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KELSEYVILLE – THE TRUE LOST PARADISE

Terça-feira, 18.06.13

ClearLakeStatesPark, inLakecounty, Califórnia, has one of the larges freshwater lakes of Califórnia. Around the lake are beautiful mountains, with emphasis on WigValleyMountain, and CowMountain. Along the lake also grow leafy trees with emphasis on redbuds, oaks and walnuts and near the ClearLakea fruited plain of vineyards, walnut groves and, as locals boast, “the world’s largestBartlettpear growing area”. The waters ofClearLakeare blue, with shades of green, pure and clean and they support great quantity of fish with emphasis on the bass fish. Around the lake there are many villages or little cities like Nice,Lucerne, Clearlake, Oaks, Lakeport and the beautiful Kelseyville. Kelseyville stays on a hill, overlookingClearLake, with a wonderful view. Kelseyville intermix with the mountains around Clear Lake, with the green of the surrounding trees, the vine bushes, during the day lightens up with the golden, warm sun and during the nigh with the moonlight reflexions at the calm lake waters. At Kelseyville we wake up with the singing of the birds, it is possible to be in familiar terms with the deers that stroll the streets, breathing the fresh air that involves the town. Kelseyville is kind to the visitors, as with the residente ones, who visits it will miss it for ever. Kelseyville is a true lost paradise or a kind of promised land. Who went to Kelseyvile never more can forget it, mainly because it is there that lives the lovely couple Carlos and Judy.

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publicado por picodavigia2 às 22:22

CONTRASTES AGOSTO DE 1954

Terça-feira, 18.06.13

O Outeiro, sobranceiro à Fajã Grande, era o valhacouto conspícuo das brincadeiras e folguedos da garotada, na qual eu próprio me incluía. Quem atingisse o seu cume, desfrutava duma vista fantástica. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, mais além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. A encimá-lo, no meio de imensa e diversa vegetação, uma enorme cruz, branca, ingente, altiva e teúrgica, junto à qual, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse, quer ventasse, ajoelhava, entoando cânticos e impropérios diversos e prolongados. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente, em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores.

Em véspera de festa, porém, alterávamos o destino do Outeiro. Prescindindo do nosso relambório habitual, procurávamo-lo, na ânsia de cortar tudo o que fosse queiró, vinhático, cubre, hortênsia, faia ou até babosa, que se destinaria à ornamentação de ruas e pátios que não possuíam a beleza intrínseca ou as qualidades necessárias e adequadas à passagem das procissões.

Naquela tarde sombria do enigmático Agosto de 1954, dirigimo-nos, mais uma vez para o Outeiro, na procura e corte de verdura. Toda a freguesia aguardava, expectante e esperançada, a visita do bispo. Há vinte e três anos que um bispo não visitava a Fajã! O pároco, preocupado para que tudo corresse da melhor forma e Sua Excelência Reverendíssima fosse recebido com pompa e circunstância, como convinha a um príncipe da Igreja, mobilizou a parte mais crente do rebanho, na preparação e arranjo de tão abençoado e santificado evento. À garotada, conhecedora profunda dos meandros do Outeiro, fora atribuída a tarefa de corte da verdura que encobriria e ocultaria a rudez e a pobreza das ruas por onde Sua Excelência passaria, ou que, depois de picada, formaria, juntamente com as pétalas das flores, o tapete multicolor que o digno e legítimo sucessor dos Apóstolos pisaria.

Eu, à sorrelfa, apesar da pouca idade, incorporei-me voluntariamente na tarefa. Embora não podendo trazer grande quantidade de verdura, morava ali perto, nas primeiras casas da Assumada e conhecia melhor do que muitos aqueles páramos e andurriais. A expedição, terminou ao lusco-fusco. Molhos e gavelas de verdura abundavam, agora, no adro da igreja, à espera de que no dia seguinte se iniciasse a ornamentação, à qual eu não podia faltar.

No regresso do Outeiro cheguei a casa tardíssimo!

Porém, o ambiente ensombrado, tristonho e dramático que ali reinava, impediu que sofresse qualquer julgamento, repreensão ou castigo. A preocupação era tanta e tão grande que, pese embora a família estar toda reunida, ninguém notou a minha chegada tardia. Depressa me apercebi do que se passava e senti a iminência da tragédia que ameaçava abater-se sobre nós.

Os dias anteriores tinham sido de grande consternação, sofrimento e tristeza. Minha mãe, de cama há um mês, piorava de dia para dia. Quase em fim de gravidez, sofrera a bicada dum garnisé, precisamente numa variz. Não dando importância, nem fazendo o tratamento adequado, a situação agravara-se, trazendo-lhe complicadas contrariedades. Quando optou por tratamento, já era tarde! Meu pai em constante rodopio entre Fajã, Fajãzinha, Lajes e Santa Cruz, procurava conselhos adequados e mezinhas eficientes que superassem maleitas, achaques e sezões.

Na terça-feira, por feliz coincidência o único médico existente da ilha viera de barco à Fajã. Meu pai, evitando a onerosidade duma consulta ao domicílio que não poderia suportar, conseguiu falar com ele, inteirando-o do estado de minha mãe. Resposta pronta do facultativo:

- Mande-lhe fazer análises à urina. Depois leve-mas e veremos o que se pode fazer.

Por isso, meu pai se levantara alta madrugada, com destino traçado à Vila, regressando à noitinha. Quando entrei na cozinha contava como tinha decorrido a sua viagem. Depois, langoroso e sorumbático, explicava as dificuldades que tivera que enfrentar para encontrar e ser atendido pelo doutor.

- Assim que viu as análises - concluía meu pai - franziu os olhos e disse-me logo que tinha que a levar amanhã para Santa Cruz, para ser imediatamente internada no hospital.

Na escuridão da cozinha, fez-se um silêncio sepulcral. Calados, todos reflectiam sem saberem quê. Lentamente, porém, à medida que a noite mais escurecia, começaram a delinear-se duas opiniões contrárias e controversas, sobre o destino da minha dolente progenitora.

Uns opinavam que nem médico, nem hospital resolvem nada; quando se tem que morrer, morre-se mesmo, pelo que, consequentemente, se opunham à ida para o hospital, sem falar nas dificuldades que teriam em transportá-la para a Vila. Outros, porém, propunham fazer cumprir-se a vontade do médico, concluindo que em casa, sem assistência e sem medicamentos é que ela não melhorava.

