PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
FUGA
Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não dessem pela abalada e deu consigo quase tresloucada, na no meio da rua, imersa numa madrugada ingente e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.
Era Maio e a noite estava muito escura e fria. Júlia cobriu os ombros quase nus com um xaile de lã que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de armas, prolongando-se por aqui e por além, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, estampando-se em eco nas rochas das Covas e das Águas, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante,
Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do lado mar, arrepiou-se mais e desatou numa correria louca, pela canada que dava para o Mimóio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes altíssimas, a vedar os pequenos cerrados de milho, as compridas belgas de batata-doce e uma ou outra courela a abarrotar de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse ainda mais naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-a por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.
Desde há muito que Júlia e António se amavam como ninguém, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitectando construir, dentro em breve, com harmonia e sublimidade, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam, ainda mais a impediriam, quando soubessem que ali havia muito amor, havia uma grande paixão e que se conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Talvez por isso é que ele tomara aquela abruta e radical decisão, por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam sempre de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e que por isso mesmo nunca haviam de autorizar aquele casamento, é que ele, o seu António, decidira partir, em busca da aventura, do sucesso, do necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia também nunca concordara com aquela partida, para tão longe, para a América e ainda por cima, naquelas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.
Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira, já quase no Mimóio, desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projécteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar contínuo das balas, por vezes incerto, dos azougados artilheiros. A ordem era atirar a matar.
Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, do alto do Mimóio, no escuro da noite, apenas clarificada momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, aquele terrífico e dramático espectáculo. Apenas uma certeza: o seu António estava ali e havia de se salvar.
No meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma pequenina e ténue réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim e, agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Pouco depois o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste. O seu António estava salvo!
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A RETIRADA
A noite já ia adiantada. Caíra tardia e enigmática sobre a “tabanca” que circundava o pequeno quartel, donde postos vesgos e carcomidos projectavam uma luz ténue e baça que se perdia na imensidão escura da planície africana.
Nos abrigos, a maioria dos soldados já havia recolhido. Um silêncio profundo, emanado da planície, pairava sobre o quartel e sobre a “tabanca”. Num pequeno cubículo, quatro oficiais desfazendo os dissabores e as preocupações de um quotidiano mavórcio, iniciavam mais uma partida de sueca, sobre uma mesa velha e besuntada, onde, duas horas antes, haviam, frugalmente, saboreado o rancho.
Ainda não tinha caído sobre a mesa a última carta da primeira jogada, quando o Tulhas, sem pedir licença ou sequer fazer a continência do costume, entrou de rompante, no pequeno ádito. Esbaforido, de mãos na cabeça, gritava repetidamente:
- Meu capitão! Meu capitão! Houve uma grande revoluçãoem Portugal. Mataramo Américo Tomás e o Marcelo Caetano.
O capitão Cachadinha, sobre quem caía o comando da pequena companhia, ali sediada, levantou-se de um salto e correu, precipitadamente, para o exíguo cubículo, ao fundo do largo central do quartel, impropriamente denominado “sala de transmissões”, enquanto os três alferes, estupefactos, procuravam, sem proveito nenhum, tirar mais alguma informação do Tulhas, aguardando ansiosos, a chegada de Cachadinha:
- Se isto é verdade – arriscava o Carvalhal, esfregando as mãos de contentamento – é a nossa salvação. Vamos embora daqui!
- Viva a liberdade! - Gritava o Penha da Silva e depois cantarolava. – “Adeus Guiné-é, vou-te deixar-ar-ar!”
Cachadinha não tardou. Entrou na pequena sala de punhos cerrados, desenhando com os braços gestos de convicção, certeza e contentamento. Atirou um pontapé à mesa, derrubou meia dúzia de garrafas de cerveja e, abraçando esbaforidamente os colegas de armas, gritou:
- Até que enfim, que esta porcaria vai acabar! Ou melhor: acabou! Acabou-se o fascismo! Acabou-se a ditadura! Somos um país e um povo livres. Esta guerra também vai acabar, em breve!
Os outros não cabiam em si de estupefactos. Afinal era verdade. O entusiasmo excessivamente exteriorizado e os gritos emitidos eram tais, que muitos furriéis, sargentos e soldados assomaram à messe de oficiais, interrogando-se, sem resposta.
Já mais calmo e com a minúscula e degradante sala a abarrotar, entre gritos e vivas à liberdade, o capitão explicou:
- Meus senhores. Acabam de me confirmar, de Lisboa, que hoje de madrugada teve início no nosso país uma revolução que há-de ficar na história. Um grupo de capitães, através de um golpe de estado, há muito esperado, pôs termo ao fascismo e instaurou um novo regimeem Portugal. Apartir de hoje somos um país livre, totalmente livre. Uma Junta de Salvação Nacional, já formada, irá tomar conta do poder e mudar os destinos do nosso país. Isto significa, para já, o fim desta guerra maldita e o nosso regresso a Portugal o mais rapidamente possível.
As últimas palavras de Cachadinha já nem se ouviram. Os presentes manifestavam-se, entusiasticamente, entre gritos de “liberdade”, “abaixo o fascismo” “vivam as Forças Armadas”. Uns abraçavam-se efusivamente, alguns bebiam em demasia, outros gritavam esbaforidamente e, pelo rosto nervoso de muitos, corriam lágrimas… lágrimas de alegria e emoção. Mas o que todos mais sentiam, era a certeza de em breve terminar a guerra e regressarem a Portugal...
A noite, na camuflada messe de oficiais, foi de vigia contínua e festança. Já alta madrugada, quando furriéis, sargentos e soldados regressaram aos seus abrigos, entre copos e trambolhões, Cachadinha, com os olhos esbugalhados de álcool e alegria, confirmava:
- O dezasseis de Março fracassou, mas o movimento não morreu. Isto não podia parar. A situação aqui, na Guiné, era insustentável. Todos os comandos estavam de alerta, previa-se um ataque em massa, pelo PAIGC, com apoio da OUA.
- Estamos verdadeiramente no fim do mundo! – Lamentava o Carvalhal. – Uma revolução de madrugada, em Portugal e nós aqui todo o dia, até às onze da noite, sem saber de nada...
A noite, embora já perto do fim, custou a terminar. Cachadinha não dormiu. Passava-lhe pela mente, a mulher, os filhos, o regresso à “Santiago e Irmão”, a retirada dali, os caminhos cheios de minas, a evacuação dos trinta mil homens que lutavam na Guiné e o futuro dos soldados de cor, fiéis ao exército português.
A noite seguinte foi trágica. O quartel foi atacado, mais uma vez. Corrida para as valas... Resposta de Pirada... Dois mortos...
- Os tipos do PAIGC, nas zonas mais interiores ainda não sabem o que se passa... – Explicava Cachadinha. – Os informadores disseram-lhes que estávamos em festa e de armas paradas e os tipos aproveitaram logo... Não vai ser fácil parar tudo isto...
Os dias seguintes foram de esperança misturada com uma enorme ansiedade e com uma profunda incerteza. As notícias de Portugal, no entanto, eram óptimas. - “A revolução, denominada dos cravos, fora um sucesso. Agora reinava a liberdade, a democracia e a esperança no futuro.” – Afirmavam, unanimemente, todas as cartas.
Mas ali, bem no interior da Guiné, a 400 metros do Senegal, a situação continuava complicada. Na realidade, a muitos elementos da guerrilha, dispersos no mato, em pequenos grupos, quase isolados, não chegaram, tão cedo, as notícias dos acordos de paz, nem as decisões tomadas em Bissau. As estradas e caminhos continuavam minados, as pontes permaneciam armadilhadas, os ataques aos quartéis eram cada vez mais frequentes e as emboscadas às colunas não cessavam.
A manhã de oito de Agosto nasceu calma e apaziguadora, pese embora, entre os comandados de Cachadinha, a azáfama fosse grande. Tinha sido a última noite no pequeno e mísero aquartelamento de Bajocunda!
No centro do quartel, um pequeno mastro com a bandeira portuguesa. De um lado, pouco mais de meia dúzia de soldados do PAIGC, de farda acinzentada, rosto tristonho, tímidos e de aspecto cansado. A chefiá-los um graduado. Do outro lado os cerca de sessenta homens que Cachadinha comandava, excepto os nativos, que durante os dias anteriores haviam, progressivamente, desertado, sem que ninguém a tal se opusesse. Cahadinha, em passo militar, dirigiu-se para o graduado negro. Fizeram a continência recíproca, cumprimentaram-se muito formalmente e colocaram-se perfilados, em frente à bandeira portuguesa, de continência em riste.
O Penha da Silva deu ordens à hoste lusa:
- Apresentar! Armas! Up!
Logo um rumor enorme de pés a bater no chão, mãos a pegar em armas e estas a escorregarem sobre fardas, se fez ouvir. Os soldados do PAIGC obedeceram também a idênticas ordens do seu chefe, imitando, desajeitadamente, os gestos dos militares brancos. De seguida, Cachadinha e o oficial negro passaram revista às tropas e voltaram a perfilar-se diante da bandeira.
Seguiu-se um toque de clarim. Um soldado branco dirigiu-se para o poste e, desamarrando os fios, fez descer, lenta e solenemente, a bandeira portuguesa. Depois, dobrando-a muito cuidadosamente, veio, em passos ritmados pelo rufar dos tambores, ladeado por dois colegas, colocá-la nas mãos de Cachadinha. Um soldado negro, dirigiu-se então, para o poste e, amarrando a bandeira negra, verde e amarela do PAIGC, fê-la subir, com cerimonial idêntico.
- Que desgosto! – Comentava, à socapa, o sargento mais velho da companhia e que já ia na quarta comissão no Ultramar. - Que vergonha! Sermos derrotados desta maneira! Sem honra nem glória!
- Deixe lá, meu sargento! – Aconselhava o Tulhas em voz baixa. – Perdemos a guerra mas ganhamos a liberdade. A guerra acabou, mas não acabou a tropa. Se você quiser ainda pode continuar a tropa, lá em Portugal.
Penha da Silva voltou a dar ordens. Todos se puseram à vontade e, rodeando os soldados do PAIGC, procuravam, pô-los à vontade, abraçando-se uns aos outros como se sempre tivessem sido amigos.
Nessa tarde, Cachadinha e os seus homens, entre lágrimas de saudade e eflúvios de alegria, abandonaram o pequeno quartel situado na aldeia de Bajocunda, na fronteira da Guiné com o Senegal, onde haviam permanecido mais de um ano. A população da tabanca, entrara no quartel, como que tomara conta dele e abanava-lhes sem grande convicção.
A companhia direcção de Tabassi, através da “picada” que dava Pirada dirigiu-se para aquele aldeamento, localizado na fronteira com o Senegal, juntando-se ao Batalhão a que pertencia. Passados alguns dias, rumaram a Nova Lamego, onde esperaram o avião em que viajariam até ao aeroporto de Bissalanca, aguardando, finalmente o tão almejado voo para Lisboa.
Mas, naquela tarde, não partiram todos!
Faltavam os negros que haviam desertado sem destino, abandonados e sem protecção de ninguém. Sabia-se que muitos já haviam sido fuzilados enquanto outros estavam presos, à espera de julgamento por traição à pátria. Alguns, mais afoitos e expeditos, os mais valentes e destemidos, tinham fugido. Faltavam, também, os dezanove brancos que, juntamento com a companhia chefiada por Cachadinha, haviam partido de Lisboa, os dezanove que sucumbiram às balas, aos obuses e aos morteiros e que não puderam participar naquela retirada precoce e inopinada, que a madrugada de 25 de Abril originara.
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TRISTE SINA
“Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.”
William Shakespeare
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O NAUFRÁGIO DA BIDART – DADOS HISTÓRICOS
A Barca Bidart encalhou, na noite de 24 para 25 de Maio de 1915, nos baixios da Fajã Grande, mais concretamente no Canto do Areal, por fora da Poça das Salemas. Esta barca pertencia à classe de barcas francesas, com 3 mastros, "Amiral Courbet". A "Bidart" é um símbolo do canto do cisne dos últimos veleiros no virar do século XIX. Estes navios, cuja única propulsão era a vela, iriam desaparecer em função dos Clippers e navios de metal, maiores e mais rápidos.
A "Bidart" foi lançada à água em Setembro de 1901,em França. Acabariapor encalhar e consequentemente afundar-se a 24 de Maio de 1915, nas rochas do Baixio, zona perigosa devido aos muitos laredos ali existentes, na Fajã Grande das Flores, Açores.
Durante a noite de 24 para 25 de Maio de 1915, abarca francesa de três mastros Bidart seguia, a meio pano e em pleno Oceano Atlântico, uma rota para norte, em direcção ao arquipélago dos Açores. A bordo, o comandante Jacques Blondel tentava proceder à manobra do navio, uma tarefa que não era em nada facilitada pela escassez de tripulantes válidos - com efeito, em pleno século XX, ainda se morria de escorbuto a bordo dos navios oceânicos. A longa viagem, sem escalas, que a barca Bidart realizava entre o porto de Thio, na Nova Caledónia, e o porto de Glasgow, na Escócia, era propícia ao desenvolvimento desta e de outras doenças, causadas por uma deficiência de vitamina C na dieta diária dos tripulantes. O escorbuto, causador de perturbações ósseas e de dores musculares, provocava também o aparecimento de fadiga e de depressões, o que em muito terá contribuído para o acidente e consequente naufrágio da barca.
Após vários dias de sol encoberto e da presença omnipresente dos nevoeiros, durante os quais não fora possível posicionar o navio pelo sol, o comandante estava praticamente perdido, sem ao menos saber a latitude certa da embarcação. Para piorar ainda mais as coisas, durante o anoitecer do dia 24 de Maio, morreu um dos marinheiros, de nome Letloc. Poucas horas depois, outros oito se lhe seguiriam.
A barca Bidart fora construída em 1901, pelos estaleiros navais Chantier Nantais de Construction Maritime, de Nantes. Este navio tinha 2199 toneladas de arqueação bruta e 1917 toneladas de arqueação liquida. O casco era de aço, tinha 84 metros de comprimento, com 12,30 metros de boca e 6,80 metros de calado. Como todas as barcas, tinha 3 mastros, largava pano redondo no de proa e no grande, e um latino quadrangular e gave-tope no de ré. Os mastros de proa e o grande tinham dois mastaréus enquanto que o de ré - denominado da mezena - tinha um só.
Em Setembro de 1901, abarca fora lançada à água e entregue à Société Bayonnaise de Navigation. A barca, comandada pelo capitão Pinsonnet, iniciou então várias viagens entre a Europa e o continente americano, sem acidentes. O único, digno de menção, ocorreu em 1906 quando, em viagem para Tacoma, Washington, uma tempestade lançou um homem ao mar e arrancou parte do velame e da mastreação da barca.
Em Maio de 1911, a Bidart foi vendida à Societé Anonyme de Voiliers Normands, estabelecida na praça de Rouen. Em 1915, sob o comando do capitão Jacques Blondel, os 23 homens da tripulação carregaram minério de níquel no valor de 500 mil francos e partiram da Nova Caledónia, com destino a Glasgow, na Escócia.
