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QUANDO O CARVALHO FAZIA SERVIÇO NA FAJÃ GRANDE

Segunda-feira, 10.06.13

 

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades:em Santa Cruze nas Lajes. Como ambas as vilas estavam e ainda estão, actualmente, viradas a Leste, sempre que o mar estava bravo numa, ainda estava pior na outra, impedindo assim aquele paquete de fazer o serviço na ilha, o que se verificava, geralmente, mais do que uma vez por ano e, por vezes, no Verão.

Quando tal acontecia, em contrapartida, o mar na Fajã Grande, freguesia voltada a Oeste e com um pequeno porto protegido por altas rochas, estava calmo, tranquilo e excelente para o serviço do paquete. O vento soprava de Leste e era, com se dizia, “de cima da terra”. Nessas condições só era possível ao Carvalho fundear e fazer serviço na Fajã Grande, pese embora a grande oposição das populações de Santa Cruz e das Lajes, nomeadamente os comerciantes daquelas duas vilas. É que só havia estrada até aos Terreiros e de lá até ao porto da Fajã, os passageiros tinham que ir a pé, atravessando rochas e veredas, saltando ribeiras e grotões, percorrendo ladeiras, atalhos e calcorreando caminhos maus e estreitos. Apenas os doentes eram transportados a cavalo ou em carros de bois e, os casos mais graves, em macas transportadas a ombros. Além disso os passageiros ou os seus familiares e amigos tinham que transportar a própria bagagem às costas.

Mas o principal e grande problema era o do gado e o da manteiga que se havia de embarcar e, sobretudo, da mercadoria que o navio trazia e que teria que ser descarregada no porto da Fajã e depois transportada para os Terreiros a fim de ser levada em camionetas para as vilas. Assim todos os sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal e de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga que o navio trazia com destino à ilha, tudo era transportado para até aos Terreiros em carros de bois, o que acarretava um enorme aborrecimento e uma despesa acrescentada para os comerciantes a que as mercadorias se destinavam. Por tudo isto, toda a população das Flores detestava e barafustava quando o Carvalho ia fazer serviço para a Fajã Grande.

Ao contrário, este dia, na Fajã Grande, era de grande festa, contentamento e regozijo. Era rigorosamente, mais do que o tradicional “dia de São Vapor”, pois era uma verdadeira festa, a “Festa de S. Vapor”. Ninguém trabalhava nos campos nesse dia e toda a população se deslocava para Porto, uns para trabalhar na carga e descarga, outros para acartar e arrumar a mercadoria e outros simplesmente para apreciar o espectáculo. É que todos os carros de bois que existiam na Fajã eram requisitados para transportar a carga até aos Terreiros. Como os meios eram reduzidíssimos e menos operacionais do que os das vilas, esta azáfama era muito demorada, prolongando-se por todo o dia, pela noite dentro e até de madrugada.

E era precisamente à noite, enquanto os homens paravam os carros carregados com os sacos de açúcar e outras mercadorias fora das suas casas, para uma frugal ceia, nós, os garotelhos de então, à socapa, fazíamos pequenos buraquitos nos sacos de açúcar, furando ligeiramente a serapilheira e deitávamo-nos debaixo dos carros de boca aberta e voltada para cima, com as mãos a fazer de funil, a encher a barriga de açúcar, vingando-nos da abstinência que dele tínhamos nas nossas casas durante todo o ano.

E creio que era esta a principal e mais importante razão porque eu e os ganapelhos da minha idade gostávamos tanto de que o Carvalho fizesse serviço na Fajã Grande, ao contrário dos comerciantes das Lajes e da Vila, que penalizados por tantas contrariedades, nem por sombras desconfiavam que, ainda por cima, lhe papávamos uma boa parte açúcar que importavam de Lisboa.

