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VIAJANDO COM FERREIRA DE CASTRO

Domingo, 16.06.13

O Padre José Soares, por motivos de doença, nos tempos em que o Carvalho Araújo ainda escalava as ilhas dos Açores e da Madeira, deslocava-se com alguma frequência a Lisboa, a bordo daquele paquete.

Numa dessas viagens viajou juntamente com Ferreira de Castro, que se deslocava para a ilha da Madeira,em férias. Oescritor foi-lhe apresentado por um amigo comum, o médico de bordo, pessoa extremamente culta, organizador e dinamizador de muitos encontros, reuniões e tertúlias a bordo do velho navio, congregando assim poetas, escritores e homens da cultura que frequentemente viajavam a bordo do Carvalho. A partir daí, a conversa Ferreira de Castro e José Soares terá sido diária, longa e prolongada, sendo o tema principal da mesma não apenas a obra literária do escritor, que o padre conhecia, de fio a pavio, mas também muitas e muitas outras obras e vultos da literatura portuguesa e universal

Ao chegar à Madeira e antes de se despedirem, Ferreira de Castro manifestou o seu espanto e satisfação por encontrar um padre açoriano tão culto e tão profundamente conhecedor da sua obra, congratulando-se por isso e elogiando o clero açoriano em geral, considerando que, neste campo e a julgar pela amostra que ali tinha, se sobrepunha e superava de longe o clero do continente que, na opinião do escritor, era, culturalmente, muito pobre e ignorante.

Resposta imediata e pronta do Padre José Soares:

- Mas saiba Vossa Excelência que está, tão somente, a falar com um humilde e simples “padre de fazer enterros”, pároco duma das mais pequenas, retirada e longínqua freguesia dos Açores, a Fajã Grande das Flores. Por aqui imagine, então, Vossa Excelência a cultura e sabedoria que terão os padres das grandes vilas e cidades açorianas e, sobretudo, os doutores e professores do Seminário…

E com esta se foi Ferreira de Castro passar as suas férias à Madeira.

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publicado por picodavigia2 às 23:39

IN MEMORIAM - PADRE JOSÉ SOARES

Domingo, 16.06.13

Faleceu, ontem, (26 de Junho de 2009) com 82 anos de idade, na Fajã Grande, aquele que foi o seu pároco durante muitos anos e que escolheu como residência durante os seus últimos 44 anos de vida – o P.e José Gonçalves Soares.

Conheci o Padre Soares, logo após ele chegar à Fajã Grande, em 1965 e privei com ele durante vários anos, nos tempos em que frequentava o Seminário de Angra, quando  ia passar as minhas férias de Verão à Fajã. Tive a honra e o privilégio de ser um dos seus grandes amigos. Para além da amizade que me dispensou, abrindo-me as portas da sua casa a qualquer hora do dia ou da noite, encontrei nele não só um companheiro mas também e sobretudo uma espécie de mestre, que teve a disponibilidade de partilhar comigo, diariamente, uma sabedoria inaudita, uma cultura invulgar, uma apologia de valores democráticos e antifascistas, um sentido ético da vida e uma defesa de muitos dos valores mais nobres a que um ser humano pode aspirar: a dignidade, a nobreza de carácter, a gratidão, o espírito crítico, o respeito pelos valores culturais, a confiança em nós próprios e sobretudo a descrição e o bom senso. Simultaneamente deu-me a conhecer a maior parte dos vultos da literatura portuguesa e universal, cujas obras me motivou a ler, revelando-me ao pormenor factos e acontecimentos das suas vidas e obras e ainda de muitos outros vultos da cultura universal, tanto laica como religiosa. Numa palavra, José Gonçalves Soares conduziu-me de forma motivadora e cativante ao mundo mágico e fantástico da cultura e da literatura portuguesas e universais.

Passámos noites e noites como que inesgotáveis e a prolongarem-se madrugada fora, em amena, ininterrupta e formativa conversa. Ouvia-o com prazer, questionava-o por curiosidade, interrogava-o para aprender e tinha sempre a resposta correcta, a dúvida esclarecida e a informação adequada. Deslumbrante no púlpito, motivador nas conversas, empolgante nos monólogos, com fino sentido de humor e respeitador do ser humano na sua intrínseca dignidade, o P.e José Soares, talvez pela sua humildade ou excessiva modéstia e falta de reconhecimento do real valor das suas qualidades literárias, com destaque na oratória, pouco ou nada deixou escrito, a não ser umas cartas que terá trocado com o escritor e poeta fajagrandense Pedro da Silveira, mas cujo paradeiro se desconhece. Trata-se, em minha opinião, de uma lamentável e invulgar perda de um possível e, de certo, enorme contributo que poderia ter sido dado à literatura e sobretudo à cultura açoriana.

 

 

Texto publicado em 27/06/09, no Pico da Vigia

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publicado por picodavigia2 às 23:32

PALO ALTO - CALIFÓRNIA

Domingo, 16.06.13

A cidade norte-americana de Palo Alto está localizada no estado da Califórnia, no condado de Santa Clara, a norte da cidade mais portuguesa daquele estado – São José. Palo Alto foi fundada em 1769, data a que remontam os primeiros registos históricos sobre a localidade, quando Gaspar de Portolá anotou um registo indígena, naquela região. Por volta de 1835 um fazendeiro chamado Rafael Soto e sua família fixaram-se junto ao rio São Francisquito, onde criou uma enorme fazenda, cujos produtos ia vendendo aos viajantes. Com o tempo, outros fazendeiros ali se fixaram e outras fazendas foram surgindo, fazendo com que a pequena localidade crescesse e, em 1855, no seu lugar, surgisse o vilarejo de Mayfield. Em 1886, foi a vez de Leland Stanford, também, fixar residência na região, com o intuito de criar, ali, uma Universidade e uma estação de combóio, perto do centro de Mayfield. Leland era intransigente e pretendia que o consumo de bebidas alcoólicas fosse proibido na região, mas o distrito de Mayfield rejeitou a sua proposta. Foi então que Leland Stanford, revoltado, abandonou Mayfield e criou, ao lado, uma outra povoação, originalmente, chamada de University Park. Em 1925, as duas comunidades populacionais uniram-se e deram origem à actual cidade de Palo Alto, com as suas duas divisões principais: uma ao longo da Avenida da Universidade e outra ao longo da Califórnia Avenue. Uma curiosidade interessante é que foi nesta cidade que, em 5 de Outubro de 2011, faleceu o criador da Apple, Steve Jobs, vítima de um cancro no pâncreas. A cidade foi incorporada em 23 de Abril de 18941.

Palo Alto é a sede da Escola de Palo Alto e contém algumas secções da Universidade de Stanford, além de várias empresas de alta tecnologia.

A cidade recebeu o seu nome em função de uma árvore muito alta que existia nas margens do rio São Francisquito. Ainda hoje, é possível encontrar metade dessa árvore em Palo Alto - a outra metade foi destruída quando o rio inundou. Perto da árvore uma placa conta uma história, acontecida no ano de 1769, em que 63 homens e 200 cavalos, participaram numa expedição a San Diego. Mas chegaram apenas até Monterrey, onde expedição terminou, pelo facto de os homens se terem enganado no caminho, indo parar, por engano, à Baía de São Francisco. Como a baía era muito larga para a atravessar, decidiram dar a volta perto de "el Palo Alto".

 De acordo com o United States Census Bureau, a cidade tem uma área de 66,8 km², onde 61,8 km² estão cobertos por terra e 4,9 km² por água. A cidade tém revelado um crescimento populacional notável, uma vez que em 2000 tinha 58 598 habitantes , número que no censo de 2010 passou para 64 403, ou seja  um aumento de quase 10%, o que lhe confere uma  densidade populacional de 1 041,30 hab/km².

Palo Alto é a localidade mundial, onde depois da localidade de origem, Paços de Ferreira, este blog, recentemente criado, Pico da Vigia 2, tem maior número de visitantes e que faz com que os estados Unidos, em visitas, ultrapassem,  largamente,  Portugal.

Para o Senhor James Keene, City Manager de Palo Alto “The city (Palo Alto) is truly a special place! With our rich history of entrepreneurship, some of the world’s smartest and most creative people, and an unparalleled quality of life, there is no better place than Palo Alto to live, work, raise a family, grow a business, or just visit. For decades, Palo Alto has been a driving force in the global economy and the innovations that are developed here continue to change the world.”

Desta forma, presto a minha homenagem e manifesto a minha gratidão a Palo Alto.

 

Fonte - Wikipédia

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publicado por picodavigia2 às 22:53

MARISCO

Domingo, 16.06.13

Os vários tipos de marisco são, incontestavelmente, fontes de nutrientes essenciais para o ser humano, uma vez que, grande parte deles, fornecem-nos vitamina B, necessária à formação dos glóbulos vermelhos e à manutenção de um sistema nervoso saudável. Além disso, os mariscos também nos fornecem sódio e zinco, sendo este, um elemento importante para a produção de proteínas, cicatrização de feridas e desenvolvimento dos órgãos do aparelho reprodutor.

Antigamente, acreditava-se que o consumo de marisco provocava o aumento do colesterol no sangue. Pelo contrário, hoje, existem estudos que comprovam que, comendo marisco, se pode reduzir os níveis de colesterol no sangue. Um desses estudos foi realizado na Universidade de Washington, onde se fez uma experiência, com um grupo de homens que substituiu na sua dieta os alimentos ricos em proteínas por marisco como ostras, amêijoas, mexilhões e caranguejos. Verificou-se que estes produtos ajudaram a diminuir não só a gordura mas também os níveis de colesterol do sangue. Para além disso testou-se, também, a dieta com lulas e camarões, mas o resultado não foi o mesmo.