Após quatro meses de viagem, a barca aproximava-se perigosamente do seu último destino. Às 4.30 da madrugada do dia 25 de Maio de 1915, o capitão Blondel apercebe-se, por entre a névoa matinal, de que a barca se aproximava de uma zona de rebentação. Rapidamente, Blondel tentou fazer com que o navio virasse para o mar. No entanto, a bravura crescente do mar e vento não lh'o permitiu vindo o navio a descair encalhando enfim no canto do Areal, junto aos rochedos da Poça das Salemas, na freguesia da Fajã Grande, a cerca de50 metros de terra.
Com o encalhe, o navio parte-se em dois e afunda-se, até ao castelo de popa, a cerca de8 metrosde profundidade. No processo, caiu também o mastro do traquete sobre a ré do navio. Com os salva-vidas inoperacionais, o piloto, o cozinheiro Charles, o imediato Pedron e o contramestre Lhotis atiraram-se à água, no intuito de se dirigirem até à costa e pedirem ajuda. Infelizmente, a agitação do mar apenas permitiu que fosse o piloto o único a lá chegar.
Perante este cenário, o comandante ordenou o abandono do navio. Após se terem munido de coletes de salvação, os elementos da tripulação saltaram, um a um, para o mar revolto. No final, apenas 14 se salvaram, entre eles alguns mais ou menos pisados, tendo-se afogado os marinheiros Legasi, Lecandre, Totbien, Lebreton e Kerne. Logo que foram recolhidos, os náufragos foram logo vestidos e tratados com a maior solicitude, por todo o povo da freguesia. O médico de Santa Cruz procedeu logo aos primeiros socorros, fazendo embarcar os feridos mais graves para o Hospital de Santa Cruz das Flores, logo no dia seguinte, assim que o mar acalmou.
Tanto o cozinheiro como o contramestre se afogaram, tendo os seus corpos dado à costa na freguesia da Fajãzinha, no dia 25 de Maio, juntamente com o de um marinheiro. Imediatamente, o povo os colocou em câmara ardente numa casa do Espirito Santo e ofereceu-lhes 6 coroas de flores naturais, que foram depostas sobre os cadáveres. Os habitantes ofereceram tambem lençoes e almofadas para os caixões dos mortos. Por iniciativa do vice-vigário da freguesia, reverendo Caetano Bernardo de Sousa, fez-se o enterro com toda a solenidade, sendo os três cadáveres acompanhados por todo o povo da freguesia. Os restantes mortos foram sepultados na Fajã Grande.
O que restava do navio - avaliado em cerca de 300 mil francos - e da carga, foi arrematado por José Azevedo da Silveira por 210$000 reis, no dia 29 de Maio. Este comerciante local acabou por tomar posse de alguns salvados tirados do castelo de proa, único ponto do navio que ficou fora d'agua. O resto do navio estava submerso a alguns palmos abaixo da linha d'agua, tendo dentro parte da carga e todos os objectos de bordo, conservas e algum dinheiro. Por vários dias, o mar em volta do naufrágio tomou uma cor avermelhada, devido à fuga do minério de níquel que vinha embarcado a bordo da Bidart. O povo crédulo, cuidou que eram as almas dos marinheiros mortos que ali haviam ficado sem sepultura. Os náufragos sobreviventes embarcaram então para Lisboa, a bordo do paquete Funchal, tendo escalado Angra do Heroísmo a 15 de Junho de 1915.
No meio de todo este azar, o mais azarado acabou por ser o imediato, que acabou também por falecer. Este, que estava para se casar e que iria assumir o comando da Bidart, já tinha naufragado anteriormente nos Açores quando, simples marinheiro a bordo da galera francesa Caroline, encalhou na vila da Madalena, ilha do Pico, a 3 de Setembro de 1901.
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WALKING TO PEDRA D´ÁGUA
Caminhavam num silêncio contínuo, persistente e inquietante. Era como se a manhã ainda permanecesse uma madrugada escura, sem o canto dos pássaros e sem o desabrochar perfumado e colorido das flores. O destino não estava linearmente bem definido mas a vontade de encontrar e desfazer sombras perdidas e enigmas mistificados era segura, confiante e destemida. O trajecto, quer fosse por ali, quer fosse por outro sítio qualquer, era o menos importante.
A Pedra d’Água era um bom justificativo, a marca significante duma perplexidade confusa, um miradouro aureolado de mistério, onde a simples esperança do abraço final, infinito e ajustado, se confundia com a vontade escondida de encontrar um destino nascente, vivificante, mas magoado, e, aparentemente, para sempre perdido. Além disso, chegar à Pedra d’Água era demasiado fácil para ele, habituado deste pequeno à sinuosidade inóspita daqueles andurriais e ao descalabro inexaurível daquelas veredas. Havia de ajudá-la quando ela languidescesse entre os canaviais amarelados que atabafavam a rudeza rebelde dos campos circundantes. Havia de ampará-la se ela resvalasse nos seixos que, soltos, engrandeciam a irregularidade sinuosa e áspera das veredas. Haviam de comungar, na subida daquele emaranhado de degraus e na irreverência desoladora dos atalhos, suspiros de perplexidade, gestos de encorajamento recíproco, palavras destruidoras da indiferença a gerarem alento, sonho e magia e talvez trocassem até um leve, simples e intencional roçar de ombros. Na complexa arduidade da subida haviam de encontrar o bálsamo purificante da ajuda mútua, no incómodo dorido do rastejar, sentiriam o bafo perfumado da tolerância há tanto desmistificada e no arrastar cansativo das passadas, haviam de pressagiar uma pequena nica, que fosse, do manto ternurento e sedutor que já haviam tecido, com as malhas condicionantes da sua imaginação.
O Calhau das Feiticeiras, encastoado a meio do percurso, consubstanciava mitos, perplexidades e inquietudes, mas convidava, no sopé, a um repouso gratificante e auspicioso a que se seguiria uma enigmática e perturbante explicação: elas, as demoníacas feiticeiras escalonavam o arrogante e temeroso tufo, dia e noite, para cima e para baixo, para baixo e para cima, carregando os facínoras, os déspotas, os traidores e atirando-os por ali a baixo, a eles e a todos aqueles que, em vida, haviam praticado o mal como alternativa ao bem. As marcas dos pés das malditas, estampadas ao longo de todo o enorme calhau, eram a prova de que elas não se aquietavam. Tanto subiam, tanto desciam e tanto carregavam, que o tufo, apesar de pétreo, fora cravejado de estigmas que anunciavam a contumácia de tão inebriantes personagens… tão dolentes e tão sofridas, como que a profetizarem o descalabro desagregado de toda aquela subida.
E a Pedra d’Água ainda não era ali. Mas agora eclipsara-se o desaguisado tormento da subida e a perturbante inquietude da sinuosidade. A vereda seguia rectilínea e sagaz por entre o emaranhado de paredes construídas com pedregulhos ásperos, aqui e além forrados de musgo aveludado, sobre um chão tisnado com uma passadeira verdejante, perfumado de funcho, rosmaninho e madressilva, numa audaz e sublime glorificação das glórias imaginadas e dos triunfos que não se conjugam com a indiferença.
Finalmente a chegada triunfante ao pináculo da sublimidade! Uma vista a prolongar-se por horizontes infinitos, insondáveis e indefinidos e o cume envolto num nevoeiro, branco mas aureolado de sombras cinzentas, confusas e ligeiramente sinistras. Depois a descida, emersa num entardecer, demorado, lento e teimosamente agarrado a uma enorme segurança de que tudo havia de renascer e repetir-se.
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BRINCANDO À “CAÇA À BALEIA”
Uma das mais interessantes brincadeiras dos meus tempos de criança era a “Caça à Baleia”.
Nas tardes quentes e tórridas de Verão, juntava-se à Praça toda ou quase toda a pequenada da freguesia, desde a Assomada até à Via d’Água (quantos mais melhor) e iniciava-se uma brincadeira tão original e criativa quanto o que víamos quotidianamente praticado pelos adultos, Verão após Verão e que tanto nos fascinava e deslumbrava: a caça ou “pesca” à baleia.
Seleccionados os interessados, a brincadeira iniciava-se com a construção dos botes e da lancha, tudo semelhante aos dos adultos, mas feito de cana. Estas eram apanhadas no Outeiro, junto à Cruz, ali bem perto ou na ladeira do Fernando. Num ápice a frota estava pronta. Duas canas amarradas em ambas as extremidades com fios de espadana, três ou quatro canas mais pequenas mas com tamanhos diferentes e cortadas em bico nas extremidades eram encaixadas nas duas canas iniciais, a maior ao centro e as outras a decrescerem para a ponta e para a ré, dando-lhes forma de um bote. Seleccionada a companha, o mestre aplicava na ré uma cana a fazer de esparrel enquanto o trancador desfiava uma espadana e, amarrando os fios uns nos outros, fazia um cordão ao qual amarrava o arpão, ou seja, uma outra cana de ponta bem afiada e presa, na parte posterior, à proa do bote. Os restantes encadeavam canas de um e outro lado do bote a simular os remos. A lancha, a que era dado o nome de “Leta” ou “Maria Palmira” ou “Santa Teresinha” era em tudo semelhante aos botes mas sem esparrel. Tinha uma lança em vez do arpão e era quadrada à ré, tendo como tripulação, se a miudagem fosse pouca, apenas um tripulante que fazia simultaneamente de mestre maquinista e proeiro. Os que não tinham lugar nas embarcações, geralmente os mais pequenos ou os menos creditados na arte, estavam condenados a fazer de baleias. Destes havia um que no início desempenhava o papel de vigia. Como ficava sem fazer nada, logo após o atirar do foguete transformava-seem baleia. Omar era a Rua Direita, junto ao chafariz de duas bicas, e o porto, onde a frota estava parada e donde partia logo que o foguete rebentasse, era o pátio da Casa de Espírito Santo de Cima.
As baleias percorriam a rua de cócoras, depois de encherem a boca com água nas bicas do chafariz. Logo que a primeira baleia se pusesse em pé, isto é, viesse à tona de água e bufasse o jacto de água, o vigia encavalitado em cima do chafariz atirava o foguete, lançando para o ar uma pequena cana ou uma vara ou, por vezes, até um jacinto arrancado num quintal qualquer ali perto, acompanhado de um enorme e estrondoso “fsset pum, prá, prá, prá”. De imediato toda a companha corria para os seus botes a gritar “Baleia à vista! Baleia à vista!”. Entravam nos botes, ocupavam os seus postes e lá seguiam atrelados à lancha ou a remar sozinhos para o alto mar, ou seja. Para o sítio onde estavam as baleias. Estas andando de cócoras, a simbolizar que estavam debaixo de água, com a boca cheia de água lá se iam levantando e bufando de vez em quando mas deviam fazê-lo com tal agilidade, rapidez e performance que dificultasse ao máximo a acção do trancador, evitando que este lhes acertasse. É que o trancador só podia atirar o arpão às baleias que estivessem em pé e a bufar. As regras no entanto exigiam que estas o fizessem frequentemente e corressem para o chafariz, voltando a encher a boca de água, logo que a esvaziassem.
Quando o trancador acertava numa baleia em pé ela era morta e ficava a aguardar o reboque da lancha. O jogo terminava quando todas as baleias eram mortas o que muito raramente acontecia.
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QUEM ARREAVA À BALEIA, NA FAJÃ GRANDE, NA DÉCADA DE CINQUENTA
É por demais sabido que a caça à baleia teve grande desenvolvimento e importância económica na ilha das Flores, nas décadas de 30, 40 e 50 do século passado, com destaque não apenasem Santa Cruze nas Lajes mas também na Fajã Grande, embora em menor escala do que nas duas vilas.
No início da década de cinquenta, época a que a minha memória se reporta, para além dum excelente Posto de Vigia, situada precisamente no alto do Pico a que deu o nome, Pico da Vigia, havia, na Fajã Grande, uma lancha, a Santa Teresinha, e dois botes exclusivamente dedicados à pesca ou caça da baleia.
Com a ajuda de algumas boas memórias ainda existentes foi possível elaborar o elenco, provavelmente um pouco incompleto ou com algumas omissões, do grupo de marítimos que constituía, na década de 50, as “companhas” quer da lancha quer dos botes da baleia. Aqui fica o seu registo:
Vigia - Manuel Manquinho.
Lancha – José Pereira, mestre, José Furtado, maquinista e Cristiano Fagundes, “lancetador” e proeiro.
Botes – Chico de José Luís, Francisco Inácio, “trancador”, João Caixeiro, João Fragueiro, João Lajone, José Candonga, José do Cristóvão, José Fagundes, José Garcia, José Luís, José Tavares, Laureano Alexandre, Luís Cardoso, Luís de Abraão, Luís do Raulino, Luís Furtado, Luís Pereira, Roberto do Cristóvão e Urbano Fagundes “trancador”, todos estes naturais da Fajã Grande.
No entanto e para além de Mestre Monteiro que veio do Pico, juntamente com dois filhos, para se dedicar exclusivamente à caça à baleia na Fajã, como responsável mor por um dos botes, do Ricardo e do Arnaldo (irmão do Semilhas que jogava futebol no Benfica) vindos do Faial, arrearam na Fajã alguns baleeiros naturais de outras localidades da ilha. Das Lajes veio Mestre Antonico, que chefiava o outro bote, o Fernando Armas e os irmãos José e Afonso Fraga. De Santa Cruz veio para a Fajã o José da Encarnação.
Obviamente que deverão faltar alguns nomes: uns naturalmente anteriores à década de 50, outros posteriores a esta, uma vez que nas anos seguintes ainda se baleou nas Flores. De qualquer maneira parece-me que haverá registo dos seus nomes de forma mais completa quer nos arquivos da Delegação Marítima da Ilha das Flores quer na documentação das antigas empresas baleeiras.
Sendo assim, penso que seria uma digna e justa homenagem registar em monumento a colocar no Porto da Fajã Grande, a exemplo do que se fez, por exemplo, na vila baleeira das Lajes do Pico, o nome de todos aqueles que dedicaram grande parte da sua vida a uma actividade que durante muitos anos dignificou não apenas os que nela se envolveram, arriscando a própria vida, mas também a própria freguesia, a própria ilha das Flores e as suas gentes.
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VISITA ÀS FLORES
(TEXTO DE VICTOR RUI DORES)
Visito as Flores como acho que devem ser visitadas todas as ilhas dos Açores: de barco, de carro, a pé, com tempo e disponibilidade…
Por ser varanda sobre o mar, os viajantes do século XIX deram a esta ilha denominações como “Jardim do Atlântico” ou “Suiça Açoriana” – muito por via da beleza estonteante das suas sete Lagoas: Rasa, Funda, Comprida, Negra, Seca, Lomba e Branca. No Verão de 1924 o escritor Raul Brandão, na visita que efetuou pelos Açores, permaneceu alguns dias nas Flores e deu-lhe o nome de “A Floresta Adormecida”, título de um dos melhores capítulos do seu livro As Ilhas Desconhecidas, publicado dois anos mais tarde.
