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RITINHA

Quarta-feira, 03.07.13

No início de um novo ano lectivo, caldeada com matulões de ar vadio e entrelaçada entre moçoilas empavesadas, entrou-me pela sala dentro uma pequerrucha, que a muito custo se ia libertando de atropelos e repelões mas que ultrapassava com denodo e subtileza os obstáculos babélicos, subjacentes à primeiro entrada em tão desconhecida destinação.

A Ritinha – assim chamavam à sirigaita - era na realidade tão pequena que, quando sentada, acima do tampo da carteira se lhe divisava apenas o rosto azevieiro, apoiado em ambas as faces por umas mãozitas, dispostas em forma de concha, muito branquinhas e maneiras, enquanto as pernas balouçavam exageradamente em frustradas e improfícuas tentativas de chegar ao chão.

Mas não era apenas o tamanho que a diferenciava dos restantes. Cedo me apercebi que em perspicácia e inteligência era das maiores. Rosto esbranquiçado e franzino, cabelo muito negro e ondulado, com duas madeixas a destaparem uns olhitos muito escuros, muito atentos e afeitos, consubstanciava a um interesse e atenção permanentes uma gigantesca capacidade de aprender e uma desmesurada apetência de estudar.

Talvez porque sentisse que sendo a mais pequena necessitaria de maior protecção, talvez pelo seu ar angélico e doce, talvez pela ternura que transparecia do seu olhar e da firmeza que trazia nas suas atitudes, talvez por isto e por aquilo, afeiçoei-me excessivamente a ela, gerando-se entre nós uma amizade recíproca, uma consideração mútua e uma estima emparelhada. A garota perdia-se e achava-se por estar a meu lado e conversar comigo. Tal enlevo provocou-lhe o hábito de todos os dias, terminada a aula, enquanto preenchia o sumário, assinava o ponto ou arrumava a pasta, vir ela, ansiosa e expectante, postar-se junto à minha secretária, em bicos de pés e, com um misto de vergonha e à vontade, extravasar:

- Professor, hoje tenho uma coisa para lhe dizer – e todos os dias trazia algo de novo, de diferente, sob a forma de notícia, que necessariamente partilhava comigo. Desde o gato que lhe tinha arranhado a cara até ao Satisfaz Plenamente que tirara em Inglês, passando pelo filho da vizinha que fora tomar uma vacina e gritara imenso ou por um rapaz do 6º I que lhe deitara a língua de fora. Tudo, mas mesmo tudo, me caía em catadupa sobre a mesa.

Ouvia-a com atenção, carinho e enlevo, pese embora muitas vezes me atrasasse excessivamente. E não é que me habituei de tal modo à bisbilhotice da pequerrucha que por nada deste mundo trocava tão denodado contubérnio!

Certo dia a Ritinha aproximou-se mais tímida e hesitante do que nunca. De imediato cuidei que algo de estranho a tivesse contrariado. Mas não. A novidade lá estava e saiu jactante e convicta:

- Professor, hoje tenho para lhe dizer…  que nada tenho para lhe dizer.

 

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publicado por picodavigia2 às 16:41

EU SOU DO MAR

Quarta-feira, 03.07.13

(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

Água: mar: lonjura...

Sangue e força

da vida!

Meu caminho às avessas,

Desaguado na terra.

 

Não reneguei.

Hei-de tornar!

 

 Pedro da Silveira

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publicado por picodavigia2 às 15:47

A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS

Quarta-feira, 03.07.13

(UM CONTO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

 

Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.

Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pequenos pzinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe.

A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando.

Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo.

Depois disso a menininha caminhou de pés nus – já vermelhos e roxos de frio.

Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão.

Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.

Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria!

Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso.

Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo.

Sim: nisso ela pensava!

Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior.

Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão.

O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.

Suas mãozinhas estavam duras de frio.

Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz!

Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se.

Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha…

Que luz maravilhosa!

Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa.

Como o fogo ardia! Como era confortável!

Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.

Riscou um segundo fósforo.

Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito!

Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.

Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante.

Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo.

“Alguém está morrendo”, pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela cala, uma alma subia para Deus.

Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.

 - Vovó! – exclamou a criança.

 - Oh! leva-me contigo!

Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar!

Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!