Minha mãe fora poupada a tal discussão. Permanecia no quarto, deitada na velha enxerga de musgo e pragana, alheia à contenda que decidiria o seu futuro, ora lançando requebros ternos e meigos sobre o corpinho de meu irmão, ora embalando maquinalmente o bercito onde ele consubstanciava o sono com o total alheamento à tragédia que se abatia impiedosamente sobre nós. O pequeno espaço do quarto era ocupado por duas camas: a de meus pais e uma outra destinada às minhas irmãs. Entre ambas, apenas um exíguo e apertado espaço, onde, com dificuldade, balouçava o pequeno berço, atávico valhacouto dos nossos primeiros meses de vida. Ao lado a sala, simples mas muito clara, onde se evidenciava uma enorme barra de madeira, onde eu e meus irmãos nos íamos acomodando e aconchegando, à medida que, sucessivamente, éramos desalojados do berço, por imperativos resultantes da vinda de novo rebento e que, conjuntamente com uma cómoda, duas caixas e seis cadeiras a desfazerem-se, constituía a mobília de luxo da casa. Finalmente a cozinha, enorme, vetusta e esconsa, contrastando com a clareza da sala, agora, paradoxalmente, transformada em areópago dramático, onde o agregado familiar debatia extenuantemente e decidia o futuro da minha sofredora e desafortunada genetriz. Pendente duma trave negra de carvão, uma pequena candeia, alimentada a enxúndia de galinha, flamejava frouxa e titubeante, lançando no escuro uma luz ténue, baça e pouco clarificante, que confundia pessoas e objectos. No lar evadiam-se, áscuas e rúbidas, duas achas de faia que, minha irmã afogueara, juntamente com uns pequenos garranchos de incenso, para ferver o leite e estufar o pão de milho, rijo, envelhecido e bolorento, cozido há oito dias e que constituiria a nossa parca e frugal ceia.

As vizinhas mais amigas e chegadas acorriam espavoridas, com xailes sobre o cocaruto, a inteirar-se do sucedido, a oferecer préstimos, a disponibilizar recursos e a colaborar na confusão galopante que, agora, se tornara epicentro das atitudes de todos.

Meu pai, evadindo-se da dolente letargia que o dominava, dirigiu-se para o quarto. Fez-se um silêncio profundo e enigmático. De baixo, da loja, dividida entre arrumos e estábulo, chegava, juntamente com os gemidos dum vitelo e o tilintar da campainha da Benfeita, o nauseabundo e mefítico cheiro da nitreira. Passado algum tempo meu pai regressou! Consubstanciava no rosto a marca indelével da angústia e o alívio da decisão definitivamente tomada:

- Está decidido!...Ela vai!...

De imediato, incapazes de discutir ou contrariar tal decisão, todos se mobilizaram em esforços confusos e desordenados, numa conjugação de lamentos com a vontade de fazer tudo sem fazer coisa nenhuma.

Dirigi-me ao quarto, com meus irmãos, enquanto minhas tias se atarefavam com os preparos da roupa, como se isso fosse o mais importante. Minha mãe já arrancara meu irmão ao berço e aconchegava-o ao peito em soluços profundos. Os olhos encheram-se de lágrimas e o peito de dor. Pudera eu alterar o mundo e mudava já, ali, de imediato o destino da minha progenitora. Abraçamo-nos, alternadamente, a ela, misturando as nossas lágrimas. Meu pai reagira ao drama e, tentando superá-lo, procurava, a todo o custo, homens disponíveis, que, na madrugada do dia seguinte, ajudassem a carregar aos ombros a pesada e provisória maca que a transportaria até aos Terreiros. Era opinião unânime, de que estando minha mãe muito pesada seriam necessários quatro homens para a transportar. Dada as dificuldades da viagem, convinha, no entanto, levar dois suplentes. Minha mãe continuava chorosa e indecisa, ora abraçando-se a nós, ora aconselhando e orientando minha irmã que, apesar de criança, na sua ausência, teria que assumir a tarefa de gerir os nossos destinos e os da casa.

A noite decorreu num contínuo hipotecar de certezas e esperanças. Alta madrugada fui acordado. Já minha mãe jazia no soalho remendado da velha cozinha, povoado de frestas, por onde emanava um ar matinal tépido, misturado com um bafio de animais e um cheiro a estrume e arrumos. A cozinha, totalmente escura, esperava que a manhã a clarificasse. Minha mãe estava estendida sobre dois grossos cobertores, que seriam amarrados nas extremidades e presos com arças a dois fortes temões, tirados a corções de bois. Um lenço amarelado, de merino, tapava-lhe, quase totalmente, o rosto triste e humedecido. Dos olhos, salientes e despejados de brilho, emanava, contudo, uma blandícia esperançada a contrastar com o desespero bastardo que se apoderara de todos nós. Vestia roupas grossas, escuras e pardacentas a fim de se defender do frio da madrugada que, de certo, encontraria ao longo de todo o percurso. A viagem seria árdua e prolongada. Apenas a partir dos Terreiros, uma camioneta a levaria até à Vila. De certo que lhe passavam pela mente as agruras de tão inóspito trajecto, bem como o internamento no velho hospital de São Francisco, afastando-se de todos nós, por tempo indeterminado. Para cúmulo e porque faltavam poucos dias para o Carvalho, começava a delinear-se a possibilidade de ter que ir para o Faial, caso o tratamentoem Santa Cruz não fosse eficiente.

Eu tremia, com os olhos arrasados de lágrimas. Ao mesmo tempo, já sonhava com o seu regresso. Iria esperá-la à Eira-da-Cuada, como tinha ido quando meu pai regressara da Terceira. Era o sítio já institucionalizado para, em dias de vapor, esperar os passageiros, quer os que vinham da América, quer os que se deslocavam ao Faial ou à Terceira, por doença. Sentados junto ao calhau de Nossa Senhora, víamos, lá ao fundo a rocha dos Bredos e a Fajãzinha, sendo assim possível adivinhar muito antes a chegada dos próprios viajantes, que vinham dos Terreiros, a pé, acompanhados dos familiares mais afoitos, que carregavam as suas malas. O espectro da partida regressava e os olhos voltavam a encher-se de lágrimas que se confundiam com as de minha mãe, de meus irmãos e com a simulada consolação que minhas tias e vizinhas lhe davam.

Chegaram os homens com os temões! Enfiaram-nos nas arças formadas nas extremidades das cordas que prendiam os cobertores. Estas, testadas pelo peso do corpo, rangeram acremente. De repente, um grito enorme, estrondoso e conjunto ecoou nos recantos da velha cozinha. Parecia que toda aquela artesanal, provisória e mal concebida geringonça profligava e o corpo inerte estatelava-se sobre as duras tábuas do remendado soalho.

