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O MEU PRIMEIRO FECHO ECLAIR

Quinta-feira, 13.06.13

 

O fecho eclair foi inventado pelo engenheiro norte-americano Whitccomb L. Judson em 1891 e era constituído por uma série de ganchos que se prendiam a pequenas argolas. Este fecho, porém, ter-se-á revelado pouco eficaz, dado que se abria com muita facilidade e, provavelmente, teria sido votado, por completo, ao abandono se não fosse o engenheiro sueco Gideon Sundback, no primeiro quartel do sec XX, a desenvolver a ideia de Ludson, substituindo ganchos e argolas por dentes metálicos entrelaçados uns nos outros, criando assim o fecho eclair tal como ainda hoje o conhecemos hoje, embora de forma mais perfeita e funcional do que a apresentada por Sundback.

Foi esta alteração que permitiu que o fecho eclair se fosse espalhando, aos poucos, por todo o mundo e, embora demorando o seu tempo, chegasse aos locais mais recônditos, substituindo, parcialmente, o longo e histórico reinado do botão.

Sobre o fecho eclair, que teve o seu período áureo na segunda metade do século passado, até o poeta António Gedeão fez um dos seus mais belos poemas, onde  afirma que o próprio rei Filipe II teve tudo o que um monarca podia desejar, porque “ Um homem tão grande, tem tudo o que quer,” mas “o que ele não tinha, era um fecho eclair.”

Contrariamente a Filipe II, eu não só tive um como muitos fechos éclair. Mas o mais importante para mim e aquele que nunca mais esqueço foi o primeiro que tive.

O meu primeiro fecho eclair chegou-me da América, andava eu ainda na 1ª classe, de calções e de pé descalço. Era uma “soera” verde, com o pescoço a prolongar-se pelo peito, mas que se abria e fechava, graças à invenção do sr Judson. Eu adorava aquela “soera”, não tanto pelo verde, sem sequer pelo confortável agasalho que me concedia, mas pelo fecho eclair de que me envaidecia e ufanava, por ser dos primeiros que tinham aparecido lá pela minha freguesia, no início da década de cinquenta. Passava horas e horas, mesmo quando não a tinha vestida, a puxar o fecho para baixo e para cima e a contemplar, absolutamente admirado, aqueles dentinhos metálicos a correrem ritmadamente uns atrás dos outros, para baixo e para cima. Verdadeiramente espectacular!

Um dia minha mãe morreu e como se isso não bastasse decidiram baldear toda a minha roupa, incluindo a tal soera do fecho eclair, para dentro de um enorme caldeirão, cheio de água a ferver e no qual haviam deitado uns tubos de tinta preta "Coureina", para que assim se tingisse e perdesse as cores naturais, tornando-se preta, a fim de “deitar” o luto devido pela morte da minha progenitora.

É verdade que a soera de verde passou a preta, mas também é verdade que o meu primeiro e inesquecível fecho eclair, por causa daquela estranhíssima e galvanoplástica operação, nunca mais voltou a ser o que era.

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publicado por picodavigia2 às 21:19

OS DOMINGOS EM QUE O SEA IA À MISA

Quinta-feira, 13.06.13

Os domingos, entre a Páscoa e o Pentecostes, na Fajã Grande chamado dia do Senhor Espírito Santo, eram os únicos dias em que as quatro coroas, correspondentes a tantos outros impérios, incluindo a pequenina de S. Pedro (na Casa de Cima) iam à missa, à igreja paroquial. Nesses domingos, todas as casas em que havia crianças ou jovens se engalanavam, colocando nos pátios, ou nas “terras da porta” ou até num dos cantos da casa, um altíssimo pau com uma bandeira no cimo, semelhante em tudo, excepto no tamanho, aqueles grandes que existiam, um na Casa de Cima e outro na de Baixo e nos quais, nesses dias, também eram içadas bandeiras gigantes.

A Assumada onde eu morava, enchia-se com paus e bandeiras, a começar pelo José Augusto, lá no cimo da rua e a terminar no Jaime, cá em baixo, já bem perto da Praça. Pelo meio o José Gonçalves, o Laurindo, o Orlando, a Fátima Silva, o António do Pico, o João de Freitas, o António Jorge, eu e meus irmãos e muitos outros. As bandeiras eram brancas e ornamentadas com flores ou ramos nos cantos e com uma coroa e uma pomba, geralmente vermelhas, no centro. O mastro tinha que ser grande e direito, normalmente feito de criptoméria e era encimado por uma pomba de madeira. Umas, as dos que tinham possibilidades de as comprar já feitas em torno adequado, eram prateadas ou envernizadas como as dos paus das bandeiras das Casas de Cima e de Baixo, outras eram toscas, abruptas e falquejadas pelos próprios, dado que não tinham dinheiro para as comprar. Nem sequer eram pintadas, mantendo a cor amarelada da madeira. Na extremidade superior do pau e logo abaixo da pomba era aparafusada um pequena roldana, através da qual passava um cordão, onde se amarrava a bandeira, que depois se ia puxando, puxando a fim de que a dita cuja subisse lá bem para o alto e assim se abanasse ao vento, de forma a que fosse vista e anunciasse a passagem das coroas pelas ruas.

A primeira coroa a chegar era a da Quada. Vinham todos à missa, trazendo a coroa e as bandeiras (geralmente duas vermelhas e uma branca, semelhante às que abanavam nos nossos paus) seguidos dos foliões a cantar o “Venha, Senhor Venha” e “O Lavrador da Arada”, orientados pelo Bygoret no testos e o por meu primo Zé Maria no tambor. Juntavam-se aos da Casa de Cima e à coroa de S. Pedro e esperavam todos, junto ao chafariz para que os da Casa de Baixo dessem sinal de partida. Caminhavam, então, ao encontro uns dos outros, em direcção à igreja, pela Rua Direita, que assim se enchia de sons, de cantares, de glória, de louvores e dos toques dos foliões, acompanhados pelo repicar dos sinos. Por fim as quatro coroas e as bandeiras juntavam-se todas à porta da Igreja. O Guarda-Vento abria-se e o pároco, revestido de capa de asperges, aspergia as coroas, molhando o hissope na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, acompanhando-as, depois, em procissão, enquanto entoava o “Magnificat”, conduzindo-as até aos altares laterais, onde as colocava e onde permaneciam até ao fim da missa. As bandeiras vermelhas, que como as coroas também eram transportadas  por familiares dos cabeças, eram colocadas ao lado dos altares, enquanto as brancas, aparentemente menos dignas, ate porque eram transportadas por crianças e nos cortejos seguiam sempre à frente, ficavam ao fundo da igreja

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publicado por picodavigia2 às 20:18

TRINDADES

Quinta-feira, 13.06.13

Quem não se lembra delas, de manhã e, sobretudo, à noitinha, a emanarem harmónicas, pungentes e ataráxicas dos bronzes gigantes pendurados nas janelas da torre sineira da igreja?! Um sino maior, com o som mais grave e sério, que dobrava e rodopiava sobre um eixo que o atravessava a meio e o outro mais pequeno e mais reguila, com um som mais agudo e acutilante, encastoado nos umbrais da janela, da torre altaneira, voltado a Sul. Todos os dias, de manhã ao abrir-se a igreja e à noite ao fechá-la, três fortes badaladas no sino grande, espaçadas por intervalos de tal maneira longos e adequadamente suficientes para quem estivesse nos campos, nas casas, nas ruas, por aqui e por além, dispusesse do tempo necessário a fim de rezar o “Anjo do Senhor”, acompanhado duma “Ave-Maria”. Ao primeiro toque os homens tiravam o boné e paravam o trabalho, as mulheres suspendiam os afazeres domésticos, apertavam as mãos e oravam, as velhinhas sentadas às janelas, à espera que o Sol desaparecesse no ocaso para renascer na manhã seguinte, apertavam as contas do rosário com mais fervor. As três badaladas terminavam com duas finais, menos espaçadas a fim de rezar apenas o “Glória ao Pai.”

Aos domingos e dias santos, e na véspera destes dias à noite, porém, o toque alterava-se substancialmente. Eram as Trindades Dobradas. O sino mais pequeno juntava o seu som ao do grande e os dois batiam as badaladas simultâneas eem uníssono. Sóque enquanto, nas Trindades habituais, também chamadas de Trindades Singelas, precisamente por serem tocadas por um só sino, se dava apenas três badaladas seguidas das duas finais, nas Trindades Dobradas ou Festivas, os dois sinos davam simultaneamente três badaladas seguidas, antes de cada um dos intervalos destinados à reza do Anjo e da Ave-Maria. Mas a grande diferença era no final. As duas badaladas destinadas ao Gloria final eram substituídas por um, dois ou três repiques, consoante a importância da festividade.   Por exemplo, Natal, Páscoa, Espírito Santo, Senhora da Saúde e São José, por ser o padroeiro, tinham três repiques. As outras festas e dias santos dois e os domingos, um só.

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publicado por picodavigia2 às 19:41

COUVE

Quinta-feira, 13.06.13

A couve é um vegetal crucífero do género Sonássica, pertencente à família Brassicácea, da qual fazem parte mais de 3.000 espécies, entre elas, o repolho, a mostarda, o rabanete e o nabo. Nativa da Europa, cedo chegou a Portugal, tornando-se uma das hortaliças mais consumidas e apreciadas no nosso país. Caracterizada por possuir longas folhas comestíveis de formato oblongo, umas onduladas outras lisas, que podem ser encontradas em diferentes tons de verde, a couve é muito cultivada, dado ser um alimento altamente nutritivo e cheio de propriedades medicinais.