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publicado por picodavigia2 às 21:41

O SENHOR ALGARVIO

Segunda-feira, 10.06.13

Havia, nos anos cinquenta,em Ponta Delgadadas Flores um homem que visitava frequentemente a Fajã Grande, onde tinha muitos amigos, entre os quais meu pai e onde gozava de grande estima e consideração. Chamava-se António Alves da Costa Cabreira, mas era conhecido em toda a ilha pelo Senhor Algarvio. Era um homem alto, esbelto, esguio e elegantemente vestido, não dispensando nunca o chapéu preto de feltro e aba larga e a jaqueta de algodão com gola em bico e duas filas de botões, trajes típicos da região algarvia. Aparentava os seus sessenta anos, cabelos grisalhos, olhos azuis, sempre muito atentos nos dos seus interlocutores. O que mais o caracterizava, porém, era um altivo, descomunal e garboso bigode, que se salientava no rosto oval, do qual lhe ocultava grande parte, e que lhe constituía grande motivo de orgulho. O senhor Algarvio despendia grandes cuidados na manutenção do seu bigode, nomeadamente, no asseio das enormes pontas, para as quais como que já institucionalizara o hábito de, constantemente, as retorcer e anafar. O enorme bigode, apesar de grisalho, apresentava, no centro, uma mancha amarelada, que levemente se difluía nas regiões limítrofes e que era o resultado plausível do seu declarado e assumido vício de fumador. Tinha uma voz muito forte e ríspida, com um acentuado sotaque continental, mais concretamente do Algarve, donde era natural. Essa era, aliás, a razão de ser do seu epíteto.

Nascera em São Bartolomeude Messines, a terra das pedras de amolar. Mas não era a razão principal pela qual o senhor Algarvio se blasonava da sua terra natal. Segundo ele, São Bartolomeu de Messines fora um eficiente baluarte miguelista, pois foi lá, junto à ermida de Sta Ana, que as forças apoiantes de D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, pesada derrota às forças liberais, bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira. Com ar garboso, explicava que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general, de nome, Tomás António da Guarda Cabreira, seu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista. Não ficavam por aqui, contudo, os pergaminhos da ilustre e ditosa pátria do senhor Algarvio. É que foi em São Bartolomeude Messines que nasceu o grande poeta lírico João de Deus, autor da “Cartilha Maternal.”
O respeito, a consideração e a amizade que meu pai tinha para com ele eram tão grandes que, quando o meu progenitor teve conhecimento que ele tinha regressado de Angra, onde se fora operar ao estômago, foi propositadamente a Ponta Delgada visitá-lo e, para gáudio meu, levou-me com ele, atravessando a pé e de noite uma boa parte da ilha, percorrendo atalhos e veredas e saltando ribeiras e grotões.

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publicado por picodavigia2 às 21:07

EQUADOR

Segunda-feira, 10.06.13

Está a passar, semanalmente, num dos canais abertos da televisão portuguesa a série “Equador”, baseada na obra homónima de Miguel Sousa Tavares e que retrata a vidaem S. Tomée Príncipe, no início do século passado. A crítica, em geral, tem-na considerado como uma das melhores séries do género de sempre, creditando-a de grande rigor histórico. Acontece porém que, sob o ponto de vista litúrgico/histórico, a referida série apresenta algumas incorrecções.

O Concílio Vaticano II, com a Constituição “Sacrosanctum Concílilium”, sobre a Sagrada Liturgia, assinada e promulgada pelo papa Paulo VI em 4 de Dezembro de 1963, definiu as várias normas referentes à reforma litúrgica, alterando entre muitos outros aspectos os seguintes: o uso da cor roxa nos funerais e nos ofícios de defuntos, sem no entanto proibir a continuação do preto até então obrigatório e a celebração da Eucaristia em altar “versus populo” (voltado para o povo).

Na referida série, no entanto, Monsenhor Atalaia, máxima autoridade religiosa no arquipélago onde, na altura, ainda não havia bispo residente, personagem superiormente interpretada pelo veterano actor Ruy de Carvalho, no episódio 10º, preside ao funeral do filho do Coronel Maltez, em 1906, com paramentos roxos e, noutro episódio, celebra a missa num altar voltado para o povo. É verdade que o faz em latim, iniciando a celebração como era obrigatório ou seja com a recitação de um versículo do salmo 43, “Introibo ad altare Dei”: Mas, segundo as normas litúrgicas então vigentes e só alteradas depois da publicação da referida Constituição sobre a Liturgia, o celebrante devia proferir aquela invocação de costas para o povo, ligeiramente inclinado e de mãos postas. Monsenhor Atalaia, no entanto, fá-lo de braços abertos e voltado para o povo. Além disso e estranhamente, ao referido monsenhor, sempre que paramentado, é-lhe colocada a estola sobre a casula, contrariamente ao habitual nos ritos litúrgicos da igreja romana, ou seja, a estola, sempre que usada com a casula, é colocada por baixo desta e nunca ao contrário.

