa, no dia da festa, em Janeiro, por isso, já hoje andava preocupada com a maneira como havia de guardar tantos ovos para a massa, sem eles se estragarem de tanto tempo guardados.”