Rica em vitaminas diversas e cheia de minerais como o cálcio e ferro, a couve ajuda a prevenir e combater diversas doenças, uma vez que possui a chamada “acção vermífuga”, ajudando a eliminar problemas do fígado e do estômago, sendo também muito aconselhada com o objectivo de amenizar a asma e a bronquite. Além disto, a couve possui alguns compostos como os fenólicos que, segundo pesquisas recentes, têm sido eficazes em diminuir a multiplicação de células cancerígenas. Por outro lado, por ser pobre em calorias, a couve pode estar presente em dietas de restrições calóricas, cujo objectivo é emagrecer. No entanto, o seu consumo, excessivo, pode causar flatulências ou gases em alguns indivíduos.

A couve adapta-se muito bem tanto a climas frios como aos amenos e, embora não sendo afecta a altas temperaturas, também se dá em épocas quentes, pelo que, geralmente, é cultivada durante todo o ano. Muito apreciada na culinária, a couve, para além de muito usada em sopas, compõe diversos pratos tipicamente portugueses.

A couve é uma planta cuja descrição se torna difícil, já que as diversas variedades são bastante diferentes umas das outras, em termos morfológicos. Assim, pode-se considerar, genericamente, que é uma planta herbácea, mas há algumas variedades sublenhosas na zona da base do caule, pelo que também pode ser considerada uma planta bianual, mas, por vezes, tem tendências para que o seu ciclo de vida se prolongue para além dos dois anos. O caule é erecto, podendo ser curto, como no repolho, ou longo, como na couve-galega. As folhas são verdes e grossas, não chegando a ser carnudas. Ao longo do caule, nos Açores chamado talo, podem formar-se pequenos ramos ou gemas, como na couve-galega, ou na couve-de-bruxelas. As flores, dispostas em ramos terminais erectos, podem ser brancas ou amarelas, com sépalas erectas e corola composta por quatro pétalas obovadas e unguiculadas. Os rebentos superiores, depois de amadurecidos, transformam-se em grelos.

A couve é rica em vitamina, cálcio e outros nutrientes bons para o nosso corpo. Sabe-se que, também, possui compostos que provocam o aumento da produção de enzimas envolvidas na desintoxicação e limpeza do nosso corpo, eliminando compostos nocivos e aumentando a capacidade de eliminar e agentes cancerígenos. Esta é uma das razões porque os vegetais crucíferos parecem reduzir nosso risco de cancro de forma mais eficaz do que quaisquer outros legumes ou frutas.

Estudos recentes mostram que as pessoas que comem vegetais crucíferos, como a couve, mais frequentemente, têm um risco muito menor de cancro da próstata, colo-rectal e cancro do pulmão, mesmo quando comparados com aqueles que comem regularmente outros produtos hortícolas.

Assim, a couve é, também, um alimento muito bom e, sobretudo, muito útil no tratamento de úlceras, de certos cancros, depressões, para o fortalecimento do sistema imunológico e combate à tosse e ao resfriado, cicatrização de feridas e tecidos danificados, o bom funcionamento do sistema nervoso e, assim como, para ajudar a curar a doença de Alzheimer.

Por todas estas razões, é muito importante o consumo da couve. Mas as repolhudas, rechonchudas, reboludas, suculentas e deliciosamente arredondadas, são pouco acessíveis, apenas foram plausivelmente visíveis, uma vez. Mas é deslumbrantemente belo, assomar a uma janela ou varanda e ver, apreciar e saciar-se com uma espécie de pequeno cerrado cheio de couves, como era costume outrora, na Fajã Grande, quando elas eram cultivadas, em grande extensão, sendo, também, utilizadas para alimento dos animais. Mas aos doentes que sofrem de insuficiência renal, a couve está interdita no cardápio diário. Estes doentes contentar-se-ão apenas com o repolho branco, quer nas suas sopas, quer noutros pratos, ou, então limitar-se-ão a recordar a beleza endémica de um belo cerrado a abarrotar de couves, tenras e fresquinhas, mas que lhes são interditas.

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publicado por picodavigia2 às 19:06

NOCTURNO

Quinta-feira, 13.06.13

O Sol já descia, amarelado e pardacento, sobre os lúgubres casebres da freguesia. A ilha estendia-se calma e serena sobre o oceano azulado, consciente da sua ânsia de infinito. O mar tranquilizava a esperança, desafiava o destino, mas prometia uma bonança limitada. O vento, vestido de púrpura, soprava, levemente, de sudoeste. O verão, embora timidamente, como que anunciava o princípio do seu fim, e os campos cobriam-se, agora, de um verde cada vez mais amarelado e fulvo, na ânsia de, apressadamente, proclamarem o almejado amadurecimento dos milhos semeados nas belgas mais soalheiras e nos campos mais férteis.

Eu descia o aclive do Covão, de aguilhada em riste, imaginando tanger a Moirata e o Damasco, jungidos garbosamente, puxando um pesado carro de incensos, lançando alucinantes gritos que ecoavam retumbantes nas encostas sobranceiras do Pico da Vigia. De vez em quando parava e punha-me de cócoras, ora para apertar, ora para alargar, os parafusos dos cocões fumegantes. As reses, impacientes e desabridas, porém, não contemporizavam com os meus excessivos e curiais cuidados para com o famigerado obstáculo do seu descanso e, alardeavam-se em extravagante correria, virando o carro e os incensos e desapareciam, enquanto a minha fictícia e simulada tarefa era substituída por estroinices reais e aberrantes, não para mim, nem para os meus princípios de menino de sete anos, mas para os proprietários dos currais, belgas e courelas onde, debaixo dos meus pés, rolavam marouços e ruíam paredes, sobre as quais acintemente saltava, para encurtar distâncias.

Por toda a freguesia já corria a fama de que pedras atiradas para os campos ou paredes e marouços deitados abaixo, no caminho do Outeiro Grande, eram obra minha.

Sim senhor! Pudera! Passava lá todos os dias!...

Fora uma espécie de contrato amistoso que meu pai celebrara, sem me consultar, com o barbeiro e que me condenava a ir levar-lhe e buscar, todos os dias, ao Outeiro Grande, a Trigueira com cria serôdia, tendo, como obrigação da parte dele, tosquiadura grátis a todos os elementos do agregado familiar. E não eram poucos! O contrato, porém, ainda continha mais uma cláusula, que nos era extremamente favorável: como o homem acumulava as funções de latoeiro com as de barbeiro, lata que furasse, lá em casa, tinha pingo de solda rápido, eficiente e gratuito.

Quanto às paredes e marouços, meu pai, perante o persistente e contínuo chorrilho de queixas que lhe chegavam aos ouvidos, já me avisara várias vezes. Que as levantasse ele! Aliás, quantas mais queixas ou ameaças surgissem, mais paredes e marouços apareceriam derrubados nos dias seguintes.

Pedradas às ovelhas do Delfim era tarefa certa e quotidiana. Podia eu passar ali, todos os dias, agarrado ao rabo da Trigueira, não encontrar ninguém sentado nos degraus que dão para a Pedra d'Água e não atirar umas valentes pedradas às ovelhas daquele biltre? Claro que as pedradas eram para o bigorrilha, mas os pobres ovinos, que já fugiam só de ouvir, ao longe, o som reconhecível da campainha da Trigueira, é que eram as vítimas. Apenas em duas situações eram perdoados: quando alguma badana procriava ou, quando a viagem era mais tardia, já luz-que-fusco, e eu, então, corria, cheio de medo, ao passar, mais abaixo, junto ao Calhau das Feiticeiras. Dizia-se que estas apareciam por ali, precisamente ao anoitecer. E a verdade é que no velho e monstruoso tufo estavam gravadas as marcas aberrantes e inconfundíveis dos seus pés.

Na velha cozinha, enorme, vetusta, esconsa e mal iluminada, onde ainda fumegava, porque mal apagada, uma pequena candeia alimentada a enxúndia de galinha, a mobília era constituída por meia dúzia de bancos e um pequeno armário em que as portas eram uns panos escuros e pardacentos, onde se guardavam os pratos, as tigelas, os caldeirões e outros utensílios. No meio uma enorme descomunal mesa, à volta da qual se ordenavam os bancos de forma isómera. Sobre a mesa, onde abundavam migalhas de pão e sobejavam pingos de café, de leite e de graxa, um enorme pão de milho e um bocado de queijo. No lar panelas velhas e tisnadas, achas de lenha e garranchos para acender o lume. No chão sacos de serapilheira com batatas, inhames, cebolas e maçarocas de milho, tudo num perfeito desarrumo e um caixote, devidamente forrado com cobertores, a servir de parque a meu irmão mais novo. Ao lado, o balde do porco e um gato. A lenha picada e muito bem empilhada debaixo do lar, constituía o sector de maior arrumação.

Era uma sexta-feira. E era neste amontoado de pobreza e desarrumação que minha irmã Amélia, de “varredouro” em riste tentava limpar o brasido do forno, onde durante algumas horas cozeria o pão que ainda não há muito havia amassado e tendido. Depois o descalabro de acender a enorme e saliente fornalha, com lenha de incenso verde como o cubre, a encher-lhe os olhos de lágrimas e a demorar uma eternidade para pegar. Para expandir as suas jactâncias de pegulho forçado por uma vil crueldade da natureza a tornar-se adulto ou para se alheanar do calvário quotidiano a que fora condenada, quando meu pai entrou cantava distraidamente:

No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo:”Viva! Viva!” Está dizendo:”Viva! Viva!”

