PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
EXCELÊNCIA
"Nós somos o que fazemos repetidamente. A excelência não é um feito, é sim, um hábito"
Aristóteles
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NO ESTRIBO DO ELÉCTRICO
(UM TEXTO DE ALTINO TOJAL)
No estribo do eléctrico parado, o rapazinho espreita avidamente para dentro.
- Pst! – chama, a medo.
Tem de repetir: pst!, e depois pst! e ainda pst!.
- Que queres? – indaga com enfado o cobrador, homenzarrão severo de bigodinho já grisalho.
Pode fazer o obséquio de chegar aqui?
Cobrador pesadamente aparafusado ao chão, a meio do eléctrico. Lapija algarismos numa agenda.
Arrastando as toscas chancas blindadas, o rapazinho acerca-se timidamente por entre os passageiros sentados, de gorra na mão, como se entrasse na igreja e o cobrador fosse Deus.
- Que queres?
- Esse eléctrico passa ao Hospital?
- Passa.
- E quanto é daqui inté lá? – As faces macilentas do rapazinho tingem-se de vermelho vivo. O cobrador guarda a agenda e o lápis:
- Vinte e cinco tostões ou cinco coroas, como te der mais jeito.
De olhos baixos, o rapazinho volteia a gorra nos dedos:
- Faça o obséquio de me dar um bilhete de dez.
- Não há. Quinze é o mínimo.
A voz do rapazinho mal se ouve – eco trémulo de eco trémulo:
- Só tenho este dinheiro. – E sem erguer os olhos estende duas moedas de cinco tostões.
- Se fizesse o obséquio de arranjar um de dez...
- Não há, rapaz, já te disse! Vai a pé! É fácil: segues sempre pelo trilho. Uma vez por outra vais perguntando aos polícias. Com essas chancas nos pés e essa língua na boca até podes dar a volta ao mundo. Eu, quando tinha a tua idade...
Sem olhar os passageiros, que sorriem, o rapazinho sai, apeia-se, enfia profundamente as mãos nos bolsos das calças (é crível que estejam rotos), erra no passeio de rosto vazio entre os cidadãos apressados.
- Conheço bem esta mafia – resmunga o cobrador. - As manhas são sempre as mesmas. Tim-tim!
O eléctrico arranca, aos sacolejos, ganha velocidade; e, picando um bilhete, o cobrador, embora a contragosto, olha demoradamente para trás.
Altino do Tojal, Os Putos
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IOGURTE
A palavra portuguesa iogurte parece ter a sua origem na turca “yoğurt”, com que se relaciona o adjectivo “yoğun”, que significa "denso". Na realidade o iogurte é uma forma de transformação do leite, em que o açúcar que o mesmo contém, ou seja a lactose, é transformado em ácido láctico, por fermentação bacteriana. Por isso mesmo, é um líquido denso, espesso, branco e levemente ácido, muito nutritivo e, por essa razão, muitas vezes, é servido e mesmo vendido misturado com frutas, chocolate ou outro tipo de adoçante.
Cuida-se que a sua origem esteja nos Balcãs e, tal como outros produtos derivados do leite fermentado existente naquela região do globo, remonta há milhares de anos. No entanto, na Europa a sua comercialização teve início a partir da constatação feita pelo médico russo Ilya Ilyich Mechnikov, “biologist, zoologist and protozoologist, best remembered for his pioneering research into the immune system.” Mechnikov recebeu o prémio Nobel da Medicina “…in 1908, shared with Paul Ehrlich, for his work on phagocytosis. He is also credited by some sources with coining the term gerontology in 1903, for the emerging study of aging and longevity.”
O iogurte além de poder aumentar a longevidade das pessoas, possui outras benéficas propriedades nutricionais, graças a vários fermentos lácteos que possui, aos quais se juntam o leite, depois de homogeneizado e pasteurizado. Devido ao facto de ser obtido mediante fermentação láctea, o iogurte é muito fácil de digerir, o que o torna o produto ideal para pessoas com problemas gastrointestinais. Contudo, não se esgotam aqui os benefícios deste alimento. O seu consumo regula o sistema imunológico, sem esquecer que se trata de uma excelente fonte de cálcio e, como tal, a sua ingestão é uma fonte de ajuda no crescimento das crianças.
Que bons, deliciosos e apetitosos iogurtes se compravam outrora no Supermercado, fabricados em diversíssimas zonas do país com realce para os de Montbaltar. Hoje porém, devido à insuficiência renal, estão-me proibidos todos os tipos de iogurtes, naturais, com frutas ou até batidos. Resta-me apenas o consolo de poder saborear, de vez em quando, um iogurte de soja, mas apenas com sabores, nunca com aqueles saborosos pedacinhos de fruta, caramelo ou chocolate que continham os saborosíssimos iogurtes Montbaltar.
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O REGRESSO DE MARIANA
Era uma vez uma casa pobre, humilde, modesta e muito antiga. As paredes eram de um castanho amarelado, de tal maneira despidas de cal que deixavam ver os pedacinhos de xisto com que haviam sido construídas e que, semelhantes a tabuinhas, se sobrepunham e entrelaçavam uns nos outros, em camadas simétricas e rendilhadas que iam do chão ao telhado e se prolongavam ao longo dos muros e paredes circundantes. Tinha um aspecto muito tosco e rústico, com portadas de madeira carcomida pelo tempo, sem grandes vidraças e com dois andares. No rés-do-chão ficavam as lojas de arrumos, uma adega muito pequenina, a cozinha e a retrete. O primeiro piso, a que se tinha acesso apenas por uns degraus exteriores também de xisto e ladeados por um corrimão de ferro enferrujado, era constituído por uma sala e dois quartos.