E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tornou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações – subindo para Deus.

Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.

O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver.

A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. – Queria aquecer-se – diziam os passantes.

Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano­ Novo.”

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publicado por picodavigia2 às 15:29

O ESPIRRO

Quarta-feira, 03.07.13

(CONTO POPULAR DA FAJÃ GRANDE)

 

O conto que a seguir transcrevo era um daqueles que ouvi tantas e tantas vezes em criança e do qual me havia, parcialmente, esquecido. Em boa hora o recolheu, entre 1941 e 1951, Pedro da Silveira, o mais ilustre fajãgrandense de sempre, poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral, o recolheu e divulgou esta preciosidade, publicando-o na Nova Série da Revista Lusitana, nº 7, 1968, permitindo-me assim avivá-lo na memória de quantos, como eu, o ouviram e dá-lo a conhecer.

Pedro da Silveira recolheu-se, na sua originalidade pura e simples, com modos, palavras e ditos utilizados, nas Flores. Transcrevo-o, aqui, tal qual como aquele etnógrafo o reproduziu, na sua forma original, com palavras e expressões então utilizadas na linguagem diária fajãgrandense e a que eu, tomei a liberdade, de acrescentar um pequeno e esclarecedor glossário.

 

“Era ua vez além dos más um casal, ele chomado Nicolau, ela já nã se sabe, só que era de mum mau génio, sempre a atazanar o pobrezito, que aquilo nunca se viu mulher de tã má pinga, nã havia nada que fazer com ela, sempre com tirapuxas, sempre a peleijar, na vizinhança nã na podiam ver nin pintada, era temivle, da pel’ do eiramá. Como o Nicolau a aturava todos se admiravam e por isso ainda más diziam bem dele, um home bem criade com toda a gente, e curzidozo como aí há poucos.

Pois vai um dia, mal o home chegou a casa, horas da ceia deveram de ser, por um coisa de nada os estraloiços e arrebate daquela bisca malina! A pontos que se desintinderam de todo, nem se sabe que ele teve que a malhar, só que a fim dua peleija que parecia vir tud’abaixo, assentaram devedir quanto tinham dentro in casa, cada um p´ra seu lado e sim más se falarem. E como só havia ua barra, o modo de também a devedirem foi por um tabuão pelo meio da cama debaixo arriba, quer-se dezer da tarje aos pés, e cada um a dormir de sua banda. E este amanho durou somanas e somanas, ua grandeza de tempo. O demonho da mulher bem se metia, ora braba ora más à mansa, dia in dia más mansa que brada, mas o Nicolau boca calada, nin ua nin duas, nã le dava troco.

E deu-se antão o caso que andando ele lá nos seus amanhos das terras apanhou ua molhadura e daí veio ua defluxama e uma tosse que o pobre levava o dia naquilo, o dia e a noite, a tossir e a ‘spirrar. Até que uma dessas noites, deitados cada um deles de sua banda da cama, o home deu um tal espirro que a mulher, agora já com pena dele, nã s’aguentou más e disse:

- Deus t’ajude, Nicolau.

Ele ainda quis fazer que nã tinha oivido, que aquilo nã era consigo, mas ao despous intindeu que já era bastante p’ra castigo dela, e Antão respondeu-le:

- Ó mulher, se é do coração tira-se já o tabuão.

E tiraram-no e quanto se sabe e deve ser vardade daí in diente nunca mais hoive inticas nin guerras entre os dous.”

 

Glossário: - Era uma vez além dos más – expressão usada no início dos contos.

                  - Nã – não.

                  - Mum – muito.

                  - Tã – tão.

                  - Temivle – temível.

- De tã má pinga – de tão mau carácter ou mau feitio.

- Tirapuxas – discussões.

- Da pel’ do eiramá – parecida com o diabo.

- Bem criade – educado.

- Curzidozo – perfeito no trabalho.

- Estraloiços – extravagâncias.

- Bisca malina – pessoa de mau feitio.

- A pontos que – a dada altura.

.- Dua – duma.

- Barra  - cama.

- Tarje – cabeceira da cama.

- Uma grandeza de – muitíssimo.

- Demonho – demónio.

- Defluxama – grande constipação.

- Inticas – intrigas.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 00:35





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