PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O RUGIDO DAS FERAS
"O rugido das feras, apenas mantém a floresta em sobressalto e desassossego.
Quem a acorda sempre para um novo dia é o cantar dos pássaros.
Portanto, façamos versos!."
Gama Bentes
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QUEIJO RALADO
Queijo é um alimento sólido, feito a partir do leite de vaca, cabra, ovelha, búfalas e outros mamíferos. O queijo é produzido pela coagulação do leite. A coagulação é realizada, numa primeira etapa, pela acidificação feita com uma cultura bacteriana e em seguida, empregando uma enzima especial, a quimosina (coalho ou substitutos, como por exemplo a flor do cardo ou o bucho de cabrito), para transformar o leite em "coalhada e soro". Quer a selecção da bactéria quer o processamento da coalhada desempenham um papel muito importante na definição da textura e sabor da maioria dos queijos. Alguns queijos apresentam também bolores, tanto na superfície externa como no interior.
Existem centenas de tipos de queijos produzidos em todo o mundo. Os seus diferentes estilos e sabores são o resultado do uso do leite de diferentes mamíferos ou do acréscimo de diferentes teores de gordura, empregando determinadas espécies de bactérias e bolores, e variando o tempo de envelhecimento e outros tratamentos de transformação. Outros factores que também influenciam o estilo e, sobretudo, o sabor do queijo incluem a dieta adequada do animal e a adição de agentes aromatizantes tais como ervas, especiarias, ou defumação. A condição de pasteurização do leite pode também afectar o seu sabor final. O amarelo e o vermelho, usados para colorir muitos queijos, são o resultado da adição de colorau.
Os queijos são consumidos puros ou como ingrediente de pratos diversos, neste caso são ralados, antecipadamente. Inteiros ou ralados, a maioria dos queijos derrete ao serem aquecidos, sobre qualquer iguaria ou mesmo sobre o pão duro.
Entre os queijos ralados, o parmesão é um dos mais utilizados e acrescenta um sabor de noz salgada para pratos como espaguete, pizza e saladas. É produzido por diversos países, incluindo os Estados Unidos, mas a versão mais famosa é o Parmigiano-Reggiano, feito na Itália, com grande venda em Paços. É principalmente utilizado como um queijo grating, porque tem uma textura granular, mas facilmente se derrete. Feito com leite de vaca, este queijo oferece-lhe uma série de benefícios nutricionais, nomeadamente proteínas e carbono hidratos e minerais como o cálcio e fósforo, etc.
Devido a todo este potencial, muitas vezes mais que evidentemente revelado, o queijo ralado, apesar de saboroso, atraente, agradável, enigmático e muito apetecível, está-me reservado, pois o seu excesso em proteínas prejudica estagiários pós operatórios e doentes com insuficiência renal.
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O CICLO DO MILHO NA FAJÃ GRANDE DAS FLORES
A economia (se é que se pode falar em tal) da Fajã Grande, nos anos 50, baseava-se fundamentalmente numa agricultura de subsistência, em que o principal e mais importante produto cultivado era o milho, a cuja cultura estava necessariamente ligada a pecuária.
Nesta agricultura de subsistência o cultivo do milho revelava-se deveras muito importante, dado que dele dependia quase na totalidade a sobrevivência da população e, por essa razão, o seu ciclo, prolongava-se em etapas diferentes e em tarefas múltiplas e diversificadas ao longo de quase todo o ano.
Além disso os espaços circundantes às habitações, nomeadamente as casas de arrumos, os palheiros e os estaleiros, bem como os utensílios agrícolas existentes edificavam-se, construíam-se, adaptavam-se, adequavam-se ou até se adquiriam em função das necessidades a que a árdua tarefa de cultivar e produzir o milho obrigava a população.
Por outro lado, urge clarificar que todo o desmesurado trabalho, o cansativo esforço e até os enormes gastos que se tinha com a produção do milho eram, na realidade, extremamente compensados, com tudo aquilo que o milho dava. Em primeiro lugar o produto final, ou seja, o que de mais importante se extraía do milho – a farinha, com a qual se fazia o pão e o bolo, elementos básicos na cardápio alimentar de então. Mas não se ficavam por aqui os lucros e benefícios de tal produção. As maçarocas, quando o milho estava verde e ainda “vertiam leite” eram cozidas juntamente com as batatas brancas ou assadas no espeto e constituíam um bom e saboroso alimento. As folhas tinham um peso substancial na alimentação do gado no Inverno e as espigas, ainda verdes, também alimentavam os bovinos no Verão; a parte interior da casca das maçarocas, depois de desfiada e alisada, era utilizada para encher os colchões e travesseiros e com a restante também se alimentavam os bovinos; uma parte dos milheiros utilizava-se para fazer o lume em que se cozinhava a comida do porco, enquanto outros eram picados em pequenos pedaços e utilizados para “secar” o curral do suíno das húmidas imundícies em que era profícuo, graças ao seu desassossegado e hediondo reboliço; os sabugos eram utilizados para acender o lume, para as crianças brincarem e até para limpeza e higiene do rabiosque; uma boa parte das maçarocas, sobretudo aquelas cujos grãos eram mais raquíticos bem como as excedentes da produção da farinha, eram utilizados para alimento das galinhas, do porco e das vacas “à engorda”e até com os fios da cabeleira que saíam da ponta da maçaroca, depois de secos, se fazia chá, muito recomendado nos achaques dos rins e nas infecções urinárias. Além disso e depois de peneirada, a farinha deixava no fundo da peneira um farelo que era utilizado em parte para engrossar as águas das lavagens do porco e também para alimento das galinhas, fazendo-se com ele uma espécie de bola a que se juntavam couves e cascas de batatas, geralmente cozidas e picadas. Finalmente, com a farinha do milho ainda não seco faziam-se “papas grossas”.
Daí que toda esta “riqueza” resultante do cultivo do milho justificasse por demais um trabalho excessivo e cuidadoso e envolvesse toda a população no seu cultivo, a que dedicava grandes cuidados e gigantescos esforços. O milho era, na realidade, a causa e a razão de tudo. Daí que ter terras de milho, bem verdinho, muito alto, bem espigado e com boas maçarocas era um orgulho para os seus proprietários e motivo para serem louvados e, talvez mesmo, invejados.
A preparação dos terrenos situados entre a beira-mar e as casas, ou seja as terras do Areal, das Furnas e do Porto, para se semear o milho, era efectuada de forma desigual e em tempos diferentes das restantes, ou seja das chamadas “terras do oitono” e que se situavam entre as casas e as relvas ou até já misturadas com estas e, por conseguinte, mais distantes do mar. Por essa razão aqueles terrenos eram mais quentes e estes últimos mais frios, o que, no que respeita às tarefas do cultivo do milho, obrigava necessariamente a um tratamento e a uma calendarização diferentes
As terras da zona mais próxima do mar, dada a sua fecundidade, regra geral, produziam vários produtos agrícolas durante todo ano, destacando-se três: couves, milho e batata-doce. A estes porém juntava-se muitos outros produtos: abóboras, bogangos, feijão, cebolas, etc. As couves, que cresciam acompanhadas das abóboras e dos bogangos, antecediam o cultivo do milho enquanto a cultura da batata-doce e as restantes eram simultâneas da daquele cereal.
As couves eram obtidas da plantação da couvinha que desabrochava em canteiros, num ou noutro canto da terra onde as sementes de couve haviam sido semeadas e muito bem adubadas. Os pés de couvinha eram espalhados sobre a terra e plantadas à enxada logo após a apanha do milho e da batata-doce e destinavam-se quase totalmente à alimentação do gado bovino e do suíno, devendo, neste último caso, serem cozidas. Além disso enrijeciam e fortaleciam a terra, pois ao serem cortadas pelo caule afim de serem transportadas em molhos para os palheiros, deixavam no terreno uma raiz muito forte, que, mais tarde, teria que ser arrancada, sacudida e geralmente atirada para cima dos marouços ou então deixada a apodrecer, transformando-se assim numa espécie de estrume vegetal, ajudando a fortalecer o terreno que aguardava o semear do milho. A estes e outros resíduos, porém juntavam-se carros e carros de bois bem cheiinhos de estrume ou de sargaço, que se iam despejando em montículos mais ou menos equidistantes uns dos outros. De seguida, todo este “adubo orgânico” era espalhado equitativamente por toda a terra, com garfos, de forma a cobrir muito bem coberta toda a superfície arável do campo.