Situada na denominada Placa Litosférica Americana, ilha agreste e selvagem, de extraordinários contrastes, uma paisagem irrepetível, uma Natureza intacta e em estado puro – Flores é, hoje, para mim, a mais espetacular e a mais fascinante das ilhas açorianas. Tudo nela é grandeza e assombro: baías profundamente recortadas, falésias cortadas a pique, relevos incríveis, colinas arredondadas, vales fundos e abruptos, crateras imensas, ilhéus pontiagudos, rochas colossais, lagoas de sonho… E tudo isto enquadrado por densa vegetação com todas as tonalidades de verde.
A expressão telúrica desta ilha está precisamente nestes declives e nestes planaltos íngremes e imprevisíveis. E não existem palavras que possam adjetivar as furnas, as grutas e as cavernas que apreciei a navegar ao largo dos Cedros, Ponta Delgada e Ponta Ruiva. E que dizer da imponente Rocha dos Bordões? E do imenso silêncio das fajãs? E do verde-claro dos pastos iluminados por uma luz fria e delicada?…
Por toda a parte irrompem sebes de hortênsias em flor (que dividem os campos) e o amarelo perfumado das rocas (noutras ilhas também conhecidas por rocas-de-velha, conteiras, ou palmitos). Acima de tudo, é impressionante a abundância de água na ilha das Flores, onde existem cerca de 400 ribeiras. Mais deslumbrante ainda é a água que se precipita lá de cima das encostas, e continuamente tomba em fios esbranquiçados de cascata, despenhando-se cá em baixo e desfazendo-se numa névoa de gotas líquidas…
Mas uma ilha é também feita de gente. E os florentinos têm a candura e a generosidade dos ilhéus acolhedores e hospitaleiros, que vivem, com persistência, numa relação única e harmoniosa com a Natureza.
A caminho da Fajã Grande, detenho-me junto de um ancestral moinho de água (datado de 1862) que ainda mói pelos meios mais rudimentares e artesanais. Meto conversa com Fátima, a moleira que me parece saída das páginas de um conto de Trindade Coelho. Ela não tira os olhos do grão, seguindo a moenda com toda a calma do mundo. O monótono barulho das mós transporta-me ao passado. Momentos antes eu já havia experimentado tal regresso ao passado ao visitar as casas de pedra da Aldeia da Cuada, onde tudo é rural e arcaico, incluindo o nome da co-proprietária daquele espaço rústico: Teotónia.
Vou captando sucessivas imagens fotográficas. De miradouro em miradouro, rendo-me por inteiro à beleza luxuriante desta ilha que é a mais cabalística dos Açores: tem 7 lagoas, 7 baías e 7 vales…
De Santa Cruz às Lajes, e daqui até ao Morro Alto, os meus olhos deslumbrados contemplam todas as espécies de árvores: incenso, faia, loureiro, acácia, giesta, pinheiro, criptoméria, araucária, metrosídero, plátano… E, pelos trilhos da ilha, vejo manchas de laurissilva e cedro do mato e, com menor expressão, outras endémicas: sanguinho, pau branco, vinhático e queiró. E as trufeiras possuem a macieza do veludo. E, no Poço da Alagoinha, percorro os 800 metros que me transportam às regiões mais fantásticas do paraíso terrestre! E a mesma sensação assalta-me ao visitar o Poço do Bacalhau. Grandeza tamanha para uma ilha tão pequena. Percebo agora melhor os versos de Roberto de Mesquita e de Pedro da Silveira.
O mar sempre à volta. A ilha do Corvo no horizonte. Vejo no monitor da máquina fotográfica as imagens que vou captando. No fundo do vale da Fazenda de Santa Cruz, a igreja de Nossa Senhora de Lourdes empresta uma nota poética e mística à paisagem. E como é belo o casario branco a despontar no verde bucólico do Mosteiro! Na Fajã Grande, olho o ilhéu de Monchique e sei que estou no ponto mais ocidental da Europa.
Coelhos furtivos atravessam-se à frente da viatura que aluguei para visitar a ilha durante uma semana. Conduzo pelo silêncio de caminhos desertos e sou surpreendido pelas turísticas quatro estações num só dia… Boa rede de estradas. Curvas e contracurvas até dizer chega. Está um calor abafadiço na Caveira. A paisagem é casta e melancólica no Lajedo. Ambiente pastoril e idílico na Fajãzinha. Vejo campos de milho na Lomba e inhameiros na Fazenda das Lajes. E, por todo o lado, ouço o canto dos pássaros e o som das ribeiras e das cascatas.
Em 2009 a UNESCO reconheceu a importância ambiental da ilha das Flores, integrando-a na Rede Mundial de Reserva da Biosfera.
E depois há o gado bovino. Deixadas ao frio e ao nevoeiro à beira da estrada ou nos morros mais inóspitos, as vacas (brancas, pretas, malhadas e vermelhas charolesas) olham-me com desprezo. A terra está empapada de humidade e paira no ar um cheiro a mentrasto e uma impressão de frescura, de calma, de volúpia. Serenidade e melancolia. E um verde que pacifica o meu espírito.
Venha o(a) leitor(a) ver tudo isto com os seus próprios olhos. Porque, garanto, nada do que aqui escrevi é literatura.
Victor Rui Dores
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A FONTE
Quando eu era criança, em minha casa não havia água, a não ser a da chuva, que penetrava por um ou outro buraco existente no telhado, ou pela janela da sala, quando, por esquecimento, a deixávamos aberta e o vento soprava de oeste. Para cozinhar, para lavar a roupa e a casa, para se passar um pingo de água nos olhos pela manhã e limpar as ramelas, para fazer o café da madrugada, para dar de beber às galinhas e ao porco e até para limpar as tetas das vacas antes da ordenha era preciso ir buscar água à fonte, tarefa de que, lá em casa, eu era incumbido vezes sem conta.
Mas eu adorava ir à fonte, pese embora muitas vezes tivesse que o fazer carregando, dois pesadíssimos baldes de madeira cheios de água. A minha sorte e fortuna era de que a fonte, para além de ficar perto da minha casa, nunca secava, tinha sempre água fresquinha, sempre a correr, sempre a jorrar, sempre a respingar sobre o pedestal onde se colocavam os baldes, sempre a perder-se por entre pedregulhos e esgotos, sempre disponível para que eu, quando ali fosse, enchesse os baldes e saciasse a minha sede.
Na realidade eu ia à fonte, muitas vezes. Umas, para encher, até transbordar, o vasilhame que transportava vazio e que, no regresso, teria que carregar bem cheio e pesado, outras apenas para locupletar-me naquele manancial de frescura voluptuosa, deslumbrante e infinita. O ir à fonte era um vai e vêm contínuo, frenético e fascinante, apesar de cansativo e perturbador. É que da fonte, para além do fiozinho que, permanentemente, corria ténue e transparente, emanavam eflúvios sibilantes, provinham súplicas desfeitas, exalavam sonhos de nostalgia e perfumes de transparência. Na verdade, eu sentia que a fonte, com o seu fiozinho cristalino e diáfano, também derramava murmúrios estranhos, ora perdidos entre os musgos esverdeados da peanha, ora suspensos das abóbadas de cimento esbranquiçado que a rodeavam e protegiam. A fonte, com o seu murmurar silencioso, contínuo e permanente, desfazia dissabores, solidificava vivências e permitia que as sombras enigmáticas e confusas do devir, se transformassem em sonhos de magia, em perplexidades inebriantes, em arrebatamentos sublimes e transcendentes.
Um dia a estrada passou por ali., no sítio onde existia a fonte. Nas casas, incluindo a minha, agora, já havia água em abundância, mesmo que as janelas estivessem fechadas e as telhas quebradas tivessem sido substituídas. Entenderam os arquitectos e construtores da nova e larga estrada, que a fonte estava a mais, já não era necessária ali, porque água, havia muita por todos os lados e até dentro das casas. Mudaram-lhe o destino, aqueles imbecis, insensatos e inconscientes. Estes arquitectos e os próprios construtores da estrada, afinal, não sabiam ou não queriam perceber ou entender, que para além daquele fiozinho de água, da fonte também corria um manancial de sublimidade, de ternura e de envolvimento de pessoas. Desconheciam que a fonte também era um lugar de encontros, de vivências, de suspiros e, por vezes, de tormentas, que a fonte era um sortilégio quase metafísico, um abrigo de tempestades e intempéries, um recurso permanente a encontros e fascinações.
A fonte desapareceu! Agora apenas ficou uma outra no cimo da Rocha, lá bem no alto, mas sempre com o seu fiozinho ténue, cristalino, diáfano e transparente. A fonte agora está embutida no alto de um monte, altivo e abrupto, difícil de escalar, perdida entre as brumas adormecidas, dispersa entre o emaranhado aflitivo das madrugadas, suspensa no espectro multicolor do arco-íris. A fonte que os imbecis arquitectos e estouvados construtores da estrada não puderam destruir!
Mas mesmo longe, distante, encastoada nos andurriais escarpados da Rocha, ainda vou à fonte, como ia tantas vezes outrora, quando a fonte ficava mesmo ali, ao lado da minha casa. É verdade que já não acarreto baldes e baldes à abarrotar de água para cozinhar, para lavar a roupa e a casa, para passar um pingo de água nos olhos pela manhã, para fazer o café da madrugada, para dar de beber às galinhas e ao porco e até para limpar as tetas das vacas antes da ordenha, nem sequer para matar a sede. Agora apenas vou à fonte saborear o perfume adocicado daquele fiozinho suave, cristalino, diáfano e transparente antes que ele, jorrando dia e noite, bem lá do interior da Rocha, se perca por completo, ao cair, solitário, entre os socalcos pedregosos.
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VALHA-NOS O PAPA FRANCISCO
(TEXTO DE ABEL NÓIA GONÇALVES VIEIRA)
Por enquanto, até me dá jeito que tenham «um cantinho no céu» Hitler, Mussolini, Savimbi, Cadafi, Saddam Hussein, Salazar e outros monstros de estimação...que povoam ainda a nossa memória colectiva em momentos de pesadelo. Nem me custa rezar para que, livres das vãs glórias terrenas, possam agora contemplar a glória eterna, na mais inclusiva das escatologias.
Só não acompanho quem pretende escrever a história ao contrário, como se não tivessem cometido crimes contra os povos que os geraram e contra a própria humanidade em tempos relativamente recentes. Penso que se exagera na tinta reabilitadora desta gente.
Não é por acaso que, por esta Europa fora, crescem as extremas direitas para assaltar o poder, avança um liberalismo económico selvagem e os mais pobres são ameaçados de extermínio. Vindos dessas «juventudes salazarentas», apresentam-se hoje enfatuados, sem competência nem vergonha, promissores quadros tecnocráticos alojados na esfera do poder. Nunca imaginei que houvesse tantos no meu país, agora de fácil identificação à lupa. Parece que nem as universidades vão escapar à decapitação da massa cinzenta nacional, quando os magníficos reitores se sentem incapazes de as dirigir sem os meios necessários. Atacar a educação é comprometer irremediavelmente o futuro e abrir a porta a novos ditadores.
Dentro da própria Igreja, permitam-me reconhecer, o refluxo da onda era do mais preocupante clericalismo integrista: afogados nos colarinhos de antanho, dormindo de batina e saciados de água benta, ambiciosos e insaciáveis de um poder não evangélico, aí estão para as curvas os protagonistas da nova evangelização. Esses conheço razoavelmente bem.
Valha-nos o Papa Francisco!
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TORRESMOS DE VINHA-D’ALHOS
Os torresmos de vinha-d’alhos eram um dos pratos mais comuns no cardápio fajãgrandense, na década de cinquenta, sobretudo nos meses que se seguiam â matança do porco, que, regra geral tinha lugar em Dezembro. Dado que na ilha das Flores, como aliás em todas as outras ilhas açorianas, o clima não permitia a conservação da carne de porco sob a forma de presunto, toda a carne, ou era guardada, depois de frita, debaixo de banha, dentro de umas vasilhas de barro vidrado, chamadas “barranhas” ou salgada e guardada, no caso dos ossos, da cabeça e dos pés, e guardada nas “salgadeiras”, também estas feitas de barro. Assim, a carne propriamente dita era toda picada. Uma boa parte para a linguiça e a outra para os tradicionais torresmos de vinha-d’alhos, que depois de temperados e fritos eram colocados debaixo de banha. Quando se pretendia utilizá-los, bastava apenas retirá-los da banha e aquecê-los. Estavam prontos a serem servidos e eram deliciosos.
Para a sua confecção, nos dias subsequentes à matança do porco, era seleccionada a carne na quantidade desejada, devendo conter anexa alguma gordura, pois essa dava-lhes um melhor sabor e tornava-os mais tenros e gostosos. A carne partia-se em pequenos pedaços, sob a forma de cubos e depois era temperada com alhos, cominhos, malagueta, sal e pimenta-da-jamaica, deixando-a neste tempero durante alguns dias. Depois os pedaços partidos que dariam origem aos torresmos, eram fritos em banha, arrefecidos e guardados na “barranha”, misturados com a própria banha, de modo a que a camada superior ficasse totalmente coberta.
Na altura em que se pretendia comer os torresmos, retirava-se da vasilha a quantidade pretendida, deixando os outros cobertos com a banha. Voltavam a ser fritos, mas muito ligeiramente e eram servidos acompanhados com batata-doce ou inhame cozido ou com pão de milho ou bolo do tijolo. Uma delícia!
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A IGREJA MATRIZ E OUTROS MONUMENTOS ARQUITECTÓNICOS DE VILA DO CONDE
Quem passa por Vila do Conde não pode ficar indiferente à quantidade e variedade de monumentos arquitectónicos que a cidade possui. Terra milenária e, no dizer de José Régio, “espraiada entre pinhais, rio e mar”, a cidade de Vila do Conde, na realidade, encerra no seu seio um conjunto notável de monumentos históricos com destaque para a igreja Matriz, para o Convento de Santa Clara e a igreja gótica que lhe é anexa.
Dedicada a São João Baptista, a igreja Matriz de Vila do Conde, cuja construção recebeu forte impulso, segundo ainda hoje se conta, com a passagem e estadia na cidade do rei D. Manuel I, é de facto um belo monumento, datado dos séculos XV e XVI, revelando, consequentemente, um estilo arquitectónico de declarada transição entre o gótico e o manuelino. O gótico é mais notório na fachada exterior, nomeadamente no pórtico da entrada principal, ladeado por uma notável torre sineira, enquanto no interior de três naves, separadas por quatro arcos de volta inteira, assentes em pilares com capitéis, se revela mais o estilo manuelino, já com alguns sinais do barroco. De realçar ainda algumas imagens, nomeadamente a do padroeiro em pedra ançã, a pia baptismal, o púlpito, os retábulos de talha dourada e a capela da Senhora dos Mareantes, esta a necessitar de restauro urgente. Anexo à igreja e numa pequena sacristia existe um Museu de Arte Sacra, fenómeno pouco vulgar nas igrejas portuguesas, mas extremamente louvável, que se encontra permanentemente aberto ao público e onde estão expostas, para além de estatuária diversas dos sec.s XVI, XVII e XVIII, alfaias litúrgicas diversas e de grande interesse histórico, com realce para uma bela casula romana de cor branca bordada e debruada a ouro.
