PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O SEMINÁRIO MENOR DE PONTA DELGADA NA DÉCADA DE CINQUENTA
O primitivo Seminário Menor de Santo Cristo, criado em Ponta Delgada na segunda metade da década de cinquenta, como uma espécie de sucursal do Seminário de Angra, situava-se na Avenida Gaspar Frutuoso, logo no início da mesma, à direita de quem a subia, nas traseiras do semicircular jardim Antero de Quental. O acesso ao vetusto e emblemático edifício, outrora sede dos frades da Companhia de Jesus, que em tempos idos, ali haviam fixado residência e construído escola, fazia-se por um alto e rígido portão, que raramente se abria e através do qual se entrava num grande pátio, feito de gigantescas pedras basálticas, rectangulares, algumas já rilhadas pelo tempo e recobertas de um musgo esverdeado e sombrio. Ao fundo do pátio e à direita de quem entrava, uma porta de madeira esbranquiçada, com vidros encastoados em taliscas brancas, muito limpos mas embaçados, dava acesso ao interior do edifício, onde se situava um pequeno hall. Ao lado direito ficava a sala de visitas, onde os seminaristas de São Miguel, às quintas e aos domingos de manhã, recebiam as visitas dos familiares. Ao hall de entrada, seguia.se um amplo e vasto corredor, ladeado de paredes muito brancas e altas, ao fundo do qual e do lado direito se situava o quarto do Dr Simão Leite de Bettencourt, director Espiritual e professor de Religião. O corredor terminava logo a seguir, formando esquina com um outro muito semelhante e posterior. Era no vértice desta esquina que ficavam duas camaratas destinadas aos alunos do segundo ano, no meio das quais se encastoava um velha e decrépita arrecadação que servia de porão para guardar as malas e baús dos alunos que ali dormiam. As camaratas eram resultantes da transformação de pequenos e antigos quartos, comportando apenas uma dúzia de camas, cada uma. Por isso alguns alunos do segundo ano eram encaminhados para a camarata do primeiro, bem maior e mais ampla. No segundo corredor, que seguia na direcção oeste – leste, tinham lugar as salas de aula: à direita a dos alunos do segundo ano, mais alta, mais clara, mais bafejada pelo ar, com várias janelas, cercadas com varandas, viradas para o jardim interior ou claustro; à esquerda a sala de aula destinada aos alunos do primeiro ano, maior, mas mais escura, mais acabrunhada, apenas com duas janelas que, apesar de enormes, lhe condicionavam, irregularmente, a claridade interior. Este corredor terminava numa espécie de T, prolongando-se, à esquerda, para o refeitório e para a cozinha e à direita, para uma enorme varanda que raramente se abria, e que, paralela à sala do segundo ano, projectava uma vista exterior para o jardim e para a parte sul da cidade. A este corredor, seguia-se um outro do qual se separava por uma descomunal e gigantesca porta. Era o corredor mais pequeno, mais escuro, uma vez que a luz apenas lhe entrava por uma pequena clarabóia encastoada no tecto e também o mais enigmático do edifício e onde os seminaristas nunca podiam parar. Nele ficavam, do lado direito o quarto do padre José Franco e a reitoria e à esquerda os aposentos episcopais, cujas portas estavam sempres fechados, pois destinavam-se exclusivamente a receber o prelado diocesano, quando visitava ilha do Arcanjo. Este corredor, através duma porta que, ao contrário da sua antípoda, estava sempre aberta, desembocava num outro, o maior, o mais claro e o mais ocupado pelos alunos, uma vez que servia, simultaneamente, de sala de recreio, de sala de estar, de salão de festas e até para projecção de filmes, o que raramente acontecia.