Só então se procedia ao lavrar ou “abrir” do terreno, tarefa efectuada com o arado de ferro puxado por uma valente junto de bois. Na Fajã havia dois ou três lavradores que tinham junta de bois com as quais “davam dias para fora”, ou seja lavravam os campos de quem necessitava mediante pagamento, tornando-se assim numa espécie de profissionais da lavoura. O arado de ferro, como o nome indica, era em grande parte construído em fero e tinha uma ponta muito bem afiada e uma enorme aiveca lateral, presa ao timão por um gancho que revirava ora para um lado ora para o outro, permitindo assim ao lavrador que a voltasse sempre para o lado do terreno que já estava lavrado. O lavrar dos campos iniciava-se geralmente com três voltas na periferia do terreno, num movimento contrário aos ponteiros de um relógio. De seguida efectuava-se de lés a lés, ao comprido ou ao atravessar do campo, sendo que, no caso de este ser inclinado se efectuar sempre de forma a que o revolver da terra a atirasse para a parte mais alta, permitindo assim ao terreno manter a sua forma e estrutura iniciais.
A etapa seguinte era a de gradar. O objectivo era desfazer as leivas e os torrões, tarefa efectuada com uma grade de madeira, com os picos de ferro voltados para baixo, e em cima da qual geralmente se colocavam algumas pedras bem pesadas. Por vezes, para fazer mais peso, era permitido às crianças, para seu gáudio, sentarem-se em cima da grade. Outras vezes era o próprio homem que a segurava com uma corda, que a guiava e que conduzia os animais que se colocava de pé em cima dela, substituindo ou aumentando o peso das pedras. De seguida efectuava-se um novo gradeamento, com a grade ao contrário, ou seja com os ferros voltados para cima, sendo que desta feita apenas só pedras lá se colocavam. O objectivo, desta feita, era alisar a terra, a qual, algum tempo depois, era “atalhada” com o arado de pau e novamente gradada, com a grade de costas.
Só então o terreno estava pronto para se semear o milho.
Nas chamadas “terras de oitono”, ou seja, naquelas em que era semeado trevo, erva da casta ou até favas e onde durante os meses de Abril e Maio as vacas estavam amarradas à estaca ou à “à cordada”, a preparação dos terrenos para o semear do milho era um pouquinho diferente. Estas terras ficavam situadas nos seguintes lugares: Ribeira das Casas, Calhau Miúdo, Mimoio, Ladeira, Fontinha, Alagoeiro, Ribeira, Fonte de Cima, Batel, Bandeja, Queimadas, Vale da Vaca, Descansadouro e Delgado.
Em primeiro lugar, estas terras, geralmente não eram enriquecidas nem com esterco nem com sargaço. Por um lado a maior parte dos acessos a muitas delas, como por exemplo o Mimoio, eram canadas apertadíssimas por onde os carros de bois não conseguiam passar e, por outro, aqueles produtos eram geralmente gastos nas outras terras. Além disso e, regra geral, estas terras eram muito bem adubadas pelas vacas enquanto lá estavam amarradas à estaca. É que estas ficavam ali presas dia e noite, mesmo em dias de chuva (só em dias de temporal eram trazidas para os palheiros), tendo muitas vezes, para além da comida que a “cordada” das forrageiras lhes proporcionava, um suplemento alimentar constituído por gavelas de erva, de incensos de couve ou de outra comida, precisamente para que os animais permanecessem mais tempo em todos e cada um dos pedacinhos de terra, a fim de estrumar melhor o campo onde, algum tempo depois havia de ser semeado o milho. Apenas quando as terras, por qualquer razão, não eram bem “trilhadas” ou seja adubadas pelas vacas se enriqueciam com um ou dois sacos de adubo.
A batata-doce, nestas terras também não se misturava com a cultura do milho. Era cultivada só, em terras para tal preparadas – batata-doce de latada e era esta que se destinava à alimentação das pessoas. Nas restantes cultivava-se o milho que crescia orgulhosamente só, até deitar espiga. Só então por entre os milheirais já crescidos e espigados se espalhava a semente de trevo ou de erva da casta que depois era coberta ou misturada na terra com um ancinho para de seguida nascer, crescer e florir após a apanha daquele cereal, transformando os campos em maravilhosos tapetes verdes matizados de vermelho, branco, rosa e azul, com que as vaquinhas se haviam de regalar mais tarde.
De resto, todo o processo de preparação do terreno, no que diz respeito a lavrar, gradar e atalhar, era igual aos das outras terras. Primeiro eram lavradas com o arado de ferro, de seguida gradadas uma e duas vezes e, mais tarde, atalhadas. No entanto, o lavrar aqui era muito mais difícil e tornava-se mais cansativo para os animais que puxavam o arado, uma vez que o terreno estava rigorosamente muito mais endurecido.
No que concerne à sementeira do milho o maior e primeiro cuidado que havia de se ter era o da escolha da semente. Milho para se semear tinha que ser de boa qualidade e, por essa razão, aquele que se queria para semente era seleccionado entre o melhor de toda a produção. Cada agricultor escolhia a terra onde o seu milho era melhor ou uma a zona da mesma onde tal acontecesse e guardava-o com maior cuidado. As maçarocas destinadas à semente deviam ser conservadas em lugar apropriado e, por vezes, até deviam ter tratamento especializado, para que o gorgulho, o maior inimigo do milho seco, não as estragasse. Milho semeado que eventualmente estivesse furado pelo gorgulho não nasceria. Quem não conseguisse milho adequado para a sementeira, resultante da sua própria colheita tinha que comprá-lo, de contrário sujeitar-se-ia a uma nula ou má colheita.
Obtida a boa semente agendava-se o dia da sementeira. Nas terras da beira-mar semeava-se em Abril e princípios de Maio e nelas, quando o milho começava a nascer, era-lhe plantada, pelo meio, a batata-doce. Nas restantes terras, porque mais frias, semeava-se quando o tempo já era mais quente, ou seja, no início do Verão.
Numas e noutras terras o milho era semeado em regos feitos por um arado de pau, de forma muito semelhante ao atalhar. Este arado, todo em madeira excepto a ponta que era em ferro, era puxado por uma ou duas reses. Estas, caso não estivessem habituadas ao trabalho, para além do lavrador que ia agarrado à rabiça, conduzindo o arado no sítio certo para o rego, carregando-o para que fizesse um bom rego e tangendo os animais, teriam que ter alguém que andasse na sua frente, conduzindo-as de acordo com as orientações do lavrador que tentava levar sempre o arado de forma a traçar regos paralelos e simétricos de uma extremidade à outra do campo. Era geralmente às mulheres que competia seguir atrás do arado, descalças, de lenço e chapéu na cabeça, atirando os grãos de milho para o respectivo rego. Esta tarefa exigia muita habilidade. Retirando punhados de milho de uma cesta que geralmente levava enfiada no braço esquerdo iam atirando com a mão direita grão os grãos, uns após os outros, para os regos que eram sulcados pelo arado. Faziam-no com tanta agilidade e perícia que os grãozinhos caiam direitinhos bem no fundo do respectivo rego onde ficavam muito bem alinhados, juntinhos e equidistantes uns dos outros, para poderem nascer e crescer à vontade. Por vezes eram atirados de dois a dois para que nascesse um par de pezinhos de milho, como se fossem gémeos. Cada rego fechava-se com o abrir do rego seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era novamente gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos para que os pássaros os não comessem e também para que germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. A sementeira do milho, sobretudo se a terra era boa e estava bem adubada, era muito densa e feita de forma a aproveitar muito bem todo o terreno. Este aproveitamento era tal que terminada a tarefa até se semeavam manualmente e com uma enxada os cantos do terreno que tinham ficado por lavrar porque o arado não conseguira lá chegar.
Uma vez semeado, não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Em Abril, Maio ou Junho começava a primeira das várias e pesadas tarefas que a produção do milho exigia - sachar. Quando o milho ainda estava miudinho mas já muito bem-nascido, por vezes debaixo de um calor tórrido, homens mulheres e crianças dirigiam-se para as terras descalços, chapéu na cabeça e sacho às costas. Sachavam e mondavam todos os campos onde havia milho, de lés a lés, retirando as ervas daninhas e as mondas para que o milho crescesse melhor e dispusesse de toda a riqueza e força do terreno. Antes porém um ou dois homens mais experientes iam à frente com o intuito de desbastar o milho, isto é, de arrancar os pés aparentemente inúteis bem como os das zonas em que estavam mais bastos para que os outros crescessem mais à vontade. Era um trabalho difícil, uma espécie de arte que só os mais velhos e experientes sabiam e podiam fazer. Se o milho ainda era miudinho esses pés excedentes ficavam a apodrecer sobre a terra, juntamente com a monda que também era arrancada. Mais tarde haviam de se transformarem estrume. Sepelo contrário o milho já era maiorzito, os pezinhos arrancados eram atados em gavelas que depois se amarravam formando molhos que eram trazidas para casa, para alimento dos animais bovinos. Os que iam atrás, curvados com uma mão no sacho outra na monda ou na terra, arrancavam todas as ervas daninhas existentes, sacudiam-lhes as raízes e reviravam toda a terra com o sacho, amontoando-a junto dos pezinhos do milho, sobretudo dos mais frágeis, para que estes crescessem fortes e se protegessem das ventanias e temporais que viriam algum tempo depois.