O património arquitectónico de Vila do Conde, no entanto, não se fica por aqui. A igreja de Santa Clara, anexa ao convento do mesmo nome, é um interessantíssimo monumento gótico do sec. XVI, onde repousa um dos filhos bastardos de el-rei D. Dinis, Afonso Sanches e a esposa, em duas das mais belas obras-primas da estatuária fúnebre portuguesa. Ao lado restos de um antigo mosteiro gótico, do qual esta igreja faria parte, com destaque para um fontanário, ainda existente, celebrando a chegada da água através de um famoso aqueduto, do qual sobram muitas ruínas que percorrem grande parte da cidade e da qual são uma espécie de ex-libris. Sobre este mosteiro gótico foi construído, no sec. XVIII, o actual convento de Santa Clara.
Um visitante atento, no entanto, na cidade de Vila do Conde ainda poderá apreciar muitos outros monumentos dos quais se destacam: o pelourinho, o edifício dos Paços do Concelho, a igreja de S. Francisco, a igreja da Misericórdia, o Forte de S. João Baptista, a igreja da Senhora da Lapa, as capelas da Sra da Guia e do Socorro, variadas casas senhoriais restauradas e muitos outros edifícios com fachada manuelina. Nas freguesias limítrofes da cidade são notáveis a igreja românica de Rio Mau, a igreja Matriz de Azurara, o povoado pré-romano de Bagunte e o castro de Labruge.
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AS ANTIGAS DANÇAS DE CARNAVAL NA FAJÃ GRANDE
Durante toda a década de cinquenta e a prolongar-se mais tarde na de sessenta, o Carnaval, na Fajã Grande, caracterizava-se, para além de diversas tradições, brincadeiras e até comezainas, com a realização das chamadas “Danças do Carnaval”, que constituíam de facto como que o epicentro de toda a folia carnavalesca.
Sobre a sua origem pouco se sabe. Apenas que eram muito antigas e, obviamente, anteriores aos anos cinquenta, julgando-se que, assim como as da ilha Terceira, deviam remontar aos séculos XVI e XVII, dado que as suas características nomeadamente no que concerne aos textos e roupas, se inseriam numa temática de mar, navegação, batalhas e aventura, muito semelhante à daquela ilha. Por isso é muito provável até que tenham sido introduzidas nas Flores, por alguns terceirenses que ali foram fixando residência ao longo dos tempos. Na Fajã, por exemplo, nos anos sessenta, quando pareciam já estar esquecidas, um dos grandes impulsionadores e responsáveis pelo seu reaparecimento foi o terceirense Manuel Linhares, que ali havia fixado residência.
As “Danças do Carnaval” da Fajã Grande eram interessantíssimas e, para além da dança e da música, tinham uma coreografia própria, uma autêntica teia teatral, num emaranhado de arcos, cores, espadas, movimentos e sons, misturados com o dançar ou marchar dos pares constituintes do elenco e que ao longo da actuação iam trocando de posições, cruzando espadas ou passando por baixo dos arcos uns dos outros, sempre sobre as ordens do mestre e os olhares do contra mestre. Eram constituídas por duas alas onde participavam exclusivamente homens, numa das alas uns com trajes masculinos e e na outra com femininos, comandados pelo um mestre com apito e espada. O textos eram declamados ou cantados e acompanhados por um grupo de tocadores de instrumentos de corda e tinham como conteúdo uma espécie de enredo que abordava os mais diversos assuntos, indo do dramático ao cómico e jocoso, ou a lutas e batalhas e até amores infiéis, de que são exemplo os seguintes versos cantados numa das últimas marchas realizadas na Fajã Grande, já na década de sessenta, em que o Mestre e ensaiador era o terceirense Manuel Linhares e o contra mestre o Ângelo de João Augusto:
Mestre: “Sou mestre desta dança,/Tenho licença pra falar/Minha espada triunfante/Tem direito a dominar.” Ao que o contra mestre respondia: “Se o domínio fosse teu,/Dominavas à vontade,/Como é teu também é meu./Ambos temos liberdade.” O Mestre prosseguia: “Liberdade, liberdade,/Quem na tem chama-lhe sua,/Tu só tens a liberdade/De ver o Sol e ver a Lua.” Contra mestre: “Vejo o Sol e vejo a Lua,/Parentes que os não há iguais./Vejo a linda esposa tua,/Que me agrada muito mais.”
As danças de Entrudo eram geralmente executadas ao ar livre. Exigiam, da parte dos participantes e seus familiares um longo trabalho de preparação, não só de ensaio mas também de arranjo e elaboração das roupas e dos adereços usados, que incluíam lantejoulas, missangas, plumas, fitas prateados ou douradas e tecidos brilhantes, vindos em encomendas da América. Os textos eram geralmente arranjados pelo próprio mestre que tinha também a responsabilidade de orientar os ensaios e durante a actuação fazer a abertura e o final e ser o “puxador do enredo”.
Tudo começava com o formar do grupo constituído pelo ensaiador que geralmente ocupava o lugar de mestre, pelo contramestre e por um bom número variável de pares. As roupas ou fardamentos deviam ser todas a condizer umas com as outras, assim como os arcos que cada par utilizava durante a dança. Um dos primeiros ensaiadores no início dos anos cinquenta foi o Cabral. Seguiu-se o Tobias, entre outros e, bastante mais tarde, o terceirense Manuel Linhares.
As danças, na Fajã, tinham geralmente um casal de “velhos”, devidamente mascarados que enquanto se efectuava a dança, faziam palhaçadas junto dos espectadores, metiam-se com as raparigas e os rapazes e assustavam os mais pequenos.
Para além das danças ensaiadas na própria freguesia, por vezes vinham visitar e actuar na Fajã Grande muitas outras danças, oriundas da Fajãzinha, da Lomba e até de Santa Cruz.
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ANCORADO NAS VELAS
Debruçado sobre a amurada do convés da primeira classe do Carvalho Araújo, Gonçalo observava distraidamente a vila das Velas, um aglomerado de casas muito branquinhas, umas dispostas em anfiteatro junto ao cais, outras, mais ao longe, plantadas na encosta que, a pouco e pouco se ia galvanizando de verde e se prolongava até ao cume da ilha. Suavemente impulsionado por uma leve ondulação das águas da baía, o paquete voltara a popa a Sul, obrigando-o a mudar-se para estibordo, a fim de continuar a deleitar-se, como muitos outros passageiros, com a contemplação da vila, das casas espelhadas nas águas azuladas do Oceano e a observar o frenético vaivém das pequenas embarcações que ligavam a ilha ao navio, numa árdua e contínua lufa-lufa de transporte de pessoas, animais e mercadorias.
A sirene, no entanto, soou rouca e estrepitosa por três vezes. Era o prenúncio de que em breve o navio levantaria ferro e, ladeando a ilha até à Ponta dos Rosais, rumaria à Graciosa. Simultaneamente, anunciava-se que aquela seria a última barcaça vinda de terra, a demandar o navio. O Carvalho demoraraem São Jorgeum bom par de horas, proporcionando aos passageiros em trânsito a oportunidade de realizar um pequeno périplo pela ilha, admirando e apreciando a beleza das fajãs, a frescura verde das pastagens, a amálgama arborizada das montanhas, o sussurrar diáfano das águas das ribeiras, a tranquilidade das freguesias e a tímida altivez das duas vilas – as Velas e a Calheta.
Gonçalo ainda pensara ir a terra. À sua vontade, porém, atravancara-se a escassez de escudos que os pais lhe haviam colocado nos bolsos, quando, dois dias antes, partira das Flores, com destino a Angra, onde ia continuar os estudos. Poupar era a regra número um. Além disso, já conhecia a ilha. Uns dias de verão na Caldeira de Santo Cristo, em casa de um colega. Um calvário, aquela subida!
Foi na última lancha que ela regressou a bordo! Vira-a pela primeira vez quando supostamente embarcara nas Lajes. Um enorme e estrondoso baque no coração. Depois… depois nunca mais se cruzara com ela. Provavelmente nem saíra no Faial, onde o Carvalho encostara, ali, bem juntinho à doca, proporcionando aos passageiros dirigirem-se para terra sem ter que pagar bilhete. Armazenavam-se assim uns troquitos que chegavam e sobravam para uma feijoada no “Graciosa”, a fim de ressarcir a fome de dias e dias passados bordo, a jejuar mais do que nas Sextas-feiras da Quaresma. Vasculhara o navio de lés-a-lés e nada. No Cais do Pico pusera-se de vigia rigorosa, durante o desembarque e embarque dos passageiros, mas não a vira sair ou entrar. O mar entre as Flores e o Faial não estivera para brincadeiras… Possivelmente teria enjoado, como tantos outros passageiros. Ele também se vira em apuros. É que para além do marulhar constante do oceano provocando um contínuo e interminável baquear do velho paquete sobre as ondas, viajava sem direito a beliche e em terceira classe, onde proliferava um pestilento e emético cheiro a vomitado, a latrinas nauseabundas, a comida enjoosa, ao bafio dos beliches e a bosta de vaca. Também não pregara olho toda a noite e, por isso se encostara de tarde, no convés da segunda, numa cadeira que apanhara desocupada, mas dura que nem pedra. Adormecera entre o Cais e as Velas e não se apercebera da chegada a S. Jorge.
Agora sim. Ali estava ela e parecia-lhe ainda mais bonita do que quando a vira, pela primeira vez, nas Flores. Desceu rapidamente ao portaló, antes que ela subisse as escadas de acesso ao navio e se eclipsasse novamente. Ia segui-la de perto, mas discretamente, muito discretamente para não ser notado. Bafejou-o a sorte. Mal entrou no convés da primeira, sentou-se numa cadeira de descanso, enquanto o casal que a acompanhava e que supostamente seriam os pais, rumou na direcção dos camarotes.
Nervoso, indeciso, quase denunciador, Gonçalo vagueou, simuladamente, para trás e para diante, em frente à cadeira onde ela se sentara, ora voltando à direita, debruçando-se sobre a borda do convés, ora encaminhando-se pela esquerda na direcção da sala de estar. Passado algum tempo decidiu sentar-se numa cadeira, ao lado. Fez-se um silêncio enigmático e profundo, entrecortado por um ou outro olhar de soslaio, durante o qual foi ensaiando, sem sucesso, inúmeras tentativas para a formular a pergunta que havia de fazer, a fim de iniciar conversa.
Pode então, pelo canto do olho, contemplá-la melhor. Era duma beleza extraordinária, deslumbrante e encantadora. Do seu rosto emergia uma simplicidade calma e serena, misturada com uma doçura inefável e sublime. Os cabelos despegavam-se em madeixas onduladas sobre os ombros, cobrindo ao de leve as faces. Dos olhos verdes fluía um brilho cristalino e diamantífero. Os lábios delicados e voluptuosos pareciam ter conquistado um sorriso contínuo, permanente, quase sobrenatural, que se e prolongava, levemente, pelas maçãs do rosto.
De repente, e quase irreflectidamente, quebrando um silêncio gélido, angustiante e emergindo de tão idílica contemplação, voltou-se e disparou, desajeitadamente:
- É das Flores, não é? – E perante a admiração dela prosseguiu. – Desculpe-me, mas acho que a sua cara não me é estranha.
Ela, apercebendo-se da enorme atrapalhação anexada à pergunta, sorriu docemente e retorquiu com um simultâneo abanar de cabeça:
- Não, não sou! Não sou das ilhas… Sou do Continente.
- Tenho a impressão de que a vi embarcar ontem, nas Lajes das Flores!
Que sim. Que tinha vindo com os pais visitar a Madeira e os Açores. Que já estava saturada da viagem, dos enjoos, das pessoas, das ilhas, do navio e, sobretudo, do mar. Desde as Flores que não saíra do camarote, sempre a enjoar, a enjoar. Apenas se levantara para acompanhar os pais que pretenderam agora, conhecer a única ilha que na vinda não conseguiram visitar – S. Jorge.
Gonçalo ia ouvindo com uma inexcedível atenção, ao mesmo tempo que desvendava o mistério do seu desaparecimento, depois do embarque nas Flores. E na esperança de prolongar, indefinidamente, aquele indelével contubérnio, ia retorquir-lhe, contrapondo a beleza das ilhas ao tormentoso suplício da viagem, quando o homem que antes a acompanhara, surgindo à porta da sala de estar, chamou com ar severo e grotesco:
- Elvira!
- Elvira!... – Repetiu Gonçalo inadvertidamente e quase a comprometer-se. E, depois, baixinho, muito baixinho, como se fosse em eco: - “Elvira…” “Elvira, ela chama-se Elvira.”
Até à Terceira não mais lhe pôs a vista em cima, pese embora percorresse, vezes sem conta, o navio da proa à ré, vasculhasse todas as salas e cubículos, vagueasse pela maioria dos corredores e até entrasse em muitos camarotes, simulando enganos e pedindo desculpas. Mas vê-la, nunca mais…
Uma angústia enorme trespassou-o, atirando-o para uma dolente nostalgia que nem a noite entre a Graciosa e a Terceira estagnou.
Na manhã seguinte, o Carvalho, circulando o Monte Brasil, fundeou na baía de Angra… mas ela nunca mais apareceu!
Apenas quando o batelão carregado de malas e passageiros se afastava do velho paquete, com destino ao Cais da Alfândega, Gonçalo pode vê-la, de longe, debruçada sobre a amurada do convés, precisamente naquele sítio onde, na véspera, ficara horas e horas, frente às Velas, à espera que ela surgisse miraculosamente.
E teve a sensação de que ela olhava para ele…
Trémulo, inseguro e langoroso, enquanto o batelão, a arfar de malas e passageiros e a enterrar-se entre as ondas altivas e buliçosas provocadas por um forte vento de sudoeste, se aproximava de terra, foi repetindo baixinho, num misto de dor, de paixão e de raiva:
- Elvira!... Elvira!.. Elvira!...
E o pequeno batel afastou-se, definitivamente, do Carvalho!
Alta noite quando, já quase adormecido, se enlevava com a esfíngica imagem que lhe havia de ficar para sempre gravada no peito, ouviu chamar muito ao longe: “Elvira! Elvira! Elvira!” Eram os três apitos roucos e estrépitos do Carvalho a anunciar que, dentro em breve partia, com destino a S. Miguel.
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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (I)
Anamudo – Aquele que não tem medo.
Andar ao deus-dará – Viver irresponsavelmente, sob as ordens de ninguém.
Apanhar sargos – Tontear ou dormitar sentado, deixando cair a cabeça de vez em quando.
Atira-te da roch’ábaixo – Desaparece da minha frente.
Barra – Cama.
Bicho da buraca – Pessoa muito envergonhada.
Bisca malina – Mulher muito má.
Bota sintide – Presta atenção.
Caninos da caixa – Pequena gaveta que existia num dos lados das caixas da roupa e servia para guardar linhas, agulhas, tesouras, dedais, etc.
Deitar as tripas p’la boca fora – Vomitar muito.
Entregar – Proferir o nome do Diabo.
Está muito somenos – Está muito mau tempo ou qualquer outro estado mal.
Estar à mão de semear – Estar a fazer algo que merece um castigo
Estar entre a cruz e a caldeirinha – Estar quase a morrer.