As restrições ao consumo de marisco estão relacionadas com o facto de estes animais, devido à sua alimentação ser constituída, principalmente, por resíduos, poderem acumular toxinas ou metais pesados, nos tecidos que formam o seu corpo. Estes componentes podem provocar distúrbios graves na saúde humana quando ingeridos em quantidade exagerada.

No entanto, está provado que a ingestão regular de marisco é benéfica no controlo do mau colesterol, pois o marisco é um dos tipos de alimento que contêm pouquíssimas gorduras saturadas, além de ser também rico em esteróis marinhos que dificultam a passagem do colesterol dos alimentos para a corrente sanguínea.

Além disso, o marisco contém apenas gorduras insaturadas, conhecidas como as boas gorduras, e é rico em vitaminas e minerais, entre os quais merecem destaque a vitamina B12, o iodo e o zinco.

Por isso, é recomendada a ingestão de marisco, duas a três vezes por semana, em quantidades moderadas.

 Desde que cozinhado de uma forma saudável, cozendo-o sem sal, é sempre bom optar pelo camarão, ameijoa, mexilhão, lagosta, etc… Apesar de dever ser cozido sem sal, algo que pode tornar o marisco ainda mais agradável é cozê-lo em água do mar.

O marisco pode até mesmo ser um alimento recomendável em diversas dietas, quer cozido, quer grelhado, pois o marisco é um alimento muito benéfico para a saúde, desde que seja comprado num local de confiança e confeccionado correctamente.

Mesmo países, como a Ucrânia, situados longe do mar e sem tradições na captura do marisco, actualmente já o importam de outros e fazem dele uma presença constante na sua alimentação. Aos doentes que sofrem de insuficiência renal o marisco, apesar de saborosíssimo, apetitoso, atraente e provocador, é-lhes totalmente interdito.

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publicado por picodavigia2 às 15:52

TIA ERMELINDA E TIA MARIA INÁCIA

Domingo, 16.06.13

Perto da minha casa, logo a seguir a um chafariz que por ali havia, viviam duas irmãs, já de avançada idade: a tia Ermelinda e a tia Maria Inácia.

A casa onde moravam era pequenina e pobre. Quantas e quantas vezes lá entrei para visitar aquelas duas queridas velhinhas! Subia-se a meia dúzia de degraus que davam para um pátio, em frente à porta da sala, ornamentado de sécias brancas e rosadas, de cubres amarelados, de fetos e muitas outras plantas e entrava-se, de imediato, na sala. Era a maior dependência da casa, a qual dava directamente para as duas outras: um quarto de cama que em vez de porta tinha apenas um cortinado velho e acetinado e para a cozinha que ficava nas traseiras do prédio. Na sala havia uma enorme cómoda com um oratório e muitas fotografias antigas, umas encaixilhadas em passe-partouts, outras soltas e encostadas a estes, algumas cadeiras e uma caixa de madeira. Numa das janelas havia uma enorme cadeira de vimes, forrada com colchas tecidas em teares manuais e almofadas feitas por mãos hábeis, onde, habitualmente, a tia Ermelinda permanecia sentada. A cozinha era velha esconsa e negra. O chão era de solo (barro ou terra) e não tinha forro. Tinha apenas uma mesa, duas cadeiras, um armário onde guardavam a louça e um lar cheio de tisna e de escuridão, com dois ou três caldeirões, uma sertã e uma grelha onde tia Maria Inácia cozinhava as suas parcas refeições.

Tia Ermelinda era muito doente e já não saía de casa. Estava permanentemente sentada à janela da empena da sala. De manhã rezava, costurava e lia. De tarde ensinava catequese e conversava com quem a visitava. Tia Maria Inácia, apesar de velhinha e doente, era “o homem da casa”. Era ela que ia à lenha à Cabaceira, que a rachava, fendia ou picava com o machado e a guardava debaixo do lar. Era ela que ia buscar erva-santa para as galinhas. Era ela que cozinhava, lavava e limpava a casa. Era ela que fazia tudo.

Quantas vezes minha mãe me mandou ir lá e levar um pouquinho de leite ou um quarto de bolo do tijolo, fresquinho e a fumegar! Quantas vezes minha mãe me autorizou a ir com a tia Maria Inácia à Cabaceira para a ajudar a trazer uns garranchos de lenha! Quantas vezes de tarde ia sentar-me ao lado de tia Ermelinda a vê-la e a ouvi-la a ensinar catequese a outras crianças ou simplesmente a conversar com ela! É que em questões de catequese eu tinha que sobrasse em casa da minha avó, na Fontinha.

Mas o que nunca pude esquecer foi a ternura, o carinho e a amizade que aquelas duas doces e meigas velhinhas me dedicavam!

Por isso é que eu tanto gostava de escapulir para casa delas!

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publicado por picodavigia2 às 15:13

POEMA À FAJÃ GRANDE

Domingo, 16.06.13

Há alguns dias foi-me enviado um interessante poema sobre a Fajã Grande. De autor ou autora desconhecido, o poema manuscrito terá sido encontrado algures, numa velha gaveta, numa casa da Fajã Grande e posteriormente terá desaparecido, não se sabendo o seu paradeiro. Por isso foi-me revelado apenas de memória.

 

Fajã Grande tão linda,
Nascida à beira do mar!
Anseio ver-te ainda,
Teu belo solo pisar.
 
Aldeia de mil encantos,
Serena luz do luar.
Idílios puros e santos
Só ali se vão achar.
 
No teu porto e luso cais,
Bem disposto patamar,
Não te esquecerei jamais
E um dia hei-de voltar.
 
Num sonho esperançoso,
Sigo anos a suspirar
Por ver o torrão saudoso,
Onde costumava brincar.
 
Quantos anos, ó meu Deus!
Não deixei de te amar!
Bebi os carinhos teus,
Quero viver a sonhar.
 
A vida corre ligeira
E os anos a acumular,
Numa ambição derradeira
De ainda te poder visitar.

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publicado por picodavigia2 às 12:53

DAS FLORES A SÃO MIGUEL

Domingo, 16.06.13

Em cima do cais da Lajes, onde eu esperava a minha vez de embarcar, havia uma confusão tremenda e uma barafunda descomunal. Homens, mulheres, crianças, malas, baús, grades, bidões, caixotes, barris, sacos de serapilheira, bois, vacas e até alguns cavalos amontoavam-se em desusada caldeação. Aguardava-se a chegada de mais uma das duas barcaças que iam e vinham, alternadamente, entre o cais e o enorme paquete ancorado a umas duas ou três milhas de terra. Eram lanchas pequenas, vagarosas e frágeis que iam e vinham à vez, carregadíssimas, a abarrotar de pessoas e bagagens. Encostavam-se às escadas de acesso ao porto e dois marinheiros, de calças arregaçadas pelo joelhos e descalços, atiravam as cordas amarradas nas bordas da embarcação para cima do cais, a fim de que as alças das pontas fossem presas nos moitões de ferro cravados no cais, permitindo aos passageiros saltar para terra com maior segurança. Só depois lhes era retirada a bagagem, que, a conta-gotas, ia sendo atirada pelos marinheiros para cima do cais, onde estavam os bagageiros que a apanhavam com mestria e a seguravam com perícia a fim de que nenhuma mala ou caixote caísse no chão ou escapulisse para o fundo mar. Assim que as lanchas ficavam livres das pessoas e das malas que traziam de bordo, seguia-se uma lufa-lufa medonha, por parte dos que estavam em terra e pretendiam embarcar. Acompanhados da respectiva bagagem, todos queriam ser os primeiros a entrar e a ocupar os melhores assentos nos pequenos batéis, enquanto as malas iam sendo arrumadas à proa e à ré das embarcações.

Mais fora, mas antes do molhe, dois botes maiores do que as lanchas e com motores mais potentes, carregados com sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal ou de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga, também se iam, à vez, encostando ao cais. Em terra, um pequeno e desengonçado guindaste levantava, muito lentamente, toda aquela carga e colocava-a, desordenadamente, em cima do cais. Depois alguns homens entretinham-se a arrumá-la e ordená-la de acordo com os comerciantes da vila a quem se destinava e dos quais se destacavam: o Germano e a Firma.

Eu observava toda aquela azáfama com um misto de apreensão e angústia. Também esperava ali, a minha vez de embarcar, mas estava, momentaneamente, impedido de o fazer. É que para além duma mala castanha, levava comigo um pequeno baú, que por rigorosa determinação do senhor Jerónimo, o agente da “Insulana” nas Lajes, tinha que ir no porão. Por isso esperei horas a fio. É que a bagagem de porão para as ilhas, só poderia ser carregada depois de toda a mercadoria que se destinava ao continente estar devidamente colocada e arrumada nos fundos dos porões do navio.

Abracei-me a meu pai e comecei a chorar e a esmoncar-me. Olhava para a carga amontoada em cima do cais, olhava para o navio a lançar um fumo negro pela chaminé e concluía que a minha viagem começava ali a complicar-se. Muito provavelmente só seguiria para bordo numa das últimas lanchas e o meu progenitor já não me poderia acompanhar. Assim não chegaria a tempo de arranjar beliche.