 

 

NB – Texto publicado no Pico da Vigia, em 14/03/09, altura em que asérie referida passava, semanalmente, na TVI

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publicado por picodavigia2 às 17:07

O BOICEIRO

Segunda-feira, 10.06.13

Quando eu era miúdo, em casa, na catequese, na escola e até pelas ruas, em momentos de piáculo, por tudo e por nada, lá vinha a temível e famigerada ameaça do Boiceiro - um horrendo instrumento de tortura e punição, excessivamente doloroso mas correctório para as crianças que não obedeciam aos pais e aos outros legítimos superiores ou não cumpriam quer os mandamentos da Lei de Deus quer os preceitos da Santa Madre Igreja. Assim, perante qualquer pensamento mau, palavra obscena ou acto indigno, vinha como alternativa a sentença terrível e assustadora mas eficaz e profícua:

- Para a próxima, vais sentar-te no Boiceiro.

Sabia-se apenas que o excêntrico instrumento de tortura, à boa maneira da Inquisição Medieval, tinha a forma de uma cadeira, com uma diferença - e que diferença, meu Deus  - o assento. Este estava cravejado de pregos enormes e aguçados, de ponta virada para cima, com a denodada intenção de penetrar sanguínea e dolorosamente no rabiosque do infractor, penalizando-o dramática e excessivamente pelas faltas praticadas ou pelos delitos cometidos.

Mas o estranho é que o Boiceiro não se via e, consequentemente, o que mais atormentava os prevaricadores era a sua ameaça permanente. Sabia-se apenas que estava algures, na igreja, para além duma porta que existia atrás do altar-mor, sempre disponível para castigar os jovens e inexperientes pecadores.

Eu, como todos os outros da minha idade, pelava-me de medo com a contínua intimidação de tão pavoroso suplício. Admirava-me, no entanto, que a estroinice de que era acusado, nunca tivesse sido devidamente castigada naquele inferno terreno. O Greves, o Câncio, o Rodrigues e tantos outros não tinham currículo menos facinoroso do que o meu e juravam a pés juntos que nunca lá tinham ido parar. Por isso, assaltavam-me frequentemente dois sentimentos opostos. Por um lado começava a duvidar cepticamente da sua existência. Por outro mantinha-me convicto de que com as diabruras de que não me emendava, mais dia menos dia, o meu traseiro iria direitinho lá parar. Foi então que comecei a sentir, cada vez mais, uma enorme e denodada vontade de desvendar e conhecer o tão heteróclito e pouco dogmático mistério em que estava envolta tão abominável e execranda herança inquisitorial. 
Certa tarde, em que não havia escola para os da 1ª classe, as tias Graça e Luzia, muito zelosas pelas coisas celestes e tão colaboradoras no serviço divino, foram escalonadas para enfeitar a igreja, decidindo que eu as acompanharia em tão sacrossanta tarefa. Enchi-me de alegria, coragem e determinação. Era uma oportunidade única de, à sorrelfa, mais uma vez, subir a sineira e olhar de perto os bronzes gigantes cujos sons me fascinavam sobretudo nos repiques festivos, nas laudes dos defuntos e nas Trindades Dobradas, mesmo de lhes tocar e, batendo levemente com as mãos, apreciar os seus sons como se fosseem eco. Além disso, conviveria de perto com santos, anjos e arcanjos, aperfeiçoando notória e significativamente comportamentos e atitudes, evitando palavrões, talvez mesmo, sob o comando e orientação das tias, fazer pequenas orações e rezar algumas jaculatórias.

Ao chegar à igreja, porém, apercebi-me de que as tias iriam abrir a tal porta que estava atrás do altar-mor para ir buscar baldes, vassouras e outros apetrechos inerentes à limpeza do templo. De imediato, esquecendo os sinos, concentrei-me na forma de, sem elas darem conta, tentar explorar as traseiras da capela-mor, na tentativa de ver de perto, talvez mesmo tocar no tão famigerado Boiceiro, desvendando assim o enigmático mistério em que estava envolto.

Anulando radicalmente todos os procedimentos hieráticos a que tão sacrossanto lugar era propício, esperei pacientemente que as tias se ausentassem enquanto a pouco e pouco se me aguçava o desejo de ver a tão torturante e punitiva cadeira. Não tinha ainda acabado de substituir o pavio da lâmpada do Santíssimo e de a abastecer de azeite, quando as tias decidem sair para sacudir as carpetes da capela e apanhar mais algumas flores, deixando-me ali, sozinho, com a obrigação de não mexer ou tocar em coisa nenhuma e com o único objectivo de informar fosse quem fosse da sua necessária ausência. Transformado em verdadeiro guardião do templo, esperei um pouco e, de imediato, fui espreitar sorrateiramente por trás do altar-mor. A porta estava semiaberta.