Estar no mato sem cordas – Ter um problema grande e não dispor de meios suficientes para o resolver.
Estar por de trás das raízes do Monchique – Estar perdido ou estar tão longe de algo que se torna impossível alcançar.
Eu me benzo do Coiso-Mau – Expressão de revolta contra algo que se julga errado.
Falquejar – Cortar um pau com uma navalha ou canivete.
Faz trás – Incentivo aos animais bovinos para voltarem no fim de um rego, quando se lavravam os campos, ou noutra situação.
In coire – Completamente nu.
Mulher escoimada – Mulher muito limpa.
Naitigão – Camisa de dormir.
Não parar em ramo verde – Não estar quieto.
Os diabes te levem – Expressão para recriminar quem fez uma grande asneira.
Pagar com conchas de lapas – Não ter dinheiro para comprar algo.
Pronto pra ir ver os senhores de bengala – Animal bovino, suficientemente nutrido, para ser vendido e embarcado para Lisboa.
Repnicar – Comer pedacinhos de um alimento antes da refeição ser servida.
Ser como as terras do Areal que prometem muito e dão pouco – Prometer muito mas fazer pouco.
Ser da pele do Eira-má – Ser muito mau.
Tá mais à mão – Está mais perto ou está disponível para ser usado.
Ter o diabe no corpe –Ser muito mau.
Tirapuxas - Discussões.
Toca a baixe e/ou toca à riba – Saudação entre duas pessoas, quando passavam uma pela outra, um a descer e o outro a subir.
Toca a descansar – Saudação de alguém que passava por outro ou outros que estavam sentados.
Tremer como varas verdes – Ter muito medo.
Ua grandeza – Grande quantidade.
Ui monços piquenes – As crianças.
Valha-mo nam sei-que-diga. – Expressão usada para indicar grande atrapalhação.
Xisqueiro – Casota do porco, anexa ao curral.
Xou pa trás – Incentivo ao porco ou às galinhas para se afastarem a fim de se lhes poder dar a comida.
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FAJÃ GRANDE - HISTORIAL
(TEXTO RETIRADO DO SITE DO MUNICÍPIO DAS LAJES DAS FLORES)
Fajã Grande, ocupando uma área de aproximadamente 12,55 quilómetros quadrados, é uma das freguesias mais povoadas do concelho de Lajes das Flores.
Localizada na costa oeste da Ilha, confronta com as freguesias de Ponta Delgada das Flores e Fajãzinha e representa o lugar mais ocidental de toda a Europa. Um pouco afastado da Ilha, encontra-se o ilhéu de Monchique, o último sinal físico que separa o Velho do Novo Mundo, assim descrito pelo Padre José António Camões, na sua obra Roteiro Exacto da Costa da Ilha : "Em distancia de uma legoa, pouco mais ou menos, a noroeste da ilha, está um alto ilheo de pedra chamado Monxique, que sendo bem alto ( nada menos de vinte braças de altura) há por vêzes mar tão bravo naquella Costa, que o cobre todo, saltando-lhe as ondas por cima".
Administrativamente, só na segunda metade do século XIX, a Fajã Grande obteve a sua autonomia política e religiosa. A freguesia de Nossa Senhora do Remédios de Fajãzinha, a que pertencia o lugar de Fajã Grande, havia sido instituída em 1676, englobando os lugares da Ponta, Fajã Grande, Caldeira e Mosteiro. Nesse ano, haviam sido desanexado os lugares da Ponta da Fajã, relativamente ao da Ponta Delgada, e do Mosteiro, relativamente ás Lajes. Ora, só passados duzentos anos, a provisão do Bispo de Angra, Frei Estevão, datada de 1861, institui a Paróquia de São José de Fajã Grande em conjunto com as povoações da Ponta e Cuada. O Padre Camões, relativamente a esta região, afirma o seguinte: "Continua baixio até uma pequena enseada a que chamam a baixa d'agoa. Continua baixio, baixio até chegar ao porto da Fajã Grande, que tem no meio um grande morro chamado o Calhau da Barra. Para dentro do dicto Calhau fica um grande poço de mar chamado o Poção, que dá refugio aos barcos que entrão com mar bravo".
Gaspar Frutuoso, por outro lado, oferece-nos uma descrição mais viva da região, na sua obra Saudades da Terra: "Dali a um quarto de légua está uma Fajã, chamada Grande, que dá pão e pastel, em terra rasa, com algumas engradas onde entram caravelas de até cinquenta moios de pão a tomar o pastel que nela se faz, onde também há marisco e pescado de toda a sorte, e no cabo dela está um areal, de meia légua de comprido, em que sempre, anda o mar muito bravo; e dali por diante, a outra meia légua, é tudo rocha talhada, onde se apanha muita urzela, e de muita penedia por baixo, em que se cria infinidade de marisco e grandes caranguejos e desta mesma maneira corre a rocha um tiro de bombarda até uma ponta, que sai ao mar um tiro de arcabuz, com um baixo de pedra, que tem lapas e búzios; e, logo adiante da ponta, se faz uma baía, onde com ventos levantes ancoram navios de toda a sorte e também naus da Índia. No meio deste ancoradouro cai da rocha no mar, a pique, uma grande ribeira".
Através desta colorida descrição, pode-se inferir que, na época a Fajã Grande era centro de grandes transações comerciais, chegando mesmo as caravelas da Índia a encontrar aqui um precioso desembarcadouro.
Por outro lado, o autor faz ainda uma clara referência á riqueza e variedade do pescado da região, ainda hoje preservado. Apesar de, actualmente, não registar tão grande azáfama a Fajã Grande continua a encantar quem a visita, pela amenidade do seu clima, pela transparência das suas águas ou pelas suas piscinas naturais, enfim, ela assume-se hoje como uma verdadeira estância de veraneio para todos os florentinos.
De todos os lugares que compõem esta pitoresca Freguesia, dois sobressaem pelas suas paisagens naturais:
A Ponta da Fajã Grande é uma aldeia imaginária e de sonho, num mundo marcado pela solidão e pela falta de valores. Desde que serviu de fronteira entre as freguesias de Nossa Senhora do Remédios de Fajãzinha e de São Pedro da Ponta Delgada, o destino desta região ficou para sempre traçado.
Actualmente, com as suas cascatas de águas e escorrer pelas escarpas abaixo, a Ponta da Fajã Grande é um idílico lugar onde vivem menos de 20 almas. Com tradições profundamente rurais, aqui ainda se ouve o cantar dos pássaros, o murmurar das águas e o marulhar do mar, por vezes intempestivo.
A Quada, palavra que deriva de saracotear, ou seja, «andar de um lugar para o outro», foi uma povoação que, desde cedo, sentiu o fenómeno da desertificação. Este airoso terraço entre a Fajã Grande e a Fajãzinha, encontra-se assim associado, na mais pura tradição florentina do aldear, aos contrastes e dissabores que, com o tempo, foram surgindo na Fajã e que levaram algumas famílias a abandonarem a sua terra natal.
"A Fajã é uma vila,
A Quada é um outeiro
P'ra onde as aves do campo
Vão fazer o seu linheiro.
As tecedeiras da Quada
São todas muito apuradas,
Tecem colchas cobertores,
Cobertas e almofadas"
Hoje, quase todo o povoado foi recuperado para fins turísticos o que constitui sem dúvida um exemplo de Turismo Rural de sucesso. "Aldeia da Quada", assim baptizada pelo empresário Carlos Silva, seu proprietário e gerente é um sítio convidativo à Paz, e ao bucolismo que a Ilha inspira. Um contacto imprescindível com a Natureza que se recomenda.
Porque as pessoas são parte integrante da História de cada região, Fajã Grande orgulha-se de ter sido o berço de algumas personalidades que, no seu tempo e à sua maneira, contribuíram para o seu engrandecimento. De entre as várias individualidades florentinas, destacam-se o Padre José Luís de Fraga, pelo seus dons de orador, escritor e músico; e Pedro da Silveira, historiador e poeta, com vários trabalhos publicados.
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SETE DE ABRIL DIA NACIONAL DO MOINHO
A “Rede Portuguesa de Moinhos”, com o apoio da “Sociedade Internacional de Molinologia” consagrou o dia 7 de Abril como o Dia Nacional do Moinho. Este ano, no entanto, porque esta data coincidiu com um dia de trabalho semanal, a RPM decidiu alterar esta comemoração, celebrando o Dia Nacional do Moinho, no fim-de-semana imediatamente posterior, ou seja, 10 e 11 de Abril, a fim de que possa haver uma maior participação por parte da população portuguesa nas actividades programadas, entre as quais se destacam visitas guiadas a diversos moinhos, uns recentemente recuperados e outros ainda a funcionar, bem como a observação, nos mesmos, de todas as operações ligadas à moagem dos cereais, nomeadamente do milho.
Embora decorrentes por quase todo o país, este ano as actividades programadas centralizaram-se especialmente no distrito de Aveiro, zona onde proliferam azenhas e moinhos de água e de vento, os quais estarão abertos e a funcionar durante todo o fim-de-semana. Assim foram programadas visitas guiadas aos seguintes moinhos daquele distrito: Aradas em Aveiro, Angeja em Albergaria-a-Velha, Pinheiro da Bemposta em Oliveira de Azeméis, Arões em Vale de Cambra, Real e Tilas em Castelo de Paiva, Pessegueiro em Sever do Vouga, Macieira de Alcôda em Águeda e S. Lourenço do Bairro em Anadia, para além de muitos outros.
Os Açores em geral e a ilha das Flores muito em particular com destaque para a zona da Fajã Grande e da Fajãzinha, são uma região onde outrora proliferavam moinhos. Hoje, com excepção de um na Fajãzinha, na Fajã Grande os moinhos estão completamente abandonados, por isso, urge perguntar, ao comemorar-se esta data, se não seria de se pensar nos moinhos da zona da Ribeira das Casas, nomeadamente dois que pertenceram a tio Manuel Luís, um outro pertencente ao Manuel Dawling e ainda o Moinho do Engenho? Não seria de se recuperar ou reconstruir pelo menos um destes moinhos, transformando-o em arquétipo turístico e referencial da cultura e da história duma freguesia que num passado recente, teve como actividade primordial a agricultura, com destaque para o cultivo do milho?
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A LAVADEIRA
Todas as manhãs, quando ainda bem tisnadas de escuro, lá ia ela, Fontinha acima, cesto de vimes brancos a abarrotar de roupa à cabeça, braços em arco, as mãos amparadas nos quadris e o corpo num baloiço contínuo, inseguro, e desusado mas elegante, arrebatado e transcendentemente sublime. Vestia blusa de flanela branca e saia de chita avermelhada, lenço amarelado, de “clafate”, a deixar sair, na frente, duas madeixas de ouro encastoadas no mármore da testa. Meia de algodão níveo e galochas de madeira a batucar sobre a calçada – ploc, ploc, ploc, - despacha-te moçoila, não que seja tarde, mas é preciso chegar a tempo de me assenhorear do meu lavadouro – ploc, ploc, ploc – que se as outras chegam primeiro, lá fico eu “a ver navios”.
A tia Almerinda, postada à Fonte Velha, à espera de alcovitices e de que a bilha se enchesse de água, bem pedia conversa. Não senhora. Novidades?! Não as há, nem as sei! Era o que me havia de faltar, a esta hora da manhã, a dar conversa a umas e a outras. Sim, porque agora era a tia Almerinda, mas depois havia de ser a Ana Benta, a senhora Floripes, a Lídia do Caetano e todas as que havia de encontrar até à Ribeira, sempre ávidas de tudo querer saber, sempre desejosas de se meterem na vida de uns e outros – ploc, ploc, ploc - que não há tempo para conversas com ninguém. É preciso chegar cedo a casa. Depois da Ribeira, ainda há o pai na Cabaceira, a ceifar, a cavar, a sachar - todo o santo dia, meu Deus - à espera que ela lhe leve um bocado de pão, uma nica de queijo e um bule de café, a mãe doente, impedida de sair de casa e a avó acamada - ploc, ploc, ploc – depressa, mais depressa, rapariga. Que a vida não se compadece com demoras. E ele, o lavadouro da Ribeira, à espera.
Chegou ao Alagoeiro, já o Sol quase raiava por cima da Rocha. Tanto que lhe custava passar por ali. Se houvesse outro caminho para a Ribeira… Mesmo que fosse mais longe… Evitava, definitivamente, encontrar aqueles bisbórrias – uns bananas - sempre ali sentados à espera de nada, sempre a segui-la com olhares maliciosos, sempre a mandar-lhe bocas infames, sempre a verberar indignidade e malícia. Bem avolumava o batucar das galochas na calçada, a ver se abafava os grunhidos daquela corja - ploc, ploc, ploc – mas até parecia que o bater mais forte do sapateado lhes espevitava a concupiscência. Sempre uns mal-educados, uns canalhas, uns inconvenientes e a Ribeira ainda distante – ploc, ploc, ploc – que é tarde, muito tarde.
Depois de subir a Fontinha e ultrapassar aquele martírio do Alagoeiro, o caminho era mais fácil, ninguém lhe aparecia, ninguém a importunava, coisa nenhuma fazia com que se atrasasse, sempre com o cesto da roupa suja à cabeça, agora mais ligeira e expedita – ploc, ploc, ploc - que a Ribeira é já ali, a seguir àquela curva. Ela é a primeira a chegar e o seu lavadouro eleito, preferido e desejado, já ali está, postado entre as margens do açude, à espera dela. Felizmente, ninguém o ocupara.
A água caía da Rocha, em cascatas, sussurrante, transparente e cristalina, misturando-se com o verde dos socalcos e andurriais. Depois de cair no chão, deslizava suave e sibilante, na direcção do mar, por ténues e esguios veios, formando aqui e acolá pequenos lagos, onde cresciam agriões, prosperavam inhames e floresciam nenúfares e, depois, corria célere até se desfazer e transformar num enorme açude, ladeado de pedregulhos tingidos de limos esverdeados, e de pedras rectangulares, verticalmente encostadas às margens, umas a imitar represas outras a servirem de lavadouros, como se fosse um gigantesco e arquitectado tanque. Há muito que escolhera aquele lavadouro e o elegera como seu. Ao redor as relvas e campos separados por beirais de álamos, faeiras, vimes e salgueiros verdejantes, o tilintar solene das campainhas das vacas, o saltitar perplexo e atribulado da passarada dos salgueiros para os álamos, dos álamos para as faeiras, na mira de acasalamentos. E a roupa já toda encharcada na água fresca e transparente, a desfazer-se do vidrado matinal que a quietude da madrugada edificara.
E o seu lavadouro ali mesmo, à sua espera. Já se afeiçoara a ele, já o adoptara como seu, já se ajoelhara a seu lado e agora, ensaboando a roupa, ia esfregando na face áspera e rugosa daquele rígido pedaço de basalto, peça a peça, num frenético vaivém que lhe sacudia o corpo, lhe exercitava os braços e até deixava antever, por entre o desabotoar desalinhado da blusa, uma nesga marmórea do peito. Chegavam outras e depois outras e ainda mais algumas. Como ela, também despejavam, ali, no açude a sujidade inteira do dia anterior, de outros dias e de muitos dias. Mas nenhuma como ela tinha o seu lavadouro preferido, afeito, conquistado com o desvelo inebriante do despertar das madrugadas, ainda tingidas de negro e que lhe transformava a roupa, tornando-a mais limpa, mais branca e mais perfumada do que a de todas as outras lavadeiras.