Colocada novamente no chão, minha mãe, vaticinando as dificuldades que a tentativa do levantamento inicial haviam pré anunciado, esperou pacientemente que os homens renovassem todo o sistema de suspensão da provisória maca em que jazia. As cordas foram novamente apertadas e testadas com excessivos e curiais cuidados, numa confusa e apressada azáfama, que teve a vantagem de despertar e provocar preocupações que alienaram e anestesiaram uma despedida dolente e sinistra.

Na imensidão escura da noite, a porta da cozinha abriu-se. Lá fora, arrogantemente assustador, o abismo ofuscante da madrugada delineava formas incertas e inseguras que engoliam, sofregamente, o nosso destino e a nossa esperança. Com excessivos cuidados os homens levantaram, novamente, o catre. As cordas adequadas e ajeitadas, aceitaram submissas e serenas o enorme peso que se suspendia dos temões arquejantes. Atrás duas escalonadas para acompanhar no transporte das roupas e na desventura. Estariam a seu lado, durante a viagem e no hospital, prestando assistência e amparo. As sombras dos corpos e do catre confundiram-se e perderam-se na sinuosidade da Assumada!

E a porta fechou-se!...

Voltei a deitar-me! Mas não conseguia dormir. Ao Outeiro, anunciando o amanhecer, regressavam bandos de cagarras, cujos gritos agonizantes ecoavam sobre mim. Nuvens escuras perdiam-se sobre a imensidade ténue e profunda de um pélago esconso e heteróclito, onde me via só, na iminência de me perder. Minha mãe aparecia ao longe, sobre um tapete voador, vestida de branco, cabelos soltos e ao vento, as mãos estendidas para mim, sem, no entanto, me conseguir agarrar ou impedir de cair. Quanto mais eu corria na sua direcção, mais ela se distanciava de mim e caminhava chorosa, sentindo a mágoa e a dor de não poder ajudar-me. Um alto tapume interpunha-se entre nós, e eu ficava só! Rodeava-me um enorme e profundo vale, povoado de árvores sem folhas e sem esperança, ribeiras sem água, caminhos desertos e sem direcção, pássaros sem ninhos, borboletas sem asas e flores sem cor e sem perfume. O próprio Sol perdera o brilho e a esperança era escura. De repente, uma chuva, diluviana, torrencial e gelada, caía sobre o vale e sobre mim e eu não me podia abrigar. Queria fugir e não conseguia. A chuva era tanta que o vale, a pouco e pouco, enchia e transbordava, transformando-se em medonho escarcéu. Uma sombra negra, lôbrega e indefinida descia sobre mim! Minha irmã mais velha, assumindo plenamente a responsabilidade que minha mãe lhe confiara de gerir os nossos destinos, acordava-me e, decididamente, decretava:

- Levanta-te! Tens que ir levar as vacas ao Outeiro Grande.

Ao meio-dia chegaram notícias de Santa Cruz. Eram muito desanimadoras. Minha avó, matriarca assumida da família, mobilizou, de imediato, todas as minhas tias, candidatas a tias e meus irmãos mais velhos, para se deslocarem para a Vila. O estado de minha mãe era gravíssimo! A viagem fora prejudicial e ela piorava a cada momento.

Partiram todos! Fiquei apenas eu, meus irmãos mais novos, minha avó e duas tias de tal forma empenhadas e imiscuídas em missas, devoções, novenas e outros rituais litúrgicos, que não podiam de forma nenhuma, abdicar agora da oportunidade quase única de receber as graças, bênçãos e indulgências em que uma visita episcopal era tão profícua, até porque esporádica e pouco frequente.

De tarde, toda a freguesia, alheia ao nosso drama, paralisou, na preparação da visita do bispo.

Eu, que, na véspera, colaborara no corte e transporte da verdura, sentia-me, agora, no direito de ajudar na ornamentação das ruas e do adro, embora soubesse que não crismava. Sem que minha avó se apercebesse ou notasse, escapuli em debandada e rumei direitinho ao adro, onde se movimentavam gentes confusas e ideias desordenadas. Ramos de árvores e arbustos, montes de verdura e cestos de flores abundavam por ali, à espera de destino.

Entrei na igreja. Era a hora das confissões!...

O prolongado interregno das visitas episcopais originara que quase metade da freguesia se preparasse para receber o crisma. Os restantes estavam, no entanto, também ligados à cerimónia, uma vez que tinham sido recrutados como padrinhos ou madrinhas. A todos fora imposto, no domingo anterior, a necessidade prévia de lavar culpas e confessar pecados, branqueando costumes e purificando atitudes. Daí uma procura penitencial como há muito se não vira e que ultrapassava, de longe, a desobriga pascal. Tão excessiva e desusada concorrência obrigou o pároco a reforçar notória e substancialmente as estruturas penitenciais de que, habitualmente, dispunha. O número de confessores foi aumentado e, para além dos velhos, esconsos e fechados confessionários laterais, acrescentou dois ralos suplentes, encravados na grade da capela-mor, onde, estrategicamente, colocou dois dos padres mais experientesem Casuística. Elepróprio reforçava o elenco penitencial, sentado ao lado do altar-mor, confessando a pequenada, menos pecaminosa e dispensada canonicamente do ralo.

O templo convidava à oração e à penitência. Ensombrado numa penumbra clarificante, exalava um cheiro a silêncio, a perdão e a arrependimento simulados. Dos altares, recheados de sécias, gladíolos, azáleas e velas a arder, emanava um perfume doce, atraente e sereno. Das altas janelas suspendiam-se sanefas de damasco vermelho, debruadas a amarelo e cortinas de linho rendado. Homens e mulheres, de joelhos ou sentados, cabisbaixos, entretinham-se, indistintamente, a simular arrependimento e penitência, num esforço improfícuo, de lembrar as culpas de que iriam solicitar perdão. Alguns, menos pacientes, esgueiravam-se, na tentativa de procurar confessor mais benevolente. Outros, já aliviados, bichanavam Padres-Nossos e Ave-Marias, em quantidades variáveis, conforme lhes fora imposto, pelo confessor, de acordo com a quantidade e a gravidade das faltas declaradas. O templo transformara-se, enfim, num epicentro de arrependimento e de perdão! Não havia falta, culpa ou pecado declarado pelo arrependimento dos penitentes, que escapulisse à fúria benevolente e perdoadora dos confessores.

O pároco, ao ver-me, chamou-me apressadamente. É que desde há algum tempo que eu fora iniciado na colaboração e ajuda dos ritos e cerimónias litúrgicas. Cuidando ele que havia muitos penitentes que ainda se não tinha submetido ao julgamento divino e, com receio que se esquecessem, mandou-me tocar os sinos.