Na parte norte, este enorme corredor terminava numa grande varanda, voltada para um pequeno pátio interior, oposto ao do claustro, situado na parte setentrional do edifício, entre o refeitório e a sala de estudo e que também servia de campo de futebol, para os mais “toscos”. Era aí, suspensa da parede exterior por uma adequada ganchorra, que ficava a sineta ou “cabra” que, tocada à vez e semanalmente por um aluno mais velho, indicava o início e o termo das aulas, das horas de estudo, dos recreios, das refeições, dos tempos destinados à missa e à oração e a todas as outras actividades em que os seminaristas se envolvessem. Seguindo este corredor na direcção Norte – Sul, do lado direito apenas havia uma porta, aquela que comunicava com o corredor anterior, a seguir à qual o primeiro corredor amplamente se prolongava, fazendo fronteira com a reitoria e com o pátio interior ou claustro. Por sua vez do lado esquerdo, ligava-se a uma pequena escadaria que dava acesso ao salão de estudo, à camarata do primeiro ano e ao quarto do padre Agostinho Tavares. A seguir a esta escadaria, um quarto onde o cabeleireiro assentava arraiais, onde, às segundas-feiras, se colocavam as sacolas com a roupa suja à espera de que as lavadeiras, na sexta-feira seguinte as viessem entregar lavadinha e que também, de vez em quando, era adaptado a quarto de hóspedes e uma outra pequena arrecadação, contígua à capela-mor da vetusta igreja, pejada de arcaboiços de madeira que serviam de roupeiro geral, pois era ali que todos os alunos guardavam os fatos e as batinas, sendo que estas últimas, poucos as tinham, uma vez que não eram obrigatórias. O salão ou corredor, embora separado por uma ampla porta, prolongava-se enorme, comprido, com o piso em mosaicos, paralelo à igreja, terminando, ao fundo, num pequeno cubículo, onde havia uma escadaria, finda a qual, através duma porta situada à esquerda do frontispício da igreja de Todos os Santos, existia um outro acesso ao exterior. Por sua vez, o salão de estudo, situado na extremidade mais norte do edifício, postava-se na direcção sul-norte e era muito baixo, muito comprido, muito velho, mas muito claro porque ladeado de ambos os lados por um número quase infinito de pequenas janelas. Era a meio desse salão, do lado direito, que havia uma porta que comunicava directamente com a camarata do primeiro ano. Esta camarata que se estendia na direcção oeste – leste era o espaço mais comprido e estreito de todo o edifício, um autêntico corredor sem continuidade, de estrutura semelhante à sala de estudo e que se prolongava até à rua de Santana, constituindo a parte mais oriental do edifício.
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SE NÃO FOSSE O BRASILEIRO
As primeiras aulas de cada ano lectivo destinavam-se, geralmente, ao conhecimento recíproco dos alunos e do professor, o qual, no fim do tempo indicado no horário e no espaço que lhe era reservado, gatafunhava no livro do ponto: “Apresentação professor/aluno”. No entanto, alguns professores, sobretudo os que consideravam aquela tarefa precursora de um eficiente relacionamento pedagógico que decerto havia de reflectir-se positivamente na aprendizagem dos alunos durante os três longos períodos lectivos, dedicavam-lhe mais uma aula, registando, desta feita no livro de ponto: “Apresentação aluno/professor”. Outros, com a denodada intenção de fazer “render o peixe”, chegavam a prolongar a referida tarefa por uma terceira aula. Neste caso, porque o número de alunos por turma era bastante elevado, muito simplesmente escreviam no dito livro:”Continuação da aula anterior”.
No ano do meu quadragésimo quinto aniversário, numa dessas aulas - confesso que geralmente dedicava àquela tarefa apenas uma aula - ao apresentar-me, esqueci-me de referir um dado que os alunos consideravam importante – a idade. Não me perdoaram o olvido. Foi um garoto de olhos vivos e ar de espertalhote, sentado na fila da frente, que me exprobrou de imediato:
- E a idade?! Esqueceu-se da idade. Que idade é que o “Setô” tem?
Lamentei o meu imperdoável esquecimento. Depois, como que a querer recompensá-lo pela sua atenção e perspicácia, desafiei-o:
- Olha lá! Que idade é que achas que eu tenho?
O Rui, era assim que se chamava o arguto, olhou para mim de alto abaixo, avaliou-me com denodado rigor e atirou sem hesitação:
- Quarenta! Aposto que “Setô” só tem quarenta anos.