Já é tarde, mas o cesto de vimes brancos enche-se, agora, de roupa lavada, fresca e perfumada! São horas de andar. O pai espera-a, cansado faminto, atulhado de canseiras e trabalhos na Cabaceira. E a mãe há-de achar que demorou uma eternidade – ploc, ploc, ploc – a descer a Fontinha.
E o ritual da lavadeira – ploc, ploc, ploc – há-de repetir-se no dia seguinte. Todas as outras manhãs, continuará a subir a Fontinha – ploc, ploc, ploc – cada vez mais rápida, cada dia mais veloz, na ânsia de chegar a tempo, para que ninguém lhe retire o seu lavadouro.
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VINDIMAS NO DOURO
Em casa dos pais de Mariana, a vindima era feita no mês de Outubro. É verdade que não era uma folia tão animada e divertida como a desfolhada. As uvas não eram muitas mas o trabalho era árduo e pesado. O pai de Mariana passara meses e meses a podar os bacelos e a enxertar e a amarrar as videiras a estacas de pedra granítica e aos amieiros e carvalhos das beiradas que circundavam o campo onde o milho crescia a olhos vistos. Quando as vides já cobriam os bardos de um verde muito escuro e os cachos começavam a desabrochar, suspendendo-se graciosamente das latadas ou pendurando-se desordenadamente nas beiradas, o pai passava horas e horas de máquina a tiracolo a sulfatá-las uma a uma. Depois, já amadurecidas e muito apetitosas, as uvas eram colhidas e levadas em cestos para o lagar, onde eram esmagadas. Durante os dias seguintes exalava do mosto um cheiro perfumado, acre e doce que se propagava por toda a casa.
Para além destes dias verdadeiramente diferentes para Mariana, os restantes dias do ano eram de uma verdadeira monotonia. Levantava-se cedo e seguia para a escola, onde fazia ditados, resolvia problemas, estudava os rios e as serras, os reis e as batalhas, os vertebrados e invertebrados. Na hora de leitura a senhora professora juntava todas as meninas à volta da secretária, por trás da qual ficavam, ladeando um crucifixo pendurado na parede, as fotografias de Craveiro Lopes e Salazar, para lerem à vez e contarem histórias. Terminadas as aulas regressava a casa, ajudava os pais, tomava conta do Zezito e fazia as cópias e as contas que a Dona Ermelinda mandava. Apenas os domingos e os dias de festa em que os pais não trabalhavam no campo eram diferentes.
A festa que Mariana mais adorava era o Natal. Todos os anos faziam, na sala, um enorme presépio com as figurinhas de barro que a mãe trouxera das Caldas: o Menino Jesus, Maria, José, os três Reis Magos, os anjos, os pastorinhos e muitos aldeões que circulavam à volta da gruta, por caminhos cobertos com serrim de madeira e ladeados por casinhas também de barro e por leivas de musgo a imitar os campos onde pastavam as ovelhitas. Mas o que Mariana mais ansiava era a noite de Natal. Nessa noite a ceia era na sala e a mãe enchia a mesa de iguarias deliciosas que aprendera a fazer com a avó da Trofa: rabanadas, formigos, aletria e sopas secas que enchiam a casa de um agradável cheirinho a canela. Terminada a ceia partiam, às vezes com o Zezito já a dormir, para a missa do galo.
O pai ficava cá fora com os homens, enquanto ela e a mãe entravam na igreja, sentavam-se e esperavam em silêncio ou rezavam baixinho, até que o sacristão, viesse tocar uma campainha, anunciando que a missa ia começar. Os homens que aguardavam lá fora entravam para o coro e para os lugares do fundo, enchendo a igreja por completo. Toda a gente se levantava e fazia-se um enorme silêncio. O pároco saia da sacristia todo vestido de branco e, segurando na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado, dirigia-se para o altar-mor, fazia uma enorme genuflexão e bichanava as primeiras orações em latim, às quais apenas o sacristão respondia. O povo, de joelhos batia com a mão direita no peito e inclinava a cabeça. Pouco depois, o padre aproximava-se do centro do altar, voltava-se para o sacrário e erguendo os braços, entoava o “Glória”, ao mesmo tempo que o sacristão voltava a badalar prolongadamente a campainha enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz, de cor e de alegria. Terminada a missa, entoavam-se cânticos de Natal e o pároco dirigia-se para o presépio que ficava do lado direito da capela-mor. Recebendo o turíbulo fumegante, balouçava-o diante das enormes figuras de Maria, José e do Menino, enchendo o templo de fumo e de cheiro a incenso. De seguida tomava o Menino nas mãos e colocando-se junto à grade que separava a capela-mor do cruzeiro, dava-o a beijar aos fiéis. Mariana, juntamente com as outras crianças, incorporava-se nos primeiros lugares da longa fila que se formava à espera de vez para beijar o Menino Jesus e para depositar, na cestinha que o sacristão mantinha na mão, os vinte centavos que a mãe lhe dera na véspera.
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A SENHORA D’ALVA
Todas as manhãs a “Senhora d’Alva” aproava ao velho cais, um tapete agreste, rústico e crispado, feito de cimento amassado com areia e misturado com pedregulhos, atirados e colados sobre as pedras negras e virgens do baixio, bem visíveis nos buracos que se haviam aberto com o passar dos anos, com o cirandar das pessoas e com o rolar de pipas e mercadorias. Depois o mar, ali ao lado, com o constante marulhar das suas ondas, umas vezes revolto, agressivo e destruidor, outras meigo e pacato, mas sempre a agastar, sempre a desfazer, sempre a destruir, numa erosão contínua, permanente e afanosa.
Alheia às asperezas e desgastes do cais, a “Senhora d’Alva” cruzava o oceano, sulcando as suas águas, umas vezes bravas e altivas, outras mansas e suaves, mas sempre tingidas de um azulado enternecedor, a embalá-la com um misto de afeição e suavidade. Carregava sobre si homens, mulheres, velhos e crianças, uns emaranhados nas tarefas do seu labutar quotidiano, outros encastoados nos caprichos de devaneios e lazeres, mas todos a alcandorarem-se num enlevo maravilhoso, num encanto sublime, num êxtase transcendente. A “Senhora d’Alva”, ao rasgar as águas azuladas do oceano, carregava consigo, à mistura com o feitiço das madrugadas, a magia sublime de um navegar mavioso, deslumbrante e enternecedor.
Depois e já encostada ao cais, prendia-se a ele como se não tivesse medo. Os velhos e enferrujados moitões, ali plantados há séculos, abraçavam-se a ela, seguravam-na nos seus grossos cabos, roçando-os nos beirais agrestes e nas escadas desgastadas, num vaivém embalador, contínuo e mavioso. Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças e até alguns doentes, viajando em macas ou em cadeiras de rodas, evaporavam-se pelo portaló fora, como se o entardecer do mundo inteiro os estivesse a perseguir. Depois era um evadir-se de malas, caixotes, sacos, encomendas e mercadoria diversa. Uma miscelânea de recursos! Uma enchente perplexa que urgia esvaziar. A “Senhora d’Alva”, só, vácua, triste e plangente, emitia sons de sirene, magoados, esbaforidos, que se prolongavam como que em eco e se perdiam sobre o cais, mas logo, sedenta, querençosa e desdenhada, abria-se a abrigar, em nova enchente, os que até então, ali se a haviam postado, à espera de um novo lamento de partida.
E lá ia, noutro recortar de águas, noutro embalar de sonhos, noutra aurora de encantos, noutro desgaste de trabalhos e canseiras. E o mar sempre ali, a seu lado, a bafejá-la com o seu sopro, a acariciá-la com a simulada agressividade das suas ondas e, sobretudo, a encorajá-la com a extravagante força de segurar e prender o seu destino, muitas vezes, cerceado pelas nuvens ou desfeito pelo vento.
Um dia, porém, os homens decidiram que o destino da “Senhora d’Alva” havia de se alterar. Agora atirada, dias e dias a fio, para terras distantes, para mares longínquos, esquecia o velho cais, só o demandando, quando a abarrotar de pescado, sob as ordens de uns marinheiros desconhecidos e estranhos, de calças de cotim arregaçadas pelo joelho, chapéus de palha a contrariar o vento, Urgia aliviar-se e, por isso mesmo, agarrava-se a um cais deserto e abandonado, sem homens, sem mulheres, sem velhos e, sobretudo, sem crianças. Era apenas um patamar seco e árido, sem vida, sem emoção e sem deslumbramento.
Não durou muito este martírio doloroso, apesar de decalcado de esperança inútil. A “Senhora d’Alva”, hoje, jaz em terra, distante do cais, do seu fadário quotidiano, separada daquele mar de ondas bravias mas azuladas, de espuma enfadonha mas adocicada que durante anos a fio lhe traçou as rotas e lhe norteou um destino gratificante, complacente, mavioso e sublime.
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BIBLIOTECA ESCOLAR RECURSO EDUCATIVO
Com este pequeno trabalho, integrado em termos de avaliação, na acção de formação em que participei, denominada “A Interacção dos Domínios do Ouvir/Falar/Ler/Escrever na disciplina de Português do Ensino Básico e Secundário”, organizada pelo Centro de Formação de Professores de Paredes, sob a orientação da Drª Luísa Alvarenga, pretendo fundamentalmente, por um lado, colaborar, embora modestamente, na sensibilização dos participantes para a necessidade de criação da biblioteca escolar, como “catedral da leitura”, nas nossas escolas, ou da sua organização, estruturação e possível transformação em mediateca ou centro de recursos; e por outro, através da programação de uma aula de iniciação à biblioteca, demonstrar quão importante é, nas nossas aulas de Língua Portuguesa, sensibilizar os alunos para o contacto com o livro e para a leitura.
A Lei de Bases do Sistema Educativo, no artº 7º, estabelece que o Ensino Básico tem como objectivo prioritário “assegurar uma formação geral comum a todos os portugueses”. Isto implica: um assédio permanente a uma informação global e universal e um “apoderar-se” do património cultural da humanidade.
Um e outro destes pressupostos atingem-se mediante o contacto com o livro. Na realidade, os livros são uma espécie de “reserva cultural”, “acumuladores” da cultura e do saber universal, a herança cultural da humanidade.
Assim, a leitura permite ao indivíduo conhecer a experiência dos povos de todos os tempos e de espaços diferentes, partilhando as suas vivências e a sua cultura. O afastamento dos livros ou a não leitura leva a uma “castração intelectual”, a situações de individualismo, à indiferença perante o mundo e perante os valores universais, ao atrofiar do pensamento, à estagnação da capacidade de agir e pensar, ao niilismo intelectual e ao afastamento dos padrões de cultura.
A institucionalização da ignorância e do analfabetismo como “bem necessário” só é provocada por regimes totalitários e por detentores de verdades absolutas. A censura e o índex são a prova histórica disso.
A leitura é, pois, inerente à formação e à educação Não se pode ensinar sem formar e informar e o livro tem essa dupla função. Ler é formar-se e educar-se, é receber cultura, é combater a ignorância e o analfabetismo. Por isso, deve ser um processo dinâmico, gerador de sentidos, provocador de atitudes, que comprometa o indivíduo a nível cognitivo, psicológico e motor. Deve ser um estabelecer de relações com outras formas de comunicação e expressão e alterar a forma de ser e de estar na vida, isto é, provocar marcas humanizadas nos indivíduos e nas sociedades.
O livro é imprescindível à humanidade e inerente ao homem porque, como escreveu Monteiro Lobato, “um país constrói-se com homens e com livros.”
Actualmente, nas escolas, lê-se pouco. Além disso, fomenta-se, sobretudo, a leitura obrigação, isto é, uma leitura imposta, pelos programas ou pelo professor. Esta leitura é, necessariamente, desinteressante, desmotivadora, improdutiva e obstaculiza a “leitura prazer”. Manda-se ler para fazer um resumo ou uma síntese, para preencher uma ficha de leitura, para ter uma nota.
Esta metodologia é desmotivante e desmotivadora, pelo que deverá ser abolida e substituída por um empenhar do aluno, tornando-o, inclusive, co-responsável do processo de escolha. Há que privilegiar a leitura prazer. A biblioteca escolar tem aqui um papel fundamental.
Estudos feitos revelam que a maioria das nossas escolas ou não tem bibliotecas ou têm-nas desorganizadas, pouco funcionais e consequentemente incapazes de atingirem os objectivos que, por natureza, se propõem. Por vezes destinam-se a tudo, excepto à leitura e a uma cada vez maior aproximação dos alunos dos livros. Criadas em Portugal em 1951, verifica-se que, actualmente, apenas 59.4% das antigas Escolas Preparatórias têm bibliotecas, as C+S 56% e as Secundárias 76%. Nas escolas do Primeiro Ciclo este número é muitíssimo mais baixo. Além disso a maioria destas bibliotecas ou não estão devidamente equipadas e apetrechadas ou são meros “cemitérios de livros”, isto é espaços amorfos, sem vida.
Não se pode ficar à espera de que a biblioteca da nossa escola nos apareça, de repente, organizada e repleta de livros. Nada nasce feito, nem nada nasce grande. Uma biblioteca escolar poderá nascer numa prateleira de um armário, com apenas um livro. Não pode é parar, isto é, tem que crescer lenta e continuamente. A cada livro adquirido tem que se juntar outro e depois um outro e assim sucessivamente. O processo de aquisição de livros é moroso e lento, mas não pode nunca ser interrompido. Existem diversas formas de o conseguir. Através de ofertas de entidades, empresas, livrarias, instituições, outras bibliotecas, ofertas de pessoas ligadas à escola, pais, professores, associação de pais, iniciativas do tipo liga dos “Amigos da Biblioteca” que pode abranger alunos, professores pais, etc.. Muito importante é a recolha e guarda de tudo o que é enviado para a escola, quer da parte do Ministério, quer de publicidade de livrarias, etc. O que é importante neste projecto é não parar. Temos que adquirir sempre algo, mesmo que seja um pequeno livro ou uma revista ou jornal. É importante que todo o material adquirido seja registado e devidamente catalogado e colocado no espaço disponível.
Existem livros de registo próprios, sendo fácil fazer uma adaptação. Da mesma forma existem fichas adequadas. Devemos, de início, seguir as normas reguladoras de preenchimento dessas fichas e a organização dos respectivos ficheiros, que são de três tipos: obra, autor e assunto. O recurso a um programa de informática é, actualmente, bastante acessível.
As bibliotecas escolares têm ou devem ter objectivos pedagógicos específicos, que se devem definir a dois níveis: ao nível da promoção e do desenvolvimento da leitura entre os alunos e a nível do apoio e suporte a uma actualização pedagógica permanente.