A quem o queira apanhar, a quem o queira apanhar.

No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo:”Morra! Morra!” Está dizendo:”Morra! Morra!”

Morra quem não o souber apanhar…

Pela mente passavam-lhe as brincadeiras que antecediam a Alvorada, nas noites antes da festa do Espírito Santo, na Casa de Cima. Homens e mulheres, jovens e donzelas faziam rodas enormes dando as mãos e cantando, enquanto a pequenada os imitava com o jogo do lenço. Só então entravam os foliões que então iniciavam danças e cânticos, acompanhados pelo tambor e pelos pratos, diante do altar, onde devidamente iluminada e ornamentada estava a corroa do divino.

Meu pai entrou e de rompante perguntou-lhe:

- Amélia, viste o Álvaro? Sabes para onde está?

Interrompida tão sopeteado enlevo e empurrando o “o varredouro “bem para o fundo do formo com intuito de varrer os cantos mais recônditos, retorquiu sem o olhar:

- Então meu pai não sabe?! É a mesma coisa todos os dias… Vai levar as vacas do   primo Luís ao Outeiro Grande e fica por lá a manhã toda… Meu pai é que fez essas combinações...

- Qual combinações, qual carapuça! Não sabes a nossa vida, filha? Como é que eu posso pagar ao Luís para cortar o cabelo a teus irmãos e a mim? Sabes muito bem que o dinheiro que ia gastar por mês para cortar o cabelo a todos dá p’ro sabão, p’ro petróleo e, uma vez por outra, comprar um bocadinho de açúcar. E nem fui eu que pedi ao primo Luís… Foi ele que me fez a proposta: se um dos pequenos lhe fosse levar as vacas todos os dias, ele cortava-nos o cabelo de graça e ainda nos soldava as latas do leite quando rompessem. Não achas um bom negócio? É claro que não ia deixar ir o Justino ou o Alípio, que me ajudam muito nas terras e me iam fazer muita falta. Ainda por cima o Justino tem que ir para a escola… Só podia ser o Álvaro. Só que aquele “destróia” leva horas para lá ir e vir… E eu aqui feito parvo à espera do “sarigaito”! E eu bem que precisava dele…

- Meu pai é que tem a culpa toda. – retorquiu minha irmã, arrumando o varredoura atrás da porta e limpando o rosto pejado de suor e de vermelhidão com a ponta do avental - Deixa-o fazer tudo o que ele quer e não lhe diz nada. Eu bem precisava dele para me acartar água, deitar comida às galinhas e tomar conta do Luís, quando ele vem para cá. Só que ele demora horas! E quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar com a ovelha… E não sei se meu pai sabe, mas o pior são as queixas que têm vindo fazer dele: a Júlia Beliza já me veio dizer que qualquer dia vem falar com pai porque ele lhe deita as paredes abaixo e ainda o pior é que a Elisa Garcia já foi fazer queixa a avó porque ele entrou na quinta dela para apanhar maçãs. E olhe que já o vi chegar a casa com maçãs nas algibeiras das calças e nas mangas da “froca”… E o atrevido não me diz onde as apanhou. Eu bem o aperto e belisco, mas ele… nada…

Meu pai, sentando-se à mesa, tirou a navalha do bolso das calças, abriu-a distraidamente e, enquanto partia uma fatia de pão de milho, ripostava, em voz baixa:

- Também há pessoas que se queixam por tudo e por nada.

Depois, voltando-se para minha irmã, como que a dar-lhe alguma razão, concluiu:

- Tenho que o repreender, mas não vai ser hoje. Preciso é que ele vá comigo a Ponta Delgada, esta tarde.

O Luís acabara de acordar e iniciava um berreiro desabrido. Minha irmã indecisa entre acalmá-lo ou demover meu pai de tão denodado intento, agarrava a cabeça com ambas as mãos e bradava:

- O quê!? A Ponta Delgada!? Meu pai não está bom do juízo! Vai para Ponta Delgada a estas horas? Com o Álvaro?

Foram o Justino e o Alípio que regressados da Cabaceira, onde haviam ido ceifar os fetos e “canarroca”

Cheguei a casa! Um frenesim diabólico liderado por meu pai: ia ainda hoje a Ponta Delgada e eu tinha que o acompanhar.

Como? Não me disse. Para quê? Respondeu-me sumariamente com um argumento reflexivo do respeito que sempre impunha a si próprio, espelho das suas atitudes leais e honestas e do seu comportamento garboso:

- Mestre António Algarvio chegou da Terceira, onde foi operado. Há três anos, quando me aconteceu o mesmo, ele veio cá, de propósito, para me visitar. Por isso, agora, tenho que o ir ver. Tu vais comigo.

Entrei num misto de excitação e enleio.

Ao lado, minha irmã, agora afeita também ao papel de mãe, apresentava argumentos contrários de peso: a distância, o avançado do dia, não ser altura boa, eu ainda ser muito pequeno...

Meu pai opunha-se apenas com o sentimento de gratidão e o reconhecimento que todos devemos ter, repetindo incessantemente: « Ele também veio cá.»

Afinal, bem vistas as coisas, a tarefa estava bastante facilitada: «Para lá íamos com São Pedro; de regresso vínhamos com Deus...»

Enfiei rapidamente umas calças curtas, castanhas, presas ao peito com suspensórios de plástico, uma camisa de seda cor-de-rosa, calcei uns sapatos, também castanhos, acintemente cortados à faca na parte superior, para que os meus rechonchudos e nédios pezinhos, habituados às agruras dos descampados, lá entrassem mais facilmente, peguei numa "froca" de “angrim”, tudo oferta de generosos parentes americanos, e larguei em forte correria pela Assomada, Rua Direita e Via d'Água, fazendo, no entanto, um desvio curvilíneo pela Fontinha.

Minha avó, à janela da sala, de camândulas em punho, ao ser avisada de tão inesperado e inóspito périplo, benzia-se e persignava-se ao mesmo tempo que proferia gritos cruciantes acompanhados de invocações iconólatras a Santa Rita, a santa que, indiscutivelmente, ocupava o primeiro lugar no top da sua heteróclita e pouco canónica hagiografia.

Eu, nem a ouvia! Antes me esgueirava cauteloso e apressado, não fossem tais impropérios causar alguma influência no espírito do meu progenitor e o demovessem da nossa arrojada mas gratífica viagem.

Cheguei acima do cais num ápice! Lá estava o São Pedro altivo, com o seu casco branco debruado a vermelho e amarelo, alardeando-se e balouçando-se sobre as águas calmas do Atlântico, preso ao cais, com fortes amarras à proa e à ré.

A companha, porém, ainda ali não estava. O botequim da Dona Augusta era valhacouto certo para escapadelas burlescas e alcoólicas. Chegaria, mais tarde, com meu pai, e era constituída por cinco elementos: Mestre Gregório, sobre quem ombreava toda a responsabilidade de comando e organização do batel, o Jacinto, responsável pelas amarras e apoitas, o Mulato, maquinista-mor, o João do Alto, ajudante e aprendiz e o Manuel da Ana, especialista na arte de içar a vela. Saltando de terra para bordo com extrema desenvoltura, ocuparam, de imediato, os seus lugares na embarcação e reservaram um banco à proa para os dois intrusos viajantes. O Mulato encarregou-se, de em duas braçadas, por o motor em movimento, o qual lançou, de imediato, no ar, um ronco estrépito, misturado com rolos de fumo e um pestilento cheiro a gasóleo.

O São Pedro, depois de solto pelo Jacinto, deu duas guinadas à retaguarda, afastou-se do cais, rodopiou sobre si próprio e pôs-se em marcha lenta, deixando atrás de si uma esteira de espuma acinzentada. A grande Baía estava calma, mansa e tranquila, propícia a um navegar anelante, seráfico, pleno de regozijo e fascínio. Era a minha primeira viagem e, agora, já longe de terra, saboreava-a com prazer e achava graça aos suaves e idílicos solavancos a que o São Pedro se entregava sempre que encontrava pela frente uma onda mais afoita e audaz, sob os olhares atrevidos do Manuel da Ana, marinheiro experimentado nos ritos de iniciação à arte de navegar e que, velhacamente, esperava pela hora de cessar o meu enlevo.

Voltado de costas para a proa, sentado ao lado de meu pai, olhava a Fajã, ao fundo, distanciando-se aos poucos, numa perspectiva que nunca me tinha sido dada observar e, agora, me permitia imaginar e configurar formas diversificadas e simbólicas. As casas brancas, agrupadas e enleadas, faziam-me lembrar as pérolas de um enorme colar, suspensas entre dois grandes, pétreos e turgescentes peitos: o Pico da Vigia e o Outeiro, ou, então, numa visão mais integradora, a Ponta dos Pargos surgia-me como a proa negra dum grande navio, com o seu convés povoado de casotas e torres, onde se destacavam as da Igreja e da casa do Chileno e lembrava-me dos rigores do inverno, quando o vento soprava de leste e o velho Carvalho Araújo ancorava mesmo ali, totalmente impedido de o fazer em qualquer outro ponto da ilha, devido ao mau tempo. De seguida, olhava para leste, tentando descortinar o interior da ilha, e via o grande obstáculo que era a rocha das Covas, agora mais alta e proeminente do que nunca. A água, nas cascatas das ribeiras do Cão e das Casas, desprendia-se em fluxos ritmados e flavescentes, sob o verde dos socalcos e andurriais e o negro das fragas, ravinas e penhascos. Lá estava o famigerado e precito pináculo das Covas, onde dias antes, por momentos, meu pai e eu, quase hipotecáramos a própria esperança de viver. Puxei-lhe, avidamente o braço calejado e disse:

- Foi ali, pai! Foi ali! Lembra-se?