Uma vez sachado, mondado e desbastado, o milho crescia a olhos vistos e nos dias seguintes os campos transformavam-se em enormes tapetes de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e, às vezes até as ervilhas, os feijoeiros, as caseiras e os tomateiros também entrelaçados pelo meio, que embora semeados em pequena quantidade, começavam já a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além ou pelos próprios milheirais.
Algum tempo depois, era necessário “correr” o milho e desbastá-lo novamente. A tarefa de correr era bem mais rápida do que o sachar, pois nessa altura já tinham sido arrancadas quase todas as mondas e ervas daninhas. Agora bastava apenas passar novamente toda a terra a terra com o sacho ou com o lado de uma enxada e ajeitá-la ainda mais para junto de cada pé de milho para que este, agora já bem mais alto e esguio, ficasse bem “calçado” e resistisse corajosamente à força do vento. Nessa altura o milho era desbastado pela última vez. Aos pés agora arrancados era cortada a raiz e eram trazidos para casa para alimento dos animais. Nas terras longe do mar, quando o milho já estava espigado, era semeado o trevo e a erva da casta, devendo todo o terreno ser novamente passado ou seja revirado de lés a lés com um ancinho a fim de que as sementes lançadas à terra se misturem com esta para nascerem as respectivas forrageiras.
Na Fajã Grande, contrariamente a outras localidades das Flores e dos Açores, os homens sempre sacharam e correram o milho curvados ou de cócoras, segurando com uma mão o sacho e arrancando a monda ou anafando, ajeitando ou alisando a terra com a outra. Essa a razão por que aos sachos comprados nas lojas e que vinha do Faial se lhes cortava sempre o cabo pelo meio.
Nos finais da década de cinquenta surgiu na Fajã a “caliveira” a qual veio alterar significativamente, poder-se-á mesmo dizer que veio revolucionar, a cultura do milho, nomeadamente a forma de o semear e a maneira de o sachar.
A “caliveira” era uma espécie de sachador, puxado apenas por um animal, geralmente um burro ou um macho, que tinha uma armação de forma triangular, sustentada à frente por uma roda, como o arado de ferro e à qual se seguiam séries de um, dois e três dentes com o formato de enxadas, de tal forma dispostos que os de trás passavam por onde não tinham passado os da frente, permitindo assim revolver toda a terra por onde a caliveira passava e que era conduzida por uma rabiça de duas pegas. Destinava-se a sachar o milho, revirando a terra com os dentes e, simultaneamente, arrancando as ervas daninhas. Por essa razão a forma de semear o milho foi substancialmente alterada: os regos passaram a ser rigorosamente paralelos uns aos outros e sempre no cumprimento do terreno, o milho passou a ser semeado um rego sim e dois não de forma a que, quando crescesse, a caliveira e o animal que a puxava pudessem passar por uma espécie de carreiro rectilíneo que ficava entre cada um dos dois regos semeados. Idêntico procedimento era tido nas cabeceiras do terreno.
A caliveira, no entanto, tinha vantagens mas também tinha desvantagens. No que concerne às primeiras, a caliveira aliviava o cansativo trabalho de andar vergado ao sacho dias e dias e, além disso, era bastante mais rápida. No entanto, tinha alguns malefícios o que levou alguns agricultores a teimarem em não a adaptar aos seus terrenos: obrigava a semear o milho em linhas paralelas muito alinhadas e equidistantes o que não era fácil devido à morfologia das terras, destruía muito do milho já crescido, quer por parte do animal, apesar de andar com uma boquilha, quer ao virar a caliveira nos extremos ou até mesmo ou não conduzi-la correctamente. Além disso a caliveira não sachava nem os cantos nem junto aos pés de milho, nem muito menos puxava a terra para junto dos pés deste, obrigando assim, que após o calivar, fosse necessário sachar grande parte do terreno e puxar a terra para junto dos pés de milho. Além disso as caliveiras eram bastante caras e só os lavradores um pouco mais abastados as podiam comprar, embora alguns destes as emprestassem aos que as não tinham por não as poder comprar. Assim acontecia com meu pai e meus irmãos que, por razões económicas, nunca tiveram caliveira mas sacharam sempre o seu milho com uma que lhes emprestava tio José Teodósio, que morava mesmo ali, em frente a uma terra que tínhamos na Fontinha.
Depois de sachados, corridos e desbastados os milheirais cresciam de dia para dia. As suas folhas muito verdinhas e esticadas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os caules amarelos, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam os campos como se fossem dezenas, centenas de mantos esbranquiçados e fofos como que a cobrir uma boa parte da freguesia. Pouco depois eram as maçarocas a despontarem nos milheiros, pequeninas e sorridentes, com as suas barbichas douradas e a crescerem de dia para dia acariciadas com o Sol do Outono.
Quando as folhas e o caule começavam a alourar e com as maçarocas já durinhas, (resistentes à unha) era altura de quebrar as espigas. Esta operação também não era fácil e requeria arte, técnica e sabedoria. Primeiro porque tinha que ser feita na altura adequada e quando já não prejudicasse o crescer da maçaroca e consequentemente dos grãos. Em segundo lugar, porque a espiga ou pendão devia ser quebrada no nó certo e adequado, ou seja, pelo primeiro nó logo acima da maçaroca, devendo para tal obedecer a um toque ou movimento afoito, destemido e certeiro da mão de quem o fazia, toque que nem todos sabiam dar. Dobrado o milheiro noutro sítio não mais se quebraria à mão. Era necessário, nesse caso, recorrer à navalha ou outro objecto cortante, o que demorava bastante tempo. Acrescente-se que muitos agricultores, sobretudo os mais jovens, recorriam sempre ao corte da espiga com uma navalha ou com uma foice porque não sabiam cortá-la à mão, o que, segundo a opinião dos mais velhos era mais prejudicial para o milho.
A espiga geralmente não era quebrada toda no mesmo dia, mas em dias sucessivos para que assim permanecesse mais verde e fresquinha para alimentar os animais. Alguns agricultores, no entanto, preferiam, depois de quebrá-la ou cortá-la, deixá-la a secar em cima dos marouços ou contra as paredes e depois de seca guardá-la nos palheiros para alimento dos bovinos, no Inverno.
Algum tempo depois era a altura de desfolhar o milho. Dias antes apanhavam-se folhas e folhas de espadana que se cortavam em pedacinhos, os quais, por sua vez, se desfiavam em tiras fininhas com as quais se faziam pequenos molhos. Estes eram presos numa alheta das calças e com eles se iam amarando as folhas do milho à medida que se iam arrancando dos milheiros, formando “pavias” ou “mãos-cheias” que eram penduradas num ou noutro dos milheiros, junto à maçaroca, para que, secassem melhor e, alguns dias depois, na altura da recolha, fosse mais fácil encontrá-las e recolhê-las. O desfolhar, no entanto, não era tarefa fácil pois exigia-se que a folha fosse arrancada do milheiro com a bainha, o que, sobretudo para os menos experientes, revelava-se um pouco difícil e demorava muito mais tempo. Alguns “desfolhadores” mais expeditos faziam-no com muita arte e perfeição e até conseguiam amarrar a pavias de folhas com uma outra folha. Outros para extrair a folha com a bainha faziam-no muito lentamente dado que a despegavam do milheiro uma por uma e com as próprias unhas. Nesse caso a desfolha ficava perfeita e as “pavias” para além de mais rentáveis também ficavam mais bonitas. Curiosamente esta era uma das tarefas em que os agricultores mais se ajudavam uns aos outros, fazendo-o, por vezes, até de noite, aproveitando a Lua-cheia ou recorrendo às Petromax que alguém ia segurando sobre a cabeça por entre os milheirais.
A rama depois de seca e enxuta era acarretada para junto de casa em carros de bois ou aos ombros e guardada nas casas velhas ou de arrumos, destinando-se a alimentar o gado nos rigorosos dias de Inverno, durante os quais era impossível ir aos campos buscar comida verde e fresca.
O dia de “apanhar o milho” era um dia de muito trabalho. Mas como geralmente aos trabalhos duros e pesados era dado um certo sentido de alegria, este dia também era, em certo sentido, um dia de festa.
Na véspera era preciso preparar tudo: consertar o estaleiro se necessário, untar os cocões e montar a sebe no carro de bois, arranjar os cestos necessários, cortar e desfiar as espadanas e cozinhar a comida necessária de acordo com as pessoas de fora que eventualmente viessem ajudar.
