PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ACABADO, MAS NÃO TANTO
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Agora restam-me só dois dentes
e a vista já não é o que antes era;
às vezes sofro de azias e náuseas
e vêm dias, como hoje, em que nem reparo
nas mulheres em flor que passam a meu lado.
É Fevereiro ainda, mas o tempo
é como se já fosse a Primavera:
um dia de sol, com flores coroando árvores
no jardim à beira de que estou parado
esperando um autocarro que não chega mais.
Olho as árvores enflorando, a relva verde-tenro,
e também uma nuvem que o sol da tarde
faz mais clara no azul claro do céu.
Vejo isto, e vendo-o esqueço
os dois dentes que só tenho, um deles cariado,
a vista baça e tudo o mais que diz
que o meu corpo envelheceu –
como ainda há poucos dias me lembrou o gesto
da rapariga que quis dar-me
o seu lugar no eléctrico à cunha,
de manhã à hora de a caminho do emprego.
Sim; o dia parece mesmo de primavera
e com isso apetece estar vivo, embora
sabendo que os anos andaram sobre o corpo que temos
e não renovamos, com rebentos e flores,
como as árvores que vou vendo enquanto não chega
– vem aí, finalmente! –
o autocarro que há bocado espero.
Abalando, esqueço de todo os dentes que já mal tenho
e a minha memória, nova agora como a tarde clara,
não tem fundo para além do dia de hoje
e das flores do jardim de há pouco.
Sim; mas há as coisas que às vezes me lembram
(e nem sempre sem que doa ou amargue)
que já não tenho a idade em que me diziam:
– Pedro, vê lá o que fazes, toma juízo!
(Olhem, por lembrar: – esta manhã gostei de ver
como o meu canário começava o seu dia cobrindo
a canária que anteontem lhe pus na gaiola e agora
é a razão por que não me acorda como
dantes, cantando.)
Pedro da Silveira
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CESTOS DEBAIXO DA LENHA
Outrora, na Fajã Grande, pelo menos um dia por ano, a garotada da escola era recrutada para acarretar e arrumar a lenha do senhor padre, na enorme loja que ficava nos fundos da sua casa.
Depois de transportada por carros de bois, a lenha era serrada, cortada e “rachada” com serras e machados, puxados por valentes braços, que não se poupavam a esforços, nos domingos à tarde, pois cuidava-se que, sendo destinada ao pároco, não era pecado trabalhar ao domingo, até porque de graça.
Finalmente a tarefa do arrumo da lenha, na velha e esconsa loja da casa paroquial, era da exclusiva responsabilidade da garotada da freguesia. Apesar do esforço que a sua consecução exigia, a tarefa era ardentemente desejada pela maioria das crianças, porquanto, por um lado, correspondia a uma folga da escola e, por outro, terminava sempre com um cálice de licor caseiro e alguns biscoitos ou figos passados.
Por isso, em mais uma tarde em que a senhora professora anunciou que os rapazes, no dia seguinte, não precisavam de trazer os livros e a sacola, porque iriam acarretar e arrumar a lenha do senhor padre, poucos foram os que se assumiram como objectores de consciência à sacrossanta tarefa. No entanto como a senhora professora ameaçasse que os que não fossem ficariam a fazer cópias, ditados e contas de dividir o dia inteiro, todos optaram por colaborar no arrumo da lenha, embora alguns o fizessem bastante contrafeitos.
Mas o pequeno grupo dos presumíveis objectores de consciência não desistiu, por completo, dos seus intentos, decidindo-se pela sabotagem da tarefa, jurando que se haviam de vingar.
A sede de represália açulou-se, quando a meio da tarde, com quase toda a lenha já arrumada e empilhada, a irmã do senhor padre, como de costume, apareceu com dois cálices, uma garrafa de licor de ananás e um pratinho de biscoitos, declarando antecipadamente:
- É só um biscoito para cada um! E licor, só meio cálice que é para não fazer mal aos meninos!
- Biscoitos, pelo menos, podiam ser dois, que não fazem mal! - Propôs um dos mais destemidos ao qual se juntou um coro de apoio e, simultaneamente, de protestos. Estes, no entanto, de nada serviram e esbarraram com a persistência da senhora, que permanecia na sua:
- É só um biscoitinho a cada menino! E nada mais!...
Os iniciais objectores de consciência foram aos arames e retiraram-se revoltados. Que aquilo não podia ficar assim! Que agora sim, tinham razões de sobra, para se vingarem. Ó, se tinham! E os cestos onde haviam acarretado a lenha eram o que mais tinham à mão.
Não demorou muito, a vingança. Num ápice todos os cestos se eclipsaram como que de forma mágica, sendo, habilmente, enterrados e escondidos entre as achas da lenha, de forma a que mais ninguém lhes pusesse a vista em cima, a não ser passados alguns meses, na altura de retirar a lenha nos sítios onde haviam sido soterrados.
Bem aflito se viu o pároco, porque sendo os cestos emprestados não os pode devolver, de imediato aos seus donos. Bem procurou, bem coscuvilhou e mandou escarafunchar em tudo o que era sítio, não lhe passando pela cabeça que estariam debaixo da lenha tão bem arrumada e direitinha.
O desaparecimento dos cestos causou grande consternação na freguesia e foi alvo de grandes comentários e de inúmeras suspeitas.
Mas descobrir os ladrões dos cestos foi de todo impossível., simplesmente porque não os havia. «E que afinal os cestos não haviam sido roubados mas sim muito bem guardados debaixo da lenha. E qual não foi a revolta do reverendo, quando, meses ais tarde, os descobriu, debaixo da lenha