Meu pai teve que, pacientemente, explicar ao Manuel da Ana que, andando por ali -  e apontava para a rocha das Covas - alguns dias atrás, comigo, a apanhar erva-santa, de repente, começaram a cair pedras, calhaus enormes e que tínhamos apanhado um grande susto. Víramos a morte pintada! Não fossem os gritos do Constantino, que de cá de baixo lhe indicava para fugir para junto da rocha e hoje não estaríamos ali.

- Tiveste sorte rapaz! Olha se apanhavas com aqueles marmelos! - dizia o Manuel da Ana, apontando para umas pedras enormes e mais proeminentes a meio da rocha.

Eu, porém, já não olhava para os calhaus nem para nada. O São Pedro, agora, navegava entre a Baixa Rasa e o Ilhéu do Cão. A bonança e a calma de que beneficiava a Baía, protegida do vento de sudoeste pelas pontas dos Pargos e do Baixio, deixaram de se fazer sentir. Ondas mais fortes e maiores começavam a obstaculizar a serena navegação do pequeno e frágil batel. Algumas tornavam-se tão altivas e arrogantes que, saltando acima da obra morta do São Pedro, salpicavam, conjuntamente, tripulantes e passageiros.

De repente, comecei a sentir uma vasca terrificante e nauseativa. Parecia estar possuído de vibrações caliginosas, paradigmáticas e angustiantes. O meu corpo, trémulo, inerte, perdera a força e a própria razão de ser e convulsionava-se em frémitos acres e agonizantes. Meu pai, de imediato, entendeu o que se passava. Apoiou-me a cabeça com uma mão e inclinou-me a estibordo. Num ápice, perante o ricto malicioso do Manuel da Ana, entreguei, ali, aos peixinhos, gratuitamente e numa enorme sensação de dor misturada com alívio, o meu parco e frugal almoço, conjuntamente com a alegria e o prazer de fruir tão enlevado périplo.

Quando meu pai me recolheu de tão extenuante suplício, estava lívido, sem forças e verdadeiramente arrependido de me ter envolvido em tão arrojante odisseia. Desejava ardentemente voltar ao cais, donde minutos antes, tão feliz, tinha partido. O safardana do Manuel da Ana, pleno de regozijo, atrevimento e prazer sádico, alheio ao meu sofrimento, sentenciou, na qualidade de emetologista-mor do batel:

- Bravo! Assim é que se aprende! Eu também comecei assim. Calma rapaz! Verás que a próxima vai ser melhor.

O meu sofrimento redobrou porque senti, então, que a maioria da tripulação o apoiava na sua galhofa e estava, decididamente, contra mim. Apenas meu pai, por razões óbvias e evidentes, se mantinha neutro: defender-me era contrariar o movimento majoritária da tripulação liderado pelo biltre do Manuel da Ana. Na sua qualidade de viajante convidado, não podia fazê-lo.

Eu sofria duplamente: a indisposição provocada pelos solavancos do São Pedro e a chacota da marinhagem.

Foi então que, num gesto de grande nobreza, dignidade e comiseração, mestre Gregório, confiando a cana do leme a um dos meus algozes e seu adversário de mofa, se levantou. Balouçando as suas pernas arcadas de velho e experimentado marinheiro, num ímpeto de solidariedade e protecção infantil, pegou nalguns velhos casacos e outras peças de roupa que por ali sobejavam, dobrou-as, enrolou-as e estendeu-as no fundo do barco, à proa, formando uma pequenina e provisória cama. Passou-me carinhosamente, a mão pela cabeça, afagou-me o rosto, encostou-me ao peito e ergueu-me dizendo:

- Deita-te aqui. Vais ver que assim passas melhor e não vomitas mais.

Meu pai agradeceu e eu deitei-me. Não vi mais nada, a não ser, lá ao longe, a sombra negra do Monchique que, contrariamente à sua forma habitual de triângulo isósceles, agora parecia um enorme cesto de vimes, com o fundo virado para cima.

A viagem continuava num mar cada vez mais cavado, hermético e altivo. Porém a sábia experiência de mestre Gregório, fugindo, acintemente, à crista das ondas maiores, proporcionava uma navegação mais tranquila. Deitado no meu provisório mas reconfortante beliche, apenas via o azul esbranquiçado do céu, povoado de cirros brancos, que corriam velozes, ultrapassando o São Pedro, em direcção ao infinito.

Passaram-se alguns momentos que me pareceram horas. A tranquilizante navegação que a sábia e experiente mestria do velho comandante impunha ao São Pedro, a ampla e calma baía dos Fanais por onde agora deslizava suavemente, provocaram em mim uma mudança taumaturga e, levaram meu pai a convencer-me a sair da minha taciturna reclusão. Levantei-me e sentei-me, de novo, no lugar que me fora reservado e que ainda não tinha sido ocupado.

O espectáculo que observava agora era majestoso e belo. O São Pedro navegava ronceiro, entre o ilhéu de Maria Vaz e a rocha dos Fanais. As águas estavam calmas e tranquilas. Não havia ondas. Parecia que o mar tinha amansado acintemente, para que eu pudesse erguer-me e saborear tão deslumbrante espectáculo.

- Ali, - apontava o Mulato para a praia dos Fanais - as lapas são como a palma da minha mão! O pior é descer a rocha para as apanhar.

O Manuel da Ana, em ar trocista, olhando de soslaio para mim e piscando o olho a meu pai, aproveitou logo a deixa:

- E aqui, no ilhéu, os ratos são do tamanho de cães.

Eu tremia, agarrado ao braço do meu progenitor, concedendo-lhe o benefício da veracidade, confirmado não só pelo testemunho do Mulato, mas também, por relatos anteriores, que diziam que por aqueles sítios tudo era excêntrico e heteróclito. Por toda a ilha era sabido que o melhor sítio para lapas era a baía dos Fanais. As dificuldades estavam sempre na descida da rocha, por onde eu nunca tinha passado e que agora surgia ali, à minha frente, alta, imponente, silenciosa e misteriosa, apenas cortada pela cascata da ribeira da Francela.

O São Pedro, porém, abstraído de tudo, continuava a navegar. A tarde surgia mais fria, mas muito limpa e luminosa. Por detrás da alta rocha, com as suas ravinas e pináculos, podia ver-se o interior da ilha, onde já se lobrigavam claramente as pastagens dos matos de Ponta Delgada, entremeadas e divididas por bardos e tapumes de hortênsias azuladas e cor-de-rosa, onde pululavam manchas escuras, brancas e fulvas, pastando a erva tenra.

De repente, sob ordem de mestre Gregório, o Manuel da Ana levantou-se, aproximou-se do mastro que se mantinha erguido no meio do São Pedro, desamarrou, com extrema facilidade uma série de cordas e estendeu, com a ajuda dos outros marinheiros, um enorme pano esbranquiçado que, num ápice, prendeu e ergueu no mastro rijo e erecto. É que os ventos, agora, sopravam noutra direcção, permitindo ao São Pedro, depois de ultrapassar a ponta do Albarnaz, com o seu imponente farol, seguir em linha recta, na parte setentrional da ilha, bolinar lentamente sobre as águas bravas e onduladas. Meu pai sugeriu:

- Levanta-te, para veres o Corvo.

Lá estava, de facto, ao fundo a pequenina ilha, sobre o verde azulado do oceano, com uma leve e nevoenta fumaça que impedia de se lhe observar a parte mais alta, que me fazia lembrar um enorme biscoito, saído do forno, ainda a fumegar.

O porto de Ponta Delgada, no entanto, ainda estava longe. Os balanços do São Pedro, devido à navegação à vela, eram, agora, tão dolentes e acutilantes, que recolhi, mais uma vez, por ordem do meu marítimo paraninfo, ao valhacouto que me havia improvisado. Os efeitos da navegação à vela eram muito mais cruéis e maléficos dos que os da navegação a motor e provocaram em mim um mal-estar muito superior ao sentido anteriormente. Deitei-me novamente. Mesmo assim sentia-me muito mal. O barco seguia muito lento, afecto a grandes baloiços e solavancos, que aumentaram sensivelmente a minha inequívoca náusea. É que o São Pedro, ora subia lentamente uma onda, erguendo gigantesca e altivamente a proa, sobre a sua crista, ora caía, dorido e sopeado, sobre a enorme cova que a seguir se formava no azulado negro do oceano, num constante e ritmado bater, que se repetia incessantemente. O céu, agora, parecia-me escuro e as imagens do mestre Gregório e dos outros marinheiros assemelhavam-se a sombras enormes, férulas e rúbidas, que se perdiam no ilhéu de Maria Vaz. Ratazanas heteróclitas e gigantescas saíam de todos os lados do ilhéu, de enormes e esconsas grutas, lançando aulidos aterradores, correndo indefinidamente atrás do São Pedro, que voava sobre tapumes esbranquiçados de hortênsias, os quais lentamente se abriam e transformavam em pélagos e precipícios infinitos e transcendentes, onde as ratazanas desapareciam, deixando atrás de si um rasto de gasóleo e fumo negro. O São Pedro tinha asas, galgava o mar a grande velocidade, aproximava-se do Corvo e subia a ilha, sobrevoando as casinhas muito brancas e pequeninas, perdendo-se entre as fumaças do pico de João Moura, que, de repente, se transformava num enorme gigante que chamava por mim, me pegava ao colo e me colocava, com excessivo cuidado, sobre o cais de Ponta Delgada.