Estarreci de emoção hesitante. Por um lado pesava sobre mim uma excessiva curiosidade, mas por outro assustava-me não apenas o espectro do enigmático grilhão mas também a entrada em tão desconhecido recinto e ainda a hipótese quase certa de ser apanhado com a boca na botija. Dizia-se que para além do altar-mor existia uma espécie de Sancta-Sanctorum, que só os eleitos podiam transpor.

Hesitei. As tias demoravam e isso trouxe-me um medo enorme mas aguçou-me a curiosidade. Era agora ou nunca.

Olhei timidamente para o Sacrário, diante do qual fiz uma simulada genuflexão. A presença de Jesus Sacramentado, bom e misericordioso, parecia incentivar-me. Senti mais força e coragem e, pé ante pé, ultrapassei o altar, penetrei no vão que o separava do retábulo doirado da capela-mor onde, por trás das imagens de São José, Santa Teresinha e da Senhora da Saúde, estava encravado o camarim. Empurrei a porta semiaberta. Esta rangeu, abriu-se lentamente e eu entrei.

No minúsculo, caliginoso e apertado cubículo pairava um silêncio sepulcral, apenas entrecortado levemente pelo tiquetaque do grande relógio suspenso numa das paredes da capela-mor e pelos meus tímidos passos. Lívido, olhei ao redor, sem ver nada ou coisa nenhuma. O temor, no entanto, foi-se desanuviando à medida que os meus olhos se iam habituando à tenebrosidade do recinto. De um lado da betesga salientavam-se prateleiras com garrafas de vinho de missa, latas de azeite para o Santíssimo, caixas com moedas do tempo dos afonsinos e andores encavalitados em cima uns dos outros. Do outro, caixotes cheios de maços de velas de estearina, as lâmpadas que acompanhavam as procissões, muitas cruzes e uma data de guiões, entre os quais se evidenciava o roxo que era usado na procissão de Passos. Num canto, debaixo das escadas que davam para um piso superior, muito escondida dos olhares dos fiéis, estava a imagem do Senhor dos Passos. Uma dor de alma! Jesus Cristo num dos mais dolentes momentos de tortura e sofrimento da Sua Paixão. Sentado numa pedra, quase nu, mãos atadas por um cordão amarelado, segurando uma cana a fazer de ceptro e com uma enorme coroa de espinhos cravada na cabeça, lá estava o Ecce Homo. Do crânio perfurado pelos espinhos saíam-Lhe gotas e gotas de sangue que corriam pelo rosto e se perdiam nas barbas ou Lhe salpicavam o tronco e os joelhos. Os ombros avermelhados e o tronco despedaçado faziam entender que havia sido fortemente chicoteado nas costas. O seu rosto apresentava-se simultaneamente sofredor e angustiado mas confiante e meigo. Fixei-o e senti uma enorme compaixão. Bem me apetecia libertá-Lo totalmente daquele suplício que me fazia lembrar ao que ali viera, com a insignificante diferença de que as picadelas do Cristo eram na cabeça e as minhas seriam no rabo. Ao lado uma portinhola, com quatro vidros pequenos e toscos a encimá-la, por onde entrava uma claridade pouco clarificante, permitia-me observar melhor a imagem dolente. Espreitei pelos vidros e o meu temor aumentou significativamente. A porta comunicava com o cemitério, onde se visionava uma enorme quantidade de campas, vários jazigos e algumas sepulturas recentes, todas encimadas por cruzes e sobre as quais pairava um silêncio ainda mais assustador.