 

Foi o senhor José Natal, aos cuidados de quem eu havia de viajar até à Terceira, que me salvou. O senhor Natal há alguns anos que era o porteiro do Seminário de Angra, onde vivia durante o ano. Tinha casa na Fajã Grande e ali vinha passar os meses de Verão. Comprava sempre passagem de ida e volta, mas em Angra, onde era mais fácil arranjar acomodação. Já tinha o beliche marcado no seu bilhete e não necessitava de pressas para embarcar, por isso sugeriu a meu pai que seguisse comigo para bordo e que fosse falar com o Senhor Artur, o responsável pela terceira classe, a ver se ainda havia um beliche para mim. Ele ficava em terra e comprometia-se a embarcar apenas quando tivesse a certeza de que o meu baú já seguira para bordo.

Por entre apertos e empurrões, entrei no primeiro batel que encostou ao cais, seguido de meu pai que carregava a minha mala às costas. Apertados como sardinha dentro de lata, com o barco a transbordar de gente e de bagagem, com a água quase a dar-lhe pela borda, seguia temeroso, atravessando aquele troço de mar, que à medida que a embarcação se afastava de terra parecia ir tornando-se cada vez mais agitado. Ao fim de algum tempo, por entre solavancos e tropeções, o batel aproximou-se do monstruoso e vetusto paquete, ao redor do qual o mar parecia tornar-se mais calmo e mais tranquilo, transformando o navio numa espécie de rochedo encravado ali, na enorme baía, bem em frente à vila das Lajes. A barcaça encostou-se ao vapor. Esperei pela minha vez e, amedrontado, subi as escadas. Através dos vãos via lá em baixo o mar liso, azulado e escuro e sentia um medo terrível. Não fosse algum pé escorregar-me e eu escapulir-me-ia por ali abaixo, perdendo-me definitivamente no fundo do Oceano. Por isso, à medida que subia as escadas, agarrava-me ao corrimão de lona, dúctil e maleável, com ambas as mãos. Ao portaló o Imediato e outros tripulantes, vestidos de farda branca e boné da mesma cor, davam a mão aos passageiros mais enrascados e temerosos e as boas vindas a todos. Entrei no corredor do velho paquete, a abarrotar de malas e caixotes, como se penetrasse num mundo estrambólico e tenebroso e onde tudo me era desconhecido e estranho. Esperei por meu pai que subia um pouco atrás, carregando a minha mala. Iniciava ali a minha primeira pequena grande aventura.

Fora em Junho, pela festa do Espírito Santo da Casa de Cima que a decisão de me enviarem para o Seminário havia sido tomada, lá em casa. Terminado o segundo exame, a minha professora da quarta, não cessava de anunciar e proclamar que era uma pena eu não seguir os estudos. Mas não havia volta a dar-lhe. Era de todo impossível e impensável. O meu futuro estava traçado e seria igual ao de meus irmãos mais velhos: viver ali, nas Flores, agarrado à foice e à enxada, trabalhando à chuva ou ao sol, carregando cestos de batatas e molhos de incensos, levando as vacas ao pasto ou limpando-lhes o esterco do palheiro, ajudando meu pai nas lides do campo. Só que o milagre aconteceu. Uma carta da América, porém, veio alterar, radicalmente, o meu destino. Uma tia, que há alguns anos para lá havia emigrado, em função de uma graça concedia por intercessão de um santo da sua devoção, decidiu custear-me os estudos. Eu ia estudar, mas só o poderia fazer no Seminário. Meu pai a princípio não aprovou a ideia. Embora eu ainda fosse um badameco de meia tigela, já lhe fazia muita falta. Normalmente era eu que ia buscar e levar as vacas, enquanto os mais velhos andavam a ceifar, a lavrar ou a mondar os campos. Uns dias depois, porém, cedeu. Afinal a ideia até nem era de todo má, pois era uma oportunidade única e uma forma airosa de ver pelo menos um dos filhos sair das Flores, libertar-se dos trabalhos forçados, da miséria, da fome e de muitas outras limitações que proliferavam pela ilha. Além disso, perante o meu feitio e temperamento, concluía que muito provavelmente eu nunca aguentaria aqueles doze longos anos fechado naquela casa e que eram requisito obrigatório e necessário para a Ordenação. Mas mesmo que desistisse, ficaria com os estudos. Depois era a pressão da minha avó e das tias São José e Luiza, sempre muito devotas e dedicadas ao serviço de Deus. E decidiu-se que no Carvalho de Setembro eu partiria para Ponta Delgada, para o Seminário Menor de Santo Cristo.

Os três meses que se seguiram foram de grande azáfama e consumição. Nos tempos que tinha livres das tarefas domésticas, a minha irmã mais velha começou a preparar o enxoval de acordo com uma lista que havia sido enviada pela reitoria do Seminário e entregue pelo pároco e da qual constava, como mínimo necessário e obrigatório, quatro lençóis, dois cobertores, uma colcha, duas fronhas, um colchão e uma almofada. A colcha era o mais difícil de arranjar, pois comprar uma nova era de todo impossível. Foi minha avó que se comprometeu a costurá-la. E fê-lo com mestria. Arranjou dois bons bocados de fazenda enramados, um azulado e outro castanho, vindos da América, coseu-os em três dos lados, formando uma espécie de saco, dentro do qual colocou escondidas, algumas peças de roupa velha, devidamente alisadas. Depois coseu a extremidade equivalente à boca do saco, alinhavou, chuleou e voltou a chulear a futura colcha, d’alto a baixo e de lado a lado, em linhas perpendiculares e paralelas, de tal maneira que formaram uma espécie de tabuleiro de xadrez, de forma a simular uma colcha acolchoada. Uma obra-prima! A lista também indicava a roupa que deveria levar para uso caseiro: dois lenços de mão, dois guardanapos, duas camisas brancas, duas soeras, dois pares de calças, dois pares de meias, um par de sapatos pretos e dois guarda-pós. Arranjar tudo isto tornava-se complicadíssimo, até porque a minha irmã entendia que não devia levar roupa usada. Uma encomenda da América, no entanto, veio resolver o problema, trazendo em triplicado algumas das peças de roupa indicadas na lista e um velho “Bulova”. Excepção feita para os dois guarda-pós que deviam ser de cotim e que foram mais difíceis de arranjar. No entanto como tinha um tio alfaiate ficaram-se pelo custo da fazenda, verificando-se procedimento idêntico para o fato preto que aparecia logo bem escarrapachado e em primeiro lugar na lista apresentada pelo pároco. Para arranjar os sapatos pretos é que foram elas… Só nas Lajes e os mais baratos custavam para cima de vinte escudos. Na opinião da minha irmã era um rombo terrível no orçamento familiar e a sua compra iria provocar grande revolta e contestação por parte de meus irmãos mais velhos que andavam sempre descalços e a quem, nem sequer pela Comunhão Solene lhes haviam sido comprados uns sapatos novos. Mas não havia volta a dar-lhe: sem sapatos pretos é que eu não podia ir para o Seminário. Foi minha irmã que inventou a artimanha para os arranjar. Para evitar a revolta de meus irmãos eu iria jurar a pés juntos que os sapatos tinham sido oferecidos pelo senhor padre Pimentel, como recompensa de eu lhe ir ajudar à missa todas as manhãs, enquanto ela, por sua vez, iria pedir vinte escudos à vizinha Floripes, muito amiga da minha mãe, antes de ela falecer e agora, sempre muito pronta a ajudar-nos em momentos de aflição. Havia de lhos pagar, depois, em sete ou oito prestações de maneira a que meus irmãos não se apercebessem do embuste.

À lista seguia-se uma observação importante: todas e cada uma das peças de roupa deviam ser marcadas com as letras iniciais do nome e sobrenome do candidato, a fim de que nenhuma se perdesse e as lavadeiras não misturassem a roupa de uns alunos com a dos outros alunos. Deliciosa tarefa para minha irmã que era uma excelente e exímia bordadeira e adorava fazer ponto de cruz. Cuidando que não havia de haver nenhum outro aluno com as iniciais CF, decidiu-se por eliminar o Jota, poupando, assim, linha e tempo. Depois foi papelada e mais papelada, o que implicou variadíssimas viagens a pé, entre a Fajã Grande e as Lajes, sempre acompanhado por meu pai, para tirar fotografias, bilhete de identidade, marcar a passagem e comprar papel para os vários requerimentos e certidões. Tudo isto causava grande transtorno ao meu pai, porquanto cada ida às Lajes implicava a perda de um dia de trabalho e o gasto de algum dinheiro. O pior foi quando ele viu na lista apresentada pelo pároco, - ”uma folha de papel timbrado da Ouvidoria”. Como ele não soubesse o que era aquilo da Ouvidoria e cuidando que era engano, comprou a respectiva folha na Tesouraria da Fazenda Pública, onde habitualmente se comprava o papel selado. Para além dos recados que ouviu do prebendado, ao regressar à Fajã e de perder o dinheiro gasto no papel selado que não tinha nenhuma outra utilidade nem estorno, teve que voltar às Lajes no dia seguinte, única e exclusivamente para comprar uma folha de papel com o timbre da diocese de Angra do Heroísmo, em casa Senhor Ouvidor Eclesiástico, o senhor padre Luís Pimentel.