Finalmente o dia da apanha. As pessoas destinadas aquela tarefa dirigiam-se para o campo seleccionado bastante cedo, umas vezes ainda alta madrugada outras noite escura, sendo que por vezes ao nascer do Sol o milho já estava quase todo apanhado. Os cestos eram colocados estrategicamente em pontos diversos ao longo do terreno enquanto se iam arrancando as maçarocas dos milheiros com perícia e destreza, atirando-as, de seguida, para dentro dos cestos, até os encher bem “acaculados”. Muitas terras ficavam longe do caminho e a elas se tinha acesso apenas por canadas muito estreitas onde os carros de bois não cabiam. Era aos mais jovens, mais robustos e mais fortes que competia a tarefa de acarretar os enormes cestos cheios a abarrotar de maçarocas, às costas, até ao carro de bois, dentro do qual o milho ia sendo muito bem empilhado e arrumado. Quando a sebe estava rasa fazia-se à sua volta uma borda com as maçarocas mais gradas, criando assim um novo espaço que se ia enchendo e depois uma outra borda e várias outras até a sebe ficar a abarrotar. Uma vez cheio, um ou mais homens, tangendo os bois, conduziam o carro até a casa despejando literalmente o milho na cozinha, caso o proprietário não tivesse uma casa de arrumos adequada.
Ao meio do dia geralmente terminava a apanha e a recolha do milho. A cozinha enchia-se, então, de maçarocas do chão até ao tecto. Enquanto não começava a tarefa de encambulhar as crianças aproveitavam para brincar ao escorrega, já que os não havia noutro sítio. Assim entretinham-se vezes sem conta a subir o monte das maçarocas para depois deslizar por ele abaixo simulando e profetizando os modernos escorregas dos parques infantis.
De tarde iniciava-se o encambulhar. Sentados em banquinhos ou se os não havia em cestos com o fundo voltado para cima, à volta do monte do milho, homens mulheres e jovens pegavam nas maçarocas uma a uma e procediam a uma avaliação rigorosa da mesma. Se era raquítica, debilitada, atrofiada ou se a casca não cobria bem os grãos era separada das restantes. Caso contrário, isto é se a maçaroca aparentava boa qualidade era lhe puxada uma folha da sua própria casca, o mesmo se fazendo com mais algumas, juntando-se todas numa espécie de molho. Depois retorcia-se a parte das pontas formando uma espécie de trança, dobrava-se e amarravam-se todas muito bem amarradas com um fio de espadana. Eram os cambulhões que se iam separando do resto do milho, competindo às crianças acarretá-los aos ombros ou nas mãos para junto do estaleiro onde seriam devidamente pendurados e guardados.
As restantes maçarocas ou seja aquelas que não tinham as qualidades necessárias para serem encambulhadas com a casca separavam-se e, no final, eram descascadas mas não na totalidade. Deixava-se em cada uma delas, uma folha mais resistente o mesmo se fazendo com mais algumas, juntando-as todas também num molho e formando cambulhões de forma muito semelhante aos das que tinham casca, embora, regra geral, estes cambulhões tivessem menor número de maçarocas.
Finalmente havia algumas maçarocas às quais era impossível deixar qualquer casca. Estas eram guardadas no balaio, uma espécie de cesto muito grande em forma de alguidar, e, depois de postas a secar ao Sol dias e dias, seriam debulhadas e o seu milho seria o primeiro a ser utilizado, quer para encher as moendas e levar ao moinho quer para alimento de galinhas, vacas e porcos.
Era nos estaleiros que se guardava o milho, quer os cambulhões em que as maçarocas tinham a casca quer as cambulhadas em que eram encambulhadas descascadas. O milho ali ficava a secar desde o dia da apanha até à altura em que fosse necessário levá-lo para o moinho, a fim de o transformar em farinha.
Construídos sempre muito perto das casas, geralmente num quintal, numa courela ou até no curral das galinhas, os estaleiros na Fajã Grande tinham quatro formas diferentes.
Uns, os maiores que eram também os mais comuns e usuais, tinham a forma de um telhado acentuadamente inclinado, assente sobre grossos barrotes de madeira, as faces laterais constituídas por tiras ou “taliscas” de madeira, paralelas umas às outras, em forma de grade e pregadas aos paus das arestas e a outros que as subdividiam em duas ou três partes. Era nesta tiras que se penduravam com arte e sabedoria os cambulhões cujas maçarocas tinham casca, e que ficavam de tal maneira expostos de maneira que a chuva não penetrasse e atingisse as maçarocas e os ventos ciclónicos do Inverno não levassem o próprio milho pelos ares. Apenas as faces das cabeceiras e a da base não tinham tiras pelo que ficavam abertas a fim de que o ar circulasse por entre as espigas e estas não deteriorassem ou apodrecessem. No interior também eram pregadas tiras paralelas à base onde se penduravam as cambulhadas. A armação destes estaleiros assentava em quatro ou seis pés, todos de alvenaria caiada e muito lisos a fim de evitar a subida dos ratos.
Havia outros estaleiros muito semelhantes a estes no tamanho mas em forma de cubo, assente em cima de quatro pés, semelhantes aos outros. Os cambulhões com casca eram pendurados nas quatro faces laterais, ficando abertas, para entrada do ar, a base e a parte superior. Estes estaleiros eram raros.
Outros tipos de estaleiros, mais simples e mais pequenos eram os formados apenas por quatro paus. Estes eram enfiados na terra equidistantes uns dos outros mas de tal maneira inclinados que se juntavam na parte superior sendo então amarrados com um forte arame, formando uma espécie de pirâmide cujas faces também eram cravejadas de tiras paralelas, nas quais eram pendurados os cambulhões, quer com casca quer sem casca. A protecção contra os ratos obtinha-se através da colocação de umas folhas de lata no cimo dos pés. Estes estaleiros eram de construção esporádica e normalmente eram construídos quando o milho não cabia no estaleiro principal.
Finalmente e construídos pelas pessoas que tinham pouco milho, havia uns estaleiros muito mais simples e constituídos por quatro ou cinco paus paralelos uns aos outros e nos quais se pregavam as ripas, formando uma espécie de grade que se encostava geralmente às empenas das casas e onde se penduravam os cambulhões.
Pendurar o milho nos estaleiros era uma arte e exigia sabedoria e experiência. Os cambulhões começavam a pendurar-se de baixo para cima, umas maçarocas ficavam viradas para fora e outras para dentro, formando uma espécie de cobertura de telhado até chegar à trolha, ou seja, aresta oposta a base e que tinha que ser muito bem coberta, sendo para tal elaborados uns cambulhões maiores.
Ao longo do ano, quando não havia farinha ou quando a existente estava prestes a chegar ao fim era necessário tirar uma parte do milho que estava guardado nos estaleiros, de maneira a encher uma moenda que seria levada ao moinho.
Para tal era necessário tirar do estaleiro uma certa quantidade deo milho, o qual, antecipadamente devia ser descascado, caso se tratasse de cambulhões. O primeiro milho a levar-se ao moinho era o que se havia guardado no balaio. Só depois de utilizado todo este se recorria ao dos estaleiros, começando sempre pelas cambulhadas. Só depois se tirava milho dos cambulhões. A retirada destes do estaleiro deveria ser sempre inversa à da sua colocação, de forma a não prejudicar o que lá ficava e apenas na quantidade necessária para encher a respectiva moenda, que de imediato seria levada ao moinho.
Na Fajã Grande havia quatro moinhos todos na Ribeira das Casas, dois pertencentes a tio Manuel Luís, um ao Manuel Dawling e o Moinho do Engenho, que teve vários proprietários, acabando, mais tarde, por ser abandonado. Competia a cada agricultor ou a um membro da sua família levar a sua própria moenda ao moinho, tarefa geralmente atribuída às raparigas, as quais aproveitavam a ida para por em dia a conversa com os namorados. Na ocasião em que se entregava a moenda era combinado com o moleiro o dia em que estaria pronta.
Ao moleiro competia apenas moer o milho, pagando-se ele próprio do seu trabalho através de uma “maquia” de farinha que retirava de cada uma das moendas. Como geralmente não a utilizava para uso pessoal, dado que ele próprio também tinha as suas terras de milho, vendia-a compensando assim todo o trabalho que tinha e as horas que passava no moinho, onde geralmente pernoitava, pois a substituição de cada moenda era manual.
Os moinhos na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores eram movidos a água, por isso eram construídos junto das ribeiras donde se desviava a água para um rego ou levada, que corria na direcção do moinho. A água encanada no respectivo rego corria no mesmo com maior pressão, saía do rego e projectava-se contra uma enorme roda dentada cujo movimento comunicava a toda a restante engrenagem que acabava por movimentar a mó. Na Fajã Grande os moinhos ficavam situados junto da Ribeira das Casas e deles, actualmente, apenas restam ruínas.
