PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O ABALO
Em toda a escola não se falava noutra coisa. Um sismo de grau seis na escala de Richter, embora com epicentro no alto mar, a uma razoável distância da costa portuguesa, varrera todo o Norte do país, com maior incidência nas regiões do Minho e Douro Litoral.
Na sala de professores, onde se comentava o catastrófico acontecimento com maior proficiência e sabedoria, não havia um único professor que o não tivesse sentido. Uns tinham apanhado um grande susto, outros não tinham sequer pregado olho toda a noite e alguns afirmavam a pé juntos que tinham saído para a rua e só ao romper do dia haviam regressado a casa. Nos pátios e corredores funcionárias e contínuas, por entre laivos de embaraço e de pânico, afiançavam com acentuados exageros que tinha parecido o fim do mundo e que só por milagre divino ou por graça de algum santo da sua predilecção é que prédios, casas, muros e paredes não haviam desabado sobre nós.
De facto, na escola, todos eram unânimes em considerar que fora uma noite de medo, de angústia e de sofrimento a que ninguém ficara alheio. Enfim uma catástrofe que, embora não tivesse provocado, ao que se soubesse, prejuízos materiais ou humanos, deixaria marcas indeléveis, por muito tempo, na memória de todos.
A verdade é que eu também sentira um medo enorme. Mas, aproveitando o meu estatuto de único açoriano existente na escola, cuidei que esta seria uma rica oportunidade de ocultar o meu temor, revelando assim uma força superior que afinal não possuía. Por isso, com um misto de desusada bazófia, comecei a armar-me em perito fictício em sismologia, garantindo com algum exagero que aquilo não tinha sido nada comparado com as crises sísmicas tão frequentes e tão dramáticas nas ilhas açorianas e que eu, noutros tempos, vivera tão de perto. É verdade que, durante a minha infância, a ilha das Flores me poupara a tais catástrofes. Não havia registo escrito ou memória de um abalo sísmico na ilha, o que na realidade era confirmado pelo postulado científico de que as estruturas arquitectónicas das Flores e do Corvo estão situadas na placa do continente americano, devido a uma fenda que as separou das outras sete, há milhões de anos, provavelmente, no decurso de uma crise sísmica submarina muito violenta. No entanto, mais tarde, e já em plena juventude, a eles bem me habituara, quer durante a minha permanência em Angra quer mais tarde na ilha do Pico. Mas no fundo bem compreendia a agitação geral provocada pelo sismo da noite anterior a que ninguém escapara e o medo que todos, mas mesmo todos, tinham sentido e a que eu próprio não fora alheio, pese embora o tentasse disfarçar.
Após o toque para a aula das dez, ao atravessar os recreios, verifiquei que a agitação que tal calamidade provocara nos adultos também se estendera às crianças, pese embora a sua média de idades rondasse os dez ou onze anos. Percebia-se perfeitamente nas suas palavras, nas suas atitudes e nas suas brincadeiras uma desusada e como que sinistra tribulação. Por isso, ao entrar na sala e, antes de iniciar a aula, fui forçado, como fazia sempre que ocorria algum acontecimento extraordinário, a dedicar um bom par de minutos, a ouvir e a conversar com os alunos, até porque, neste caso, senti que seria necessário e imperioso, por um lado, desanuviar-lhes algumas inquietações e tumultos e, por outro, transmitir-lhes alguma calma e tranquilidade. Que não tivessem medo. Que tinha sido um abalo pequeno. Que o norte de Portugal era uma zona do globo terrestre onde raramente se verificam abalos de terra e que os que aconteciam eram geralmente de fraca intensidade e sem grandes prejuízos materiais ou humanos. Depois tentei, a muito custo, indicar-lhes alguns procedimentos a ter na ocasião em que, eventualmente, acontecesse um outro sismo. Impossível transmitir-lhes o que quer que fosse! É que todos queriam falar e contar o que tinham sentido e vivido durante aquele trágico momento da noite anterior. Por isso a todos dei a oportunidade de o fazer, obrigando-me assim a abdicar do plano que havia tão meticulosamente elaborado para aquela aula de expressão escrita, transformando-a, de forma improvisada, numa aula de oralidade.
Uns mais outros menos, todos contaram algo do que tinham sentido e vivido e que os havia preocupado na noite anterior e que ainda os preocupava. Todos… excepto o António - um matulão de mais de catorze anos, que habitualmente se sentava sozinho, ao fundo da sala, sempre distraído mas sempre calado, sempre a leste de tudo o que ali se passava e mais sabido nas lides da vida quotidiana do que nas letras e nas ciências. Como não se manifestasse interroguei-o com a denodada intenção de poder apreciar e até, eventualmente, corrigir a sua expressão oral, item pelo qual também o havia de avaliar no final do período:
- Então, António? Não sentiste o abalo de terra, esta noite?
Resposta pronta do molengão:
- Eu?!... Eu, setor?... Eu acordei e ouvi a minha casa toda a tremer, mas pensei que era o meu pai e a minha mãe que, esta noite, estavam mais entusiasmados com “aquilo”.