Nessa casa morava Mariana, com os pais e um irmão mais novo, o Zezito.
A casa ficava perto de um rio que se chamava Ave. Era um rio de águas límpidas, cristalinas e azuladas, repletas de uma imensidade de barbos, carpas, bogas e outros pequenos peixes que se movimentavam em loucas correrias, em constantes rodopios e em simulados ziguezagues. O rio deslizava calma e suavemente, atravessando uma enorme planície onde, de um lado e outro das suas margens, povoadas de azenhas e moinhos, se acomodavam terrenos divididos por beiradas de amieiros, choupos, castanheiros e carvalhos, mas muito férteis e produtivos. No Inverno, enquanto aguardavam as sementeiras, tinham um aspecto avermelhado e escurecido, mas na Primavera revestiam-se com o verde dos milheirais, dos legumes e das vides e no Verão começavam a amarelecer até alourarem por completo no Outono.
Num desses campos, um pouco mais distante do rio, ficava a casa da Mariana. Era nele que os pais trabalhavam de sol a sol porque era dele que tiravam tudo o que era necessário para o seu sustento – milho, legumes, batatas e vinho. Em Fevereiro e Março, quando os dias começavam a tornar-se maiores e mais quentes, os pais, jungindo o Lavrado à charrua, abriam e resvalavam a terra ainda húmida das chuvas invernais e deixavam ficar as leivas e os torrões a secarem e como que a aquecerem-se ao Sol, durante alguns dias. Depois desfaziam-nos e transformavam-nos em terra fina que alisavam umas vezes com enxadas outras com uma grade puxada pelo Lavrado, transformando o campo num enorme e fofo tapete acastanhado. De seguida o pai voltava a atrelar o boi ao arado e traçava regos paralelos e simétricos de uma extremidade à outra do campo. A mãe ia atrás e, retirando punhados de milho de uma cesta que levava enfiada no braço, atirava os grãos com tanta agilidade e perícia que eles caiam direitinhos no rego, muito bem alinhados uns à frente dos outros, como se fossem soldadinhos numa parada militar. Cada rego fechava-se com o abrir do seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era de novo gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos e assim germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. Não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Nas extremidades do campo e nos lugares mais abrigados pelos bardos das beiradas ficavam pequenos canteiros de batatas, feijão, ervilhas e melões e nos mimos crescia a pranta, a couve, as alfaces e o cebolo. Em Abril e Maio, quando o milho ainda estava miudinho, os pais sachavam e mondavam o campo de lés a lés, retirando as ervas daninhas e os pés de milho mais bastos para que os outros crescessem à vontade. Nos dias seguintes o campo transformava-se num enorme tapete de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e as ervilhas e os feijoeiros começavam a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além. Os milheiros cresciam de dia para dia, as suas folhas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os caules, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam o campo com um manto esbranquiçado e fofo. Algum tempo depois nos caules enrijecidos começavam a formar-se espiguinhas cabeludas que iam crescendo e alourando ao Sol do estio. Em Setembro as espigas amadureciam por completo e procedia-se à apanha. A mãe arrepelava dos caules já muito amarelados e envelhecidos as espigas maduras e recolhia-as em enormes cestos, enquanto o pai os ia acarretando para a loja de arrumos, ao mesmo tempo que cortava as folhas e as guardava para alimento do Lavrado. Algum tempo depois marcava-se o dia da desfolhada. Mariana esperava ansiosamente essa noite de sonho e de magia.
O Zezito ainda era muito novo e Mariana desde pequenina, sempre que a mãe a dispensava de tomar conta do irmão, habituara-se a brincar sozinha. Por isso aguardava com grande ansiedade e expectativa os dias da desfolhada, da vindima, da matança e alguns outros que ela considerava diferentes sobretudo porque tinha sempre alguém com quem brincar. Para ajudar os pais na desfolhada vinham muitos vizinhos e amigos, os tios e os primos de Covelas, uns parentes já mais afastados de Alvarelhos e um casal de Laundos. Normalmente o pai escolhia uma noite de Lua Cheia. Os adultos sentavam-se em círculo, na pequena eira, à volta do amontoado de espigas e, enquanto lhes iam arrancando o folhelho, contavam histórias e anedotas ou então cantavam acompanhados pelo acordeão do amigo de Laundos. De vez em quando a mãe levantava-se e ia buscar uma malga cheia de vinho muito vermelho e perfumado, a borbulhar e a escorrer pelas bordas brancas, que todos iam saboreando à vez. Depois de vazia a mãe voltava a enchê-la outras tantas vezes, quantas eram necessárias para que todos bebessem e alguns voltassem a beber. Simultaneamente Mariana e a prima iam oferecendo, em pequenas cestinhas forradas com panos de linho rendado, pedacinhos de broa e presunto espetados em palitos e figos secos. Depois todos voltavam ao trabalho. De repente e com enorme alarido alguém gritava “Milho-Rei! Milho-Rei!”. A tarefa era suspensa de imediato e fazia-se uma grande festa de regozijo. Mariana e as outras crianças vinham logo sentar-se ao redor do amontoado do milho. É que o feliz contemplado com a espiga de grãos vermelhos teria que abraçar todos os presentes. A isso ela nunca faltava. No fim servia-se a merenda: broa, presunto, salpicão, chouriças, azeitonas e vinho, enquanto o acordeão continuava a emitir sons alegres e harmoniosos. Então os homens, as mulheres e as crianças formavam pares e dançavam pela noite dentro.