Era nisto que pensava enquanto sentado em cima dum caixote, no corredor de entrada do navio, esperava meu pai que chegou um pouco depois. Arrumou a mala no corredor, de acordo com as instruções de um tripulante e dirigimo-nos para a terceira classe, situada à proa do navio. Depois de atravessar o corredor lateral, chegámos ao convés da terceira onde se situava o porão do gado. Vacas, bois, bezerros e até cavalos, dependurados no guindaste por cabos e cordas e com uma lona a envolver-lhes a barriga, eram retirados dos botes e içados até bem alto, a fim de que as patas não empeçassem nas cabeças de quantos passageiros por ali passavam. Esperneando e mugindo como se os prendessem ou matassem, voltavam a descer, por movimento inverso do guindaste, até serem guardados no porão onde eram arrumados, entrincheirados e apertados como sardinha dentro de lata. Ao redor um cheiro mefítico e nauseabundo, a envolver a entrada da terceira classe, onde eu viajava, conforme o assinalado com letras garrafais no meu bilhete de viagem, pelo senhor Jerónimo.

O Carvalho Araújo era um velho paquete pertencente à Empresa Insulana de Navegação que detinha o monopólio do transporte de passageiros e de carga entre o Continente, a Madeira e as nove ilhas dos Açores, as quais demandava uma vez por mês. Apenas entre as ilhas do grupo central circulavam três pequenos iates, oTerra Alta, o Espírito Santo e o Santo Amaro. O Carvalho era um barco enorme. Para além dos cerca de noventa e oito tripulantes, tinha capacidade para o transporte de mais de trezentos e cinquenta passageiros e quatro mil e setecentas toneladas de carga. Tinha sido comprado à construtora italiana “Cantiere Navale Trestino” havia uns bons trinta anos. Uma placa colocada na primeira classe, na escadaria que dava acesso à sala de jantar, explicava a razão se ser do nome com que fora baptizado, recordando o episódio em que fora protagonista o comandante Carvalho Araújo. Em Outubro de 1918, durante a primeira Grande Guerra Mundial, o navio S. Miguel fazia uma viagem entre a Madeira e os Açores, transportando passageiros e carga diversa, sendo escoltado pelo navio patrulha Augusto Castilho, sob o comando do tenente José Botelho de Carvalho Araújo. Quando os dois navios se encontravam a algumas milhas da cidade de Ponta Delgada foram atacados a tiro de canhão por um submarino alemão, comandado pelo experiente Lothar Von Arnaul de La Periére. Iniciou-se, então, uma dura e árdua batalha naval que se prolongou durante algumas horas e durante a qual o comandante Carvalho Araújo ofereceu brava resistência à artilharia alemã, salvando muitos companheiros mas acabando ele próprio por sucumbir durante o combate. Para homenagear o comandante Carvalho Araújo fora posto o seu nome ao paquete que agora navegava mensalmente entre o Continente e as ilhas açorianas.

O Carvalho Araújo dividia-se em três partes, correspondentes a três classes distintas. A primeira classe, a melhor e mais cara, ficava no centro do navio e constituía a sua parte mais alta, mais nobre e mais luxuosa, com três andares. No terceiro para além do enorme convés com uma parte coberta e outra descoberta ficava ainda a sala de estar, com bar, cadeiras estufadas e mesas de jogo e as salas de comando. No segundo a sala de jantar, a cozinha, as casas de banho e os aposentos dos oficiais de bordo. Por baixo destes e já dentro do bojo do navio ficavam as casas das máquinas e os camarotes, mais amplos, menos susceptíveis aos balanços das ondas, mais limpos, mais arejados e, consequentemente mais caros. Só os ricos e endinheirados podiam viajar em primeira e aos restantes passageiros era vedada a permanência na sua área. A segunda classe, separada da primeira pelo porão de carga, ficava à popa, também tinha dois andares sobre o bojo. O preço dos bilhetes já era mais acessível. No segundo andar ficava a sala de estar reservada aos passageiros que compravam bilhetes de segunda, circundada por um pequeno convés. A sala de jantar e a cozinha ficavam no primeiro andar. Os camarotes ficavam no bojo, mas à ré, pelo que eram bem mais ruidosos e menos confortáveis do que os da primeira. Finalmente a terceira classe, a mais barata e a pior em todos os aspectos, ficava à proa. Não tinha convés, nem sala de estar, nem bar. A sala de jantar ficava enfiada no bojo, era apertadíssima, muito suja e acumulava também as funções de sala de estar durante o dia e de dormitório, para muitos passageiros, durante a noite. Os camarotes eram poucos, pequenos e mal cheirosos e os beliches desconfortáveis e apertadíssimos. Além disso a sua colocação à proa do barco, tornava-os muito incómodos, sobretudo durante viagens em que a agitação mais acentuada do mar provocava um balouçar maior do navio e extremamente ruidosos, pois ficavam debaixo dos guindastes do porão da frente. Assim como os camarotes todas as instalações desta classe, incluindo a sala de jantar e a cozinha eram tão pequenas, tão apertadas e tão promíscuas que a maior parte dos passageiros que navegava com bilhete de terceira, fugia dali como o diabo da cruz, preferindo acomodar-se ao longo dos corredores, ao lado dos porões, ou até pelo convés das outras classes, embora, neste caso, a permanência fosse sempre condicionada pela tolerância da tripulação. É que por toda a terceira classe proliferava um pestilento e emético cheiro a vomitado, a latrinas nauseabundas, a comida enjoosa, ao bafio dos beliches e até a bosta de vaca, dado que ficava porta a porta com o porão onde viajavam os animais.

Ao entrar na sala de jantar da terceira classe, juntamente com meu pai, deparámo-nos com uma enorme fila na direcção do senhor Artur, que, sentado a uma das mesas, ia registando o número dos beliches e dos camarotes nos bilhetes dos que haviam chegado primeiro. Ainda nem tinha atendido metade dos que estavam à minha frente, quando se levantou e anunciou em tom autoritário e definitivo:

- A partir de agora não há mais beliches para os homens. Só há para senhoras e vou dar prioridade às que têm crianças de tenra idade.

Estarreci. Não havia rigorosamente nada a fazer. Meu pai ainda tentou aproximar-se do homem, mas sem sucesso. Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Das Flores a S. Miguel eram três dias e três noites de viagem e eu sem ter onde me deitar ou uma cama para dormir… Meu pai apercebendo-se da minha aflição, tentando ocultar a sua mágoa, explicou-me que a partir da meia-noite, depois dos passageiros de primeira se deitarem nos seus camarotes, ficavam sempre no convés daquela classe algumas cadeiras vagas, onde me poderia encostar e dormir. Normalmente a tripulação, a essa hora, já era mais condescendente e não expulsava de lá os das outras classes.

Já era bastante tarde e a hora do navio levantar ferro aproximava-se. Além disso, meu pai não podia demorar-se a voltar para terra, pois tinha que regressar a pé para a Fajã, atravessando os matos de noite, evitando chegar a casa muito tarde. Felizmente que o senhor Natal já tinha chegado a bordo, assegurando que o meu baú também já estava arrumado no porão. Meu pai despediu-se de mim sem grande alarido e partiu para terra, enquanto eu me ia postar sobre a amurada do convés, observando a pequena barcaça em que ele seguia, balouçando lentamente sobre as ondas e que se ia afastando cada vez mais na direcção da ilha, que lá ao fundo parecia envolvida numa espécie de penumbra petrificante e aterradora, onde se evaporavam todos os meus sonhos de infância. E quando a barcaça que levava meu pai de regresso a terra desapareceu por completo por de trás do molhe do porto, retirei-me para um canto e chorei amargamente.

Já era noite escura quando o Carvalho levantou ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde deveria chegar na manhã seguinte. Agora, mais calmo, tranquilo e conformado com a minha situação de desacomodado, voltei à amarra do convés e entretive-me a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que prendera o Carvalho em frente à vila, durante várias horas. Alguns marinheiros já tinham levantado a escada e fechado o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, deu duas guinadas à retaguarda, apitou por três vezes, orientou-se rumo à saída da baia e zarpou em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.

Passei a noite num vai e vem apreensivo e temerário entre a primeira e a segunda, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora tentando entrar nas salas que ainda permaneciam abertas, para sair logo a seguir. O senhor Natal, como era seu hábito, foi deitar-se cedo, logo depois de o navio levantar ferro, não cessando, no entanto, de me fazer excessivas recomendações, alertando-me para os cuidados que devia ter em tudo o que fizesse ou em todos os lugares para onde fosse. De vez em quando subia ao convés da primeira a ver se descortinava uma espreguiçadeira desocupada. De seguida voltava à amarra para ver mais uma vez a ilha, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz. Eu pensava então em meu pai, que aquela hora estaria a atravessar a ilha a pé, sozinho, sem luz, no meio de toda aquela escuridão. Possivelmente ainda estaria muito longe de casa. Olhava para o relógio e contava as horas desde que ele tinha partido das Lajes. Três horas de viagem, permitiam-me concluir que já teria chegado aos Terreiros. Mais uma hora e meia e estaria em casa. Depois imaginava minha irmã a levantar-se quando ele chegasse, alta madrugada, para lhe fazer café. Com certeza, que iria dormir muito pouco, talvez mesmo, preocupado comigo, nem chegasse a pregar olho. Além disso, como habitualmente, pela manhã teria que se levantar muito cedo, para ir à lagoa das Covas ceifar um molho de erva e trazê-lo às costas até ao palheiro onde as vacas permaneciam fechadas até à hora em que as soltassem para os pastos. Afinal ele e meus irmãos ainda estavam em condições bem piores do que as minhas…

Voltei a olhar a escuridão da noite onde já muito ao longe e muito tenuemente brilhavam os dois faróis. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas. Mas aquela noite, apesar de muito escura, estava bastante enevoada.