Quando acordei, já estava em terra. Fora mestre Gregório que, compadecendo-se mais uma vez do meu sofrimento, me pegara, cuidadosamente, ao colo e me pusera definitivamente em terra firme.

Ponta Delgada situa-se na parte mais setentrional das Flores, numa suave encosta, sobranceira ao cais e a uma pequena baía ladeada pela ponta que lhe deu o nome e pela Ponta do Ilhéu e estende-se, longamente, por uma ampla e verdejante planície, onde salpicam as casinhas pintadas de branco. Próxima do cais, onde varou o São Pedro, sempre sobre as ordens radicais e lineares de mestre Gregório, confunde-se com ele e insere-se num todo que permite aos viajantes e turistas, sem grande esforço, atingir rapidamente o povoado. Esta exímia e curta distância facilitou, obviamente, a minha débil e tonta capacidade de me movimentar, originada pelo marelhar constante e contínuo, sentido ao longo de três horas de viagem  e que ainda pesava sobre mim. Mesmo em terra, continuava a sentir o corpo entorpecido, nauseabundo e incapacitado de me aventurar às arrojadas correrias ou alanzoar-me em parrésias heteróclitas a que era propenso.

Caminhei, pois, misantropo e macambúzio, ao lado de meu pai, até à casa de mestre António Algarvio.

António Alves da Costa Cabreira, conhecido em toda a ilha por mestre António Algarvio, era um homem alto, esbelto e elegante. Aparentava os seus sessenta anos, cabelos grisalhos, olhos azuis, sempre muito atentos nos dos seus interlocutores. O que mais o caracterizava, porém, era um altivo, descomunal e garboso bigode, que se salientava no rosto oval, do qual lhe ocultava grande parte, e que constituía grande motivo de orgulho para o seu proprietário, que despendia muito tempo e grandes cuidados na sua manutenção, nomeadamente, no asseio das enormes pontas, para as quais como que já institucionalizara o hábito de, constantemente, as retorcer e anafar. O enorme bigode, apesar de grisalho, apresentava, no centro, uma mancha amarelada, que levemente se difluía nas regiões limítrofes e que era o resultado plausível do seu declarado e assumido vício de fumador. Tinha uma voz forte e ríspida, com um acentuado sotaque continental, mais concretamente do Algarve, donde era natural. Essa era, aliás, a razão de ser do seu epíteto.

Nascera em São Bartolomeu de Messines, a terra das pedras de amolar. Mas não era a razão principal pela qual mestre António Algarvio se blasonava da sua terra natal. Segundo ele, São Bartolomeu de Messines fora um eficiente baluarte miguelista, pois foi lá, junto à ermida de Sta Ana, que as forças apoiantes de D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, pesada derrota às forças liberais, bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira. Com ar garboso, acrescentava mestre António, que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general Tomás António da Guarda Cabreira, seu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista. Não ficavam por aqui, contudo, os pergaminhos da ilustre e ditosa pátria de mestre António - foi em São Bartolomeu de Messines que veio ao mundo o ilustre vate João de Deus e acrescentava:

- Ainda lá está a casa onde nasceu e viveu o poeta.

Mestre António recebeu meu pai com grande satisfação e alegria. Sentado num enorme cadeiral de vimes, enrolado num grosso cobertor de papa, ia contando, de forma dramático-cómica, como era seu timbre, os pormenores, incluindo os mais insignificantes, da sua viagem à Terceira, em quase tudo semelhante à que meu pai realizara três anos antes: - operação ao estômago, Dr Gago da Câmara, rua da Garoupinha e o velho e monacal hospital de Angra. Enfim, alanzoava-se num aranzel leptológico que lhe era tão peculiar e que contrastava seriamente com a senga e tímida elocução do meu progenitor.

Eu, sentado numa cadeira, muito tímido e quietinho, totalmente alheio a tão desinteressante diálogo, despertei, de imediato, as atenções emocionalmente caritativas da dona Josefa, eminente cunhada do nosso anfitrião, que acumulava, simultaneamente, as funções de cozinheira e consorte substituta. A ilustre senhora, exercitando a sua acutilância de investigadora assumida dos destinos do próximo, apercebeu-se, de imediato, do meu estado de famélica debilidade. Num acto de extrema curialidade, sem me consultar, trouxe-me uma enorme tigela de leite fresquinho acompanhado de vitualhas diversas. Envergonhado, manifestei simulada recusa. D. Josefa, no entanto, não era para cerimónias e, embora timidamente, tive que aceitar. Tal repasto produziu em mim um efeito retemperador. Não fosse o temível e odiento séter, sentado ao portão, impedindo a entrada ou saída de qualquer mortal, eu já tinha abalado, na qualidade de objector de consciência, aos efusivos e triviais discursos do ilustre descendente do general Cabreira.

O dia aproximava-se do fim. Meu pai, apercebendo-se disso e, porque sentia que a sua missão estava cumprida, decidiu voltar para casa. Nem os veementes e imperiosos pedidos de mestre António, nem o convite gracioso e meigo de dona Josefa, oferecendo hospedagem, o demoveram do tão impertinente carracismo.

Partimos!... Na velha torre da Igreja de São Pedro, soaram três espaçosas badaladas, seguidas de duas consecutivas. Era o som religioso das Trindades que anunciavam o anoitecer. Os homens regressando dos matos, ao lado de azémolas carregadas de bilhas e latas de leite, tapadas com ramos de queirós, tiravam, solenemente, o boné e simulavam uma pequena oração. Velhinhas vestidas de negro e bioco a tapar-lhe a cara, sentadas às janelas de suas casas, esbagoavam as contas do rosário, bichanando imperceptíveis ave-marias. Mulheres robustas e mal vestidas, algumas pejadas, recolhiam a casa, com molhos de lenha ou de couves à cabeça acompanhadas de garotos descalços, com monco a escorrer-lhes pelo nariz e agarrados aos saiotes. Vendo meu pai todo geringoto, traçando o rumo duma caminhada que, de certo, a noite iria supinamente obstaculizar, formulavam-lhe convites sucessivos e sinceros, disponibilizando caldinho de couves para a ceia e dormida. Todos eram de opinião de que não eram horas de se fazer ao caminho do mato, acompanhado duma criança.

Mas o persistente carracismo de meu pai, mais uma vez imperou. Rejeitava linearmente todas as ofertas de hospedagem, como aliás já acontecera em casa de mestre António Algarvio. Aí, o homem quase se zangara! Por isso, o meu progenitor tinha agora outro argumento, para justificar a sua decisão: não ficara em casa de mestre António, não ficava em nenhuma outra.

Caminhámos!... Ao descoser do derradeiro casebre da freguesia, já a noite caíra, fria, silenciosa e escura. Muito escura! Para trás ficavam os campos, cobertos de milho loiro, amarelado e fulvo e as famílias reunidas à volta das tigelas de leite e broa, acompanhadas de um caldo de couve onde não faltava a talhadinha de toucinho. Era o jantar tradicional e habitual das gentes da ilha.

Entrámos decididamente nos matos e na escuridão. Tínhamos pela frente a árdua tarefa de atravessar, durante a noite, de norte para sul, uma quarta parte da ilha das Flores, sem caminhos, através de pastagens separadas por cancelas e tapumes de hortênsias, chegar ao Risco, descer a íngreme rocha da Ponta e, só então, encontrar um caminho digno de tal nome, que nos conduzisse a casa. A única esperança era a lua. Esta, porém, contrariamente às expectativas de meu pai, tardou em aparecer.

Iniciámos, então, uma desconexa e terrífica inambulação que, inevitavelmente, nos conduziria ao pélago. Meu pai confiara de mais no conhecimento que julgava possuir de tão inóspitos andurriais, reconhecendo, finalmente, que, no escuro da noite, era muito difícil andar por ali. É que as pastagens dos matos de Ponta Delgada, como aliás as de toda a ilha, não possuem caminhos, são apenas detentoras de pequenos atalhos ou trilhos delineados pela passagem, espaçada, de homens e animais

Era, precisamente, por uma dessas pastagens que eu caminhava, agora, bem agarrado à mão de meu pai, cheio de medo de tudo e de nada, ora horrorizado com os aulidos de algum touro que, repentinamente, surgia ao nosso lado, ora assustado com ecos simbólicos e fantasmagóricos de ruídos estranhos que, no escuro da noite, se faziam ouvir de todos os lados.

De repente, à nossa frente, sem que déssemos conta, surgiu um inopinado tapume de hortênsias. Cancela, nem vê-la. Meu pai furou o tapume, mas a separá-lo da propriedade seguinte estava um arroio repleto de fetos e cana-de-roca. Calou-se, por momentos e, depois, exclamou:

- Estamos perdidos!