A vindima era feita no mês de Outubro. É verdade que não era uma folia tão animada e divertida como a desfolhada. As uvas não eram muitas mas o trabalho era árduo e pesado. O pai passara meses e meses a podar os bacelos e a enxertar e a amarrar as videiras a estacas de pedra granítica e aos amieiros e carvalhos das beiradas que circundavam o campo onde o milho crescia a olhos vistos. Quando as vides já cobriam os bardos de um verde muito escuro e os cachos começavam a desabrochar, suspendendo-se graciosamente das latadas ou pendurando-se desordenadamente nas beiradas, o pai passava horas e horas de máquina a tiracolo a sulfatá-las uma a uma. Depois, já amadurecidas e muito apetitosas, as uvas eram colhidas e levadas em cestos para o lagar, onde eram esmagadas. Durante dias e dias exalava do mosto um cheiro perfumado, acre e doce que se propagava por toda a casa.
O dia que Mariana mais adorava era o da matança. Nesse dia nem ia à escola. A mãe preparava tudo com muita antecedência. A enorme salgadeira, os alguidares, os caldeirões e as panelas, tudo era muito bem limpo e lavado. Na véspera Mariana ajudava a descascar uma enorme quantidade de alhos, a arranjar os temperos e a preparar as toalhas branquinhas enquanto o pai aprontava o colmo para a chamusca.
Nesse dia, a casa não se enchia de gente como na desfolhada, mas a azáfama era muito diferente e mais divertida do que a da vindima. Não era costume vir nem os vizinhos nem os amigos, porque todos tinham que preparar as suas matanças nesses dias. Apenas vinham os tios e os primos de Covelas e, por vezes, os avós das Caldas com a madrinha Clotilde. De manhã cedo, quando o dia ainda não clareara de todo, chegava o Senhor Joaquim, o matador que o pai contratava todos os anos. Vinha de Valdeirigo e trazia umas facas enormes. Juntamente com o pai e o tio entravam nos aidos, agarravam o cevado, amarravam-lhe as pernas e punham-no em cima duma pequena mesa que se guardava de ano para ano. Mariana de longe, apreensiva e cheia de medo, tapava os ouvidos com ambas as mãos para não ouvir os gritos de aflição que o porco emitia ao ser apanhado. A mãe, de avental novo ao peito, aproximava um alguidar do pescoço do porco e enchia-o com o sangue que se esvaía a jorros do buraco que lhe havia feito a faca certeira do senhor Joaquim. De seguida dividia o sangue em duas partes: uma para coagular e fazer o sarrabulho para a ceia, enquanto à outra metade juntava umas gotas de vinagre e deitava-a num alguidar, para mais tarde a misturar aos bocadinhos da carne da barriga com que se haviam de encher as chouriças. Com a palha do colmo retirada do centeio e transformada em espécies de vassouras, a que ateavam fogo, os homens chamuscavam o porco de uma ponta à outra. De seguida com baldes de água e sabão azul o suíno era lavado e esfregado com pedras e ramos de carqueja até ficar totalmente branquinho e limpo que era um regalo. Depois pegavam-lhe e levavam-no em ombros para a loja de arrumos, onde era amarrado de pernas para o ar, aos tirantes que seguravam o soalho do piso superior. A mãe limpava-o todo com um pano de linho, preparado exclusivamente para este fim e que depois de lavado era novamente guardado para o ano seguinte. O matador, com um enorme facalhão, abria-o de cima para baixo e retirava-lhe o fígado, os bofes, o coração, as tripas e a bexiga. As tripas eram embrulhadas em panos, de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas no rio. O porco ficava aberto e com umas canas a esticar-lhe a barriga, a fim de que a carne arejasse. Por cima das patas o pai colocava-lhe o redanho como que a simular um manto. E assim ficava até ao dia seguinte, escorrendo em fio um líquido avermelhado e sujo, recolhido numa bacia que lhe era colocada debaixo da cabeça. A mãe já havia preparado e guisado os miúdos com pedacinhos de batata e, com o fígado, fizera umas deliciosas iscas de cebolada. É que o dia começara cedo e a fome apertava. De tarde Mariana acompanhava as tias que iam ao rio lavar as tripas muito bem lavadinhas enquanto a mãe ficava em casa a preparar o unto para fazer o pingue. À noite, todos voltavam a sentar-se à mesa onde as papas de sarrabulho ferviam no velho caldeirão de ferro e exalavam um cheirinho a noz moscada e a cominhos que enchia a casa e, juntamente com o fumo, saía pelos telhados e se propagava pela vizinhança. No dia seguinte voltava o senhor Joaquim com as suas facas para desmanchar o porco. Tirava o redanho para que a mãe o derretesse. Depois extraía a carne da barriga destinada aos rojões, da qual separava as aparas para as chouriças. De seguida, cortava-lhe a cabeça, preparava as orelheiras e dividia o corpo em duas partes, das quais tirava os coelhos. Era com estes que a mãe fazia os melhores salpicões. Depois cortava as pás, tirava as costelas e as tiras da barriga que seriam guardadas na enorme salgadeira. Finalmente cortava os presuntos, que eram colocados juntamente com os salpicões num molho feito de alho, sal, vinho e louro e onde permaneciam durante alguns dias, antes de irem para o fumeiro. De modo semelhante eram temperados os ingredientes com que mais tarde seriam feitas as chouriças. Seguiam-se dias e dias de fumeiro, com a queima de rama verde, para o tornar mais lento e demorado. Depois os presuntos eram passados por vinha-d’alhos e postos em sal. Mariana ajudava a mãe em todas estas tarefas e com ela partilhava uma enorme tristeza quando algum presunto, ou porque o tempo estivesse mais quente ou porque não tivesse curado bem, se estragava.