Passaram-se mais algumas horas e começaram a vagar cadeiras no convés da primeira. Ocupei uma, mas não conseguia dormir. O navio, no silêncio escuro da noite, enquanto a maioria dos passageiros e tripulantes dormia, com as luzes quase todas apagadas, continuava o seu marear com solavancos rítmicos, cada vez maiores, acompanhados pelo som roufenho das máquinas. Os faróis das Flores há muito que haviam desaparecido por completo. Agora, possivelmente, já estaríamos mais perto do Faial. Eu aguardava expectante a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.

É verdade que o vulcão havia rebentado quase há um ano. No entanto quem por ali passava a bordo do Carvalho afirmava que ainda se via perfeitamente uma coluna de fogo. Tinha sido no final do mês de Setembro, do ano anterior, que tudo começara. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma crise sísmica no Faial e no Pico, como há muito se não vira e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses. Agora, no entanto, já não tinha nem a pujança nem a força inicial. Mas no início da crise, a lava emersa da terra e as cinzas projectas no ar eram tantas e tão fortes que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.

Agora era-me dada a oportunidade única de observar aquele fenómeno telúrico, embora já na sua fase decrescente, mas do qual tinha um medo terrível. Levantei-me ocupando um lugar estratégico a bombordo, na amarra do convés. Muitos passageiros já ali estavam com os mesmos intuitos. Passado algum tempo foi possível observar, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão que de momento para momento começava a clarificar-se.

Voltei à espreguiçadeira e pouco depois adormeci. Quando acordei já era dia claro. O navio, muito lentamente, rodava a ponta da doca do Faial.

O espectáculo que se me deparava era admiravelmente belo. Em frente a cidade da Horta, disposta em anfiteatro, virada para a majestosa montanha do Pico e como que protegida a Sul pelo montes da Guia e a Norte pela Espalamaca. As casinhas muito bem alinhadas e entrelaçadas permitiam ver lá no alto o observatório meteorológico Príncipe Alberto do Mónaco, os moinhos de vento, o castelo e as torres das igrejas. A Horta assemelhava-se a um enorme presépio iluminado pelos raios do Sol que acabava de nascer lá ao fundo, por trás de S. Jorge. O mar calmíssimo estava pejado de pequenas embarcações, onde se destacavam as lanchas que chegavam do Pico a abarrotar de pessoas, de malas e de fruta, e que pareciam afastar-se para dar prioridade ao enorme paquete que, soltando três longos silvos, seguia vagaroso, com as máquinas quase paradas e empurrado pela leveza da corrente, atrás de uma pequena lancha, com a bandeira da Capitania e que momentos antes encostara, permitindo assim ao piloto de barra saltar para bordo. Agora era ele, conhecedor daqueles baixios e escombros, que, com mestria, conduzia o paquete e o atracava à doca. O portaló, que desde as Lajes das Flores permanecia trancado a ferros, foi aberto ligando-se de imediato a uma escada que fora içada de terra. As idas e vindas à ilha estavam facilitadíssimas, o navio encostava e ligava-se a ela por uma espécie de ponte e assim permaneceria até largar de novo para o mar alto em demanda de outra ilha, o que permitia aos passageiros e aos residentes no Faial entrar e sair do paquete sempre que desejassem ou quando muito bem o entendessem.

O Senhor Natal procurou-me para saber como tinha passado a noite e para me avisar que iria sair do navio e que eu, se quisesse, poderia muito bem ir com ele. Era melhor do que fazê-lo sozinho. Apesar do sono que ainda tinha e da tristeza que me dominava e das saudades que já sentia de meu pai, de meus irmãos e da minha casa, depois de alguma hesitação, acabei por aceitar. Fi-lo de bom grado. É que para além de ficar a conhecer a cidade da Horta, poderia comer qualquer coisa, pois sabia que a bordo, a viajar na terceira classe teria que prolongar o jejum por mais três longos dias.

Logo ao sair da doca, no início da cidade, encontrámos os armazéns e escritórios da Capitania. Era lá que trabalhava o Abraão, vizinho e amigo do senhor Natal. O Abraão saíra da Fajã, depois da inspecção, quando fora apurado para a tropa e não regressara mais às Flores, a não ser em curtas e espaçadas férias. Terminada a recruta, entrou para a Marinha, fez um curso em Lisboa e regressou aos Açores, sendo colocado na Capitania do Porto da Horta. Era um dos marinheiros que constituía a companha da lancha que trouxera o piloto de barra a bordo do Carvalho, para o atracar. A Capitania da Horta era um edifício branco e alto, constituído por dois corpos articulados por uma torre rectangular e situava-se no largo Manuel da Arriaga. Assim que foi avisado de que Senhor Natal o procurava, o Abraão assomou à porta e cumprimentando-o, interrogou:

- Quem é este fedelho que trazes contigo?

O Senhor Natal explicou quem era meu pai, para onde eu ia e por que razão o acompanhava. Logo o Abraão, piscando-lhe o olho com malícia, voltou-se para mim, dizendo em tom jocoso:

- Áh! Vais para o Seminário! E sabes qual a primeira coisa que os padres te vão fazer quando lá chegares? Vão cortar-te a blica.

- Lá estás tu com essas coisas. Não metas medo ao pequeno que ele tem-se fartado de chorar desde que saiu de casa – retorquiu o senhor Natal, enquanto eu, fazendo conta que não o ouvia, me afastava e me entretinha a apreciar a estátua do primeiro presidente da República Portuguesa, ali plantada no meio do largo.

Como ainda faltasse muito tempo para o almoço, o Senhor Natal resolveu levar-me a ver os edifícios mais importantes da cidade da Horta: a Residencial Infante, a Casa Bensaúde, a Tabacaria da Sorte, a estátua do Infante D. Henrique no Largo com o mesmo nome, a Alfândega, a Fortaleza de Santa Cruz, o Amor da Pátria, o Mercado a abarrotar de fruta e vegetais, o Colégio de Santo António para onde vinham estudar as meninas ricas das Flores e as Igrejas das Angústias, de São Francisco e a Matriz, mesmo ali junto ao novo edifício dos correios.

De seguida dirigimo-nos ao Graciosa. Era lá que as pessoas vindas das Flores iam almoçar sempre que o Carvalho ancorava na doca ou até quando vinham ao Faial e ali ficavam a acompanhar algum familiar doente, a consultar médico ou a fazer algum tratamento impossível de realizar-se nas Flores. Manifestei uma reservada recusa em acompanhar o Senhor Natal ao restaurante. Cuidava eu que almoçar num restaurante ficaria muito caro e corria o risco de gastar ali todo o dinheiro que levava, ou pior, nem sequer ter dinheiro para pagar a despesa. A minha intenção era entrar num café e comprar um pão com queijo e uma laranjada. Ele, porém, apercebendo-se da razão porque me esquivava, encorajou-me:

- Anda lá. Não vais ficar aqui, sozinho, na cidade. Sei que tens pouco dinheiro. Mas podes vir à vontade. O Graciosa enche muito os pratos. Há-de repartir-se alguma coisa contigo.

O Graciosa ficava nas traseiras do Largo do Infante. Eram duas enormes salas no rés-do-chão de um velho prédio. Estava repleto e como era dia em que o Carvalho chegava das Flores, a ementa era variadíssima dado que a clientela estava assegurada, sobretudo, por se tratar duma viagem naquela altura do ano. O prato principal e mais solicitado era feijão assado, mas havia também molha de carne com inhames, torresmos de porco com batata-doce e veja frita com bolo do Pico. Homens, mulheres, soldados, estudantes e seminaristas de toda a ilha das Flores demandavam e enchiam aquele prodígio pantagruélico da gastronomia faialense ou para se desaforarem dos miseráveis cardápios que lhes proporcionava a Insulana, a bordo do Carvalho ou para se prevenirem da fome que haveriam de passar nos dias seguintes.

Sentei-me à mesa com o Senhor Natal que optou pelo feijão assado. O empregado ou porque fosse muito generoso nas doses que servia ou porque o Senhor Natal lho pedisse sem eu me aperceber, exagerou-lhe na dose, servindo-lhe um prato bem acuculado de feijão. Ele, pedindo um prato vazio, repartiu-o, gratuitamente, comigo. Apenas paguei um pão e uma laranjada.

Durante a tarde, sentámo-nos nos bancos do Largo do Infante, a acompanhar o movimento da cidade, a ver os automóveis que circulavam pelas ruas em grande número e a contemplar a mansidão do mar, os navios e os iates ancorados na doca, os respectivos desenhos dos que por ali haviam passado, as pequenas embarcações que entravam e saíam da doca e a imponência da montanha do Pico que, erguida mesmo em frente, começava a lançar uma ténue neblina sobre o Oceano.