Com a devida autorização transcrevo parte de um email que me foi enviado por uma neta de um dos donos de dois dos moinhos da Ribeira das Casas e que retrata o estado a que lamentavelmente chegaram:
“…eu não sei bem há quantos anos eles foram construídos, mas sei que eram dois e duraram muitos anos. Eram os meus avós que moíam quase todo o milho da freguesia. As pessoas iam lá levar as moendas ou sacos, eles moíam-no e tiravam meia quarta para o pagamento. Quando meus avós ficaram velhos os meus pais é que continuaram a moer. Os moinhos usavam a água que vinha da rocha e caía no Poço do Bacalhau. Depois eles construíram uma levada que trazia a água desse Poço ate ao moinho. Antigamente tinham que lá dormir porque quando acabava uma moenda eles tinham que por outra, mas meu pai inventou uma engenhoca que quando uma moenda acabava, saltava e puxava uma corda que ia por fora e deixava cair uma espécie de portão ou tampa fazendo com que a água não passasse para cima da roda e o moinho parasse, até de manhã. Assim já não era necessário ficar alguém lá durante a noite. Pobre moinho! Já nada existe lá a não ser umas paredes, a roda que tinha alguns 30 pés de altura e uns ferros cheios de ferrugem. Parte das paredes e o telhado caíram e as madeiras estão todas podres. Apenas lá ainda se encontram as pedras que moíam o milho. Infelizmente os donos também já todos partiram… “
Moído o milho, a farinha era guardada em casa, num armário ou na amassaria a fim de ser usada consoante as necessidades, ou seja, para cozer bolo, pão de milho e escaldadas, para fazer papas ou até para alimento dos animais.
O pão era cozido uma vez por semana, geralmente à Sexta-feira e era dia de grande azáfama e alvoroço em casa. Primeiroera necessário ir ao “cepo da lenha” fender, rachar e picar muita lenha para aquecer devidamente o forno. No dia de cozer começava-se por escaldar a farinha numa enorme celha de madeira ou num alguidar de barro. Para tal regava-se a farinha com água a ferver e, enquanto esta massa arrefecia, aproveitava-se o tempo para acender o forno a fim de o aquecer de tal maneira que cozesse bem o pão. Forno mal aquecido pão mal cozido. Arrefecida a massa resultante da mistura da água com a farinha, juntava-se o fermento guardado da cozedura anterior e a “mistura”, ou seja, dois ou três punhados de farinha de trigo. Seguia-se o amassar. Oh braços, para que vos quero! Era uma tarefa cansativa pois a massa para levedar em boas condições tinha que ser bem amassada e, no fim, benzida, devendo, a mulher, depois de a amassar, desenhar-lhe uma cruz em cima e rezar a seguinte jaculatória: “San João t’afermente e Sant’Antonho t’acrescente”. Do forno saiam labaredas enormes e vermelhas que enchiam a casa de fumo e de calor. Só estaria pronto pão quando as pedras que ficavam por cima da porta estivessem brancas. Era necessário, em seguida, varrê-lo com o varredouro, geralmente feito de faia do norte ou de louro. Havia quem não tivesse verduras e fizesse um varredouro de trapos velhos mas, neste caso teria que o molhar, o que, segundo as opiniões mais abalizadas prejudicava o aquecimento do forno. A cinza era retirada e as brasas puxadas para junto da porta e guardadas numa espécie de átrio que esta tinha e protegidas com um semicírculo de ferro para que não caíssem no chão. De seguida a massa era partida em pedaços e padejada numa tigela previamente polvilhada com farinha e depois despejada em cima da pá que os ia colocando e arrumando dentro do forno, o qual deveria ser muito bem tapado. Passado uma hora o pão estava cozido e era retirado, um a um, com uma pá, colocado em cima da mesa e abafado com colchas e cobertores. Se o forno não estivesse bem aquecido o pão podia “encruar” e se apanhasse frio ao tirá-lo do forno podia “ocar”. Essa a razão porque nunca se devia abrir a porta da cozinha enquanto se tirava o pão do forno. A mulher que o cozia também não devia sair de casa e resguardar-se do frio durante toda a tarde e noite.
O bolo e as escaldadas eram feitos com uma massa semelhante à do pão mas sem fermento e sem “mistura”, com a diferença de que o bolo era cozido em tijolo de barro ou na chapa e as escaldadas no forno, imediatamente a seguir ao pão e aproveitando o calor resultante da cozedura deste. Acrescente-se que estas, para não levantarem, eram picadas com um garfo em toda a sua superfície superior. Por vezes coziam-se umas escaldadas especiais, uma vez que à massa se juntava graxa e uns pedacinhos de torresmos. Eram as chamadas escaldadas de torresmos.
Finalmente as papas que eram feitas quando o pão ou o bolo rareavam e eram de fácil mas demorada e cuidadosa elaboração. Num caldeirão com água a ferver era lançada a farinha que deveria ser contínua e ininterruptamente mexida com a “colher das papas” a fim de não formar godilhões. Mas papas, por mais mexidas que fossem, inequivocamente apegavam ao fundo do caldeirão formando uma deliciosa e apetitosa crosta conhecida por “Cascão das Papas”.
Pão, bolo, escaldas e papas eram comidos geralmente com leite. No entanto o pão, o bolo e as escaldas acompanhavam o conduto da maior parte das refeições. Muitas vezes o pão tinha que ser estufado ou frito para evitar o bolor. O bolo, quando mais velho, também se comia frito.
Na altura em que o milho era apanhado e com as maçarocas que não eram encambulhadas faziam-se as célebres “papas grossas”, de cozedura semelhante às outras mas com a diferença de que o milho ainda estava verde e era moído em casa, num “moinho de mão” que muitas famílias possuíam. Estas papas muitas vezes eram partidas às talhadas e fritas o que constituía uma refeição muito gostosa e apreciada.
Todos os anos, alguns dias após o milho estar todo apanhado, o que acontecia geralmente pelos Santos, recolhia-se, em toda a freguesia o “Milho para as Almas”.
Na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores, houve sempre um grande culto, devoção e, sobretudo, respeito pelas almas do purgatório, o que se verificava especialmente ao longo de todo o mês de Novembro. Recorde-se que inclusivamente o primitivo orago da freguesia da Caveira era as Benditas Almas, aliás nunca mudado por decisão canónica mas apenas por vontade popular, dado que considerava-se “que o dia em que se celebravam as Benditas Almas era de ofícios fúnebres e portanto pouco próprio para festas e celebrações”.
A importância do culto e devoção ou lembrança dos que tinham partido e eventualmente estariam no Purgatório a expiar as suas faltas até terem o álibi para entrar no Céu, era de facto gigantesca, desmesurada e a ela inequivocamente toda a freguesia aderia. Um dos pontos altos era o da recolha do milho da primeira casa da Assumada à última da Via d’Água e cujo dinheiro resultante da venda se destinava a celebrar missas opor alma de todas as pessoas até então falecidas na freguesia.
Com uma organização impecável e sob as ordens da “Mordoma das Almas” cargo desempenhado durante a minha infância pela minha avó materna, um grupo de homens carregando cestos às costas corriam as casas da freguesia uma a uma e recolhiam as maçarocas já descascadas que cada um achava que podia e devia oferecer por alma dos seus e dos outros. Todo esse milho era levado para casa da Mordoma e colocado na sala formando, a pouco e pouco, um enorme monte. Um grupo de mulheres e crianças sentavam-se à volta e debulhavam-no todo, maçaroca após maçaroca e enchiam-no em sacos a fim de ser vendido, o que acontecia geralmente no próprio dia da recolha.
O dinheiro resultante da venda do milho era entregue ao pároco que com ele ia celebrando missas e rezando responsos durante todo o mês de Novembro pela alma de todos os familiares já falecidos de todas as casas da freguesia.
Em tempos mais antigos, segundo relatos de pessoas mais idosa, esta recolha do milho era feita de forma diferente. Segundo esses relatos havia na rua Direita, perto da casa de Espírito Santo de Baixo, uma casa, chamada “Casa do Purgatório”. Nessa altura, em vez do milho ser recolhido sob as ordens da Mordoma, seriam as pessoas a ir levá-lo a essa casa, onde ia ficando guardado até ser debulhado e vendido, sendo o dinheiro resultante da venda também destinado a missas para as almas. Uma das minhas tias actualmente a rondar os noventa e quatro anos garante-me que se lembra de ir levar um saco de milho à “Casa do Purgatório”.
Curiosamente muitas pessoas, especialmente mulheres, quando se viam em dificuldades ou com problemas, voltavam-se para as almas e prometiam “tirar uma esmola” se, por intercessão destas, ficassem aliviadas de seus males. Se as Benditas Almas supostamente atendiam o pedido formulado, a votante corria sozinha todas as casas da freguesia. Batendo à porta gritava: “Esmola para as almas”. Cada família dava então um pouco de milho ou se o não tivesse ou não quisesse dar, respondia simplesmente: “Pai Nosso e Ave Maria”. O milho resultante deste peditório era geralmente entregue à Mordoma que o juntava ao anteriormente recolhido ou lhe dava destino idêntico.
Note-se que rituais semelhantes a este eram cumpridos quando se solicitava a intervenção do Santíssimo, da Sra da Saúde, de São José, Santa Filomena ou de outro santo, sendo neste caso o dinheiro entregue na igreja em memória do santo respectivo.