Aterrorizado, afastei a visão do cemitério e voltei a olhar o Jesus sofredor e a procurar o Boiceiro. Mas nada. Apeteceu-me sair. E se as tias já tivessem chegado? E se aparecesse alguém? Voltei a hesitar por momentos. Mas tinha chegado até ali, continuaria a pesquisa. Decidi subir as velhas e frágeis escadas que permitiam o acesso ao piso superior. Galguei-as a medo, à medida que tentava descortinar o que existia naquele recanto ainda mais enigmático, mais escuro e mais tenebroso do que inferior. Apenas uma fresta, no alto da parede, permitia uma luminosidade mínima, necessária para se identificar o que ali estava. Logo à entrada o esquife em que nas endoenças era transportado o Senhor morto, deposto da cruz. A seguir o S. Miguel, de botas altas, calções e traje nobre, com uma balança na mão direita e uma espada na esquerda. O Arcanjo aguardava serenamente o juízo final, para pesar o bem e o mal praticado pela humanidade. Mais além pendurada na parede a matraca substituta dos sinos na Parasceve e ao lado uma velhíssima imagem do S. José, padroeiro da freguesia e a Senhora da Soledade, totalmente nua, mas com os seios atrofiados e sem parrameiro. Ao fundo do cubículo a essa!

Estarreci por completo. Cheio de medo, dei um enorme grito ao ver aquele horrível catafalco donde via emergir o velho Laranjinho – o enigmático representante de todos os finados da freguesia, lembrado no dia dois de Novembro. Totalmente apavorado, desci as escadas em lances de três e quatro degraus, saí pela porta de trás do altar-mor e, esbaforido, corri desalmadamente até à rua, jurando nunca mais ali voltar.

Quanto ao Boiceiro havia de permanecer ainda por mais alguns anos, na minha mente, como mito enigmático e assustador.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 15:33

BOLO

Segunda-feira, 10.06.13

Na Fajã Grande e na ilha das Flores, chama-se bolo a uma espécie de pão, que também é conhecido por "bolo de tijolo", por ser cozinhado, numa espécie de frigideira de barro, colocada sobre o lume ou brasido. Tradicionalmente, cozia-se o bolo como forma de se obter, rapidamente, pão, porque não precisava nem de levedar, nem de se acender o forno e além disso, cozia-se em menos tempo. Cuida-se que antigamente e, como ingrediente, para além da farinha, se juntava batata-doce raspada e crua. O bolo, geralmente, é comido a acompanhar a refeição, ou em substituição desta, com queijo, ou doce. Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, o bolo migado no leite era o tradicional jantar, na maioria das casas sobretudo das mais pobres.

O bolo do tijolo, de farinha de milho é feito com a respectiva a farinha de milho era peneirada para um selha de madeira ou para um alguidar de barro. De seguida era “aberta” no centro, fazendo-se uma cova onde se punha o sal, escaldando-a, isto é, deitando-lhe em cima uma boa quantidade de água a ferver, mexendo-se rápida e energicamente com uma enorme espátula de madeira, conhecida por “pá do bolo”. Este bolo, na Fajã, não levava fermento. Depois de escaldada, a massa devia arrefecer. A seguir juntava-se a mistura, na altura um pouco de farinha de trigo. Antigamente porém, e dado que a farinha de trigo tinha que ser comprada, a mistura utilizada era inhame ou batata-doce raspados. Finalmente amassava-se e formavam-se bolas que depois se achatavam com maior ou menor altura, colocando-as em cima de uma superfície lisa, sendo depois cortadas em quatro quartos que se iam colocando sobre o tijolo, depois de afogueado, bem quente e polvilhado com farinha. Quando se pressentisse que o bolo já está cozido de um lado, virava-se, com a ajuda de uma faca, colocando a outra face sobre o tijolo até a mesma se cozer. Esta operação requeria alguma atenção, a fim de evitar que o bolo não queimasse de nenhum dos lados.

Este bolo “saído do tijolo” a ferver, migado e misturado numa tigela de leite fresco ou então já frio, no dia seguinte a ser cozido, mas no leite fervido era a “ceia” diária da maioria das famílias da Fajã Grande, sendo por vezes, e nas casas dos lavradores mais abastados, acompanhado com um pedacinho de queijo, com uma torta, com conduto de porco ou até com uma sopa. Quando deitado ainda a ferver sobre os pedacinhos de pão ou bolo, o leite aquecia-os. No caso do pão, que era cozido apenas uma vez por semana, se ficasse muito velho e para evitar que criasse bolor, era estufado, ou seja aquecido dentro o caldeirão sobre o vapor da água a ferver e neste caso ficava como se fosse cozido, isto é quentinho, sendo-lhe o leite posto frio por cima.

Parece hoje estar-me interdito este bolo ou um semelhante que encontro no Pico, onde prevalece o cozido no forno.

Que agradável, saboroso e bom era aquele bolo cozido, sobretudo o da Fontinha! 