O Carvalho desatracou da doca da Horta, com rumo ao Cais do Pico, já passava das cinco. Assim que regressei de terra, subi ao convés da primeira e deparei com uma espreguiçadeira vazia. Estava exausto, cheio de sono e com a barriguinha cheia. Encostei-me o mais comodamente possível. Foi tiro e queda…

Quando acordei o Carvalho balouçava ancorado fora do Cais do Pico. A noite já ia alta e a faina habitual das lanchas entre o navio e o porto do Cais, como que se resumia a uma pequena lancha que de meia em meia hora ia a terra e voltava pouco tempo depois ao navio, arrastando os pesados barcos que transportavam carga diversa e mercadoria. O número de passageiros que embarcava no Pico era muito reduzido. A maior parte, sobretudo os da parte Sul da ilha e da Madalena, preferiam atravessar o canal nas lanchas e embarcar na Horta, por isso, os poucos que entravam no Cais já haviam embarcado todos e o paquete aguardava a madrugada a fim de rumar às Velas. A noite estava muito escura e o céu pejado de estrelas. A sombra da montanha confundia-se com a escuridão e penetrava no universo celeste, parecendo aproximar-se das próprias estrelas. Apenas na faixa costeira da ilha quer a leste quer a oeste do Cais do Pico e de São Roque, tremelicavam aqui e além algumas luzes cravadas na massa basáltica da montanha, por trás da qual, para o lado das Bandeiras, parecia emanar uma espécie de claridade a anunciar que dentro em breve a Lua, havia de aparecer e iluminar a ilha e o Oceano.

Percorri novamente o barco de lés-a-lés e voltei à terceira classe, onde nunca mais entrara desde a tarde do dia anterior, quando o Senhor Artur exarara a sentença que me condenava a passar três noites e três dias ao relento. Pensava eu que, tendo desembarcado, no Faial, muitos passageiros oriundos das Flores, os camarotes e beliches ocupados por eles estariam agora livres. Assim, ia solicitar-lhe um beliche para as duas noites seguintes. Mas o que eu não sabia, ou não queria saber, na opinião do Senhor Artur, é que no Faial tinham embarcado ainda mais passageiros do que os que tinham desembarcado vindos das Flores e que até muitos deles, como eu, também viajavam sem acomodação. Saí muito triste, com os olhos rasos de lágrimas, mas resignado com a suprema certeza de que não havia mais nada a fazer. Estava definitivamente determinado que eu havia de passar mais duas noites ao relento, sem ter cama onde me deitar.

Alta madrugada, o Carvalho levantou ferro do Cais e aproou às Velas. O mar estava calmo e a Lua surgia agora na sua máxima força, clarificando a noite e definindo com maior rigor os contornos escurecidos das três ilhas até então confundidas e misturadas com o negrume nocturno. O luar por sua vez, projectava-se no mar, transformando-o num espécie de espelho prateado e cristalino que o Carvalho, impulsionado pelo propulsar das suas potentes máquinas, ia quebrando, num ritmado e ronceiro marulhar.

À medida que o barco se aproximava de S. Jorge, eu cismava com a minha saída naquela ilha. Era lá, nas Velas, que vivia a Dona Celina e eu não podia deixar de ir a terra visitá-la.

A Dona Celina era da Ponta. Alguns anos mais velha do que eu, saíra das Flores e viera estudar para o colégio de Santo António, na Horta. Ao terminar o quinto ano concorreu para os Correios e foi colocada em S. Jorge, precisamente na vila das Velas, onde já trabalhava havia três anos. No Verão ia sempre passar férias às Flores. Encontrara-a, no mês de Agosto, em casa de uma prima que era costureira e onde ela vinha, de vez em quando, encomendar alguma roupa. Quando no final de Agosto se despediu de mim, antes de partir para São Jorge, ao saber que eu ia viajar, no Carvalho seguinte para S. Miguel, disse-me com convicção:

- Espero por ti em São Jorge. Tens que ir aos Correios das Velas, visitar-me. Não te esqueças.

Já era dia claro quando o Carvalho fundeou na baía das Velas. Debruçado sobre a amurada do convés da primeira classe observava distraída e displicentemente a maior e mais importante vila de S. Jorge, as Velas, um aglomerado de casas muito branquinhas, umas dispostas em anfiteatro junto ao cais, outras mais ao longe, encastoadas nas encostas sobranceiras e misturadas com as pastagens e as terras de mato galvanizadas de um verde muito verde e prolongadas indefinidamente até interior da ilha. O paquete lentamente voltou a popa a Sul e obrigou-me a mudar para estibordo, a fim de continuar a ver a vila e a ilha.

Pouco depois de o navio fundear na enorme e calma baía das Velas, ali mesmo em frente à vila, desci o convés da primeira e aproximei-me do portaló, com a denodada intenção de abalar para terra, logo na primeira lancha. A saída estava facilitada, pois o número de passageiros que pretendiam desembarcar em S. Jorge era reduzidíssimo. Ambicionava assim ver a Dona Celina e estar com ela durante todo o tempo possível. De repente lembrei-me que não devia fazê-lo sem primeiro dar conhecimento ou até mesmo pedir autorização ao meu marítimo paraninfo. Voltei ao convés e percorri o navio todo a ver se encontrava o Senhor Natal. Mas nada! Esperei impacientemente mais de uma hora e nada… Logo hoje é que o homem havia de demorar-se… Esperei, esperei, percorri novamente e voltei a percorrer o navio de lés-a-lés. O Senhor Natal continuava sem aparecer. Já passava das dez quando finalmente o encontrei. Manifestei-lhe a minha decisão de ir a terra, visitar a Dona Celina, a qual de imediato sofreu forte contestação por parte dele. Que nem pensasse numa coisa dessas. Que se vinha ao seu cuidado só sairia para terra quando e onde ele saísse. E que tirasse o cavalinho da chuva que a São Jorge é que ele não havia de ir. Eu, porém, tanto barafustei, tanto gritei e tanto berrei que o homem lá cedeu, mas com uma condição: - Tinha que estar a bordo sem falta, antes do meio-dia.

Voltei ao portaló num ápice e apanhei o primeiro batel que encostou ao navio e parti para terra, investindo quase metade do dinheiro que trazia comigo na compra do bilhete.

Ao chegar ao cais, deparei-me logo com o edifício dos Correios. Tímido e ansioso, entrei. O coração pulou-me de contentamento ao ver a Dona Celina do lado de dentro do balcão, juntamente com outras empregadas. Sem que ela me visse aproximei-me do cliché como se fosse comprar selos ou enviar uma carta. Quando chegou a minha vez a empregada que atendia os clientes perguntou-me o queria. Informei-a de que não queria nada ou melhor queria apenas falar com aquela senhora e apontei para a Dona Celina que continuava sentada a uma mesa, a ler uns papéis, sem dar conta da minha presença.

Assim que me viu, a Dona Celina aproximou-se do balcão, levantou-lhe o tampo, saiu para a parte reservada ao público, beijou-me em ambas as faces, fez-me uma série de perguntas sobre a viagem e, colocando-me o braço por cima do ombro, com muito carinho, conduziu-me para dentro do balcão e apresentou-me às suas colegas de trabalho e à chefe da estação, a Dona Laura.

- Olhem a encomendinha que me chegou das Flores, no Carvalho – dizia ela, apresentando-me a umas e outras.

Eu, envergonhadíssimo e vermelho que nem um pêro, lá fui respondendo timidamente às perguntas que me faziam, sobre o meu nome, a minha idade, como tinha corrido a viagem, se tinha vomitado muito e se gostava de ir para o Seminário. Uma delas, mais nova e com ar mais atrevidote, atirou-me de rompante:

- Para o Seminário?! Hum! Não tens olho de padre.

Ao lado uma outra comentava:

- Tão perfeitinho! Podes crer que é um desperdício ires para o Seminário.

A Dona Hermínia, porém, não as ouvia. Conversou com a chefe, demorou mais um pouco a arrumar uns papéis dispersos sobre a sua secretária, enquanto a Dona Laura, levantando-se, vinha ter comigo, como que a entreter-me, propondo que, a partir de agora, sempre que passasse por S. Jorge, fosse visitá-las.

Só quando ultrapassámos a porta dos Correios percebi que a Dona Celina me iria acompanhar numa visita às Velas. É que a chefe autorizara-a a suspender o seu trabalho por alguns momentos, a fim de estar comigo e me acompanhar até que eu regressasse ao navio.

Passeámos pela vila, visitámos a Matriz e sentámo-nos no Jardim da Praça da República. Depois a Dona Celina, adivinhando a fome que eu devia sentir ao fim de dois dias de encerramento naquela maldita terceira classe do Carvalho, levou-me a almoçar a um restaurante da vila, pagou a conta, exigiu que a não tratasse mais por “Dona”, voltou comigo aos Correios para me despedir da Dona Laura e das outras meninas, acompanhou-me até ao cais e, como se tudo isso não bastasse, ainda comprou e pagou o meu bilhete de regresso a bordo. Mas a Dona Celina não me parecia uma pessoa muito apressada e, além disso, sabia muito bem a que horas o navio havia de partir para a Graciosa. Por isso demorou-se um tempo sem fim em cima do cais, conversando comigo e pedindo-me que lhe prometesse que havia de visitá-la sempre que por ali passasse. Para cúmulo, enviou-me para bordo precisamente na última lancha, apesar de eu manifestar uma enorme mas simulada preocupação.

Foi o bom e o bonito! Ainda não tinha assomado ao portaló e o senhor Natal, no cimo das escadas, já vociferava, berrava, barafustava e bufava por tudo o que era sítio, jurando a pés juntos que eu não sairia em mais nenhuma ilha e que nunca mais me havia de trazer ao seu cuidado. Que eu estivera quase a perder o barco… Que se eu tivesse ficado em S. Jorge como é que ia ser… Que tinha saído com obrigação de regressar antes do meio-dia e já eram aquelas horas… Que se eu vinha a seu cuidado nunca me havia ter deixado ir a terra… Que isto e que aquilo… Eu bem argumentava ao contrário e atirava as culpas para a Dona Celina, mas que não a contrariara porque ela me tinha tratado muito bem. Além disso ele não precisava de se ter preocupado porque, afinal, eu chegara muito a tempo. Porém, não o demovia da sua relutante impertinência.