Fiquei lisonjeado mas, com a maior das inocências, retorqui:
- Mais!... Tenho mais…
Eis senão quando, lá do fundo da sala, um sonso mas bargante mocetão levantou-se e, de rompante, antes que alguém alvitrasse alguma alternativa mais plausível, gritou exasperadamente:
- Cinquenta! Cinquenta!
Fiquei perplexo. Eram cinco a mais. Mas já que me dava cinquenta, decidi continuar, com um misto de expectativa e jocosidade, aquela espécie de leilão pedagógico que ali se iniciava, a fim de tentar descobrir até onde a minha aparência anatómica me poderia levar, perante o inocente mas sincero julgamento dos meus jovens interlocutores. Por isso, em ar de desafio, de maneira que sentissem que eu estava a falar a sério e não descortinassem a minha perplexidade, insisti:
- Mais… Mais…
Uma miúda, tímida, hesitante e como que a arrepender-se a meio da conversa, lá disse:
- Cinquenta e… três?
Logo uma outra, sentada ao seu lado, muito lesta a corrigi-la:
- Cinquenta e cinco.
Como eu continuasse a insistir no “mais e mais” de forma aparentemente convicta, a fasquia foi subindo assustadoramente. Ultrapassou os sessenta, sessenta e cinco, sessenta e seis, sessenta e oito e fixou-se, provisoriamente, nos setenta.
Confesso que me arrepiei dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que me arrependia de ter provocado semelhante imbróglio, do qual eu era obviamente o culpado número um. Temia, seriamente, que aquilo não parasse por ali…
Foi então que um brasileiro, o único que havia na sala, levantou o braço e pediu autorização para falar. Como lhe acenasse afirmativamente, ele, com um misto de seriedade, de convicção e de certeza, pôs, finalmente, a devida água na fervura, esclarecendo definitivamente a amargosa e desconfortante trapalhada em que eu, minutos antes, me havia metido:
- Puxa, professor! Não pode ser! Você está a mangar co’a gente. Então meu avô tem sessenta e cinco e você parece muito mais novo do que ele.
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FIAMBRE E MORTADELA
O fiambre, curiosamente, é um prato tradicional da Guatemala, que é preparado e consumido anualmente para celebrar o Dia dos Mortos, havendo relatos pouco fidedignos que esse costume existiu, outrora, nalgumas regiões do norte da Península Ibérica, nomeadamente, em Recarei-Revanches, na Galiza. É uma salada, servida fresca, onde predominam carnes variadas e que pode ser constituída mais de cinquenta ingredientes.
O fiambre começou, pois, a partir duma tradição da Guatemala, de levar aos familiares mortos os seus pratos favoritos, no Dia de Finados. Este prato varia, de família para família, sendo baseado em receitas, tradicionalmente, transmitidas às gerações mais jovens.
Mas o fiambre que hoje consumimos é produzido a nível industrial, pelo que não tem, nem de longe nem de perto, o sabor e, sobretudo, a qualidade daquelas receitas tradicionais e, nalguns casos, até contém ingredientes pouco saudáveis, uma vez que, assim como a mortadela e até as salsichas, o fiambre têm, na sua composição, alguns conservantes prejudiciais à saúde humana. Os nitritos e os nitratos, por exemplo, são altamente cancerígenos, pois quando chegam ao estômago transformam-se em nitrosaminas, responsáveis pelo aumento da incidência de cancro no estômago e bexiga.
De facto, esses produtos têm muito menos gordura e, por isso, são mais saudáveis no sentido de não fazerem mal ao coração e artérias, mas não deixam de conter esses conservantes. O ácido ascórbico, vulgarmente conhecido por vitamina C, que o fiambre e a mortadela contêm, é um poderoso antioxidante, e tem o poder de anular o efeito cancerígeno das nitrosaminas, pelo que, para as pessoas saudáveis, estes produtos podem ser consumidos, mas com moderação. No entanto para os doentes que sofrem de insuficiência renal estão proibidos. Excepção feita para o fiambre e a mortadela feita de peito de peru.