Eu emudeci, perante tal parrésia. Mesmo que quisesse não podia responder-lhe ou fazer qualquer sugestão. Sentámo-nos, calados, na erva fria, já perene de sereno. Fixámos, imóveis e silenciosos, o nosso pensamento no infinito escuro e no amanhecer distante.

Passado algum tempo, meu pai, como que despertando duma profunda letargia, pensando que eu já adormecera, sacudiu-me e ordenou:

- Álvaro, descalça os sapatos!

Não lhe obedeci. Pensei que delirava e assustei-me ainda mais. Ele, porém, repetiu a ordem com tal veemência que fui obrigado a obedecer-lhe.

Descalcei os sapatos e entreguei-lhos. Ele, dando um nó no extremo da manga de um casaco que trazia ao ombro, guardou-os. Depois, um pouco mais calmo, explicou-me:

- Agora vais andando à minha frente, andando com cuidado, sentindo a relva debaixo dos teus pés, até encontrares o sítio onde ela está amachucada. Assim descobriremos o atalho.

Comecei a andar, maquinalmente, na escuridão, como se estivesse a jogar à cabra-cega, num espojadoiro. A estratégia, porém, resultou excelentemente. Algum tempo depois, encontrei o trilho. Recomeçámos a marcha lenta e cautelosa. Agora era eu o guia e disso me ufanava. Habituado a andar descalço pelos campos e caminhos, ia facilmente sentindo, debaixo dos meus pés, a erva amachucada e calcada, por onde nos dias anteriores tinham transitado os homens e os animais.

Passado algum tempo, porém, meu pai mandou-me parar. Cuidava ele que estávamos perdidos outra vez. Não tínhamos saído fora do atalho, porque isso os meus pés descalços não me enganavam; perdêramo-nos sim, na direcção. O meu progenitor não sabia se caminhávamos para sul, na direcção da Fajã, ou se pelo contrário regressávamos a Ponta Delgada. Ele, porém, decidiu continuar a andar na mesma direcção, apesar da minha pronta, frontal e resistente oposição.

Andámos, até chegar a uma parede. Eu, já exausto e sonolento, sentei-me! Meu pai, aproximou-se dela e, com as suas mãos calejadas, acariciou-a, levemente, de ambos os lados. Depois, com muita determinação e certeza, disse-me:

- Íamos enganados. Nesta direcção, regressávamos a Ponta Delgada. Vamos voltar para trás, porque a Fajã é na direcção contrária.

Reiniciámos a nossa marcha, sempre no escuro, mas agora na direcção certa e segura, enquanto meu pai me explicava que as paredes e os muros voltados para o norte recebem menos sol e, por isso, têm mais humidade e, consequentemente, mais musgos e ervas. Fora isso, afinal, que ele detectara quando acariciou a parede, descobrindo de que lado ficava o norte. Depois foi só voltar em sentido contrário, porque a Fajã ficava a sul. Era esta a direcção certa e desejada.

Caminhámos, horas a fio, na noite, no medo e no escuro, lutando contra o sono e a constante indefinição dos atalhos!

Chegámos finalmente ao Risco, iniciando a descida da rocha da Ponta. Agora já não nos voltaríamos a perder porque, por um lado, apesar de íngreme, a rocha tinha uma vereda bem delineada e, por outro, a lua surgira, finalmente, por cima da rocha dos Paus Brancos, clara e iluminadora, desfazendo, decididamente, a total escuridão que nos acompanhara até agora e a que os nossos olhos como que já se tinham habituado.

Iniciámos a descida. Segundo a douta estimativa do meu progenitor, já devia passar muito da meia-noite. Regozijei-me. É que sentir, naqueles descampados escuros e solitários a terrifica hora da meia-noite, teria sido fatídico para a minha imaginação. A meia-noite era a hora má, plena de aparições fantasmagóricas e contactos com o diabo. Convenhamos que um encontro, naqueles páramos, com o mafarrico, mesmo que fosse apenas na minha imaginação, não seria o mais aconselhável para a minha já débil audácia, pese embora contasse com a protecção de meu pai, um verdadeiro ateu, nestas crenças.

A rocha da Ponta é um alcantil escarpado, abrupto e a pique. A única e sinuosa via que possui é uma vereda, um aclive íngreme e sobranceiro ao mar. Sítios há, em que pedregulho, objecto ou pessoa que caia, vem direitinho parar às águas do Atlântico, a não ser que antes se desfaça ou esborrache nas fragas e penhascos que nela proliferam.

Eu descia-a, encantado com o luar de que agora desfrutava, opondo-se à escuridão que me envolvera toda a noite. O espectáculo que observava era deslumbrante e maravilhoso! O luar, projectando-se no mar, transformava-o num espelho prateado e cristalino. Lá longe já se vislumbrava o casario da Fajã e a tímida luzinha do farol da Ponta do Baixio. O Pico da Vigia, sobranceiro ao povoado, projectava, no mar, uma sombra clarificante que se difluía, com lenidade, no oceano. O silêncio da noite apenas era cortado pelo ritmado bater das ondas junto à costa. No Rolo, circundante à grande Baía, onde se vislumbravam os montículos arrumados do sargaço, simulando aldeamentos escuros, perdiam-se ondas infinitas de prata e de espuma.

A certa altura, abstraído em tão paradigmática contemplação, sem me aperceber, meti um pé em falso num pequeno riacho, tropecei e estatelei-me de tal forma que o meu corpo ficou a balouçar entre cai e não-cai, à espera de rolar pela falésia, atingindo o oceano. Foi meu pai que, lesto e hábil, me agarrou, impedindo-me de rolar pelo íngreme barranco e cair no fundo do precipício. O resultado foi um enorme susto para ele e um grande galo para mim, o qual me impediu, radicalmente, de continuar a fruir a excelência e beleza daquela paisagem nocturna.

Chegámos às primeiras casas da Ponta. Luz, apenas na pequena lâmpada da capelinha de madeira da Sra de Fátima, fruto da exímia devoção à virgem do António Simão e marco protector dos viajantes que se dispunham a subir a temível e perigosa rocha. Meu pai decidira que tínhamos que parar na Ponta. Estávamos exaustos, famintos e cansados e o meu galo crescia cada vez mais. Mais adiante, uma luz, a única em todo o reduzido casario. Meu pai bateu à porta. Conhecia muito bem o dono. Eu já nada podia decidir ou opinar.

A porta abriu-se imediatamente. Uma das filhas do Maurício Esteves assumiu, aflita e sobressaltada, de candeeiro em riste, gritando:

- Já chegaram!? Já chegaram!? Entrem, entrem depressa!

Nós, pasmados, hesitantes e perplexos.

Só depois de entrarmos ela explicou, chorosa e triste, que o pai estava nas últimas e o irmão mais velho tinha ido a pé, aos Terreiros, esperar o Dr João Alves, que vinha de Santa Cruz, de carro, para depois lhe fazer companhia. Julgara que eram eles e, quando se apercebeu de que éramos nós, ficou decepcionada. O pai piorava de instante para instante e, temia-se que, quando o médico chegasse, já nada pudesse fazer. Abeirámo-nos do leito escurecido em que expirava o velho Esteves e onde reinava um misto de choro e amargura. Ao lado, os filhos, alguns vizinhos e amigos e a candidata a viúva, que ocupava lugar de destaque, junto à cabeceira do moribundo

Meu pai, depois de se inteirar do estado de saúde do agonizante e das causas de tão inóspito acometimento, pediu uma faca, cuja lâmina fria colocou sobre o emérito galo que eu conquistara na descida da rocha, o qual, lenta e progressivamente, foi reduzindo o seu volume, embora não desaparecendo totalmente.

No velho relógio da sala bateram duas horas. Enquanto o moribundo continuava a agonizar, lançando por vezes alucinantes e dolorosos estertores, já alheio a tudo o que o rodeava, e os circundantes tentavam encobrir e disfarçar choros e soluços, decidimos dar continuidade à parte final, por certo a mais fácil, do nosso atribulado percurso.

O caminho agora era acessível e conhecido. Eu caminhava ronceiro atrás do meu progenitor, que cônscio do adiantado da hora, procurava, recuperar o tempo perdido, nos matos de Ponta Delgada. O sono e o cansaço haviam-se conjugado em mim e dominavam-me de tal forma, que já nem conseguia andar, ou, se o fazia, era maquinalmente. Porém, ao chegar à fatídica ladeira das Covas, dei uma enorme corrida e vim agarrar-me ao braço de meu pai, pedindo-lhe protecção. Era ali, exactamente ali, naquele malfadado sítio, que o padre Silvestre ouvira gritos horríveis e gemidos ansiosos, quando regressava da Ponta, depois de, zelosamente, cumprir as suas obrigações pastorais. O testemunho do reverendo, inicialmente digno de pouco crédito, acabou por tornar-se verídico, porque os gritos e os gemidos foram ouvidos por outras testemunhas. Todos os habitantes quer da Ponta, quer da Fajã, temiam passar por ali, sobretudo durante a noite. Apenas alguns homens mais destemidos e menos crédulos, e meu pai estava nesse número, sabiam ao certo o que se passava. Entrei em pânico. A minha própria sombra e a de meu pai me assustavam. Ele, então, pacientemente, explicou:

- Era a Ana do José Felício. Na véspera, um grupo de homens, liderado pelo Ângelo da Joaquina, tinham-lhe feita uma espera, na relva do João Cristóvão, e viram-na chegar, à tardinha, e esconder-se numa furna. Quando sentia alguém passar, punha-se, de imediato, a gemer e a gritar. Inicialmente pensava-se que era apenas para assustar o senhor padre Silvestre. Afinal, a razão era outra, como ela própria explicou, depois de levar umas valentes bordoadas. Queria apenas impedir que pessoas da Ponta tivessem medo de passar por ali, impedindo-as de vir trazer a moenda ao moinho do José André e, assim, as deixassem no seu, que ficava para além da ribeira do Cão.