Não podia atribuir-me tarefa mais gratificante! De toda a garotada da freguesia, eu era o único que sabia tocar devidamente os sinos. Meu tio era o sacristão. Casando-se, o que aconteceria em breve, abandonaria o cargo. Desde há muito que eu fora indigitado como seu legítimo e natural sucessor. Por isso, fora já iniciado na prática e no acompanhamento das diversas cerimónias litúrgicas e celebrações religiosas. Já sabia de cor, em latim, o "Confiteor" e as respostas ao "Introíbo" e ao "De Profundis". Apenas um senão pesava contra a minha contratação e que levara o pároco a adiá-la indefinidamente: a exígua altura de que dispunha, na opinião do reverendo, não se adequava às exigências preliminares e posteriores ao Santo Sacrifício - acender e apagar as velas dos altares. É verdade que eu jurara solenemente resolver o problema, subindo a uma cadeira e, se necessário, até saltar para cima dos altares, actos que o eclesiástico condenava e reprovava radicalmente, quer porque os considerasse pouco litúrgicos, quer porque, tendo em conta a fama de estroina que eu tinha, corria o risco iminente de, na descida, trazer algum santo embrulhado comigo, estatelando-o no chão, como já fizera, em tempos, com o vidro do relógio.

A minha especialidade, porém, era o toque dos sinos. Era exímio!... Tocava-os como ninguém e de acordo com as exigências de cada festa, celebração ou momento litúrgico.

Feliz, subi a sineira, agarrando-me aos enormes badalos com frenesim diabólico, estonteante e quase artístico. Iniciei, de imediato, um harmonioso repique, que se prolongou enquanto as minhas forças o permitiram. Para além de saborear o som harmónico que emanava dos bronzes gigantes, pretendia que nenhum penitente deixasse de procurar a oferta penitencial que lhe era facultada e que ninguém, na freguesia, permanecesse em pecado, por incúria minha. Toquei tanto, tanto, que o pároco, fértil em irritação quando os seus desejos não eram concretizados, para suspender a sinfonia, teve que mandar emissário portador da mensagem habitual:

- Vai dizer àquele paspalho que pare de tocar os sinos!

Regressei pela sacristia, para que ele não despejasse sobre mim as iras a que era propenso, sobretudo em vésperas de festa. Lá estava, sobre o velho e envernizado mesão, a casula festiva, de damasco branco, debruada e bordada a amarelo e que o bispo vestiria, ao chegar ao templo, substituindo a capa de asperges que envergaria desde a Casa do Espírito Santo. Ao lado, o cálice, a píxide, a custódia, a caldeirinha com o hissope, o turíbulo e a naveta, tudo muito limpo e areado, brilhando a novo, para que o prelado vendo o empenho que o pároco colocava no asseio e manutenção das alfaias litúrgicas, concluísse do seu zelo espiritual, da dedicação religiosa e dos cuidados e orientação que dedicava ao rebanho que, por mandato canónico, lhe confiara.

No adro, os que já se tinham aliviado dos pecados e cumprido a penitência imposta iniciavam a ornamentação. Bandeiras multicolores suspendiam-se, cruzadas, das varandas e beirais das casas. Muitos portões eram revestidos com verdura, a fim de ocultar a sua rudez e pobreza. Uns picavam ramos e folhas, enquanto outros desfolhavam as pétalas das flores. As azáfamas eram grande e a confusão ainda maior. Depressa me integrei no frenesim que ali se institucionalizara. Corria, alegremente, de lado para lado, levando ramos a uns e trazendo barbante a outros.

De repente e sem me aperceber, quando corria desalmadamente, carregando um ramo que o Eduíno me pedira, atirei tão grande e tão forte pontapé no gume de um machado que descuidadamente fora deixado por ali. Andava descalço e tinha os pés totalmente desprotegidos. A pancada foi fatal. Senti a lâmina afiada entrar-me na carne, abrindo-me o pé de trás adiante, num enorme golpe. Caí desfalecido, enquanto a meu lado começava a formar-se uma poça de sangue, gerando-se o pânico entre os meus comparsas de ornamentação. Fui conduzido, imediatamente ao passal, cujo quarto de banho, dos poucos existentes na freguesia, em situações similares, se transformava em sala de urgência.

Era a hora do lanche dos senhores padres que, por tal razão, tinham interrompido o confesso. Mas a gravidade do acidente exigiu que um dos padres, tão experiente no exercício da medicina como no do sacerdócio, suspendesse o seu lanche, para me prestar os primeiros socorros.

Tal incidência provocou grande confusão no passal. Entendia a responsável pelo lanche do clero, que este, sobretudo nas tardes em que os reverendos se agastavam em efervescentes bênçãos, perdões e penitências, era sagrado e, por conseguinte, não devia ser interrompido por um badameco qualquer. Pesava ainda contra mim, ser opinião generalizada de que facto de  minha mãe estar no hospital, ser meu dever estar em casa, fazendo companhia à minha avó. Por isso me chegavam aos ouvidos recriminações:

- És sempre o mesmo. Tinha que seres tu a interromper o lanche dos senhores padres! Nem estando a tua mãe, a morrer, no hospital tomas juízo. Antes estivesses em casa, porque a tua avó bem precisa de ti.

Eu chorava desalmadamente!... Chorava de dor, chorava de raiva, chorava de medo!

Depois esmoncava-me sem precisão nenhuma, soluçava e voltava a chorar.

O padre que voluntariamente abdicara do seu lanche para me tratar, tirara a batina e o cabeção para poder, mais facilmente, prestar-me assistência. Agora, de calças negras e camisa branca, mangas arregaçadas parecia um homem, olhando para mim com blandícia e piedade. Do seu rosto vermelho, altivo e sorridente, emanava um olhar terno, meigo, benevolente e preocupado:

- Não chores! - Exclamava ele, carinhosamente, com voz estridente e bondosa. - Vamos tratar disto! Vais ficar bom e amanhã já podes ir esperar a tua mãezinha.

Depois, desapertando com excessivos cuidados os panos em que me haviam embrulhado o pé ferido, franziu os olhos e, virando-se para outro padre que assomara à porta para se inteirar do sucedido, murmurou flacidamente:

- É maior do que eu pensava! Vou ter que lhe dar pontos.

Entrei em delírio excitante e em pânico redobrado. Arrogava-me o direito estapafúrdio de fugir dali imediatamente, vendo-me, no entanto, totalmente impedido de o fazer. Mas os meus protestos de nada serviram. O padre tinha decidido coser-me e coseu-me mesmo, apesar de o ter feito com grande carinho, delicadeza e ternura. Uma picada fria, seca e destemida acelerou exageradamente as dores. Senti, de imediato, deslizar áspero, agreste e desabrido, por entre as excrescências carnosas que ladeavam o golpe, uma espécie de fio. Gritos estrondosos e tresloucados ecoaram pelos corredores e dependências da casa, com tal intensidade e persistência que todo o clero foi forçado a suspender o lanche, em que a cozinheira pusera tanto enlevo. Levantou-se uma medonha e descomunal confusão, em nada abonatório e pouco condizente com a calma e tranquilidade de um passal, sobretudo em preparativos de visita episcopal.