A mortadela, de origem italiana, é feita de carne de porco e cubos de gordura, geralmente do pescoço do suíno. Os temperos usados incluem pimenta preta, murta, noz-moscada e coentro, que lhe dão um sabor típico.
Existem várias teorias sobre a origem da palavra mortadela. A primeira indica que o recheio de porco que este enchido contém era, no passado, moído finamente, de forma tradicional, até chegar a uma consistência de goma, sendo usado para este efeito um almofariz, conhecido em Italiano como mortaio. O nome poderia, assim, ser proveniente da utilização deste instrumento. A segunda teoria sugere que o nome mortadela possa ter derivado de uma salsicha romana temperada com murta, em vez de pimenta, designada pelos romanos como farcimen mirtatum. Há ainda uma outra teoria, que considera que a origem deste nome está relacionada com a indústria alimentícia, que retira a matéria prima para o fabrico da mortadela, a carne do boi, da região dorsal do animal ou seja, da parte do corpo do animal que leva uma martelada e morre nos matadouros, o que daria o nome "mortadela".
A actriz italiana Sophia Loren é considerada madrinha do produto, após ter estrelado um filme chamado La Mortadella em 1971. Correm rumores, embora pouco prováveis, de que será feita uma nova realização do mesmo filme, em que a protagonista será a actriz galega, Carlromer Otero.
Infelizmente este delicioso e apetitoso pitéu que pode ser consumido só, ou introduzido em sandes ou ainda, enrolado com uma fatia de queijo, para mim, está radicalmente proibido, por sofrer de insuficiência renal.
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A MINHA TOUCADA
Meu pai tinha uma vaca chamada “Toucada” de que eu gostava muito. Tinha um andar elegante, um aspecto altivo e era muito mansa. Era malhada de branco e preto, mas um preto acastanhado e muito luzidio. A cabeça também era preta, com uma grande mancha branca na testa, a qual lhe valera o epíteto de “Toucada”.
Eu adorava-a e, por isso, fiquei muito triste quando o meu progenitor decidiu embarcá-la, para Lisboa, para “ ir ver os senhores de bengala”.
Mas a decisão estava tomada e a vaca entrou, de imediato, em fase de engorda. Erva fresquinha todos os dias, maçarocas de milho de vez em quando, não saía do palheiro, não se lhe tirava mais leite e, além disso, nunca mais puxou o arado ou o corção, tarefas, agora, atribuídas à Benfeita, não habituada à canga, pois era a vaca de estimação de meu pai.
O empenho na engorda da vaca, no entanto, intensificou-se excessivamente. Cuidava meu pai que, se a engordasse bem, ela valeria mais dinheiro.
Alguns dias antes da chegada do Carvalho, o Portela, de Santa Cruz, como de costume, veio à Fajã arrolar gado para o próximo embarque.
Meu pai, meus irmãos e eu abdicámos das tarefas do campo e, em ar de festa, esperamo-lo sentados à porta da sala. O homem, ao chegar, entrou no palheiro e observou minuciosamente a vaca. Apalpou-lhe as virilhas e a rabada, passou-lhe a mão sobre o dorso duas ou três vezes, abraçou-a pelo pescoço. Depois, com voz convicta perante a expectativa de meu progenitor, sentenciou: “Sim senhor! Bonito animal! Um conto."
Meu pai ficou um pouco perplexo e hesitante. Aproximou-se mais da vaca, anafou-lhe o pêlo com muito carinho, fez-lhe umas festas na cabeça e, argumentando que estava muito pesada, com o pelo muito luzidio, pediu-lhe mais cem escudos.
Como o Portela teimasse em não dar nem mais um escudo, meu pai ainda arriscou: “Mil e cinquenta..." Mas o Portela persistia no seu carracismo e a Toucada foi vendida por mil escudos.