Para não o ouvir mais e porque o convés da primeira estava a abarrotar e os tripulantes não condescendiam, regressei à terceira classe, conforme indicava o meu bilhete. Por ali fiquei a tarde inteira, junto ao porão do gado, enquanto o navio ronceiro e tranquilo navegava lado a lado com a ilha, na direcção da Ponta dos Rosais, com destino à Graciosa, para na manhã do dia seguinte rumar à Terceira. Sentado em cima dum caixote olhava aquela ilha tão estreita e comprida, que me acolhera e que, aos poucos, se ia tornando mais distante e lembrava-me daquela inolvidável manhã, passada na companhia da Dona Celina, que me tratara com tanto carinho, com tanta amizade, que me abraçara e se encostara a mim, permitindo-me cheirar o seu perfume, sentir o arfar do seu corpo e, sobretudo, fruir da sua companhia e granjear a sua estima e consideração. Não poderia nunca esquecer aquela manhã maravilhosa na vila das Velas, pese embora a irritação que havia provocado no senhor Natal. E à medida que o navio se ia afastando de S. Jorge, mais eu recordava aquela manhã em terra firme, sem solavancos, sem balanços, sem enjoos, sem maus cheiros, sem fome e, sobretudo, sem a maldita exacerbação do senhor Natal.

Na Graciosa o Carvalho fez serviço na Praia e ali esteve toda a tarde e grande parte da noite. Apenas de madrugada largou em direcção à Terceira, onde chegou na manhã seguinte, fundeando na baía de Angra e permanecendo ali ancorado durante um longo e enfadonho dia.

Grande parte dos passageiros que viajavam no Carvalho e tinham entrado nas outras ilhas, terminavam a sua viagem na Terceira. Por isso, depois do navio ancorar, a confusão no portaló e corredores anexos era grande: padres de redingote e assinalados no cocuruto com a tonsura, seminaristas já vestidos de fato preto e cabeção, estudantes abraçados às namoradas, soldados fardados com bivaque e com botas de cordões entrelaçados até meia perna, empregados de mãos a abanar, doentes amparados por familiares e até uma velhinha, com o rosto muito pálido, enrolado num lenço de merino e transportada numa maca. Para alívio meu, o senhor Natal também terminava ali a sua viagem. Desde que amuara em S. Jorge, nunca mais me procurou ou dirigiu palavra. Revelando ainda algum ressentimento, veio, no entanto, antes de desembarcar, despedir-se de mim, aconselhando-me o máximo cuidado durante o tempo que ainda me restava de viagem até São Miguel e proibindo-me, determinantemente, de ir a terra, para que não me acontecesse o mesmo que acontecera em São Jorge. Despedi-me, agradeci-lhe a protecção e decidi ficar a bordo durante mais um longo e pesaroso dia, numa autêntica pasmaceira, sem fazer nada ou coisa nenhuma e, pior do que isso, sem me alimentar, pese embora já sentisse muita fome e uma enorme fraqueza. Na véspera à noite, enquanto o navio fazia serviço na Praia da Graciosa, quis armar-se em forte: entrei na terceira classe, com intenção de jantar. A ementa, afixada num placard, à entrada, era apetitosa e convidativa: bife com puré de batata. Ainda consegui o feito brilhante de me sentar à mesa e ser servido com um prato bem cheiinho do anunciado menu. Levei a primeira garfada à boca… Simplesmente intragável! Além disso comecei a ficar mal disposto devido ao ar sufocante da sala, aos maus cheiros que por ali abundavam, aos óleos fritos da cozinha e ainda porque alguém ao meu lado anunciava, em alto e bom, que aquilo era bife de cavalo. Zarpei dali, numa corrida louca, com uma enorme vontade de vomitar, sem comer uma única dentada, jurando nunca mais voltar àquela espelunca, impropriamente denominada sala de jantar, sobretudo, com o exclusivo intuito de matar a fome. De repente, comecei a sentir uma vasca terrificante e nauseativa. Parecia estar possuído de vibrações caliginosas, aflitivas e angustiantes. Muito a custo, consegui aproximar-me da borda do navio. Num ápice, perante o ricto malicioso dos que por ali passavam, entreguei aos peixinhos, gratuitamente e com uma enorme sensação de dor misturada com alívio, o pouco que no estômago ainda me sobrava do almoço nas Velas.

Passadas algumas horas depois de fundear na baía de Angra, o navio parecia quase deserto. No convés da primeira superabundavam espreguiçadeiras vazias. As pessoas que permaneciam a bordo resumiam-se à tripulação e pouco mais, dado que a maioria dos passageiros em trânsito saíra para terra, visitando a cidade e a ilha. Comecei, pois, a deambular, muito à vontade, para trás e para diante no convés da primeira, ora deitando-me nalguma espreguiçadeira ora assomando à amurada onde me entretinha a observar o Monte Brasil, a Memória, a Igreja da Misericórdia, o Canta-Galo, o Porto de Pipas, enfim, toda aquela maravilhosa cidade que eu apenas conhecia dos livros da escola primária, onde aprendera que tivera um papel preponderante nas lutas liberais, que D. Pedro IV, o Rei Soldado, a apelidara de “Mui nobre, leal e sempre constante cidade de Angra do Heroísmo” e que guardava os restos mortais do irmão de Vasco da Gama, ali sepultado a quando do regresso a Portugal do descobridor do Caminho Marítimo para a Índia. Depois olhava a borda do navio e extasiava-me com aquele frenético vaivém de embarcações que ligavam o navio ao cais da Alfândega, numa árdua e contínua lufa-lufa de transporte de pessoas, animais e mercadorias e que aqui eram bem maiores e mais numerosas do que as chatas das Flores, de S. Jorge ou da Graciosa.

De tarde o navio ainda parecia mais deserto e comecei a sentir uma fome terrível. Desde o almoço que a Dona Hermínia me oferecera em São Jorge, no dia anterior, que não tinha comido rigorosamente nada. Além disso, tinha vomitado uma boa parte dele. Eu tinha um vizinho nas Flores que era professor no Seminário, o senhor padre Jaime, que morava em Angra, com uma irmã e a mãe, a vizinha Lucinda. Quando eles iam de férias, para a sua casa da Fajã, paredes-meias com a casa onde eu morava, ela pedia-me, muitas vezes, para lhe fazer alguns recados. Retribuía-me sempre com uma fatia de pão de trigo com doce de pêssego. Se eu a fosse visitar, decerto que ela se aperceberia da fome que eu tinha por andar há tantos dias a bordo e me ofereceria alguma comida. Mas não sabia onde morava e a cidade parecia-me muito grande. Além disso, se tivesse o azar de encontrar o senhor Natal, decerto que me desancava de cima a baixo. Optei, pois, por ficar a bordo. Bem vistas as coisas, indo a terra talvez gastasse nas viagens todo o dinheiro que me sobrava. Por isso decidi que seria preferível investir metade dele no bar da segunda, poupar o restante para se precisasse ao chegar a São Miguel e ficar a bordo o dia inteiro. Comprei um pão com queijo, uma laranjada e um chocolate, o que me serviu de alimento durante todo aquele longo e enfadonho dia.

À tardinha começou o embarque dos passageiros que, em grande número, viajavam da Terceira para S. Miguel, para Lisboa ou até para a Madeira. Havia também muita gente que de terra se deslocava a bordo para acompanhar os familiares, ou simplesmente para visitar o navio. Debrucei-me mais uma vez sobre a amarra do convés a observar toda aquela movimentação de gentes e de bagagens. Não é que entre os passageiros me aparece o David Sulivan. Mal me viu veio ter comigo e, coincidência das coincidências, disse-me que também ia para o Seminário. Eu conhecia-o da Fajã, onde ainda viviam os seus avós paternos e alguns tios e primos. Ele morava no Corvo com os pais, embora se deslocasse à Fajã, de vez em quando. O pai era Cabo do Mar na mais pequenina ilha açoriana. Explicou-me porque embarcara em Angra. O pai já estava no Corvo há muitos anos e queria mudar-se para as Flores, onde agora havia uma vaga. Viera à Terceira meter a papelada a fim de pedir a transferência para Santa Cruz. Como tinha um amigo que era Cabo do Mar na Praia da Vitória, vieram todos passar um mês a casa desse amigo. Os pais tinham partido para o Corvo, enquanto ele ficara na Praia, à espera do regresso do Carvalho, para agora seguir definitivamente para S. Miguel. Mas o Sulivan tinha uma sorte danada, pois viajava em condições muito superiores e melhores do que as minhas: o pai comprara-lhe passagem em segunda classe, tinha acomodação apesar de a viagem demorar só uma noite e, a pedido directo do pai, viajava aos cuidados do Senhor Imediato. Invejei-o, não tanto pela protecção do Imediato mas pela acomodação e, sobretudo, pelo jantar que o esperava na segunda.