Terminada a operação, uma das cozinheiras amiga de minha mãe, pegou-me ao colo e, tentando acalmar-me, levou-me para a cozinha, onde nunca tinha entrado. Sentou-me numa cadeira e prometeu-me uma fatia de bolo, do "dos senhores padres" se eu cessasse o meu choro. Calei-me, muito a custo, não tanto pela promessa, mas porque, agora, começava a consciencializar-me da minha dramática, infeliz e triste situação e das consequências que me iria trazer.

Sentado ali, muito quietinho, com as marcas da dor estampadas no rosto e os estigmas da raiva reflectidos no peito, olhava, no entanto, aquela cozinha, tão deslumbrante e tão diferente da minha. Tachos e panelas, tudo brilhava e reluzia, contrastando com a negrura e ferrugem dos caldeirões que povoavam o meu lar. Ali, nem traves negras de tisna, nem linguiças penduradas dos tirantes a pingar graxa, nem frestas ou remendos no soalho, nem balde de porco, nem a velha e pequena candeia de enxúndia, nem cheiro a nitreira ou a estrume. Tudo era novo, limpo, claro, brilhante e asseado. Era forrada e, do tabique esbranquiçado pendiam cachos de papel rendilhado, multicolores, onde as moscas se entretinham e se perdiam, afastando-se dos alimentos e das pessoas. O chão era liso e limpo e ultrapassava, em qualidade, o da minha própria sala. À volta da mesa dispunham-se cadeiras em vez de bancos ou caixotes. Uma das cozinheiras deu-me uma enorme fatia de bolo que sobrara do lanche eclesiástico, enquanto me perguntava meigamente:

- E de tua mãe? Souberam mais alguma coisa?

Eu, abanando a cabeça negativamente, deliciava-me com um manjar a que, quer por não estar habituado, quer porque excedente do lanche hierático, considerava celestial. Ao mesmo tempo, continuava, pasmado, observando a abundância pantagruélica que proliferava por toda a cozinha: galinhas depenadas, peixes de várias qualidades, carne de porco e de vaca, massa sovada, bolos, pudins, frutas e muitas outras vitualhas que faziam crescer-me água na boca. Enquanto me deliciava com tal contemplação, entrou a dona Serafina, informando de que alguém me iria levar a casa.

Foi um dos meus comparsas de ornamentação que me veio tirar dali. Sentira uma certa cumplicidade na minha desventura e disponibilizara-se, imediatamente, para me tirar dali. Subiu o saguão e pegou-me às cavaleiras, levando-me a casa da minha avó. Esta, quando me viu e se apercebeu do sucedido, levando as mãos à cabeça, como se endoidecesse, expeliu gritos alucinantes e lamentações dramáticas tais que provocaram enorme alarido em toda a vizinhança, que, tendo em conta os acontecimentos anteriores, permanecia alerta ao menor ruído, grito ou lamentação:

- Valha-me o "Não-sei-que-diga"!... Não me faltava mais nada!... Tua mãe às portas da morte, no hospital!... E eu aqui sem saber de nada!... E tu chegas-me nesse estado!... Eu me benzo do "Coiso-mau»!...

E benzia-se e persignava-se vezes sem conta, como se isso resolvesse alguma coisa.

Eu bem a esclarecia e elucidava, de que tudo acontecera em prol duma causa santa e que até tinha merecido honra de atendimento eclesiástico, sem, no entanto a demover da sua consumição.

A noite foi de dor, de enfado e de incerteza!...

Acordei, na manhã seguinte, com o pé túrgido e dormente, totalmente incapacitado de andar ou, sequer, de me mover. Sentei-me à janela da sala, com o pé estendido e muito quietinho, desfrutando duma vista maravilhosa e global sobre grande parte da freguesia. Dali, podia ver não apenas as ruas por onde Sua Excelência Reverendíssima e o seu séquito passariam, mas também o gasolina que o transportaria da Vila até ao cais, uma vez que a casa da minha avó, situada nos contrafortes do Outeiro, na Fontinha, ficava sobranceira ao mar.

Nas ruas circundantes à igreja e no adro, já era grande a azáfama. Uns davam os últimos retoques na ornamentação, enquanto outros já demandavam o cais. A Senhora da Saúde, novinha e em folha, inaugurada ainda não havia um ano e para a qual meu pai também havia contribuído, oferecendo o leite do primeiro domingo de cada mês, expelia, a custo, os primeiros acordes.

Olhei a infinidade azulada do oceano. Lá ao fundo, emergindo da rocha da Ponta, uma mancha escura crescia e, rapidamente, transformava-se em embarcação, que, em breve, ultrapassava a Baixa-Rasa, aproximando-se do cais. Era a "Leta", o melhor e mais rápido gasolina da ilha, requisitado à pesca da baleia, para transporte do eminente visitante. Lembrei-me, então, das dificuldades e agruras por que teria passado a minha progenitora, doente, sem poder andar, para chegar à Vila. E o bispo, que ainda era novo e gozava boa saúde, vinha de lancha. E, para cúmulo, fora-lhe posta à disposição a melhor e mais rápida embarcação que existia na ilha. Perguntando a uma das minhas tias, o porquê de tão, em minha opinião, injusta diferença, ela respondia-me simplesmente:

- Ora porquê? Porque é o senhor bispo!... É como se fosse Deus.

Eu, porém, não entendia tão contrastante contraste. E, dentro de mim, germinava uma ingénua e improfícua revolta.

Eu não via o cais de desembarque, mas o estalejar dos foguetes e os sons estridentes e desafinados da Senhora da Saúde eram indicador seguro de que o prelado já estava em terra firme.

Pouco depois, via deslizar, junto ao Matadouro, uma enorme e pouco habitual mole humana, atrás da qual se podia divisar, o vulto “negro-roxo” do bispo. Foguetes perfuravam o céu sombrio, deslizavam o ar sereno e estalejavam, ininterruptamente, destemidos, em sons quebrados e roucos que ecoavam nas rochas das Águas e da Figueira. Os acordes musicais da Senhora da Saúde, embora desafinados e desabridos, continuavam a efluir, repercutindo-se pelos vales e pelas encostas dos montes. Na torre da igreja iniciava-se um toque de sinos anunciador de festa e de alegria. A freguesia inteira era um mar de regozijo e satisfação, onde se movimentavam marés de contentamento e ondas de felicidade. O povo todo saía à rua ou acorria às janelas e varandas para ver, saudar e aclamar o Pontífice, que não se poupava a distribuir bênçãos, indulgências e sorrisos.