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AMARRADAS À ESTACA
As vacas, na Fajã Grande, tinham um papel primordial na economia de cada família, dado que constituíam a sua principal fonte de sobrevivência. Cada agregado familiar, no entanto, possuía apenas uma ou duas vacas. Somente os lavradores mais abastados, e que eram poucos, possuíam três e, muito raramente, quatro. Para além de um excelente e precioso meio auxiliar do trabalho agrícola, as vacas forneciam o leite, elemento fundamental na alimentação quotidiana de então e fonte exclusiva de receita, uma vez que uma boa parte do mesmo era vendida na Cooperativa ou no Martins & Rebelo. Daí que as vacas gozassem de um estatuto especial e de um tratamento cuidadoso e peculiar, não apenas quanto à alimentação, mas até na forma de se apresentarem. Vaca que se prezasse havia de percorrer as ruas da freguesia de manhã e à tarde, limpa, asseada, gorda, de pelo luzidio, de campainha presa ao pescoço com “estrape” de couro ensebado e fivela de latão e com ponteiras de metal nas pontas dos chifres. Uma beleza! Além disso, no Inverno, as vacas eram guardadas cuidadosamente nos palheiros, a fim de serem protegidas dos rigores das noites frias e tormentosas sendo, pela manhã levadas aos pastos, onde ficavam soltas a pastar a erva fresca e tenrinha, até à noite, altura em que eram novamente recolhidas aos palheiros. No Verão invertia-se o esquema: as vacas passavam as noites ao fresco, a pastar nas relvas e durante dia ficavam nos palheiros, protegidas do calor excessivo, da calmaria insuportável e das moscas incomodativas.
Os meses de Março e Abril, porém, constituíam uma alternativa radical a esta rígida transumância. Durante estes meses, as vacas eram “amarradas à estaca” no “outono”.
Nas terras onde habitualmente se verificava o ciclo agrícola do milho, havia um tempo em que os campos ficavam livres daquele cereal. Antes e por entre os milheirais de folhas amareladas e secas, a abarrotar de espigas loirinhas, semeava-se o trevo ou a erva da casta que iam crescendo, crescendo até se tornarem forragens apetitosas, que depois da apanha do milho formavam, com as folhas verdes e as flores vermelhas, azuladas, amarelas e esbranquiçadas, uma variadíssima gama de tapetes multicolores, ondulados pelo vento, ornamentando a freguesia de lés-a-lés.
Era por essa altura que as vacas eram para lá levadas, suspendendo assim o seu vaivém habitual pelas ruas da freguesia, entre palheiros e relvas e entre relvas e palheiros. Antes de lá as colocar, junto ao portal de entrada ou no sítio onde a forrageira era mais fraquita, ceifava-se uma boa parte, a fim de criar o “talho” ou seja o espaço adequado à colocação dos animais que ali ficariam alimentando-se não apenas das forragens verdejantes, mas também de erva e de incensos que para ali eram acarretados a fim de que a permanência dos animais durasse o tempo necessário e suficiente para “trilhar” bem o terreno, preparando-o assim para a próxima sementeira. Cada vaca era presa pela mão esquerda à ponta duma corrente, um pouco mais comprida do que o animal, dividida em duas partes, sendo uma, a da extremidade próxima da mão, mais delgada e curta e a outra mais grossa e presa por uma argola a uma estaca de ferro de tamanho variável, de acordo com a força do animal, para que este não a arrancasse e desse cabo do “outono”. As duas partes estavam ligadas por um “suevo” para evitar que a corrente se enrolasse devido ao esticar e encolher provocado pelo contínuo puxar do animal. Com um enorme maço de madeira as estacas eram enterradas em local que permitisse a cada vaca ter uma “cordada” ou seja, usufruir de um espaço de terreno individual que lhe proporcionasse alimento suficiente. A força da estaca por vezes tinha que ser reforçada com pedras retiradas das paredes circundantes, quer porque o animal fosse muito forte quer porque o terreno estivesse muito mole. No entanto, como o objectivo fundamental era estrumar bem o terreno, os homens passavam o dia a acartar para os campos onde tinham o gado molhos de erva e de incensos, acrescentando assim a cada “cordada” uma boa quantidade de outro alimento para que o animal estrumasse o campo da melhor forma. Junto ao portal a indispensável selha ou bidão com água, que era levada todos dias de manhã e à tarde, precisamente nas latas que depois da ordenha, haviam de vir carregadas aos ombros, suspensas em "caibos" e a transbordar de leite.
À tardinha, depois de terminar a faina agrícola nos outros campos e como as terras de “outono” eram próximas umas das outras, os homens, depois de dar a última “cordada” ao gado, enquanto esperavam a ordenha da noite, agrupavam-se em cima de paredes e maroiços circundantes. Vinham os de perto, vinham os de longe e vinham até os que nem gado tinham e ali ficavam em amena cavaqueira, discutindo sementeiras, planeando ceifas ou passando em revista os acontecimentos mais recentes do povoado, enquanto nós os fedelhos, pedindo as navalhas aos pais, íamos fazer vacas de fava, armas de sabugueiro ou músicas de canas. Quando as vacas, terminavam a “cordada” era a hora da ordenha. Abdicávamos, então, das brincadeiras e íamo-nos posicionar ao lado do ordenhador a fim de beber uma boa tapa de leite que saía morninha, com sabor a trevo e a erva da casta e que nos sabia tão bem.
E quando regressávamos a casa, já lusco-fusco, os animais ficavam no campo, “amarrados à estaca” de mão bem estendida para chegar ao melhor do “eito”, fazendo tilintar as campainhas penduradas ao pescoço, provocando uma delirante e estranha sinfonia.
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UVA
Alguns estudos realizados na área da importância do vinho na alimentação humana têm demonstrado que o simples sumo da uva é mais nutritivo do que o vinho, e, além disso, pode trazer os mesmos benefícios à saúde que traz o vinho, por conter os poderosos antioxidantes, chamados flavonóides, aos quais se atribuem os bons efeitos do vinho sobre o coração humano. Os flavonóides são elementos do grupo de metabólitos secundários da classe dos polifenóis, componentes de baixo peso molecular encontrados em diversas espécies vegetais. Os diferentes tipos de flavonóides são encontrados em frutas, flores e vegetais em geral, assim como em alimentos processados como chá e vinho.
Os flavonóides contidos, tanto no sumo de uva, como os do vinho, parecem ser capazes de evitar a oxidação do chamado mau colesterol, LDL que pode levar à formação de placas nas paredes das artérias.
Pesquisadores da University of Wisconsin Medical School em Madison pediram a 15 pacientes, que já mostravam sinais clínicos de doença cardiovascular, incluindo artérias entupidas, que bebessem diariamente um copo de sumo de uva. Após 14 dias, os testes sanguíneos revelaram que a oxidação, nesses pacientes, estava significativamente reduzida. Além disso, havia mudanças nas paredes das artérias, o que era sinal de que o sangue tinha fluído mais livremente no organismo. Assim, o consumo do sumo de uva em substituição do vinho parece ter a aparente vantagem de evitar os efeitos adversos do vinho, como alcoolismo, distúrbios de comportamento, síndrome fetal alcoólica, acidente vascular cerebral hemorrágico, hipertensão arterial, arritmia e morte súbita.
Aliás, a tradição atribui ao sumo de uva as mais elogiosas expressões como: sangue vegetal, leite vegetal e seiva viva, pois este sumo contém mais calorias que o leite e, a sua composição mostra surpreendentes semelhanças com a do leite materno. É pois, um alimento privilegiado para os períodos de "reconstrução" da fadiga, da anemia, da convalescença.
Além disso, o açúcar do sumo de uva, composto por glicose e frutose, é directamente assimilável, não exige nenhum esforço aos órgãos digestivos para o organismo o assimilar e, como tal, é aconselhável para a alimentação dos doentes atacados por febre.
O sumo de uva também é estimulante das funções hepáticas, fortalece o fígado e é indicado a pessoas intoxicadas pelo excesso do consumo de carne. O suco de uva é um valioso estimulante digestivo pois acelera o metabolismo, eliminando de seu organismo o ácido úrico, causador da fadiga. Além disso, ele ajuda a restabelecer o equilíbrio ácido-alcalino do organismo, necessário para um fornecimento constante e prolongado de energia.
Alguns estudos indicam uma baixa incidência de cancro nas regiões da França onde dieta de uva é feita uma vez por ano. Para manter as artérias jovens, deve tomar-se sumo de uva diariamente. Pesquisas realizadas na Universidade da Flórida revelaram que as substâncias químicas encontradas nas uvas ajudam a dilatar as artérias e, consequentemente, podem reduzir a pressão sanguínea.
O segredo das uvas é o da utilização do seu delicioso sumo no combate ao envelhecimento. Trata-se de um meio simples e poderoso, pois as uvas contêm vários antioxidantes conhecidos, que funcionam em conjunto para combater os radicais livres que promovem as doenças e envelhecimento.