Na véspera do dia de vapor meu pai decidiu que seria eu a acompanhá-lo a Santa Cruz, para a embarcar. Partimos alta madrugada: eu à frente, aguentando a corda da Toucada, meu pai atrás, tangendo-a com uma aguilhada, para que ela não se atrasasse no longo caminho que teríamos de percorrer, até Santa Cruz. Ao chegar aos Terreiros, porém, a vaca já ostentava indícios de grande cansaço. Subíramos a rocha da Fajãzinha pela ladeira da Figueira, para encurtar caminho e parámos junto à Casa do Estado. Meu pai tirou, de uma das mangas da froca que trazia ao ombro, meia dúzia de maçarocas de milho que a Toucada comeu frugalmente. Da outra manga tirou um pedaço de pão de milho e outro de queijo, repartiu-os comigo.
Terminado o bródio, reiniciámos a longa caminha até Santa Cruz. Só ao descer a Ventosa avistámos o Carvalho, ancorado na enorme baía da Ribeira da Cruz.
Quando chegámos a Santa Cruz já o Sol ia muito alto. A vila vivia um burburinho excitante e belicoso. Homens e mulheres, vindos de toda a ilha, dirigiam-se, instintivamente, para o Boqueirão. Era dia de “São Vapor”!
O Portela havia montado escritório em cima do cais, ao lado das dezenas de grades onde estavam empacotadas as latas com a manteiga que a ilha produzia e exportava. Tivemos que aguardar a nossa vez. Eu, agarrando a corda da Toucada, observava as primeiras barcaças que chegavam a transbordar com malas e passageiros. Antes da lancha atracar, de cima do cais, lenços brancos abanavam em direcção ao mar e eram correspondidos com acenar de mãos dos que vinha na embarcação. Depois, era a confusão geral: uns abraçavam-se, outros choravam e outros simplesmente cumprimentavam-se. O cais era um mar de gente, misturada com animais, caixas, caixotes e malas. Tudo o que o “Carvalho” descarregava e o que havia de carregar...
A nossa vez chegou. Meu pai aproximou-se do Portela e este puxou a corda da Toucada. Observou-a minuciosamente, como que a certificar-se de que era a vaca que, dias antes, observara. Depois, um dos seus ajudante pegou num ferro em brasa e cravou-o num dos quartos da vaca. A pobrezinha emitiu um forte rugido e começou aos coices, tentando uma fuga louca, sem que eu a pudesse aguentar. Meu pai agarrou-a e trouxe-a novamente para junto do Portela. Este depois de preencher uns papéis onde constava, entre outros elementos, a cor, o peso e o número com que a haviam marcado, soltou-a da corda que eu trazia de casa e amarrou-a com uma corda nova. Um empregado, aproximando-se, puxou-a abruptamente, enquanto ela, estranhando o novo dono e o ambiente que se vivia sobre o cais, teimavaem movimentar-se. Ohomem puxou-a com mais força, deu-lhe uns fortes pontapés na barriga e a pobrezinha teve mesmo que andar. Começava ali o seu cruel cativeiro e a sua caminhada para a morte. Senti uma enorme dor e comecei a chorar agarrando-me ao seu pescoço. Ela também berrava, de dor e desespero, sentindo não só a violência com que era tratada mas como que entendendo a inevitável separação do seu dono e amigo. O homem aproximou-a da borda do cais, enlaçou-lhe uma lona por baixo da barriga e prendeu-a num guindaste, que de imediato a levantou, colocando-a dentro do barco onde já se encontravam muitos outros animais. Eu chorava desalmadamente...
Meu pai dirigiu-se para junto do Portela. Esperou algum tempo até que o homem lhe deu uma nota de mil escudos. Pedi-lhe para a ver. Era a primeira vez que eu via uma nota de mil escudos!...
Algum tempo depois, o barco que levava a Toucada, repleto de animais que se empurravam e atrapalhavam uns aos outros, partiu. Lá ia a minha Toucada comprimida entre dois enormes touros. O barco foi-se afastando e a mancha negra e branca da Toucada foi-se desvanecendo, até eu a perder de vista, enquanto lágrimas corriam de meus olhos, cada vez mais abundantes. Meu pai, compreendendo a minha dor e disse-me que voltaríamos pelos Lajes para comprar outra vaca.