E eu, ali, plangente, empalidecido, sorumbático, amarrado à dor e preso pelo infortúnio, já não acreditando na esperança, em evidente contraste com o folguedo hierático, em que toda a freguesia se blasonava e do qual o bispo era cúmplice.

Este, porém, enigmática e paradoxalmente, sem que ninguém esperasse, recolheu ao passal para descansar, enquanto povo continuava a festejar a sua chegada!

«Afinal, tinha vindo da Vila de gasolina e necessitava de descansar?!» - pensava eu, sem entender.

A mente povoava-se-me de ideias confusas. A viagem do bispo a contrastar, não apenas com a da minha mãe, mas com todas as que o meu pai fizera durante aquela semana...

Passado algum tempo, o bispo já paramentado de capa de asperges, báculo e mitra, assumindo a verdadeira razão de ser do epíteto de Príncipe da Igreja, saía da Casa do Espírito Santo de Cima, percorrendo em procissão a rua Direita, toda atapetada e engalanada. À frente, os anjinhos de asas brancas e cestas de flores e as crianças da Cruzada Eucarística, cobertas com a cruz de Malta, desenhada a vermelho, em faixas brancas, atravessadas sobre o peito. A seguir os que iam crismar e os padrinhos. Depois os homens de opas brancas e vermelhas, carregando lanternas, pendões, cruzes e velas. Finalmente o clero, envergando sotaina negra e sobrepeliz branca e o pálio, sob o qual seguia Sua Ex.cia Reverendíssima, acolitado pelos ouvidores das Lajes e da Vila. A Senhora da Saúde, persistindo nos seus acordes desafinados e, por vezes, abafados pelo toque dos sinos ou pelo ribombar dos foguetes, fechava o cortejo. Das janelas, varandas ou pátios, jovens donzelas atiravam pétalas de flores, que o prelado retribuía com bênçãos e sorrisos.

Chegando à igreja, o bispo pegando no hissope que o pároco lhe oferecia, revestido do poder jurídico e canónico, levou-o à cabeça e, desenhando cruzes sobre si próprio e no ar, aspergiu o povo, humildemente ajoelhado, submisso e contrito, enquanto o coro entoava o "Ecce Sacerdos".

E a porta do guarda-vento fechou-se!...

A freguesia tornou-se um deserto! Parecia toda adormecida. Apenas dois oásis: um a igreja onde pontificava o bispo, onde se evadiam fluxos de santidade e fervilhavam bênçãos e graças por entre cânticos de glória e hossanas de louvor; outro, a casa da minha avó, onde reinava a solidão, a dor e a esperança refulgia cada vez menos incerta e mais confusa.

O dia chegava ao fim e a noite aproximava-se lúgubre e tétrica. Eu continuava sentado à janela, sem esperança e sem notícias da minha pobre genetriz. Nos caminhos semi-desertos cruzavam-se sombras humanas, estranhas e paradoxais, recolhendo aos lares. Na curva, que ao longe divisava, surgiu um vulto negro, confundindo-se com a noite. Caminhava lento e macambúzio. Depois de subir a ladeira subjacente à casa da minha avó pude identificá-lo: era o meu vizinho, professor no Seminário de Angra e que, todos os anos, vinha passar férias à Fajã, donde era natural. Aparentando os seus trinta anos, sempre muito limpo, asseado e bem penteado, passava muito do seu tempo em amena cavaqueira comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais. A sua mãe chamava-me, frequentemente, para lhe fazer recados, recompensando-me sempre com uma fatia de pão de trigo fresquinho, coberta com doce de pêssego e que me fazia olvidar o pão de milho velho e bolorento, barrado com graxa de porco, simulando sabor a linguiça, a que estava habituado. Outras vezes, o que para mim significava maior satisfação, dava-me um moeda de dez centavos que eu ia cuidadosamente amealhando, até fazer um escudo, com a qual compraria um chocolate, na festa da Senhora da Saúde, único dia no ano, em que me era licito fruir tal prazer. Quando o montante ultrapassava um escudo, era obrigado a depositá-lo nos "cofres" de minha mãe, contribuindo assim para o reforço do nosso escasso e paupérrimo orçamento familiar.

O padre subiu a ladeira e estacou frente à entrada da casa da minha avó, permitindo-me adivinhar que o seu destino terminava ali. Estava triste, cabisbaixo e revelava grande preocupação e desalento. Minha avó, ao vê-lo, sabendo que não era hábito do reverendo circundar-lhe a casa, desatou em altos gritos, profetizando as más notícias de que ele seria portador:

- Ela morreu! Ela morreu! - exclamava ela, obstaculizando a consolação e tranquilidade que as minhas tias ousavam transmitir-lhe.

Eu, também estranhando a presença comprometedora do padre, quase lhe dava razão e enchia-me de medo.

Uma das minhas tias, nervosíssima, foi destrancar a porta da sala, que apenas se abria em ocasiões mais solenes ou em dias de festa. O padre, entrando, cumprimentou-nos a todos e, dirigindo-se a mim, como que a distrair-nos do que ali o trazia, perguntou-me se estava melhor. Eu, porém, nem tempo tive para lhe responder. Minha avó não lhe dava tréguas! Quase tresloucada, exigia:

- Senhor padre! Sei que me vem trazer uma notícia má!...Diga, diga!... Foi a minha filha que morreu!... A minha filha morreu?!

O padre confirmou, acenando levemente com a cabeça. Não foi preciso dizer qualquer palavra! Minha avó e minhas tias iniciaram, de imediato, tão alta gritaria e tão grande choradeira, que as vizinhas, adivinhando o pior, acorreram apressadas. Eu senti um baque estridente e doloroso, no peito e, segurando a cabeça com as mãos apoiadas nos joelhos, chorei amarga mas silenciosamente...

O padre sem que ninguém o ouvisse, explicava que minha mãe tinha falecido no dia anterior. Na impossibilidade de trazer o cadáver para a Fajã, tinham decidido sepultá-laem Santa Cruz. Paraimpedir que a família lá ficasse mais uma noite, tinham realizado o funeral às três da tarde. Meu pai, meus tios e meus irmãos já tinham chegado à Assumada e estavam na nossa casa. Tinham lá ficado pois meus irmãos ao entrar em casa, ao sentir a falta da mãe, tinham começado a chorar e de lá não queriam sair. Tinham-lhe pedido, para ele vir à frente, dar a triste notícia...