Para que as bibliotecas escolares sejam um verdadeiro espaço de leitura, exigem-se vários requisitos, dos quais urge salientar: ter uma gama variada de livros que respondam aos interesses e necessidades dos alunos, ter condições de agradabilidade e bem-estar para os seus frequentadores e, sobretudo, para atrair os não-frequentadores, criar espaços e tempos diferentes para diferentes tipos de leitura e de actividades tendo em conta a forma de estar dos seus utentes, ter horários adequados, ter professores e sobretudo funcionários verdadeiramente dinâmicos e responsáveis e com formação adequada, ser divulgada e publicitada em toda a escola e aberta a visitas organizadas das diversas turmas, estar modernizada, isto é, adaptada às novas necessidades educativas, tendo em conta as novas tecnologias, ter material diversificado e adequado a todos os gostos, interesses e exigências e, por fim, dinamizar diversas actividades que fundamentalmente desenvolvam o gosto e a apetência pela leitura.
Para que atinjam os objectivos propostos, exige-se das bibliotecas escolares que tenham em conta o espaço, a organização e o apetrechamento. Quanto ao espaço, exige-se que seja amplo e proporcional ao potencial número de utilizadores, possuindo, dentro do possível, características arquitectónicas adequadas. A biblioteca escolar deve: ser colocada num ponto estratégico da escola e estar perto dos locais onde normalmente circula a maior parte dos seus utilizadores. Além disso deve situar-se longe dos locais mais barulhentos ou incomodativos, ficar próxima de outros sectores de apoio e outros serviços e ser um espaço acessível a todos, incluindo mecanismos de resposta às necessidades dos alunos com deficiências.
É importante também seleccionar o tipo de material e o equipamento de que devem ser dotadas as bibliotecas escolares, bem como a forma como deve estar disposto e organizado. Na maior parte delas (bibliotecas escolares) o equipamento não foi pensado para esse fim: a maioria só tem estantes para livros com armários fechados, sem equipamento específico para arrumar e dispor publicações periódicas, nem para material audiovisual ou outro. Normalmente também não têm previstos espaços especiais para ter documentação, enquanto ela é trabalhada, nem para a divulgação de novidades entradas.
A disposição do equipamento também deve ser cuidada, obedecendo a algumas normas das quais se destacam: privilegiar a área de leitura, sobretudo, em termos de espaço, utilizar cores de preferências claras, os documentos devem ser colocados em prateleiras com0,60 a1.80 metrosdo chão deverão existir zonas de exposições e de leitura de periódicos, separadas das restantes. As diversas zonas ou secções devem estar devidamente sinalizadas, assim como toda a informação. O mobiliário deve estar disposto sempre em função e de forma adequada aos interesses dos utilizadores. Deverá ter aspecto ou forma convidativa, agradável e atraente, embora simples. Ninguém gosta de ler em condições incómodas. A falta de condições pode afastar leitores da biblioteca.
O material deverá ainda ser diversificado, isto é, mesas que contemplem a leitura individual ou a pesquisaem grupo. Aexistência de almofadas, para encosto no chão pode ser uma boa alternativa. Há quem goste de ler recostado. Para os periódicos, nos quais as nossas bibliotecas ainda não apostam muito, existem expositores próprios e estantes adequadas.
Para além de livros uma biblioteca deve possuir: folhetos, publicações periódicas, postais ilustrados, diapositivos, cassetes, vídeos, disquetes, CDs, recortes de jornais, ficheiros de notícias, trabalhos de alunos, etc. Tal equipamento permite desenvolver processos de ensino-aprendizagem em que os alunos não são meros consumidores de informação, mas aprendem investigando, pesquisando, seleccionando e classificando. O ficheiro de notícias, por exemplo, possibilita uma aprendizagem mais motivadora e pode ser um precioso complemento, ou até, nalguns casos, uma real actualização do Manual Escolar e constitui necessariamente mais uma fonte de informação.
Hoje é opinião generalizada de que a Biblioteca Escolar não pode continuar a conter apenas livros. Ela deve modernizar-se utilizando todo o tipo de audiovisuais e material informático de que actualmente dispõem. Esta mudança transforma as Bibliotecas em Mediatecas ou Centros de Recursos.
Na lei de Bases do Sistema Educativo, paralelamente ao Manual Escolar as Bibliotecas Escolares são consideradas como recurso educativo. Ora o livro deixou de ser o único meio de divulgação do saber. O vídeo, o computador, o som e a imagem assumem-se cada vez mais como alternativa utilizada, com efeitos pedagógicos notáveis, no processo de ensino-aprendizagem. Assim os espaços e equipamentos utilizados nas bibliotecas tradicionais não se adaptam nem satisfazem as necessidades actuais, a este nível. Devem surgir, assim, bibliotecas modernas, actualizadas ou Mediatecas que contêm, para além do livro, revistas, jornais, boletins, inclusive os produzidos pelos alunos, audiovisuais, diapositivos, vídeos, cassetes, computadores, disquetes, registos sonoros, etc., e baseiam a sua actividade em pressupostos pedagogicamente essenciais e que são: conhecer e estar atento a toda a informação, os livros continuam a ter importância relevante, criar nos alunos um dinamismo pedagógico activo que permita o manuseamento de todo este material e o acesso ao conhecimento da informação e organizar este material de forma a difundi-lo na escola, assumindo-se como polo mediador de informação.
A Mediateca é pois uma forma organizada do espaço educativo que acolhe professores, alunos e funcionários, podendo inclusive alargar os seus serviços à comunidade envolvente da escola. Assume-se, na realidade como poderoso e forte instrumento de apoio à inovação pedagógica.
A transição da biblioteca para a Mediateca, obviamente, não é fácil. Deve fazer parte dum projecto pedagógico inovador, que estabeleça novas e eficientes formas de relação com o saber e a informação, novas formas de organização do espaço, novas metodologias de aprendizagem e novas estratégias de ensino e “deve ser feita por etapas. Primeiro procurar um local acessível e agradável, escolher mobiliário que permita ao utilizador um fácil acesso aos materiais que deseja para leitura, informação ou pesquisa e introduzir normas e sistemas de classificação e indexação utilizadas internacionalmente. Depois acrescentar aos documentos (tudo o que serve para informar, estudar ou servir de prova) e audiovisuais, dotando as estruturas dos meios necessários à sua utilização. Finalmente e em terceiro lugar, permitir actividades de produção e reprodução de novos documentos. (5)
As Mediatecas deverão ser “um espaço polivalente que englobe um auditório, uma sala de reuniões, uma zona de oficinas, um estúdio, um espaço insonorizado especialmente destinado a trabalhos que envolvam equipamento audio, um espaço dedicado a computadores, um laboratório fotográfico e outro de vídeo, um espaço de consulta de documentos, zonas destinadas a trabalho individual e de grupo e espaços utilizados para consultas e produção de documentos”.(6)
A mediateca deve ser um espaço aberto a todas as disciplinas ou área disciplinares e a todas as actividades curriculares e extra-curriculares. Poderá abrir-se à comunidade envolvente, devendo esta colaborar na sua edificação e beneficiar da sua utilização estabelecendo-se protocolos de cooperação com entidades, autarquias, associações, clubes, empresas e outras escolas. A mediateca deve, assim, ser como que um motor de animação pedagógica, um polo de ligação escola-meio, desempenhando um papel imprescindível em toda a vida e funcionamento da escola.
Em 1990 o PRODEP previa que as escolas se candidatassem ao financiamento a projectos de criação de Mediatecas. O projecto não teve grande eficácia, devido às dificuldades que acarreta a transição. Assim continuamos, numas escolas com bibliotecas tradicionais, estáticas, com pouca vida e dinamismo, ou, noutras, o que é bem pior, sem nada.
A UNESCO aprovou, em Outubro de 1978, um manifesto sobre Mediatecas Escolares, onde se confirma o princípio de que são “essenciais” à educação. O Manifesto define também como objectivos gerais fornecer aos estudantes as capacidades básicas para obter uma vasta gama de recursos e serviços e conduzir os estudantes ao seu uso constante para “divertimento, informação e educação contínua”.
Para atingir estes objectivos, o Manifesto pressupõe alguns recursos: dispor de pessoal qualificado em educação e biblioteconomia, assistido por um número suficiente de pessoal de apoio; possuir uma colecção adequada de materiais impressos e audiovisuais, componente essencial do sistema educativo; dispor de espaço físico para receber os recursos e assegurar o acesso aos mesmos e garantir os serviços.
Os alunos que chegam, pela primeira vez ao ciclo, desconhecem quase por completo, uma biblioteca e não têm poucos contactos com o livro. Assim, caso a escola possua biblioteca, urge logo nos primeiros dias de aulas, programar uma visita à biblioteca, durante uma aula.
Em primeiro lugar o professor deverá contactar o funcionário da biblioteca, informando-o do dia e da hora em que a aula se vai efectuar, a fim de que tudo esteja preparado e a biblioteca se destine apenas aquela turma, durante a referida hora. Depois há que definir os objectivos, preparar o material e programar as actividades. Quanto aos objectivos poderão referir-se, entre outros, os seguintes: reconhecer a necessidade da leitura; conhecer a biblioteca da escola e considerá-la como recurso que deverá usufruir ao longo do ano para estudo, pesquisa e prazer; identificar aspectos para textuais do livro – capa, título, autor, etc.; reconhecer a necessidade de organização, numa biblioteca; despertar para a leitura a diversos níveis; sentir a necessidade de colaborar na construção da biblioteca, aderindo à liga de “Amigos do Livro”. Ente o material seleccionado, pode utilizar-se um texto de António Torrado sobre o interesse do livro, uma ficha de “Visita a Biblioteca e ainda uma ficha de Inscrição de “Amigo do Livro”. A aula deverá constar de diálogo horizontal, no sentido de diagnosticar se os alunos têm ou não hábitos de leitura; diálogo vertical, em ordem a sensibilizar os alunos para a necessidade do contacto com o livro e a leitura; leitura do texto de António Torrado, “Eu sou o livro”; diálogo horizontal sobre o texto lido: o que contêm os livros e a necessidade de contactar com eles – registar a frase “VAMOS LER”. É imperioso levar os alunos a identificar, na escola, o local onde há livros e onde podemos lê-los – Propor uma visita à Biblioteca da Escola. Na biblioteca, explicar a divisão do espaço, a distribuição dos livros, as várias secções, dar algum tempo para os alunos tocarem, verem e folhearem alguns livros, informá-los do horário de funcionamento e apresentar-lhes o funcionário que lhes dará algumas indicações sobre as regras de funcionamento da biblioteca; sensibilizar os alunos para aderirem à Liga de “Amigos do Livro”; preencher a ficha caso alguns manifestem interesse. Como avaliação, na aula seguinte ouvir as impressões dos alunos sobre a biblioteca e o interesse que a visita provocou nos mesmos.
BIBLIOGRAFIA
Abrantes, José Carlos - A Outra Face da Escola - Ministério da Educação, 1ª ed., Quatropontoquatro, Lisboa 1994.
Alvarenga, Maria Luísa - Documentação de apoio à Acção “A Interacção dos Domínios do Ouvir/Falar/Ler/Escrever na disciplina de Português do Ensino Básico e Secundário”, Centro de Formação de Professores de Paredes.
Carvalho, Rosa Maria e Rolo, Maria da Conceição - Materiais de Apoio à Reforma Curricular-Técnicas de Comunicação, Direcção Geral dos Ensinos Básico e Secundário, Lisboa, 1993, vol.s I, III e IV.
Magalhães, Ana Maria e Alçada, Isabel – Os Jovens e a Leitura no Início do Sec. XXI, Caminho, Lisboa 1993.
Pessoa, Ana Maria – A Biblioteca Escolar, Campo das Letras Editores, 1ª ed., Porto, 1994.
Programa de Língua Portuguesa, Ensino Básico, 2º ciclo, DGEBS.
Silva, Ezequiel Theodoro da – Leitura na Escola e na Biblioteca, Papirus Editora, 1ª ed., Campinas, 1991.
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A ENXOTADEIRA DOS TENTILHÕES
O pequeno cerrado que o senhor Ambrósio possuía na Assomada, geralmente, não era “trilhado” pelo gado. Como era uma terra forte, soalheira e abrigada do vento, o trevo, ali semeado por entre o milho já espigado, havia de ficar para a semente. Mas o diabo era a passarada. Quando as espigas amadureciam e se tornavam loiras, acinzentadas, à espera que secassem e ficassem prontas para a apanha, bandos e bandos de pássaros, demandavam-no, fustigados pela fome, debicando aqui, escarafunchando acolá, dando cabo de tudo. Um estrago enorme, um prejuízo incalculável, uma catástrofe descomedida, um dano que era imperioso evitar.
De toda a passarada que, aos poucos, ia depenicando, destruindo e dando cabo das espiguitas que, firmes e hirtas, aguardavam a hora da apanha, a fim de serem guardadas em sacos de serapilheira e ficarem à espera da sementeira do próximo ano, os piores, os mais atrevidos, os que mais comiam e destruíam eram os tentilhões. Biquitos sempre abertos, escorraçados das terras negras e vazias de sementeiras ou acossados das matas pelas ventanias outonais, ali estavam eles, os marotos, acaçapados sobre as paredes, nervosos, a cantarolar para esquecerem a fome, à espera da primeira oportunidade para atacarem massivamente as pobres e indefesas espigas, levemente ondeadas pelo vento, mas bem secas, adocicadas e apetitosas. Os machos eram mais coloridos, com uma coroa azul-acinzentada no cocuruto, a face, peito e barriga de cor vermelha pálida e um manto escuro a cobrir-lhe o dorso e as asas e, distinguiam-se muito bem das fêmeas e dos juvenis, mais pequenitos e com a cabeça e o manto de tons castanho-oliva e o ventre claro. Depois de cheias as barriguitas era um chilrear contínuo, um desassossego alvoraçado, um esvoaçar de um lado para o outro, cruzando os ares em bailados sublimes, em cânticos maviosos, aconchegando-se nos seus afagos amorosos.
O senhor Ambrósio é que não ia nos ajustes. Sempre que por ali passava, enxotava-os, insultava-os, caluniava-os, chamava-lhes nomes e ameaçava-os de que havia de dar cabo deles todos, havia de pilá-los um a um, aqueles malditos, aqueles imbecis, aqueles destruidores da propriedade alheia. Missão impossível, a do senhor Ambrósio, porque, mal virava as costas, os marotos voltavam à safra, a depenicar por aqui e acolá, limpando as espigas de uma ponta a outra.
Nada mais podia a fazer, pensou o senhor Ambrósio, do que pôr-lhes lá uns espantalhos. Muniu-se de canas, de atilhos, de trapos velhos que abundavam lá em casa e toca a amarrar as canas em cruz e a revesti-las com calças, camisas, casacos e lenços de merino, tudo velho e em desuso, mas a simular perfeitas mas estáticas criaturas humanas.
Mas depressa se aperceberam os atrevidotes dos tentilhões de que aquilo era embuste. Quedos e mudos, aqueles figurões podiam ali estar o dia todo que nunca os haviam de incomodar, nem muito menos os impedir de encherem o papo e de se regalarem com tão farta comezaina. O senhor Ambrósio, no dia seguinte voltava à terra e a desgraça ainda parecia maior e a perda mais avassaladora.