A explicação do meu progenitor, no entanto, não me acalmou. A certa altura tive mesmo a certeza de ouvir os tais gritos horrorosos e suspiros alucinantes. Arrepiei-me todo e tremi de medo. Meu pai, no entanto, acalmou-me. Eram cães que andavam por ali a farejar fêmea.

Chegámos a casa! Três horas! Minha irmã sobressaltada e aflita, ainda não pregara olho. Assumindo o seu papel de mãe, deitou-me o mais rápido possível. Acordou-me às sete. Era a minha obrigação ir levar a Trigueira ao Outeiro Grande. Regressei, como por vezes fazia, pela Bandeja e Fontinha, entrando em casa da minha avó, para lhe contar a nossa trágica odisseia.

- Foi um milagre de Santa Rita! - Exclamava ela.

E a santa teve honras de luzinha acesa, durante um mês.

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publicado por picodavigia2 às 14:13

O BURRINHO DO LAMÉ

Quinta-feira, 13.06.13

Muitas eram as brincadeiras e os jogos, individuais e colectivos, que fazíamos em criança, na Fajã Grande, sobretudo para ocupar da melhor forma as tardes de domingos e feriados.

No top dos jogos colectivos figurava “O Burrinho do Lamé”. Bastava que alguém convocasse a malta miúda e era uma correria louca e imediata para o adro da Casa do Espírito Santo, local estrategicamente apropriado para tal: - Vamos brincar ao Burrinho do Lamé.

O jogo em si era simples e fácil, tendo como objectivo principal que todos os participantes evitassem, da melhor e mais astuta forma possível, figurar como burro, durante o jogo.

Os participantes, em número indeterminado, sentavam-se todos na soleira da porta e degraus circundantes, enquanto o líder do grupo, que orientava o jogo, ocupava um lugar numa banqueta que havia no lado oposto, depois de escolher quem ele muito bem entendesse para figurar de burrinho no início do jogo. Vergava-lhe então a cabeça sobre os seus joelhos, tapava-lhe os olhos com as suas próprias mãos, colocando-lhe de seguida o traseiro em condições de levar uma pequena palmada. Do outro lado alguém se levantava, normalmente por indicação do líder (porque todos queriam vir) e vinha bater ao de leve no rabiosque do suposto burrinho, voltando de seguida ao seu lugar, sem ser visto por aquele. Destapava-se o burrinho que de imediato era obrigado, a fim de perder o seu ocasional estatuto de asno, a tentar identificar o agressor. Pegava-lhe então às cavalitas, não fizesse ele papel de burro, apresentando a sua carga ao líder, que o interrogava do seguinte modo:

- O Burrinho donde vém?

- Venho do Lamé, - respondia o burro.

Se tivesse acertado no seu agressor, este passaria de imediato a fazer de burro, enquanto o chefe confirmava:

- Deita cá que é.

Se não acertasse ouvia: - Vai por lá que não é. – e continuaria, assim carregadinho para lá e para cá  até encontrar o agressor, o que por vezes se tornava muito difícil.

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publicado por picodavigia2 às 13:53

SOPA DE FUNCHO

Quinta-feira, 13.06.13

O funcho que proliferava e florescia nas bordas das canadas e em cima dos maroiços da Fajã, na Sexta-Feira Santa, era ou parecia ser mais doce do que habitualmente. O motivo desta suposta alteração do sabor daquela planta aromática era de carácter, eminentemente, religioso e estava relacionado com os mistérios da Paixão e Morte do Redentor, comemorados naquele dia. Segundo a tradição, muito provavelmente baseada nos Evangelhos Apócrifos, quando Nossa Senhora seguia a caminho do Calvário a acompanhar o sofrimento do seu Filho, como que para aliviar a sua dor, ia apanhando e mascando folhas de funcho. Em homenagem à dor e ao sofrimento da Virgem Maria, a planta passou, todos os anos, como que a tornar-se mais doce, naquele dia.

Ora, sendo a Sexta-Feira Santa um dia consagrado ao jejum e à abstinência, o cardápio habitual e tradicional desse dia, na Fajã Grande, resumia-se a uma sopa cujo ingrediente principal era o funcho. Era a tradicional Sopa de Funcho.

À tarde muitas pessoas seguiam em romaria até à Fajãzinha para assistir às endoenças, celebradas às três horas da tarde, na Igreja Matriz local. Para além de três padres, as cerimónias exigiam alfaias litúrgicas diversas e paramentos que a igreja da Fajã não possuía. Os celebrantes deviam paramentar-se de capa de asperges, casula e dalmáticas roxas que eram mudadas na quarta e última parte por iguais paramentos, mas de cor preta. Na Fajã as cerimónias resumiam-se, ao cair da noite, à procissão do Enterro ou do Senhor Morto. Era retirada a imagem de Cristo com os braços articulados, de um crucifixo muito grande que existia no altar da Senhora do Rosário e colocado dentro de um esquife debaixo do altar-mor, donde fora retirado o frontal. A imagem da Senhora da Soledade era vestida e colocada num andor. A procissão percorria a rua Direita com as duas imagens, finda a qual se seguia o sermão e o beija-pé do Senhor Morto. Era proibido o toque de sinos e campainhas, que eram substituídos pelo bater duma matraca, um pequeno instrumento construído com três tábuas de madeira a que estavam presas argolas de ferro e que, quando agitada, fazia um barulho estranho e esquisito.

A tradição da Sopa de Funcho, na Sexta-Feira Santa era, por todos, respeitada. Bastava apanhar aqui ou acolá, escolhendo-se as partes mais verdes e tenrinhas. Feito o caldo com água, cebola, alho, uma colher de banha de porco e uns pedacinhos de batata, juntava-se, simplesmente, o funcho finamente picado, como se de couve ou de outra hortaliça se tratasse.

Em muitas casas, porém, esta sopa era feita em muitos outros dias, na altura em que havia funcho fresco. Apesar de nesses dias se juntar à Sopa do Funcho uma talhadinha de toucinho, a que tinha o gosto mais saboroso e apetecível, era a feita em Sexta-Feira Santa.

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publicado por picodavigia2 às 13:45

Ò TIA, O REGO

Quinta-feira, 13.06.13

Antigamente, na Fajã era de bom-tom que todos oferecessem alguma coisa do pouco que produziam, ao pároco. Geralmente, cada um escolhia o melhor que tinha. Com este gesto, pretendiam os crentes, por um lado, cumprir o estipulado no 5º mandamento da Santa Madre Igreja “Contribuir para as despesas do culto e sustentação do clero” e, por outro, diligenciar um “descontozito” na compra dos indultos e das bulas ou até na própria côngrua. Em Dezembro oferecia-se uma posta do porco, uma morcela ou um pedaço de linguiça. Na altura das colheitas uma rasoira de milho, um saco de batatas ou uma gavela de couves. Ao longo do ano uma dúzia de ovos, um cesto de inhames ou um queijo.

A Ana Sapateira era muito pobre e não tinha nada de jeito que pudesse oferecer ao reverendo. Mas falta de lógica é que não tinha e lá foi matutando consigo própria: O senhor padre tem galinhas, as galinhas põem ovos para o alimentar. Logo dar comida às galinhas é o mesmo que sustentar o reverendo.

Atrás da sua casa, ladeado pelo caminho da Fontinha e fustigado pelas enxurradas invernais e pelas manhãs soalheiras do estio, havia um rego onde florescia erva-santa de excelente qualidade Um regalo para as galinhas!

Certo dia, a Sapateira, enchendo-se de coragem e boas intenções, lá se decidiu por apanhar um cestinho de erva-santa e, não sem algum embaraço, foi oferecê-lo ao vigário.

O prebendado ficou perplexo ao ver aquela florescente maravilha da natureza e, ao perguntar-lhe onde tinha ido apanhar erva-santa tão viçosa e fresquinha, a velhota respondeu, sem hesitar:

- Foi no meu rego de trás, senhor padre. Tem lá muita.

O Jacinto que estava a cavar a courela do pároco, ali ao lado, ouviu tudo. Um canhão a disparar uma bomba de cima da rocha não espalharia os estilhaços tão depressa. Em segundos toda a freguesia ficou a saber que a Ana Sapateira tinha um “rego de trás” e que o dito cujo era fértil e estava eivado de erva-santa.

Foi uma chacota danada, sobretudo por parte dos rapazes que, ao passar-lhe por trás da casa, começavam a gritar: “Ó tia, o rego!?” A Sapateira assomava logo à porta da cozinha, furibunda, de pá do forno ou varredouro na mão, ameaçando-os e insultando-os desalmadamente.

Eu esperava, ainda muito criança mas já danado para caçoar, pacientemente aguardei a ocasião mais oportuna de também me iniciar em tão audacioso ritual. Ia-me poupando porque muito miúdo, tinha medo que ela me pilhasse e arriasse o cabo da vassoura no lombo, como já tinha feito ao Amorim.