Eu já nem o ouvia... Uma enorme sobressalto e uma desmesurada angústia apoderaram-se de mim. Não podia evitar as lágrimas. Agora e pela primeira vez, sentia a terrível e suprema certeza de não voltar a ver a minha infortunada e dolente progenitora...

Passado algum tempo, na curva negra da Fontinha, surgia uma pequena multidão. Eram vultos desconexos, inseguros, desajeitadamente ambulantes, trajando de negro e de dor. Indecisos e tímidos, olhando de soslaio para a casa da minha avó, hesitavam e paravam... Eram meu pai, meus irmãos e meus tios e tias, a quem já se tinham juntado alguns vizinhos e amigos, partilhando a dor, a angústia e a mágoa, oferecendo préstimos e consolação.

E a casa da minha avó, de repente, encheu-se de gente, de pranto, de dor e de escuridão, como nunca. Era uma amálgama confusa, escura, dolente, medonha e hedionda. Choro, pranto e lamentos devoravam todos!

O meu vizinho retirou-se, passado algum tempo, com destino ao passal, onde, àquela hora, em flagrante contraste com o que se passava na sala da minha avó, bispo e padres se refastelavam regaladamente, saboreando um lauto e apetitoso jantar. Soube-se, mais tarde, que o prelado, notou a ausência do meu vizinho e, quando este entrou, interrogou-o, sobre as razões do seu atraso, com intenções canónicas e jurídicas de o repreender. Apenas quando ele explicou, sumariamente, a nossa tragédia e as razões porque nela se envolvera, Sua Excelência Reverendíssima lhe perdoou e, continuando o seu jantar, acrescentou piedosamente, referindo-se a minha mãe:

- Coitada! Depois do jantar vou rezar por alma dela!

E como os actos generosos de um bispo não devem ser ocultados, depressa se espalhou, por toda a freguesia, a notícia de que o senhor bispo, ao ter conhecimento da morte da minha mãe, rezara por alma dela. Anacronicamente, todo o beatério da freguesia como que invejou a "sorte" da minha pobre e desafortunada genetriz:

- Que sorte! - exclamavam umas para as outras, as beatas mais exageradamente beatas. - Até o senhor bispo rezou por alma dela! Foi direitinha para o Céu!

 

Nessa noite, não tivemos coragem de regressar à Assumada. Decidimos ficar em casa da minha avó. Como esta era pequena e os tios e tias eram abundantes, meu pai, meus irmãos, e eu aconchegámo-nos uns aos outros e acomodámo-nos no chão da sala.

Coube-me a mim, talvez por ser o mais pequeno dos maiores, dos que, na opinião de minhas tias, já podiam ficar sozinhos, assumindo a sua incondicional condição de órfãos, ficar ao lado de meu pai e sentir a dor e a desventura que ele agora, ao deitar-se, consciencializava e que, julgando que eu não ouvia, sintetizou num desabafo dorido e desastrosamente profético:

-"Ela vai fazer-nos tanta falta!..."

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publicado por picodavigia2 às 16:39

FRANK

Terça-feira, 18.06.13

Frank was born in Fajã Grande, Flores Island on June 5th, 1952. He was the last of six children of a poor and with few resources couple. Frank had always a difficult and hurting life. When he was two years old his mother died. So, he was brought home to his grand-mother and aunts. Three years later, he came back again to his father’s home. However his dad was seriously sick with mental problems and was interned in a psychological hospital, so he grew up with his oldest brothers and one sister.  During this time he had a hard and painful life, because even though a child, he must do all the hard farm jobs, like taking the cows to the fields, digging the land with heavy hoes, cutting firewood with a dangerous axe or the grass with a sharp sickle, bringing back the large bundles of grass or firewood and also ploughing the fields with a ploughshare pulled by oxen. He also had to do many other small tasks that prevented him to play and have fun, like the other children of his age. Some years later he left Flores Island, and went on a boat by the sea to São Miguel Island. This trip was very long and hard, during three days and three nights in an old and sickening ship. So he stayed some years in this Azorean island, living with his sister and brother-in-law. There was no land to work and no farm to explore because they lived in the biggest Azorean city, whose name is Ponta Delgada. Therefore Frank occupied his days helping his sister and studying. A few years later, bored whit life in the city and missing his birth island, he went back to Flores . He came back to the farm life. However now that he was a grown up man, he had to work harder than before, together with his two brothers. They took care of cows, cultivated fields, working heavy and hard.

But Frank’s life had to change from one moment to another. This happened because his aunt who lived in California adopted him. As a result Frank flew to the United States and moved in to his aunt home, in Vallejo California. There he started a new life as an American citizen: he continued his studies but soon after he began to work in various jobs: washing cars in a gas station, delivering pizzas, washing dishes in a restaurant, etc. Afterwards he graduated from Vallejo High School and the University of California at Berkeley. 

A few years later he visited Azores for the first time. After that, he got married for the first time and had a son – Victor. Later he got divorced, finished his studies, started teaching in a local school and during some time he lived alone until he met the love of his life - a beautiful Swedish/German descendant girl, Sharon, who he got married and had two children – Jacqueline and Garrett, who he was so proud of and lived joyfully in his new house in Livermore.

 

The vigorous and pointed rocks from the ground that we tread on together and cut up our bodies with deep scars turned into ice crystals, inert and superfluous.

That huge sheet of light that we deployed in the desert where once planted golden ears  and where the wind strength hide our face flew by craggy slopes and was lost forever in an unknown horizon.

The thin and obscure light that we light in dried and steriles tunnels never more will mix with the enigmatic dusk that daily we saw at the sun rise, near the sea.

The water of the seas and rivers where we sailed like as a strife and where we put the destinations of those who failed with the taste of the morning breeze, had changed into a barren, dry  marsh.

And now?...

It is not enough to open one deep hole on a slope everywhere and to point out with  a cross on the dust of the bloody and hurt ground.

The only thing that remains is to point always to the front and try to follow the light of hope that still survives.

 

As pedras pontiagudas e pujantes do chão que pisámos juntos e que nos dilaceraram o corpo com cicatrizes profundas transformaram-se em cristais de gelo, inertes e supérfluos.

Aquele enorme lençol de luz que desdobrámos no deserto onde outrora plantámos espigas doiradas e onde a força do vento nos obstruía o rosto voou pelas encostas escarpadas e perdeu-se para sempre num horizonte desconhecido.

A luz ténue e baça que acendíamos em túneis ressequidos e estéreis não voltou a misturar-se com o enigmático crepúsculo que diariamente víamos nascer à beira-mar.

A água dos mares e dos rios onde navegámos à porfia e onde despejávamos os malogrados destinos de quem caminhava ao sabor das brisas matinais, metamorfoseou-se num pântano árido e seco.

E agora?