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publicado por picodavigia2 às 15:13

LINGUIÇA

Segunda-feira, 10.06.13

A linguiça é um enchido, tipicamente português, muito comum nos Açores, em forma de rolo ou salsicha, feito de carne de porco, temperado com, alho sal, malagueta, coentros, endros, cominhos e outras especiarias. Regra geral, a linguiça só pode ser consumida após ser preparada e depois de sofrer um processo de cura ou secagem, que normalmente se consegue através do fumo, “afogueando-as” no lume e, posteriormente, no brasido. Após o fumeiro, a linguiça é ligeiramente frita ou pré-frita e conservada debaixo de banha. Actualmente é congelada.

Na sua variedade portuguesa, a linguiça tem um sabor similar ao chouriço, embora o seu tempero, normalmente, seja bastante diferente. Nos Açores o tempero e consequente sabor da linguiça variam de ilha para ilha, com referência para a linguiça do Pico que tem um sabor especial mas muito agradável, apesar de, exageradamente, picante.

Fora de Portugal a linguiça é muito popular em países como Brasil e, sobretudo no Canadá, para onde, em tempos idos, se cuida que era exportada, clandestinamente, linguiça açoriana. Hoje um mito! Curiosamente, na Nova Inglaterra e no Havaí, a linguiça é designada por “Portuguese Sausage”, o que traduzido literalmente, significa "enchido português". A linguiça faz parte da maioria dos menus, em quase todo o mundo, sendo que nalguns países se faz linguiça com carne de vaca, de aves e até com peixe.

Cuida-se que a linguiça, sobretudo porque relacionada com a palavra italiana “luganega”, tenha o seu nome e, consequentemente, a sua origem, entre os “lucanianos”, uma tribo itálica que outrora povoou, ocupou e comandou uma parte da actual região de Basilicata. Muito possivelmente os romanos terão aprendido com eles a a arte de fazer a linguiça, trazendo, mais tarde, para a Península Ibérica.

No Pico, outrora, em sítio sobranceiro ao mar, a linguiça, confeccionada entre pedaços de lava negra e respingos de salmoura vindos do oceano, adquiria um sabor caseiro, enigmático, um paladar inacreditável, um gosto sublime, uma gustação inesquecível para quem, mesmo que, apenas, uma ou outra, a saboreasse ou então e tão-somente sentisse o seu admirável e atraente odor. Na sua confecção, depois de partir ou picar a carne de porco aos pedacinhos, faz-se um tempero admiravelmente saboroso e a carne permanece embebida nele, durante alguns dias. Depois com uma espécie de funil de lata, enchem-se e apertam-se muito bem as tripas que são, anteriormente, muito bem lavadas e limpinhas.

Segundo um estudo realizado na Suíça por alguns credenciados nutricionistas, e divulgado pelo jornal inglês Daily Mail, comer uma linguiça por dia ou dois pedaços de torresmo de porco aumentam os riscos de desenvolver o cancro do pâncreas. O mesmo estudo refere ainda a possibilidade de desenvolver aparecimento de outras doenças ou provocar o agravamento de outras já existentes. Essa a razão por que os doentes portadores de insuficiência renal se devem abster do consumo de linguiça, hoje cada vez mais distante e ausente nos cardápios diários. Assim, a linguiça hoje, nada mais é do que uma ténue reminiscência ou uma doce recordação dos tempos antigos, em que para além de ajudar a fazê-la, a afogueá-la, no vetusto lar da minha cozinha, me deliciava a saboreá-la. Mesmo assim, no Pico, talvez, ainda volte a deliciar-me com o seu suave aroma, quiçá com pequenino “torso”.

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publicado por picodavigia2 às 11:49

O NAUFRÁGIO DO SLAVÓNIA

Segunda-feira, 10.06.13

Faz hoje, 10 de Junho, cento e quatro anos que o paquete “Slavónia”, popularmente designado, na ilha das Flores por "Salavónia" naufragou junto à Costa do Lajedo, naquela ilha açoriana, acontecimento marcante durante décadas e décadas, na vida e costumes da ilha e, eternamente, presente na memória de toda a sua população.