O sumo da uva deve ser consumido isoladamente e não quando se consomem outros alimentos, para que se aproveitem todas as suas qualidades nutritivas.
As deliciosas uvas portuguesas, incluindo as de Gaia, sobretudo as bojudas e rechonchudas exploradas na Quinta de Santa Marta, Penafiel, embora esporadicamente e apreciadas de relance, quer comidas inteiras quer transformadas em sumo, são muito alimentícias, devido ao alto aporte de potássio e à presença de fibras dietéticas, que auxiliam no trato intestinal, beneficiam o sistema nervoso e muscular e protege os vasos sanguíneos, sendo uma fonte de vitamina C representativa. Além disso, como não contêm sódio, aquelas uvas podem auxiliar na redução do risco de hipertensão. No entanto o seu consumo deve ser esporádico e moderado, talvez mesmo sonhado, reduzindo-se a pouco mais de seis ou oito bagos, transformados em delicioso sumo.
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A FESTA DO ESPÍRITO SANTO
Durante toda a semana, quer a que antecedia a festa da Casa de Cima, no domingo de Pentecostes, quer a da Casa de Baixo, no da Trindade, na Fajã Grande das Flores, nos anos cinquenta, cantavam-se, à noite, às terças, quintas e sábados, as Alvoradas.
Um foguete, lançado por um dos cabeças, logo ao anoitecer, indicava que a partir daquele momento a Casa estava aberta. Os que iam chegando aos poucos, após entrar, rezavam por um momento em frente ao altar do Divino, iluminado e enfeitado, onde estava a coroa e, de seguida, sentavam-se em bancos dispostos de forma rectangular, contra as paredes laterais da enorme casa, ou ficavam a conversar pelo meio do amplo salão, enquanto a garotada ia fazendo jogos como o de descobrir um objecto a toque de tambor, o jogo do lenço, o burrinho do Lamé e muitos outros.
À hora marcada e com a casa à cunha, anunciada por um segundo foguete, principiava a Alvorada. Numa fase inicial a cantoria começava no pátio, fora da porta da Casa. De seguida, os foliões, um dos quais tocando tambor e outro, “testos” ou pratos, entravam na Casa, formavam uma roda e iniciavam uma dança típica, durante a qual cantavam, “Alvorada Santa” e outros cânticos apropriados. Curiosamente e durante a dança, cada um ao passar em frente ao altar, onde estava a coroa, rodopiava sobre si próprio e invertia a sua postura habitual na roda, de modo a ficar, durante os segundos que por ali passava, voltado de rosto para o altar, a fim de que ao andar em frente ao Divino Espírito Santo, não o fizesse de costas voltadas, sinal óbvio do respeito devido à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.
De seguida, o grupo parava, postava-se em frente ao altar e cantava as sete “Ave Marias”, seguindo-se o “Oferecimento” das mesmas, após o qual a Alvora terminava.
Após a cerimónia, a maior parte do povo, sobretudo os mais jovens, permanecia pela noite dentro na Casa, fazendo jogos de roda diversos, entre os quais o do Anel e outros jogos tradicionais em que todos paricipavam. Estes jogos, durante os quais todas as brincadeiras eram permitidas e as manifestações amorosas toleradas, eram uma excelente ocasião de se iniciarem ou até se solidificarem muitos namoricos, noutros lugares e noutros espaços proibidos pelos pais.
Na sexta-feira, antes da festa, de tarde, matava-se o gado. Os cabeças haviam elaborado antecipadamente uma lista com a quantidade de carne que cada mordomo, pertencente ao Império, desejava. Depois de tudo somado, era imperioso apalavrar, de seguida e atempadamente, umas duas ou três reses que perfizessem em quilos o total de carne desejado pelos mordomos.
O gado previamente seleccionado era levado para junto da Casa do Espírito Santo, onde aguardava a organização do cortejo, assim constituído: à frente os animais e a garotada, depois a bandeira branca, as duas vermelhas e a coroa, atrás da qual caminhavam os foliões a cantar, seguidos duma enorme chusma, mais de meia freguesia. Na torre da igreja os sinos em alegres repiques e o estalejar dos foguetes juntavam-se à procissão, que caminhava, lesta, em direcção ao sítio onde gado seria abatido – o Matadouro. Este situava-se no fim da rua da Via d’Água, já quase no Porto, ali mesmo à beirinha da Baía d’Água, num pequeno rolo que separava o baixio do caminho e no qual havia um nicho apropriado, onde era colocada a coroa, ladeada pelas bandeiras, durante o tempo que demorava a matança, esfola e esquartejamento dos animais. Quanto às vísceras, o fígado, o coração e a língua ficavam para os matadores, com os quais normalmente guiavam uma apetitosa “caçoila”, o sangue era dado a quem o quisesse para fazer um saboroso sarapatel, assim como o bucho com o qual, depois de muito bem lavadinho, se fazia dobrada. Os bofes e a cabeça eram dados aos cães e as tripas atiradas ao mar, para gáudio dos peixinhos.
Terminadas todas estas operações, o cortejo regressava à Casa. A carne das rezes era espetada pelos tendões em grossos paus, de palanca, transportados por homens, aos ombros, suspensa, ainda a escorrer os últimos pingos de sangue, enquanto os sinos, os foguetes e o cantar dos foliões, as pessoas, a coroa e as bandeiras enchiam as ruas de som, de cores, de desejos, de festa e de alegria. Colocada no chão da Casa, devidamente forrado com folhas de cana roca, a carne ficava ali a arejar e a aguardar que as mãos experientes de um grupo de homens, durante a noite, a desmanchasse e cortasse aos pedaços e com eles fizessem montinhos, de acordo com os pedidos formulados pelos mordomos e outros para os pobres, escrevendo num papelinho que lhe colocavam em cima, o nome do destinatário.
No sábado de tarde distribuía-se a carne pelas casas dos mordomos que a haviam solicitado na segunda-feira de Páscoa, anterior. Nesse dia, as duas coroas em conjunto e acompanhadas pelos cabeças e foliões de ambas as Casas, haviam percorrido todas as moradias da Fajã, de um ponta à outra, a fim de “atestar” os mordomos de cada uma, ou seja, saber de qual das casas pretendiam a carne, se apenas de uma ou das duas, assim como a quantidade que desejavam.
A cerimónia iniciava-se pela manhã, com a bênção da carne e do pão, este cozido por promessas de alguns dos mordomos e que seria distribuído pelos pobres juntamente com alguma carne. O pároco dirigia-se para a Casa do Espírito Santo de sobrepeliz e estola branca, acompanhado pelo sacristão com a caldeirinha e o hissope. Colocava-se em frente aos montículos de carne e às pilhas de pão, aspergia-os com o hissope, rezava algumas orações em latim e depois de fazer um cruz sobre tudo e todos, retirava-se.
Competia às crianças da freguesia, da parte da tarde, levar carne a casa dos mordomos. Munidas de pequenas cestinhas ou travessas, aos pares e em constante rodopio, uns levando o pão e a carne aos pobres e outros a carne aos mordomos, de acordo com o nome indicado no papelinho e que um dos cabeças, à medida que partiam, ia riscando no rol elaborado na 2º feira de Páscoa. Acompanhavam-nas os foliões, as bandeiras, a coroa e algumas pessoas. A coroa entrava nas casas de todos os mordomos, juntamente com as oferendas, para que cada elemento da família beijasse a pombinha, símbolo do Divino Espírito Santo, encravada numa das extremidades do ceptro.
A distribuição iniciava-se no cimo da Assomada. Seguia-se o Alagoeiro e a Fontinha, o Caminho de Baixo, as Courelas, a Rua Direita, a Rua Nova, a Tronqueira e terminava, já ao início da tarde, no fim da Via d’Água. Os sinos tocavam durante todo o dia, logo de manhã durante a bênção e pela tarde fora, enquanto demorava a distribuição, alternando o seu alegre repicar com os sons do tambor e dos testos e com o cantar dos foliões.
Meu tio era o sacristão, cargo a que estava anexo o de sineiro. A sua pouca disponibilidade para um e outro cargo, obrigara o pároco à contratação de um ajudante, tendo a escolha recaído sobre mim. Por isso me iniciei cedo no papaguear do latim da liturgia e no tocar dos sinos, tarefa esta em que me orgulhava e ufanava, pois tocava-os como ninguém. Do alto na sineira via e ouvia o canto dos foliões acompanhados pelo tambor e pelos testos. Por isso, assim que eles paravam, iniciava logo um harmonioso e prolongado repique que para além de permitir um bom descanso aos foliões, fazia com que o Divino Espírito Santo não andasse a circular pelas ruas e pelas casas, um momento que fosse, sem ser acompanhado por música: ou pela do cantar dos foliões ou pela do toque dos sinos.