O David Sulivan, para além dum nome esquisito, tinha um feitio danado e, por vezes, exagerava nas brincadeiras. O avô, o velho Sulivan, chegara à Fajã havia muitos anos, vindo, não se sabia donde. Tinha olhos e traços asiáticos e fez constar pela freguesia que vinha da Madeira, embora falasse muitas vezes nas “Terras Canecas”, região do globo terrestre que nunca ninguém soube bem ao certo onde se situava, mas por onde ele tinha andado. Porém, fixou-se, definitivamente, na Fajã Grande, casou, teve filhos e netos. Como o fazia sempre que ia à Fajã, o Sulivan meteu-se comigo, chateou-me, aborreceu-me e pior do que isso, sem que eu o pudesse evitar, a dada altura, surripiou-me as chaves da mala e do baú que trazia comigo nos bolsos e, sem dó nem piedade, atirou-as para o fundo do mar.

Estarreci! Escondi-me para que me não visse chorar. Como ia ser ao chegar a S. Miguel, sem conhecer quem quer que fosse, com as malas fechadas e sem chave? Ao chegar ao Seminário, na manhã seguinte, como poderia mudar de roupa e fazer a cama? Estava rigorosamente tramado. Passei o resto da noite entre choros e soluços, maldizendo a minha sorte, evitando o Sulivan, para não me atirar a ele de unhas e dentes, sem sequer arranjar sítio onde me sentar, quer no convés da primeira ou no da segunda, quer em outro sítio qualquer, pois o navio estava a abarrotar com os passageiros oriundos da Terceira. Além disso estava previsto mau tempo para a noite que se aproximava, e o vento forte já começava a agravar o estado do mar, que piorava a cada momento, provocando um balancear contínuo e exagerado do velho paquete. Comecei, novamente, a enjoar, a sentir tonturas, vómitos e enormes dificuldades em segurar-me em pé, tal como acontecera na noite anterior, na Graciosa. O Carvalho navegava agora açulado pelo forte vento e com um ranger assustador dilacerava ondas enormes e altivas, provocando grandes balanços e sucessivos solavancos, que amedrontavam mulheres e crianças. Sentindo que ia vomitar e não tendo onde, desloquei-me para a terceira classe na tentativa de descobrir lugar onde me recostasse e onde, à socapa, me aliviasse. Entrei na sala de jantar estava repleta de crianças a chorar, de mulheres a gritar e de homens a gemer. Quase todos vomitavam e muitos outros estavam prestes a fazê-lo. A sala exalava um cheiro insuportável e o ar lá dentro era pestilento a ponto de sufocar. Saí cá para fora, para respirar o ar puro e fresco, acompanhado dos salpicos do mar. Mas sentia-me em piores condições do que quando entrei na sala. O mar piorava a cada momento o que agravava as condições de navegabilidade do navio que balouçava mais assustadoramente. À minha volta a maior parte dos passageiros vomitava. Eu não pude evitá-lo. Novamente aquela vasca nauseativa se apoderou-se de mim e o meu corpo, trémulo e inerte, estatelou-se no chão duro e molhado do convés. Ali fiquei por algum tempo. Salpicado com os respingos da água salgada que a proa do navio ao sulcar as ondas projectava no ar e que caíam em chuveiro sobre o convés e sobre mim, reanimei e tomei consciência da minha situação. Decidi aproximar-me mais da borda do navio e permanecer ali com o rosto exposto ao ar frio da noite e à água salgada. Assim sentia-me mais aliviado. Mas o meu corpo continuava inerte e sem forças. Um marinheiro viu-me e veio tirar-me dali, avisando que era perigoso, pois, na opinião dele, alguma vaga maior poderia molhar-me por completo ou até arrastar-me. Amparado pelo homem, sentei-me em cima de uns sacos molhados que por ali estavam mas onde continuava a ser bafejado pelo fresco da noite que me ia aliviando a náusea e a aflição.

Deitado, de costas entretinha-me a contemplar os salpicos da água a projectarem-se sobre a proa do navio e a reflectirem-se nas luzes, formando pequenas bolinhas vermelhas, alaranjadas, amarelas, verdes, azuis e violetas, como as do Arco-íris. Os barulhos das máquinas assemelhavam agora a um sussurrar longínquo, suave e doce. O Carvalho seguia em grande velocidade, com os motores parados, parecia que voava. Um forte vento agitava-me, levantava-me e eu sentia que me atirava pela borda, para fora do navio. Em grande aflição, agarrava-me com ambas as mãos à amarra do convés, evitando cair no fundo mar. O Sulivan numa risota pegada e gozosa, calcava-me as mãos com os pés, obrigando-me a despegar da borda da amarra do convés e eu caía no mar, estatelando-me no abismo. De repente a Dona Celina conduzindo uma pequena chata semelhante à que viera atracar o Carvalho na Horta, corria a grande velocidade, na tentativa de me salvar. A muito custo agarrava-me e puxava-me para dentro da embarcação, encostava-me a ela, enxugava-me a roupa molhada e o corpo a pingar de água salgada e de espuma do mar e, num ápice, conduzia-me ao cais das Lajes das Flores, em cima do qual me colocava. Eu ficava sozinho, triste e macambúzio a acenar-lhe e a vê-la partir. Depois iniciava uma enorme correria pela vila, galgando-a de lés-a-lés, procurando ansiosamente meu pai, mas não via. Largava, então, sozinho, no escuro da noite pelo interior da ilha, até à ladeira da Boca da Baleia, no cimo do qual estava escondido, por trás de uma moita de hortênsias, o Abrão que, colocando-se à minha frente me apanhava de surpresa. Segurando-me pela gola do casaco, ameaçava-me:

- Ah! Seu grande mariola! Ias a fugir com medo dos padres.

Depois, pegando-me à força metia-me novamente no Carvalho, repleto de pessoas a vomitar, de crianças a chorar e de vacas a mugir, conduzindo-me definitivamente para São Miguel. Um marinheiro de maleta a tiracolo, vinha cobrar-me o dinheiro do bilhete da viagem, mas eu não o tinha. Para me castigar por não ter dinheiro para o bilhete, o marinheiro atracava o navio numa ilha estranha e escura, iluminada apenas por uma ténue coluna de fogo, onde me deixava sozinho. De repente a ilha enchia-se de água e começavam a aparecer padres de todos os lados e entre eles estava o Senhor Natal, de tesouras em punho, a repreender-me exasperadamente.

Acordei assustadíssimo com os três estridentes apitos do Carvalho. Levantei-me sobressaltado. Já era dia claro. Olhei á direita e vi o mar. Olhei à esquerda e vi uma cidade enorme, enevoada e coberta duma chuva miudinha. Era Ponta Delgada e eu estava com a roupa toda encharcada.

Aproximei-me da borda do navio. A doca estava pejada de gente com guarda-chuvas abertos, de guindastes à espera de carga e de carga à espera de guindaste.

Ao redor apercebi-me de outras crianças da minha idade que teriam destino igual ao meu e apontavam lá para o fundo onde se via uma padre, ainda jovem, cabelo muito negro e ondulado, batina preta e coberta com uma gabardina azul, a proteger-se da chuva por um enorme guarda-chuva.

Saí do navio e segui os outros que se dirigiam na direcção do padre.

 

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publicado por picodavigia2 às 12:40

DEFLUXO, TOPDAS E GODELHÕES

Domingo, 16.06.13

Em criança tínhamos muitas alegrias mas também muitas tristezas e bastante sofrimento. Com uma alimentação deficiente, com condições de higiene limitadíssimas e sem assistência médica, caía-nos em cima tudo o que fosse doenças, achaques e sezões: sarampo, tosse, bexigas loucas, papeira, dedos degolados, bichas, diarreias, mamulos na cabeça, inchaços no pescoço e muitas outras maleitas, entre as quais, tinham lugar de destaque a comichão, as lêndeas e os piolhos. No entanto, as doenças que mais nos apoquentavam, por serem mais frequentes, duradouras e dolorosas eram três: o defluxo, as topadas e os godelhões.

O defluxo atacava-nos quase diariamente e era terrivelmente incomodativo. Os lenços não abundavam e, por isso, vezes sem conta, aquele pegajoso e repugnante escorrimento de humores provenientes da inflamação da mucosa nasal, a que vulgarmente chamavam ranho, tinha que ser recolhido com as costas das mãos ou com as pontas dos dedos e, de seguida, despegado nas paredes, nos muros, nas pedras dos maroiços ou nos troncos das árvores. Para além destes incómodos físicos, éramos também vítimas inocentes de afrontas morais, por parte dos adultos, normalmente libertos de tão perturbante suplício e que não cessavam de nos alcunhar de ranhosos. Pouco agradável, convenhamos.

As topadas, porém, em dor física ultrapassavam de longe o defluxo. Pezinho descalço a circular nos sinuosos e desnivelados caminhos da Cabaceira, da Silveirinha ou do Outeiro Grande, a abarrotar de pedregulhos e calhaus, era batidela certinha, com um dos dedos. Depois, um bom naco de carne levantada, sangue e mais sangue e umas dores fortíssimas. Por vezes, quando a pancada era mesmo grande, até a unha voava, o que duplicava a dor e garantia a desgraça de vir mais tarde a nascer, no lugar daquela, uma outra unha toda enrilhada, enegrecida e desajeitada. As topadas, no entanto, lá se iam curando com um chumaço de pano que se enrolava e amarrava à volta do dedo ferido, não tanto para o curar mas para o proteger de novo embate, o qual traria consequências ainda mais dolorosas. Por vezes os chumaços eram mais do que os dedos livres.

Finalmente a praga dos godelhões, uma espécie de ínguas cheias de matéria e pus que nos cobriam parcialmente o corpo, que lhe davam um aspecto lânguido e asqueroso e cujo tratamento consistia simplesmente em espremê-las.

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publicado por picodavigia2 às 09:06





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