O naufrágio deste grande e luxuoso paquete inglês aconteceu, segundo alguns relatos da época, por voltada das três horas da madrugada, do dia 10 de Junho de 1909, ou seja, três anos antes de um outro grande naufrágio, o do Titanic. O acidente ocorreu num baixio das Flores, a cerca de 25 metros de terra, em frente ao lugar da Costa, na freguesia do Lajedo, na altura em que se procedia à construção do novo e actual farol das Lajes e provocou um enorme alvoroço em toda ilha, muito especialmente nas povoações e freguesias da costa oeste, sobretudo, por se tratar de um navio que transportava centenas de passageiros. O naufrágio do Slavónia foi, incontestavelmente, o maior e o mais propalado, de dezenas e dezenas de quantos aconteceram naquela ilha, desde os primórdios do seu povoamento, não pelo número de mortes, felizmente que as não houve, mas sim pelo número de pessoas envolvidas e pela excelência e sumptuosidade do navio. Na altura do acidente, viajavam a bordo do Slavónia cerca de 750 pessoas, dos quais 500 eram passageiros e as restantes membros da tripulação. Todas estas pessoas se salvaram, sendo recolhidas e transportadas para terra com ajuda de cabos vaivém e pelos barcos “Botávia” e “Princesa Irene” ancorados na ilha, na altura. Para além dos passageiros, o luxuoso paquete transportava farinha, açúcar, café, algodão, máquinas de escrever e barras de cobre.

O “Slavónia", era um faustoso transatlântico pertencente à Cunard Steamship Company, Lda, construído em 1903. Partira de Nova Iorque no dia 3 de Junho com destino a Trieste, cidade do nordeste da Itália, no Mar Adriático. Tinha 10 606 toneladas brutas, tinha 155,44 m de comprimento, 2 máquinas a vapor alimentadas por 6 caldeiras com 18 fornalhas e era propulsionado por dois hélices que lhe conferiam uma velocidade média de 13 nós.

Segundo rezam as crónicas da altura, alguns dos passageiros ao saberem que o paquete passava perto das Flores, fizeram chegar ao comandante, um pedido escrito para que este alterasse a rota de maneira a que se aproximasse da ilha e pudessem observar, em pormenor, a sua beleza. O comandante acedeu ao pedido e planeou rodear as Flores, pelo Sul, numa rota afastada apenas a 6 milhas de terra, para depois prosseguir no seu curso original. Mas um forte nevoeiro que se abateu na noite de 9 de Junho e uma forte corrente marítima que ali se fazia sentir, terão desviado o paquete da rota prevista, levando-o a encalhar nuns pequenos escolhos e baixas rochosas existentes, entre a Costa e o Lajedo. Sucederam-se sucessivos e angustiantes pedidos de socorro que foram recebidos pelo paquete alemão "Prinzess Irene" e pelo navio "Batavia", que imediatamente se dirigiram para o local, socorrendo o navio naufragado

Entretanto o Slavónia fora abalado em toda a estrutura pelo encalhe violento e a agitação do mar causara-lhe o colapso do compartimento estanque da ré, levando a popa a mergulhar progressivamente no mar, enchendo as caldeiras de água e apagando o fogo das fornalhas. Consta que o comandante, abalado pela perda iminente do navio que comandava, tentou, por várias vezes, suicidar-se, no que foi impedido por elementos da tripulação.

Consta também que todas as operações de salvamento dos passageiros e da tripulação se processaram ordenadamente, quer através dos escaleres dos transatlânticos envolvidos, quer através de um cabo vaivém passado entre a costa e o barco. Todos passageiros e a maior parte da tripulação embarcaram, pouco depois, em outros navios, com destino a Lisboa, ficando apenas alguns quadros superiores da tripulação na ilha. Pelo contrário, apenas um pequena parte da bagagem foi salva e quase nenhuma carga se recuperou e todos os esforços do rebocador "Condor" para retirar o navio, quase totalmente submerso, foram debalde, pelo que, uma semana depois, a seguradora declarou a perda total do navio, que, assim, ali permaneceu afundado para sempre.

Nos dias seguintes, muitas pessoas, não apenas da Costa e do Lajedo mas de outras freguesias da ilha terão demandado aquelas redondezas, apesar de a zona estar sob vigilância da Guarda Fiscal, na tentativa de procurar, recolher do mar objectos valiosos e carga do navio. Era voz corrente de que, para além de parte da carga, estaria perdida, por ali, uma mala do correio com valores declarados. Não consta que tenha sido encontrada, mas muitos populares recolheram louças, talheres, travessas, candeeiros, pratas, mobílias, camas e até portas que usaram, mais tarde, nas suas próprias casas. Lembro-me de em criança ver pratos, travessas e candeeiros, retirados do Slavónia.
Recentemente surgiu a ideia de se recolherem todas as peças que pertenceram ao Slavónia e guardá-las em museu, o que, aparentemente já será um pouco tarde.