Para além destes dias verdadeiramente diferentes para Mariana, os restantes eram de uma verdadeira monotonia. Levantava-se cedo e seguia para a escola, onde fazia ditados, resolvia problemas, estudava os rios e as serras, os reis e as batalhas, os vertebrados e invertebrados. Na hora de leitura a senhora professora juntava todas as meninas à volta da secretária, por trás da qual ficavam, ladeando um crucifixo pendurado na parede, as fotografias de Craveiro Lopes e Salazar, para lerem à vez e contarem histórias. Terminadas as aulas regressava a casa, ajudava os pais, tomava conta do Zezito e fazia as cópias e as contas que a Dona Ermelinda mandava. Apenas os domingos e os dias de festa em que os pais não trabalhavam no campo eram diferentes.
A festa que Mariana mais adorava era o Natal. Todos os anos faziam, na sala, um enorme presépio com as figurinhas de barro que a mãe trouxera das Caldas: o Menino Jesus, Maria, José, os três Reis Magos, os anjos, os pastorinhos e muitos aldeões que circulavam à volta da gruta, por caminhos cobertos com serrim de madeira e ladeados por casinhas também de barro e por leivas de musgo a imitar os campos onde pastavam as ovelhitas. Mas o que Mariana mais ansiava era a noite de Natal. Nessa noite a ceia era na sala e a mãe enchia a mesa de iguarias deliciosas que aprendera a fazer com a avó da Trofa: rabanadas, mexidos, aletria e sopas secas que enchiam a casa de um agradável cheirinho a canela. Terminada a ceia partiam, às vezes com o Zezito já a dormir, para a missa do galo. O pai ficava cá fora com os homens, enquanto ela e a mãe entravam na igreja cheia de vultos negros, de tossidelas e rouquidões, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. Sentavam-se e esperavam em silêncio ou rezavam baixinho, até que o sacristão, envergando uma opa vermelha, vinha tocar uma enorme campainha. Os homens que aguardavam lá fora entravam para o coro e para os lugares do fundo, enchendo a igreja por completo. Toda a gente se levantava e fazia-se um enorme silêncio. O pároco saia da sacristia todo vestido de branco e, segurando na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado, dirigia-se para o altar-mor. Tirava o barrete negro de três bicos, fazia uma enorme genuflexão e bichanava as primeiras orações em latim, às quais apenas o sacristão respondia. O povo, de joelhos batia com a mão direita no peito e inclinava a cabeça. Pouco depois, o padre aproximava-se do centro do altar, voltava-se para o sacrário e erguendo os braços, entoava em voz muito alta:
- “Glo-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis De-e-e-o”.
O sacristão de imediato badalava prolongadamente a campainha enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz, de cor e de alegria. A missa continuava, entre preces, louvores e orações. O povo levantava-se, sentava-se, ajoelhava e tornava a sentar-se, consoante as indicações da campainha.
No fim, enquanto se entoavam cânticos de Natal, o pároco dirigia-se para o presépio que ficava do lado direito da capela-mor, por baixo da imagem de S. Martinho. Recebendo o turíbulo fumegante, balouçava-o diante das enormes figuras de Maria, José e do Menino, enchendo o templo de fumo e de cheiro a incenso. De seguida tomava o Menino nas mãos e colocando-se junto à grade que separava a capela-mor do cruzeiro, dava-o a beijar aos fiéis. Mariana, juntamente com as outras crianças, incorporava-se nos primeiros lugares da longa fila que se formava à espera de vez para beijar o Menino Jesus e para depositar, na cestinha que o sacristão mantinha na mão, os vinte centavos que a mãe lhe dera na véspera.
Em Janeiro havia a festa de S. Sebastião. Em Abril a da Senhora do Desterro e a Páscoa. No mês seguinte, o Espírito Santo. Em Agosto chegava finalmente a maior festa de todas – a Senhora das Dores. Mariana adorava-a. A avó Leocádia, prevendo alguns problemas a quando do seu nascimento, prometera que, logo que a menina andasse pelos seus pezinhos, havia de ir todos os anos, na procissão, vestida de anjinho. A mãe esmerava-se na preparação das roupitas. Faltasse tudo lá em casa, mas promessa era promessa e, por isso, a roupa que a menina vestiria para acompanhar a Senhora das Dores nunca havia de faltar. No dia da festa, Mariana seguia cedo com os pais, para o largo fronteiro à capela. Terminada a missa iniciava-se uma gigantesca procissão, onde se incorporavam os dez andores representantes das aldeias de Bougado, as irmandades, dezenas e dezenas de anjinhos e milhares de fiéis e devotos da Senhora das Dores.
Finalmente, em Setembro, havia uma outra festa a que os pais de Mariana também nunca faltavam – a romaria de Santa Eufémia, em Alvarelhos.
Os restantes domingos, da parte da tarde, eram de labuta. Os pais, no entanto, reservavam para essas tardes os trabalhos mais leves mas considerados necessários. O pai dava feno e erva ao Lavrado, ordenhava a cabra e apanhava os legumes enquanto a mãe tratava do porco e dava uma barrela à casa.
Este trabalho contínuo, persistente e sem futuro começava, por vezes, a indignar o pai da Mariana. Aquilo era uma vida miserável. Trabalhava-se, trabalhava-se para ter apenas o sustento de cada dia. Por várias vezes ensaiara algumas tentativas de arranjar emprego nalgumas fábricas de serração de madeiras, tecelagem, chapéus, tecidos ou de maceração do linho, que desde há alguns anos tinham começado a surgir ali na zona da Trofa. Mas não tivera sorte, nunca fora admitido. É verdade que já lhe tinham oferecido emprego nas Ferragens Melo e Sousa, no Porto, mas recusara-o. Muitos homens de S Martinho e de outras localidades ao redor deslocavam-se todos os dias para o Porto, para trabalhar em fábricas ou na construção civil. A escassez de transportes, no entanto, obrigava-os a fazer a viagem de bicicleta, demorando mais de três horasem viagens. Assimficava totalmente impossibilitado de continuar a trabalhar o campo e a Teresa sozinha e com as crianças muito pequeninas não podia atender a tudo. Além disso os ordenados quer nas fábricas quer na construção eram muito baixos.