Mas lá chegou o dia em que, enchendo-me de coragem, decidi iniciar-me na praxe de insultos à Sapateira. Passei-lhe rente à porta da cozinha e gritei com quanta força tinha, uma, duas, três vezes: - “Ó tia, o rego!?”

Azar dos azares! É que a Sapateira estava sentada cá fora mas encoberta pela aba duma pedra e eu não a vira. Eis senão quando me surge pela frente e, barrando-me a fuga por completo, agarrou-me, cravou-me as unhas nas orelhas, levantou-me do chão e sacudiu-me bem sacudido pelas orelhas, enquanto, furiosa que nem uma barata, me arregalava uns olhos de raiva e gritava bem alto: “Pscinha mijinha, pscinha mijinha”.

Só a muito custo me libertei das garras odientas da Sapateira, iniciando tamanha correria que ela não mais me pôs a vista em cima.

Só mais tarde soube que tivera uma antepassada que, para além de demente e ciosa da fala, sofria de incontinência urinária. Contaram-me que a coitada urinava em tudo o que era sítio, formando uma pequena poça à sua volta e, depois, muito contente, punha-se a saltar à volta da dita poça, cantarolando: “Pscinha mijsinha, pscinha mijsinha,” o que, obviamente, significava “pocinha de mijinho”.

Confesso que nunca mais gritei à Sapateira, não tanto por não querer sentir, mais uma vez, os seus gadanhos nas minhas orelhas, mas sobretudo porque temia que ela voltasse a descobrir o lastimoso currículo de algum outro meu antepassado.

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publicado por picodavigia2 às 10:42

GEMA

Quinta-feira, 13.06.13

Apesar de saborosíssima e deliciosa, sobretudo quando usada em doçaria, a gema do ovo é, de todos os alimentos que defrontamos no nosso quotidiano pantagruélico, um dos que, incondicionalmente, me devo abster ou abdicar por completo, devido aos problemas de insuficiência renal com que me debato.

Ê que sendo o ovo é um alimento que está presente, directa ou indirectamente, na maioria das nossa refeições, sobretudo no que às sobremesas diz respeito, possui, de facto, uma importância muito grande, seja para fazer bolos, pastéis, pudins, pães, tortas, salgados, enfim, ou mesmo para comê-lo só, seja frito, cozido ou mexido. Mas o ovo e de modo muito particular a gema, traz muitos malefícios, no contexto de uma alimentação adequada aos doentes sofredores de insuficiência renal, devido ao excesso de proteínas que contém.

Obviamente que, para as pessoas saudáveis, a ingestão do ovo completo, incluindo gema e clara, traz, também, benefícios alimentares, por isso, umas vezes, o ovo é considerado um alimento bom e excelso, mas, muitas outras, é tido como o vilão e o malévolo. Uma coisa é certa, os ovos contêm muitas vitaminas, como a vitaminas A, B, E e D. Além do ácido fólico, das proteínas, do cálcio, do ferro, e também do fósforo e zinco. O ovo também é conhecido como uma fonte de colesterol, que se encontra, sobretudo, na gema. As vitaminas e os nutrientes são óptimos, mas o índice de calorias é muito alto, pelo que os ovos não devem ser consumidos em grande quantidade.

Há pois, no meu caso e como doente com insuficiência renal, o imperativo de abdicar, radical e absolutamente, do consumo daquelas saborosíssimas gemas, tanto das que recheio de apetitosa, atraente e dulcíssima doçaria, mas até daqueles pedacinhos de gema, ingredientes do arroz thcau-tchau, servido em restaurantes chineses.

Com a palavra gema, outrora, nos meus tempos de infância, fazia-se uma pequena mas interessante graçola:

Interrogava-se um nosso interlocutor, se o nome de mulher Ema se devia pronunciar Êma ou Éma (com o som do e fechado ou aberto. Insistia-se na pergunta, a fim de que o ouvinte se concentrasse bem no som êma. De seguida, perguntávamos-lhe como se chamava a clara do ovo. Dominado, ainda, pela permanência do som êma, respondia sem hesitação:

- Clara!

Era risota geral:

- Então a clara do ovo chama-se gema?

Só então o burlado foneticamente, caía em si, ligeiramente envergonhado.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:31

A FILARMÓNICA SENHORA DA SAÚDE

Quinta-feira, 13.06.13

Foi à Praça, areópago de crítica e da má-língua mas também berçário de projectos e planos, onde os homens descansavam à sombra nas tardes escaldantes de Verão, que, no final da década de quarenta, nasceu a ideia de criar uma Filarmónica, na Fajã Grande, ilha das Flores. A decisão final, no entanto, só seria tomada, naquele ano em que a Filarmónica da Lomba, contratada para abrilhantar a festa da Senhora da Saúde, uma das maiores da ilha das Flores, falhou o compromisso assumido, faltando à festa, por alegadas razões de mau tempo.

Inicialmente poucos apoiavam tão ousado desiderato. Com o tempo, porém, tão grande foi a insistência dum pequeno grupo que pouco a pouco a ideia foi germinando, nas mentes dos mais afoitos: comprar uma Filarmónica não era um projecto de todo impossível, para a freguesia. Para isso bastava que todas as casas oferecessem o leite do primeiro domingo de cada mês. As contas eram fáceis: mais ou menos duzentas casas a uma média de dez litros de leite por mês, eram dois mil litros. Em doze meses seriam vinte e quatro mil litros. Se todos entrassem, daria à volta de trinta e cinco a quarenta contos por ano. Em nove ou dez anos, porque havia que pagar os juros, a Filarmónica estaria paga.

O plano era aliciante. Para a sua concretização bastou que, num domingo, no fim da missa, o pároco anunciasse da grade:

- Hoje à tarde há uma reunião na Casa do Espírito Santo de Cima, na qual devem participar todos os chefes de família. Vamos decidir se a freguesia vai comprar uma Filarmónica. Basta que cada um ofereça o leite do primeiro domingo de cada mês, durante alguns anos. Os poucos que, como eu, não têm vacas, darão o valor correspondente em dinheiro. É preciso é que todos participem!
No Verão de 1951, houve grande agitação em toda a freguesia. Os instrumentos estavam a chegar. Vinham de Lisboa, no Carvalho de Julho.
Um grupo de jovens com melhor ouvido e mais apetência para a Música, já há muito que se havia iniciado no solfejo, enquanto outros aperfeiçoavam o que tinham aprendido na tropa. Finalmente chegaram os instrumentos! Vinham dentro de enormes caixotes, protegidos com palha e farripas e brilhavam como prata! Dois contrabaixos, dois bombardinos, duas trompetes, dois trombones, duas trompas, dois cornetins, um saxofone, cinco clarinetes, uma requinta, o bombo, a tarola e os pratos. Tudo direitinho e em óptimas condições. Distribuíram-se pelos diversos músicos, de acordo com as capacidades de cada um e intensificaram-se os ensaios, agora sob a orientação de um sacerdote, professor de Música do Seminário de Angra, que vinha habitualmente, passar férias à freguesia, donde era natural.

No fim de Agosto estava tudo preparado e afinado. A banda estava, na abalizada opinião do maestro, preparadíssima para actuar. A inauguração e a primeira apresentação em público foram agendadas para o dia da festa da Senhora da Saúde, a maior festividade que se realizava na freguesia e uma das maiores da ilha.

A festa foi de arromba! Vieram, como convidadas, todas as Bandas Musicais das Flores e até Lira Corvense! Veio clero, autoridades e povo de toda a ilha.
Na Casa do Espírito Santo de Cima, os músicos fardados a rigor, calças e boné brancos, casaco azul com botões amarelados, acotovelavam-se nervosos, apreensivos e de instrumento em riste. Fora as restantes Filarmónicas esperavam pacientemente que o cortejo se organizasse. O Ouvidor das Lajes, paramentado a rigor, leu algumas orações em latim e aspergiu água benta sobre homens e instrumentos, traçando, vezes sem conta, cruzes no ar.
Pouco depois formou-se o cortejo em que seguiam as bandas convidadas. As ruas estavam engalanadas com bandeiras multicolores e o chão atapetado de pétalas e verdura, como se duma procissão se tratasse. Das varandas e janelas pendiam colchas de seda, no ar estalejavam foguetes e os sinos repicavam festivamente.

A seguir à missa, num coreto provisório, colocado no adro da igreja, as bandas tocaram à porfia. E a opinião era unânime: - a que melhor tocava era da Fajã. Pudera! Se os instrumentos estavam tão fresquinhos… Passou a chamar-se “Filarmónica União Musical Senhora da Saúde” e a partir de então abrilhantava todas as festas da freguesia, sendo muitas vezes convidada para tocar noutras partes da ilha, enquanto o leite do primeiro domingo de cada mês, com que quase todos contribuíam, ia pagando os juros.

Os anos passaram e a Filarmónica foi paga com o dinheiro do leite oferecido por todos, no primeiro domingo de cada mês. Dezenas e dezenas de jovens aprenderam música, para substituir os que se ausentavam ou simplesmente desistiam. Todos se orgulhavam da “Senhora da Saúde” e acarinhavam-na, porquanto consideravam a importância que ela tivera no desenvolvimento sócio cultural da freguesia.  

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publicado por picodavigia2 às 09:39





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