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publicado por picodavigia2 às 10:43

CARNE DE VACA

Segunda-feira, 10.06.13

A carne de vaca é, depois da de frango, das carnes mais consumidas entre nós, nomeadamente nos Açores, onde é produzida em grande quantidade e com excelente qualidade. Apesar da sua enorme riqueza alimentar, a carne bovina é um tabu culinário em algumas culturas, sendo, inclusivamente, o seu consumo proibido por algumas religiões, como é o caso do hinduísmo, que reverencia a vaca como animal sagrada, e consequentemente, proibida de ser abatida, na Índia, ao contrário da Europa, Américas e Austrália, onde é considerada um dos mais importantes alimentos, o mesmo acontecendo entre a maioria dos povos e civilizações, quer da África, quer da Ásia Oriental e do Sudeste Asiático.

A carne bovina impõe-se, actualmente, não só sobre a forma clássica de bifes ou postas mas também em peças, inteiras ou picadas ou, simplesmente, moída. O sangue bovino também é utilizado em alguns pratos típicos, como por exemplo o “sarapatel” que se cuida ter a sua origem no Alentejo e que, mais tarde, se estendeu às ilhas açorianas. Outras partes costumeiramente consumidas de uma rês, incluem o rabo, a língua, tripa, o bucho, o coração, o fígado, os rins, os testículos do touro e até os miolos. Nos bovinos, até os ossos são aproveitados para fazer caldo ou sopa, sendo o tutano muito apreciado por algumas pessoas.

Nos Açores e em muitas outras regiões, o gado, actualmente, já é criado especificamente para abate e para a consequente obtenção da carne, prescindindo-se quer da produção de leite quer da sua utilização na realização dos trabalhos agrícolas ou de transporte de cargas. Assim os bovinos podem ter a liberdade de pastar em campos ou planícies, embora, em muitos casos, ainda possa estar confinado em currais, onde costuma ser cuidado de maneira colectiva

Os Estados Unidos, o Brasil, o Japão e a China são os quatro maiores consumidores mundiais de carne bovina. Por sua vez, os maiores exportadores são a Austrália, o Brasil, a Argentina e o Canadá. A produção de carne, no entanto, também tem um papel importante na economia de outros países como o Uruguai, Nicarágua, Rússia e México.

Hoje, no entanto, sabe-se que a carne bovina, devido às gorduras de origem que contém é um dos principais alimentos responsáveis pelo aumento das doenças cardiovasculares. Realmente, é verdade que, juntamente com o fumo e o sedentarismo, o consumo excessivo de gorduras tanto de origem animal como vegetal, é um factor de risco para o aparecimento de doenças cardíacas, da diabetes, da obesidade, da hipertensão, da insuficiência renal, dos altos níveis de colesterol total bem como da associação de um ou mais desses itens.

Para que o nosso organismo funcione correctamente, é necessária uma alimentação muito variada, uma vez que não há nenhum alimento que contenha todos os nutrientes nas quantidades e qualidades que necessitamos para manter uma boa saúde e para a prática das nossas actividades diárias. Apesar de tudo, a carne de vaca é um dos alimentos que contém uma grande quantidade de nutrientes, com alta disponibilidade e baixo valor calórico, devendo por isso fazer parte de uma alimentação equilibrada.

Mas as carnes vermelhas, como é o caso da bovina, são ricas em proteínas de alta qualidade, vitaminas do complexo B, etc. Aliás, quando alguém restringe o consumo de carne de vaca, isso torna-se muito mais prejudicial para a sua saúde, pelo que se deve impor, no nosso cardápio diário, um consumo moderado deste tipo de carne.

Em toda ilha Terceira, incluindo a zona da Silveira, a carne de vaca é servida sob a forma de alcatra, um prato típico terceirense, uma espécie de ex-libris alimentar da ilha de Jesus Cristo. Saborosa, aromática, delirantemente sublime, a carne de vaca em geral e a alcatra da Terceira em particular, estão-me vedadas incondicionalmente, porquanto, apesar de muito apreciada e extremamente desejada e apetecível, lamentavelmente estão interditas a doentes portadores de insuficiência renal.

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publicado por picodavigia2 às 08:46





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