Mas a ideia de abandonar a agricultura e mudar de vida nunca saiu por completo do pensamento do pai da Mariana. Muitas vezes, à noite juntamente com a mulher, quando as crianças já dormiam, lamentava aquela vida árdua e cansativa, sobretudo para ela. Não fora para aquilo que a tirara de casa dos pais, da Tornada, lá nas Caldas da Rainha. E os filhos? Que futuro lhes preparava? Continuarem ali, agarrados à rabiça do arado ou ao cabo da enxada para ter apenas um caldo de couves e um bocado de broa ao fim do dia? Não, não podia ser assim. Tinham que pensar em mudar de vida, em construir um futuro melhor sobretudo para os filhos. Para isso tinham que se aventurar.
A mulher bem o tentava demover lembrando que não estava nada incomodada com aquela vida. Casara com ele por amor e era por amor que tinha deixado os seus pais e tinha saído das Caldas. Além disso estava habituada à vida do campo. Também na Tornada, desde que terminara a quarta classe, sempre se habituara ao trabalho agrícola, ajudando os pais nas lides agrárias e que a mãe lhe estava sempre a dizer que ela não nascera para princesa.
Mas o Libório é que não se conformava e não lhe saía da cabeça a ideia de que um dia havia de mudar de vida. Esse dia não tardou.
Foi na festa de Santa Eufémia, em Alvarelhos, que o pai de Mariana encontrou um amigalhaço do tempo da tropa que havia emigrado para a França e agora estava em Portugal a passar uns dias. Conversa daqui, conversa dacolá e o sonho de abandonar a vida agrícola tornou-se mais real do que nunca. A vida em Portugal não melhorava, o país não progredia e a agravar a situação o regime de então acabara de iniciar uma guerraem Angola. Dizia-seque também seriam mobilizados os que tinham feito tropa nos últimos anos, mesmo já tendo passado à disponibilidade.
Assim, emigrar para França transformou-se numa decisão irreversível.
A mulher nem queria acreditar e atirava-lhe à cara com inúmeras dificuldades, repetindo constantemente:
- Tu endoideceste por completo, homem de Deus!
Não, não endoidecera. Afinal já estava tudo planeado. É verdade que não tinha quem lhe fizesse carta chamada, mas iria como muitos outros tinham ido – clandestino. A diferença é que ela e os pequenos também iam, apesar dos passadores não quererem levar mulheres, nem muito menos crianças. É que a fuga era muito perigosa.
Foi um tipo de Macedo de Cavaleiros que contactou o pai da Mariana através de um primo de Guidões, para acertar tudo. Era preciso que ninguém soubesse ou desconfiasse de nada. E foi lá, em Guidões, em casa do primo, que encontrou o homem. Álvaro Ramalho, assim se chamava o contrabandista, no início recusou levar a mulher e as crianças. Aos poucos foi cedendo. Era uma questão de preço. Mas garantiu-lhe que era sério e honrava os compromissos. O que se combinasse ali seria escrupulosamente cumprido. Oitenta contos: trinta por cada um dos adultos e vinte pelas crianças mas estas, sempre que seguissem de carro ou camioneta, seriam levadas ao colo. Claro que tudo o que lhes acontecesse era da responsabilidade dos pais.
O pai de Mariana regressou sem firmar contrato. O preço era altíssimo. Era-lhe de todo impossível arranjar aquele dinheiro. Um segundo encontro e o Ramalho cedeu:
- Vinte mil em notas e quarentaem bens. Aceitamoscasas, terras… Mas temos que ser nós a avaliá-los – sentenciou o homem, apertando-lhe a mão – e tens emprego garantidoem Clermont-Ferrand. Aochegares lá um tipo chamado Cardoso vai procurar-te, vai arranjar-te trabalho e dizer-te como deves pagar o restante. Não devem levar muita bagagem. Para além de ser comprometedor é impossível transportá-la. Levem apenas o indispensável.
A mãe de Mariana teve muitas dificuldades em aceitar.
- Vais vender a casa e o campo!? E se temos que voltar para trás? O que vai ser de nós e dos pequenos? Nem ao menos posso avisar meus pais? – perguntava ansiosa.
- De forma nenhuma. Ninguém, absolutamente ninguém pode saber, a não ser o primo de Guidões. E não te esqueças que à Mariana e a todas as pessoas deves dizer que vamos às Caldas, a casa dos teus pais.
- E o Lavrado? E a cabra? E as galinhas e o porco?
- O boi já está vendido. A casa e o campo ficam ao cuidado de meu primo. Só depois de receber a notícia de que já estamos seguros e em França ele venderá o que puder e fará a entrega da casa e do campo ao passador.
Foi na véspera dos anos de Mariana que ela, os pais e o irmão partiram de S. Martinho de Bougado com destino à França. Para os vizinhos iam às Caldas, a casa dos avós maternos, passar o aniversário da menina. Mas no Porto não foi fácil convencer Mariana de que iam para as Caldas por outro caminho.
Quando chegaram a Bragança um tipo de aspecto esquisito aproximou-se, recebeu-os e ofereceu-se, como taxista, para os levar a Gimonde. Que esperassem um pouco sem dar muito nas vistas. A viagem era curta e só à meia-noite em ponto deviam estar em Talhinhas junto à ponte de Remondes, sobre o rio Sabor. O plano em nada falhou. Ao dar a meia-noite, lá estavam juntando-se a eles outros dois desconhecidos, com quem teriam que efectuar uma longa e perigosa viagem. Finalmente chegou o guia que os acompanhou até à fronteira.