Regressámos, pernoitamos na Lomba e viemos para as Lajes, onde meu pai comprou outra vaca. Era mansa, toda preta, com os chifres arredondados, boa de leite. Oitocentos escudos. Meu pai ficou feliz e eu triste porque a achava tão feia, comparada com a minha Toucada, que aquela hora, na abalizada opinião do meu progenitor já devia estar no Pico ouem S. Jorge.
Atravessámos novamente a ilha de lés-a-lés, com a vaca, que vezes sem conta, se recusava a andar. Chegámos a casa já de madrugada. Durante a viagem e nos dias seguintes lá me fui afeiçoando à Trigueira, (assim chamámos à nova aquisição) mas a verdade é que nunca esqueci a minha Toucada.
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MITOS E LENDAS
Desde os tempos mais remotos, quiçá anteriores ao paleolítico, que o ser humano revelou sentimentos de espiritualidade transcendente, embora excessivamente dominados, por um lado pela sua condição animal e, por outro, pela superstição.
A esses sentimentos estão necessariamente associadas emoções e actos que, apesar de ainda revelarem acentuado cunho tipicamente animal, de alguma forma se transferiram para agentes ultra humanos e sobrenaturais, originando mitologias diversas e religiões diversificadas.
Nesses tempos, o homem, ainda não dominador do conhecimento do mundo e dos prodígios naturais de que se rodeava, presenciava fenómenos que, apesar de simples na sua origem, não podia entender, nem compreender ou explicar as suas causas, dificilmente admitindo o movimento e a acção sem vontade e consciência. Tudo era motivo de admiração e medo: desde a deslocação dos astros no espaço e as correrias loucas dos meteoritos ao simples transbordar da água do leito de um rio ou uma nascente a brotar da rocha. Daí a necessidade de explicar estes fenómenos, através duma “sobrenaturalização” dos mesmos e a tendência para simplificar tudo o que transcendia os limites da compreensão e do entendimento e de atribuir a todos esses fenómenos uma dependência das vontades de forças estranhas e sobrenaturais, responsáveis por tudo o que de bem ou mal ia acontecendo, através dos tempos, sobre a face da Terra.
Esses agentes, muitas vezes eram amigos porque provocavam o bom, o sublime, o agradável e o útil. Outras, porém, eram maus, terríveis, pérfidos e assombrosos, porque eram a origem e a causa de todos males, desgraças e destruições.
A esperança de poder apaziguar estes últimos fez surgir a ideia de sacrifício, enquanto da intenção de mover os primeiros a agirem mais frequente e proficuamente, nasceu a oração. Assim surgiram criações míticas e religiosas, cuja forma e conteúdo variaram substancialmente, ao longo dos séculos e dos milénios, segundo as características dos meios e os costumes dos povos.
Estas criações existentes, então, em quantidades impossíveis de conhecer ou de contar, originadas sobretudo a partir de esforços frustrados, sucessivos e contínuos de compreensão e entendimento da natureza e dos fenómenos em que era profícua, foram marginalizadas, na sua globalidade, pela História e pela Lógica. Apenas sobreviveram as que, retidas na memória ou gravadas em pedras e tábuas, marcaram de tal modo a conduta do ser humano, os seus princípios e a sua filosofia, a ponto de se tornarem património de grandes aglomerados culturais e de grandes civilizações, que nelas procuraram a razão de ser da sua existência e, também, da sua fé.
Destas últimas apoderou-se a História e chamou-lhes mitos e lendas, enquanto as primeiras, não menos mitológicas, se perderam na torrente imperturbável e fatídica do tempo. Conhecê-las impossível! Imaginá-las será percorrer montanhas e planícies, saltar precipícios e ravinas, conhecer povos e civilizações, pesquisando culturas, costumes e tradições, alterando os limites da razão, da lógica, do pensamento humano e da própria História. Será investigar o impossível, conhecer o infinito, dominar o transcendente e, sobretudo, penetrar nos domínios da fé e da crença.