No domingo realizava-se a verdadeira festa do Espírito Santo. De manhã, depois de aberta pelos cabeças e com o tradicional foguete, os mordomos e outras pessoas afluíam à casa, onde de imediato a garotada, enquanto esperava pela saída do cortejo, organizada os jogos e as brincadeiras habituais. À hora marcada organizava-se um cortejo, com destino igreja paroquial, enquanto os sinos repicavam e os foguetes estalejavam no ar e em abundância, ecoando nos outeiros e rochas circundantes. Quanto mais foguetes melhor era à festa e, neste aspecto a Casa de Baixo ultrapassava de longe a de cima, pois para além do fogo preso, à noite, ainda se dava ao luxo de, em pleno arraial, disparar um tiro de canhão. Como era habitual, o cortejo abria com a bandeira branca, depois as vermelhas transportadas por meninas e a seguir a coroa levada também por uma menina, ladeada por outras transportando o ceptro e flores, vestidas com trajes adequados e cercadas por outras quatro formando um quadrado com as varas. Seguiam-se os foliões, os mordomos e uma boa parte do povo. O restante esperava, no adro, a chegada à igreja, onde o pároco, como nos domingos anteriores, embora com mais solenidade também aguardava o cortejo e a coroa, à porta do Guarda-Vento.
De seguida, entravam todos na igreja, ao som do “Veni Creator Spiritus ”. A Missa era cantada e terminava com a bênção e a incensação da coroa, enquanto se cantava o “Alva Pomba”. O cortejo reorganizava-se novamente e regressava à Casa, fazendo o trajecto inverso.
Todos voltavam às suas casas para o jantar, a fim de saborearem a carne que cada um havia cozinhado a seu gosto. Na véspera, a carne havia sido temperada e posta em “vinha-d’alhos”. De manhã era “rosada” em banha de porco e depois guisado em caldeirões de ferro, ficando prontinha antes da missa. A refeição era acompanhada normalmente com inhames e pão de trigo, havendo também, quase sempre, pão doce.
De tarde o povo juntava-se de novo na Casa, para as arrematações, para os cantares, para os jogos e, sobretudo, para o convívio. As arrematações resultavam das promessas que muitos mordomos. Eram feitas de massa igual à do pão doce, mas representando uma parte do corpo, geralmente pés, mãos, braços ou cabeça, que haviam sofrido alguma maleita, ou animais, geralmente suínos ou bovinos, que haviam estado doentes mas que tinham sido curados, por graça do Divino Espírito Santo, a quem agora se agradecia. Outras pessoas ofereciam a massa, mas simplesmente na sua forma habitual de pão. Muitos mordomos que haviam feito promessas mas não tinham conseguido cozer pão, arrematavam uma oferenda semelhante à que haviam prometido e ofereciam-na, a fim de que fosse novamente arrematada.
Como era grande a quantidade de massa oferecida, muita não era arrematada. Era partida às fatias, colocada em açafates e distribuída por todos juntamente com cálices de licor ou de “vinho fino”.
Todo o pão, tanto o das promessas como o doce e o de trigo, que sobrava era distribuído pelos pobres.
A festa prolongava-se até ao anoitecer.
No dia da festa, à tardinha, realizavam-se as sortes, ou seja, a escolha e indicação dos nomes dos dois cabeças que, no ano seguinte, seriam os responsáveis pela preparação e organização da festa, uma vez que cada mandato, regra geral, durava apenas um ano. Os cabeças eram dois, normalmente designados por primeiro e segundo, sendo que o primeiro assumia as funções de líder.
Da lista dos mordomos, os cabeças em exercício, por sua livre iniciativa, escolhiam nove nomes que liam bem alto perante todo o povo, que com o seu aplauso, aprovava tais escolhas. De seguida escreviam-nos, um por um, num papelinho que dobravam muito bem para que se não visse o nome que lá estava escrito e colocavam-nos todos dentro da coroa do Divino Espírito Santo. De seguida escolhiam uma criança de tenra idade e pediam-lhe que tirasse da coroa dois bilhetinhos.
Fazia-se um enorme e profundo silêncio na sala e todos aguardavam com grande expectativa os nomes sorteados e que, dentro de momentos, iam ser conhecidos. Um dos cabeças, muito devagar e com estranha solenidade, abria o papel, fazia uma pausa, e de uma golfada e em voz bem alta, anunciava o nome sorteado. Uma enorme e estrondosa ovação se fazia sentir por toda à casa, seguida por uma grande salva de palmas e um imediato atirar de foguetes, saudando o novo primeiro cabeça, para o ano seguinte. Idêntico procedimento se verificava, quando era tirado e lido o outro nome que indicava quem seria o segundo cabeça.
Mas nem sempre assim acontecia. Por vezes, quando os mordomos entendiam que a festa tinha sido boa, graças à brilhante acção e ao profícuo trabalho daqueles cabeças, tentavam, umas vezes com sucesso outras não, cobri-los com a bandeira vermelha. Se o conseguissem fazer, antes de serem lidos dos dois nomes, as sortes paravam de imediato e seriam eles os cabeças, no ano seguinte. Daí que por vezes se verificassem interessantíssimas tentativas de “ataques e fugas” entre os mordomos que pretendiam cobrir os cabeças para que continuassem e estes que permaneciam de olhos bem abertos e muito atentos para fugirem à cobertura e assim se libertarem de tão trabalhoso e imponente cargo.
A festa terminava, já lusco-fusco, com um novo e último cortejo com a coroa, as bandeiras, os foliões e o povo que se organizava e, partindo da Casa de Espírito Santo, se dirigia às casa de ambos os novos cabeças a fim de lhes dar conhecimento oficial e entregar-lhes “as sortes”.
Entre as festas de Espírito Santo da Casa de Cima e da Casa de Baixo havia grande rivalidade e até alguma competição, pois cada qual se esforçava por fazer uma festa melhor do que a outra. A Casa de Cima, da qual meu pai foi sempre mordomo, tinha contra si um senão: é que fazia sempre a festa, no próprio domingo do Pentecostes e a de Baixo no domingo seguinte, ou seja no da Trindade, o que obviamente lhe concedia alguma vantagem ou favoritismo.
Interessante, no entanto, é que toda esta rivalidade era salutar e respeitada. Basta recordar que as duas coroas em conjunto e acompanhadas pelos cabeças, pelos foliões e por muitos adeptos de ambas as Casas, percorriam em conjunto e lado a lado todas as moradias da Fajã, de um ponta à outra, afim de, em cada ano, “atestar” os mordomos de cada uma, ou seja, saber de qual das Casas pretendiam a carne e a quantidade desejada, por altura da festa. Tudo isto era realizado no maior e mais salutar espírito de colaboração.
No entanto era opinião generalizada e quase unânime de que a festa da Casa de Baixo ultrapassava de longe a da Casa de Cima: um cortejo mais solene, as meninas que levavam a coroa mais bem vestidas, pois os pais eram mais ricos, mais fogo, incluindo fogo preso à noite e, sobretudo, pelo tiro disparado pelo canhão, em pleno arraial, a meio da tarde do domingo e pelo qual todos esperaram com ansiedade. Simplesmente espectacular!
A origem do dito cujo era desconhecida, embora se cuidasse que tivesse, outrora, sido recolhido na costa, onde por vezes vinham parar muitos restos e objectos de navios naufragados. O canhão era uma enorme boca de fogo de artilharia que estava montado sobre uma carreta e que consistia basicamente num tubo fechado numa das extremidades e dentro do qual, através da outra, se ia metendo pólvora, papelão e outro entulho, o qual era muito bem batido e calcado com uma soquete, de forma a ficar compacto e simular uma espécie de projéctil, que, depois de pronto, era incendiado através do lume que dentro dele se introduzia por meio de um rastilho que atravessava um pequeno orifício na parte superior da grossa parede do tubo. O canhão era colocado sobre o chafariz que existia junto à empena Sul da Casa, do lado do altar. Enquanto se preparava o material, a rua Direita e os caminhos e pátios ao redor enchiam-se, para apreciar aquele grandioso e imponente momento da festa. Uma vez tudo preparado, todos se afastavam, enquanto um homem, o mais “anamudo” e expedito, largava lume ao rastilho, afastando-se logo em grande correia. O rastilho ia ardendo lentamente até fazer chegar o lume ao interior do tubo e incendiar a pólvora ali armazenada, provocando uma enorme explosão, projectando a grande distância aquele entulho transformado em bala e provocando, simultaneamente, um grande estrondo, que alguns segundos depois se repetia em eco, na Rocha das Águas.
Era a alegria total! Um dos momentos mais altos e mais emocionantes da festa.
Conta-se ainda hoje, que num determinado ano, alguém, de propósito ou não, no final da operação de batimento do entulho, se esqueceu de tirar o soquete, sendo este projectado juntamente com a bala e encontrado, dias depois, numa terra lá para as bandas do Mimoio, já próximo da Ribeira, o que permitiu, assim, esclarecer as duvidas que existiam sobre o alcance daquela antiga arma de guerra, transformada, na altura, em canhão do Espírito Santo.