Era Outubro. As noites já eram grandes e frescas. As crianças começaram a sentir fome e frio. O pai prevenira-se com comida em Bragança, mas o Zezito não se calava e, em vão, pedia leite. O choro e a impaciência começavam a importunar. A mãe vezes sem conta arrependia-se de ter partido.
Na manhã seguinte uns a dormir e outros acordados chegaram a Puebla de Sanabria, em Espanha, juntando-se a alguns pequenos grupos que tinham passado a fronteira noutros locais. Alguns dias depois estavam em Dancharie na França, onde o último guia os deixou.
- Agora tomem o comboio e sigam os vossos destinos conforme as instruções que vos deram. Governem-se, como puderem – e virou costas.
O comboio ainda parou em Puyoô e em Agen onde saíram alguns portugueses. Apenas um pequeno grupo seguiu para Clermont-Ferrand.
Na capital de Auvergne o pai de Mariana procurou o Cardoso, que morava na rua deLa Rotundee desde há muito estava radicadoem França. Osconhecimentos que tinha junto dos patrões de algumas fábricas de pneus, metalurgia, produtos farmacêuticos e alimentares proporcionavam-lhe que fosse arranjando alguns empregos para os que o Ramalho lhe recambiava de Portugal. O que tinha disponível de momento era numa fábrica de pneus. Não era nada mau.
- O trabalho é pesado, mas vais ganhar bem. És novo e forte. Se com o teu trabalho agradares aos patrões, tens promoção pela certa. Já sabes que para aqui não se vem passar férias.
O alojamento é que estava um pouco complicado. Para já só conseguira um quarto, um pouco distante da fábrica. Era na rua Berlliard. A mulher podia usar a cozinha e o preço era acessível. Em breve lhe arranjaria uma casita. Havia um tipo de Viana que ia tentar melhor sorteem Paris. Quandoele fosse embora ficaria com a casa.
O Peugeot dos Dupont seguia a alta velocidade em direcção a Braga. O GPS indicava que deviam sairem Santo Tirso/Trofa e depois virar à esquerda. Quando começou a circular em direcção à Trofa, Mariana sentia uma grande ansiedade. Dentro em breve iria percorrer os caminhos e as vielas dos tempos de infância, recordando assim os lugares onde tinha nascido e fora criada. Em França, sobretudo depois do casamento com Pierre Dupont e da mudança de Clermont-Ferrant para Aurillac, poucas informações recebia de Portugal. Mas duma coisa tinha a certeza – tudo estaria muito diferente. À medida que se aproximava o coração apertava-se-lhe mais. É que a oportunidade de ver e talvez até de entrar na pequena casinha onde tinha nascido podia estar prestes a concretizar-se. Os semáforos à entrada da cidade causavam-lhe alguma confusão, mas configuravam grandes mudanças. No entanto começava a ver perdidas entre modernas construções, uma ou outra casita de xisto amarelado, que tal como aquela onde nascera, deixavam ver as pedrinhas rectangulares que ela sempre comparara a tabuinhas de madeira. De certo que não se haviam enganado. Mais adiante, uma igreja nova, de tijolos acastanhados e amplas vidraças e logo à direita, uma escola enorme, rodeada de prédios modernos e altíssimos. Era a Trofa, mas uma Trofa muito diferente da pequenina aldeia que havia deixado quarenta e sete anos antes.
Voltaram à esquerda, tornaram a voltar à direita e seguiram em frente na direcção do sítio onde presumivelmente estaria a velha casita. Mais umas voltas e chegaram ao pequeno largo em frente à igreja matriz, cuja fachada exterior ainda tinha bem presente na memória. Não estaria muito longe, pois lembrava-se que, muitas vezes, à noitinha, da janela do seu quarto via, por cima dos telhados das casas circundantes, a torre da igreja. Vinha então debruçar-se à janela para ouvir o toque das Trindades. A avó havia-lhe ensinado as orações que devia rezar entre as lentas e demoradas badaladas do sino. Mais adiante estendia-se uma área enorme de terreno plano onde se misturavam prédios já construídos e outrosem construção. Algumasescavadoras reviravam a terra e removiam enormes calhaus que eram retirados dali por portentosos camiões. Muito isolada, num dos cantos do grande eirado, com paredes e muros parcialmente destruídos, apenas uma casa, em tudo muito semelhante à sua. Era de uma amiga de escola, a Joaninha, lembrava-se bem. Passava por ali todos os dias, parava e chamava por ela. Depois lá iam, de malas a tiracolo, saltando e cantando pelos campos para encurtar caminho, apanhando flores com que faziam um ramo para oferecer à Dona Ermelinda. As casas ao redor já tinham sido derrubadas e era nos seus lugares que edificavam aqueles prédios modernos e abriam novas e largas ruas.
Ali era S. Martinho, mais além as outras aldeias e o rio. È verdade que também as suas águas já não eram tão limpas, transparentes e cristalinas como as de outrora, muitos moinhos e azenhas haviam desaparecido e ao seu redor os campos já não se enchiam de milho e de couves repolhudas, já não havia matança de porcos, desfolhadas e as vindimas já não eram como outrora. Já não havia casinhas de xisto com os mimos à porta da cozinha e com os aidos onde se acomodavam os animais. Os homens já não se agarravam, de manhã à noite, à rabiça do arado e as mulheres já não sachavam e mondavam sob o calor tórrido do estio. Mas, em contra partida, nascera ali uma cidade, uma cidade grande e moderna que crescera graças à força, coragem e determinação de um povo. Mais, os trofenses depois de muitas vicissitudes, de empenhadas lutas e de esforços gigantescos haviam transformado aquela terra num concelho - o novo e moderno concelho da Trofa.