Não basta apenas abrir mais um buraco profundo numa encosta qualquer e assinalar, mais uma cruz na poeira do chão dorido e ensanguentado.

Resta também apontar sempre para a frente e tentar seguir a luz da esperança que ainda sobrevive.

 

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publicado por picodavigia2 às 16:13

BRACÉU

Terça-feira, 18.06.13

Que nascia muito bracéu no mato da Fajã, que a sua apanha era uma espécie de dia de festa e que era excelente para fazer a cama ao gado no Inverno a fim de se tornar, depois, em estrume fertilizante para os campos agrícolas eu não tinha dúvidas. Além disso, também sabia que o bracéu era utilizado para o fabrico artesanal dos pincéis con que se caiavam as casas. Agora que o bracéu se chama Festusca jubata e que pertence à família dos Poaceae é que não fazia a mínima ideia, se não tivesse recorrido ao site da Universidade dos Açores, Base de Dados, Biodiversidade.

Ora o nosso Festusca jubata nascia e crescia no mato, logo ali por cima da Rocha, fazendo jus do seu nome, pois partilhava-o com o do próprio lugar onde florescia. Como as terras onde desabrochava eram grandes e ficavam longe das casas, a sua apanha, corte e acarretamento demorava um dia inteirinho. Lá se partia de madrugada, em ranchos, os homens ainda noite escura, carregados com foices, bordões, gavelas de espadana, ganchos de ferro e cordas, enquanto as mulheres, acompanhadas pelas crianças, seguiam já mais ao romper do dia, derreadas ao peso dos cestos a abarrotar de comida, transportados à cabeça sobre grossas rodilhas, arrastando os fedelhos pela mão.

A manhã era de ceifa contínua, árdua e cansativa que o Festusca jubata não era de brincadeira. Era rijo e escorregadio e as foices não eram lá grande coisa, por vezes, mal amoladas e mais adequadas para cortar manteiga do que bracéu. Depois era necessário fazer as paveias, amarrá-las em molhos com as folhas de espadana e acarretá-los para o cimo da rocha, para junto do arame, com uma pausa para o almoço, pelo meio.

Terminada a ceifa, após a amarração, os pesados molhos do Festusca jubata eram acarretados, colocados e empilhados no cimo da Rocha, junto ao arame. De imediato uns desciam a rocha em passos rápidos a fim de, colocando-se estrategicamente junto ao arame no cruzamento da Ribeira, retirassem os molhos atirados pelo arame, para que nenhum dificultasse o deslizar do que se lhe seguia. Mais tarde seriam colocados em carros de bois e transportados para as “casas velhas” ou de arrumos, onde eram guardados até serem utilizados no Inverno

O deslizar contínuo e ininterrupto de dezenas e dezenas de molhos de bracéu no arame proporcionava um espectáculo deveras inolvidável. Os molhos colocados lá no alto um a um, dançavam airosamente ao longo do arame, umas vezes atingindo enorme velocidade, outras deslizando vagarosamente e, por vezes até paralisando por completo a meio do trajecto. Tal percalço exija que fosse arremessado com força gigantesca um outro molho que com o seu impacto, batendo fortemente naquele que havia parado a meio do arame, o havia de voltar a porem movimento. Sóque, por vezes a vontade de resolver o imbróglio era tanta e a força de arremesso tão exagerada que os molhos, ás vezes até em conjuntos de dois, três ou mais que ali se iam acumulando, paralisados, ao chocarem uns com os outros, provocavam uma espécie de repentina e maravilhosa chuva de folhinhas de bracéu que se iam diluindo e perdendo sob o verde dos socalcos e das ravinas e o negro pétreo dos andurriais.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:05

O ARAME DA RIBEIRA

Terça-feira, 18.06.13

Outrora, subir a Rocha sobranceira à Fajã, um pungente e doloroso martírio! Descê-la, uma desafiadora e fascinante aventura! Mas descê-la carregando molhos de erva, feitos, bracéu, ou lenha ou outro carregamento qualquer, uma pungentemente martirizada e castigadora desventura! (Hoje, subida e descida fazem-se por motivações de ordem turística, numa louvável tentativa de reabilitar, recuperar e manter antigos trilhos pedestres, dos quais este é um dos mais delirantemente paradigmáticos.)

 Com mais de 300 metros de altura, a rocha era, naqueles tempos e continua a sê-lo, actualmente, um alcantil escarpado, abrupto, pétreo e a pique, possuindo apenas uma vereda, um aclive íngreme e desnivelado, com trinta e duas voltas desenhadas em ziguezague nas fragas negras e enrijecidas, somando degraus atrás de degraus, intercalados com alguns atalhos mais rectilíneos, vários descansadeiros, algumas furnas e uma inesgotável fonte de água fresca, saborosa e retemperadora de forças – a Fonte Vermelha.

A rocha, outrora, era o único meio de acesso aos matos onde abundavam pastagens luxuriantes e onde para além da erva tenra e fresquinha que alimentava bovinos  e ovinos, sobretudo nos meses quentes do verão e de onde também se extraía lenha, fetos, cana roca e bracéu e outros bens necessários mas difíceis de acarretar até ao povoado, face às dificuldades inerentes ao descer aquelas perigosas veredas, carregando às costas pesadíssimos molhos. Bastavam as latas de leite, os cestos de lã e as ovelhas em dia de fio, que estes não podiam ser carregados de outra forma.

Como “a necessidade aguça o engenho” foi desta dificuldade que nasceu o recurso ao arame para lançar os produtos pela rocha abaixo, com destaque para o mais frequentemente utilizado – o que ligava o cimo da Rocha à Ribeira.

O arame era uma enorme extensão de fio de aço bem esticado e preso nas extremidades a enormes vergas de madeira, umas lá no cimo da rocha e outras cá em baixo, numa espécie de espojadoiro, para tal construído. O arame formava com a rocha e o caminho paralelo à Ribeira e que dava para a Figueira, uma espécie de triângulo rectângulo do qual constituía como que uma real e verdadeira hipotenusa. Assim, fixando-se rijamente de alto abaixo da rocha em diagonal, os molhos, presos por fortes ganchos de ferro em forma de S ou de C, eram nele colocados, um a um e deslizavam vagarosa mas airosamente, como que dançando e balouçando-se ao longo do arame, ao sabor do vento e da gravidade, até atingirem, por vezes, enorme velocidade, e chegarem cá abaixo, donde eram imediatamente retirados.

Na Fajã, ladeada a oeste por uma infinidade de rochas, existiam pelo menos mais três ou quatro arames: um na Rocha da Ponta, um na dos Paus Brancos e outro no Cabeço da Rocha, mas o principal e mais utilizado era realmente “o Arame da Ribeira”.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:51





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