Apenas a Senhora das Dores, na sua capelinha muito alta e esguia, permanecia no seu altar e no coração de quantos, como Mariana, haviam ali nascido. Em frente à ermida, apertando tremulamente a mão do marido e com duas lágrimas a rolarem-lhe pelas faces, Mariana dizia-lhe baixinho:
- Oh, mon chéri, si tu savais à quel point je suis fiére d’être née dans cette ville.
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MATEUS PIRES
Na Fajã Grande, como em todas as outras freguesias das Flores e das restantes ilhas dos Açores, existiam diversíssimos lugares, a maior parte dos quais não habitados, mas, alguns deles com nomes muitíssimo interessantes. É o caso de um lugar da toponímia fajãgrandense, chamado “Mateus Pires” e que, como a maioria dos outros lugares, tem uma pequena história ou lenda, relacionada com a origem e a razão de ser do seu nome bem como do motivo ou motivos que terão originado. Mateus Pires é um deles!
O lugar de Mateus Pires ficava no caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros, mais precisamente integrando um outro lugar, muito maior e mais amplo, chamado Alagoinha. Partindo da Fontinha e Alagoeiro, subindo por aquele caminho em direcção aos Lavadouros, a seguir à ladeira do Pico Agudo, começava a Alagoinha. O caminho, no cimo da ladeira, fazia uma curva à esquerda, em direcção à rocha, seguindo depois paralelo a esta, para iniciar logo a seguir a descida da ladeira da Alagoinha.
Era precisamente neste sítio e junto à rocha, um pequeno montículo na enorme planície da Alagoinha, que ficava o lugar chamado Mateus Pires. Tratava-se de um lugar pequeno, formado por duas ou três terras de mato e uma relva, tendo sido claramente originado por uma ribanceira, em tempos muitíssimo recuados, caída da rocha.
Contavam os antigos que andando, outrora, por ali um homem de nome Mateus Pires, teve o azar de ser colhido pela ribanceira e ficar soterrado debaixo da mesma, nunca mais sendo de lá tirado o seu cadáver, pois a quantidade de entulho caído da rocha era tanta e tal que não havia meios que o permitissem fazer. Dele apenas ficou a memória assinalando com o seu nome aquele lugar – o lugar de Mateus Pires.
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TOPONÍMIA DA DA FAJÃ GRANDE
Com a ajuda de algumas memórias ainda hoje muito lúcidas, foi-me possível fazer o levantamento dos nomes, se não de todos pelo menos da maior parte, dos lugares da Fajã Grande que outrora nos eram tão familiares e alguns dos quais hoje, possivelmente, já estarão ou esquecidos pelo tempo ou perdidos entre feitos, cana-roca, incensos e faias. Para uma melhor identificação dos mesmos, dividi o território abrangido pela freguesia em sete zonas tão imaginárias como a linha do Tratado de Tordesilhas, faltando, obviamente, uma zona: a da Ponta. Alguns dos nomes encontram-se repetidos porque, na realidade, se incluíam em mais do que uma destas pseudo zonas. Exemplifiquemos com o caso das “Queimadas” local onde havia relvas e terras de cultivo. Essa a razão por que o nome deste e de alguns outros lugares aparecem em duas zonas. A lista, no entanto, fica em aberto, a fim de alguns visitantes deste blogue, com os seus comentários, ajudem a completá-la.
ZONA DA COSTA E DA BEIRA-MAR
Areal, Baía d’Água, Baixa-Rasa, Barra, Barro, Cabouco, Calhau da Barra, Caneiro das Furnas, Caneiro do Porto, Cantinho, Canto do Areal, Cilindro, Coalheira, Covas, Eira, Estaleiro, Farol, Furna das Mexideiras, Furnas, Ilhéu do Constantino, Ladeira das Covas, Matadouro, Moinhos, Moinho do Engenho, Monchique, Pesqueiro de Terra, Pico, Pico da Vigia, Pico do Areal, Pinhacre, Poça da Barra, Poça das Salemas, Poça do Cobre, Poça do Farol, Poceirão, Ponta do Baixio, Ponta dos Pargos, Porto Novo, Porto Velho, Ramadas, Redondo,Rego do Burro, Respingadouro, Retorta, Ribeira das Casas, Rolinho, Rolo, Vale do Linho e Varadouro.
ZONA DAS CASAS
Alagoeiro, Assomada, Cambada, Caminho de Baixo, Canada da Fonte, Canada do Pico, Caravela, Casa de Baixo, Cimo da Assomada, Cruzeiro, Fonte da Assomada, Fonte Velha, Fontinha, Igreja, Ladeira do Calhau Miúdo, Ladeira da Fontinha, Ladeira da Via d’Água, Outeiro, Pico, Praça, Rua das Courelas, Rua Direita, Rua Nova, Rua da Tronqueira, Vale da Vaca e Via d’Água
ZONA DAS TERRAS DE CULTIVO
Arame da Ribeira, Bandeja, Batel de Baixo, Batel de Cima, Lage do Batel, Calhau Miúdo, Caminho da Missa, Covão, Cruzeiro, Descansadouro, Fontecima, Mimoio, Outeiros, Pico, Quebrada, Queimadas, Ribeira das Casas, Ribeira, Tanque, Tronqueira e Vale da Vaca.
ZONA DAS HORTAS E TERRAS DE MATO
Cabaceira de Baixo, Cabaceira de Cima, Cabaceira do Meio, Cabeço da Rocha, Cancelinha, Delgado, Desarraçado, Espigão, Fonte Delgado, Grota dos Paus Brancos, Horta das Abóboras, Ladeira do Espigão, Lameiro, Largo da Cancelinha, Lombega, Moledo Grosso, Paus Brancos, Pico Agudo, Pocestinho, Santo António, Vale Fundo e Volta do Pinheiro.
ZONA DAS RELVAS OU PASTAGENS
Águas, Calhau das Feiticeiras, Calhau da Quebrada, Covão, Covas, Escada-Mar, Figueira, Grota da Lagoinha, Lage da Silveirinha, Lagoinha, Ladeira da Fonte, Mateus Pires, Outeiro Grande, Pedra d’Água, Pico, Queimadas, Ribeira, Ribeira das Casas, Rolinho, Silveirinha e Vale de Linho.
ZONA DA CUADA E LÁ-DE-TRÁS
Calhau de Nossa Senhora, Calhau do Tufo, Caminho Quebrado, Cuada, Curralinho, Eira da Cuada, Fajã das Faias, Fonte Simão, Grota da Alagoinha, Hortinhas da Cuada, Ladeira da Cuada, Ladeira do Biscoito, Ladeira do Pessegueiro, Ladeira do Serrado, Lavadouros, Pedra Vermelha, Pessegueiro, Portalinho, Poço, Ribeira do Ferreiro, Ribeira Grande, Tamujinhos, Tufo da Quada e Vale Fundo.
ZONA DA ROCHA E DO MATO
Água Branca, Bracéu, Burrinha, Cabeços, Caldeirão da Ribeira das Casa, Calhau do Touro, Cancela, Cimo da Rocha, Curral das Ovelhas, Curral Velho, Descansadouro da Rocha, Fonte Vermelha, Furna da Caixa, Furna do João da Macaca e da Maria Peguinha, Furna do Peito, Furna dos Dez Reis, Juncalinhos, Ladeira da Burrinha, Miradouro, Paços, Pedrinha, Pináculo, Pináculo das Covas, Poço do Bacalhau, Pontas Brancas, Pulgueira, Pulo, Quebrada, Queiroal, Ribeira das Casas, Rochão do Junco, Rochão Tamusgo, Rochão Grande e Serrado Velho.
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A MINHA AMEIXEIRA
Meu pai não tinha horta que produzisse fruta para nos alimentar. No entanto, consciente da importância que a fruta tinha na alimentação de uma criança, por demais deficitária a diversíssimos níveis, teve sempre a preocupação de transformar uma das suas melhores terras de mato – a Cabaceira do Meio –em horta. Atarefa não era fácil, pois a maior parte das belgas eram terreno pobre e pedregoso mais propício a produzir incensos, faias, fetos e cana roca do que árvores de fruto.
Mas meu pai era de fibra rija, o que lhe permitiu dominar e alterar os instintos e as forças da natureza. Assim, com trabalho contínuo e persistente, lá foi desbravando o mato, arrancando pedregulhos, transformando-os em maroiços, cavando e voltando a cavar e, com muito esforço, destreza e sabedoria, lá conseguiu transformar grande parte dos terrenos bravios da Cabaceira do Meio em solos cultiváveis, onde plantou inhames e algumas árvores de fruto: macieiras, pereiras, araçazeiros, nespereiras e até um gigantesco castanheiro.
Não se ficou por aqui o meu progenitor nos seus instintos de fruticultor e, a dada altura, ao deslocar-se às Lajes, comprou, na Junta Geral, meia dúzia de pés de ameixeiras. No dia seguinte, levantou-se cedo, acordou-me e partimos para a Cabaceira do Meio, a fim de plantá-las. Uma aqui, outra acolá, em sítios abrigados ou protegidos por bardos de faias e incensos.
Pedi-lhe para me deixar plantar uma. Que não senhor, que aquilo não era brincadeira, que tinham sido muito caras, que eu não sabia plantar nada nem coisa nenhuma, que tirasse o cavalinho da chuva que seria ele a plantá-las todas. Reclamei, barafustei, tanto rezinguei e lhe pedi que ele por fim, talvez para me calar, escolheu, de entre as seis, a que tinha pior aspecto, a que parecia mais definhada e lá ma deu, ordenando-me que a fosse plantar para outro lado, para onde quisesse, mas longe e nunca nos sítios que ele havia seleccionado, por terem melhores condições e que estavam destinados às outras cinco.
Todo contente, peguei na enxadita e fui abrir uma cova muito grande, ao lado do enorme e vetusto castanheiro, cuidando que este havia de proteger a minha pobre e pequenina árvore. Meti-lhe o pezinho de ameixeira aparentemente definhada, com muito cuidado para que nenhum pelinho da raiz se partisse ou amachucasse, cheguei-lhe muita terrinha para cima, calquei-a com ambas as mãos, disse-lhe. Baixinho, uns segredos, fiz-lhe uns miminhos e lá a deixei, à espera que vingasse, crescesse e desse fruto.
Passado algum tempo voltámos à Cabaceira do Meio, para ver como estavam as ameixeiras. Qual não foi o espanto do meu progenitor quando verificou que nenhuma ameixeira das que ele plantara tinha pegado. A única que alegre e efusivamente florescia era a que tinha sido plantada por mim!
A ameixeira cresceu, tornou-se numa enorme e bonita árvore e durante anos e anos deu muitas ameixas carnudas, avermelhadas e saborosas, que nos foram alimentando a todos lá em casa, pese embora eu reivindicasse, continua mas ingloriamente, que só eu teria direito a comê-las porque elas eram da “Minha Ameixeira”.