Não se dando conta de que havia outro meio de salvar as suas sementes de trevo, o senhor Ambrósio decidiu-se por mandar para a sua terra, a filha, a Josefina, moça esbelta e bonita, mas muito meiga e mais afeita às lides domésticas do que aos trabalhos do campo. De início manifestou decidida recusa, mas perante a insistência autoritária do pai, teve que anuir.
E lá ia, todas as manhãs, Assomada acima, tristonha mas airosa, contrariada mas elegante, revoltada mas graciosa, de varinha na mão, cestinha no braço, disfarçada de “enxotadeira”, na demanda dos tentilhões da terra da Assomada.
Num dos primeiros dias, porém, deparou-se, logo à entrada do terreno, com um tentilhãozito muito pequenino, atirado para o chão, de papo para o ar, a tremer de frio, quase inerte. De certo, que se o não ajudasse, o “piauzinho” havia de morrer. Pachorrenta e cuidadosa, meiga e ternurenta, fez-lhe ali mesmo, na aba duma pedra, um pequenino linheiro, com algumas folhas retiradas do restolho. Aqueceu o infeliz passarito nas suas mãos, bafejou-o com o seu hálito e mimou-o com um carinho excessivo e um afecto desmesurado e, colocando-o no ninho, ia apanhando pequeninos bagos de trevo que lhe enfiava pelo biquito aberto, esfomeado e impertinente. Já farto, o petiz arrebitou e adormeceu. Josefina retirou-se, velando-o de longe. Não tardou muito. Um casal de tentilhões veio, timidamente, poisar nos arredores e, saltando de pedra em pedra, de espiga em espiga, foi-se aproximando do pequeno linheiro, onde o tentilhãozinho dormia sossegado e tranquilo, ao mesmo tempo que um bando de tentilhões, sobrevoava em revoada, entre cânticos e danças, a paraninfa de um dos seus semelhantes. Até parecia que estavam a agradecer-lhe!
O pior foi que, no dia seguinte e para espanto seu, o senhor Ambrósio concluiu que afinal, mais nada havia a fazer, pois os malditos dos tentilhões ainda maior prejuízo lhe haviam dado no trevo que ele com tanto esmero cultivara e cujas espigas pretendia guardar para semear, no ano seguinte.
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FORA D'ORAS
Adeus, petisco da meia-noite! Adeus, petiscos das noites claras! Adeus, bolachinha agora, biscoito logo e fatiazinha de queijo a seguir! Adeus, petisca daqui e come d’acolá! Adeus a tudo o que é comer fora d’oras, em casa, no parque, sobre a relva, à sombra duma árvore centenária, debaixo da latada, à beira mar, na doca ou no mais emblemático jardim! Adeus, visitas rapidinhas ao frigorífico! Proibido está o copinho de leite com chocolate acompanhado de umas bolachinhas, que sabia tão bem, durante os longos serões de Inverno ou nas escaldantes noites de Verão.
A acreditar nos resultados de um estudo ontem publicado on-line, pela revista Arquinhausity Mariithan, reduzir o número de calorias e fazer exercício físico poderá não chegar para travar o aumento do peso. O evitar comer fora d’oras pu o romper, radicalmente, com este hábito, também pode ser importante para a manutenção do peso ideal.
No entanto, nada do revelado na citada revista parece ser novo. Já se sabia que não convém comer muito ao jantar e que a ceia também deve ser muito ligeira. A partir daí, jejum absoluto e radical. Tudo isto se aplica com maior rigor aos doentes que sofrem de insuficiência renal. Estes doentes, como no meu caso, devem ter, para além de um regime alimentar adequado, um horário de alimentação muito rigoroso. Cumprir, rigorosamente, quer em termos de qualidade quer de quantidade, os limites impostos pela nutricionista é fundamental para estes doentes.
Assim, o velho conselho das nossas avós e mães para não comermos fora de horas parece ser acertado. Os nutricionistas alertam para não comer muito de noite, principalmente a pessoas em dieta, mas aconselham que não se permaneça mais de oito horas sem ingerir qualquer alimento.
Para além de não comer fora d’oras, como doente que sofre de insuficiência renal, devo abster-me dos seguintes alimentos: Alheira, Amendoim, Bacalhau, Bagaço e outras bebidas alcoólicas, Banana, Bifana, Biscoito, Bolo do Tijolo, Bolo Doce, Bolo-Rei, Confeitos e outras Guloseimas, Carne de Vaca, Carne Gorda de Porco, Cerveja, Chocolate, Conserva em Azeite ou Óleo, Courgette, Couve Verde, Croissant, Fava Ervilha e Grão, Feijão, Farturas e Filoses, Fritos e Panados, Francesinha, Fiambre e Mortadela, Figo, Frango, Gelado, Gema, Grelos, Hambúrguer, Inhame, Iogurte, Ketchup, Kiwi, Laranja, Leite, Linguiça, Maionese, Manteiga, Marisco, Massa Sovada, Melancia, Melão, Meloa, Morcela, Natas, Nectarina, Pão de Milho ou Boroa, Pastel Folhado, Pizza, Pudim, Queijo Curado, Queijo Ralado ou Fatiado, Quiche, Sardinha, Sopas de Leite, Sumo de Fruta e Uvas. Proibido ainda está o tomate e o vinho verde.
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MEU PAI
Meu pai sabia ler e escrever, por isso deve ter frequentado a escola primária em criança, coisa rara no seu tempo e nas pessoas da sua idade, o que muito provavelmente se deveu à bondade, benevolência e lucidez intelectual do meu avô, conhecido por “Tio Antonho Bonzinho”. No entanto de pouco terá servido ao meu progenitor a aprendizagem da leitura e da escrita, a não ser para escrever uma vez ou outra umas linhas aos irmãos que haviam abalado para a Califórnia e a decorar o texto para uma peça de teatro, representada na Fajã, na Casa do Espírito Santo de Cima, em que participou e, segundo rezavam as crónicas da altura, com um excelente desempenho e uma desusada performance.
No entanto a sua grande escola foi a da vida, em que se “licenciou” com distinção e louvor. Eu fui dos filhos que mais andei sozinho com ele, calcorreando não só os caminhos, canadas e atalhos da Fajã, mas também percorrendo uma boa parte da ilha das Flores de dia e de noite, com os pés descalços, por entre nevoeiros e neblinas, saltando grotões e furando tapumes. Ficaram-me para sempre na memória algumas viagens que fiz com ele: a minha primeira subida da Rocha da Fajãzinha para ir ao Mosteiro comprar um bácoro, uma viagem durante uma noite, entre Ponta Delgada e a Fajã, descendo já de madrugada a Rocha da Ponta, uma outra para Santa Cruz embarcar uma vaca e algumas às Lajes para tirar o bilhete de identidade, apresentar-me ao Director Escolar ou simplesmente para ir buscar encomendas vindas da América. Meus irmãos mais velhos ficavam a ceifar, a sachar, a lavrar os campos ou a tratar das vacas e meu pai levava-me com ele nas suas idas, a tratar do que necessitava, às Lajes, à Vila, ao Mosteiro, à Lomba ou a Ponta Delgada. Eu era muito pequeno, mas durante essas viagens aprendi muito com ele. Foram grandes e variadas lições que ainda hoje recordo.
Meu pai era o filho mais novo de um grupo de vários irmãos, muitos dos quais morreram de tenra idade. Os que sobreviveram pisgaram-se todos para a América excepto o mais velho que há muito havia casado e ele que ficou só, com a responsabilidade de amparar os pais já muito velhinhos e uma irmã deficiente mental.
Algum tempo depois meu pai casou-se com a que foi minha mãe, vindo morar para a casa da Assomada que era dos meus avós paternos e onde meu pai crescera e se criara. Casaram e os filhos começaram a aparecer com uma “planificação familiar” de fazer inveja aos modernos métodos conceptivos. Os dois primeiros com um ano de intervalo e os restantes de três em três anos. Eu fui o quarto, vindo mais dois depois de mim.
Até à morte da minha mãe meu pai viveu pobre mas feliz, sustentando os filhos com muito trabalho e sacrifício, com o pouco que as terras lhe davam e com o leite duma ou duas vacas, mas cuja maior parte tinha que ir para a Cooperativa. Era o único dinheiro que entrava em casa.
Meu pai metia-se na sua vida e não na dos outros, nunca o ouvi falar mal de ninguém, nunca teve brigas nem zangas com quem quer que fosse, não devia nada nas lojas e comprava apenas o que podia e quando podia. Ensinou-me também que nunca deveria pegar em nada que não fosse meu, que devíamos sempre ser gratos e reconhecidos para com as pessoas que nos fazem bem e respeitar os velhos, os doentes e os mais fracos. Ensinou-me a orientar nos matos de noite e com nevoeiro. Bastava acariciar uma parede com as mãos. O lado que tivesse mais verdura indicava o Norte, porque é a mais húmida, porque o Sol lhe bate menos.
Meu pai tinha expressões e ditos interessantíssimos reveladores de princípios morais a rivalizar com os mais profundos princípios dos manuais de Ética. Tinha graça ao dizer as coisas e, frequentemente, fazia comentários de refinada perspicácia e sábia subtileza. Certa vez um fulano que chegara do Faial com grande vaidade contava o que tinha visto e o que não tinha visto, misturando tudo com algumas refinadíssimas mentiras. O meu progenitor, ouviu-o e no fim comentou simplesmente: “Muito aprende quem sai desta terra, mesmo que vá só até ao Faial, por uns dias”. Outra vez, ele e o irmão dormiam sentados num botequim. Alguém, por brincadeira, colocou-lhes um caniço na mão de cada um e acordou-os. Meu tio furioso levantou-se, barafustou, zangou-se, partiu o caniço e foi para casa. Meu pai muito calmo, pegou no caniço e disse simplesmente: “Já que mo deram vou aproveitar para continuar a pescar sargos.” – e continuou a dormir descansadamente.
Um dia ao passar à frente da minha casa uma rapariga muito bem vestida, ostentando alguma vaidade, meu pai improvisou a seguinte quadra:
Não há coisa como a morte,
Para acabar com a presunção,
Um laço de fita preta,
Sete palmos e um caixão.
O que veio irremediavelmente destruir a alegria de viver do meu pai, causando-lhe graves problemas de saúde, foi a trágica, inesperada e prematura morte de minha mãe. Depois de alguns anos de doença, faleceu a 16 de Janeiro de 1966.
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QUADRAS SOLTAS
Aeroporto da Terceira:
Espera longa, dorida…
Aviões? Só de cerneira,
Em touradas, sem partida
Ui! Se minha avó soubesse,
Desse forno da Pedreira,
Deixava de cozer bolo,
Sobre a tisna da lareira
Belos poemas do mestre,
Que tivemos em comum
Em sonhos, pudera eu,
Como estes, fazer um.
Com o toque da viola,
De tão belos tocadores,
Até o mar que me isola,
Sacode mágoas e dores
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“CORIS JULIS” OU “O PEIXE QUE O GUILHERME ENGOLIU
O Guilherme era, incontestavelmente, um exímio pescador. Sem tirar nem por, um dos melhores da Fajã! Pescador de pedra, diga-se em abono da verdade. Caniços de todos os tamanhos, formas e feitios, engodo e iscas do bom e do melhor e até anzóis com comprimentos diversos mas adequados a cada tipo ou espécie de peixe a cuja pesca pretendia dedicar-se. A casa chegava de tudo o que havia no mar e que fosse possível apanhar em qualquer pesqueiro da Fajã, mesmo nos mais arrojados e perigosos: vejas, sargos, salemas, castanhetas, bodiões, peixe-reis, rateiros e até polvos e moreias. Chegara mesmo a apanhar meia dúzia de bicudas na Ponta do Cais, duas ou três enchovas na Baía d’Água e uma serra por fora da Poça do Cobre.
Pese embora o que trouxesse chegasse para as encomendas lá em casa e até, por vezes, para presentear vizinhos e parentes mais chegados, o Guilherme queixava-se, frequentemente, junto do seu progenitor, de que afinal trazia aquilo tudo mas até podia trazer muito mais, talvez mesmo o dobro se... E explicava a medo:
- É que uma grande parte do que isco e puxo para terra se perde! Volta para o mar…
- Como? Quando? – Perguntava o pai assarapantado.
- Ora quando? Na altura em que puxo o peixe para terra. Quando vou tirar os malditos do anzol e colocá-los numa pequena poça, ou em cima duma pedra os atrevidotes “zip”, dão um salto e “zás-trás”: atiram-se para o mar.
Certo dia o pai, farto de ouvir tantas lamúrias e queixumes, atirou-lhe de rompante:
- Fogem porque tu deixas, porque és um palerma, um parvo, um desajeitado. Um bom pescador, logo que apanha um peixe, mata-o imediatamente. Sabes como? Dando-lhe uma dentada na cabeça e pronto. Assim que apanhares um peixe dá-lhe uma valente dentada no cachaço e vais ver que nunca mais te foge nenhum.
Dito e feito. O Guilherme não se fez rogado. No dia seguinte lá se foi rápido e prazenteiro, de caniço em riste, aperaltado com isca e engodo em quantidade suficiente, plantar-se no melhor pesqueiro que havia, ali para os lados do Poceirão, junto ao Calhau da Barra. Engodo para água, caniço aparelhado, isco no anzol e vamos a isto, que hoje não lhe havia de zarpar para a água um que fosse dos que houvesse de puxar para terra.
Eis senão quando sente a primeira ferrada. Leve mas firme. Peixe pequeno. Melhor, para se iniciar na nova forma de amansar definitivamente os espertalhotes. Puxou, puxou e zás. Um peixe rei, lindo de morrer, com as cores do arco-íris, mas pequeno e perfeitamente adequado à sua bocarra. Melhor para exercitar os maxilares não podia ter vindo!
- Este não me escapa! – Pensou o Guilherme com os seus botões.
Se bem o pensou melhor o fez. Zumba! Dentada na cabeça do peixe. Só que fê-lo com tanta avidez e sofreguidão que o dito cujo já de si húmido, escorregadio e pegajoso deslizou-lhe de imediato pela boca dentro, passando-lhe, vivinho da silva, pelas goelas abaixo, indo parar-lhe ao estômago, onde encontraria o seu fim, sem, no entanto, antes, não dar lá dentro umas valentes cambalhotas e uns angustiantes repelões no “bucho” do Guilherme que muito o agoniaram, provocando-lhe náuseas e enjoos, forçando-o a suspender de imediato a pescaria, cuidando que morria ali mesmo. Aos gritos e aos arrotos lá conseguiu voltar para casa sofrendo as injúrias mais atrozes e descabidas do seu progenitor e os vitupérios mesquinhos e trocistas de quantos se cruzaram com ele pelo caminho.
E não é que a partir de então o peixe rei, na Fajã, mudou de nome, passando a chamar-se “O Peixe que o Guilherme engoliu” e, muito provavelmente, Lineu, se tivesse vivido uns anos mais tarde, em vez de o nomear de “Coris Julis” ter-lhe-ia chamado muito simplesmente “Engolatis Guilhermis”.
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DIA DE REGRESSO
(TEXTO DE ONÉSIMO ALMEIDA)
“Dia de regresso. Fizera as malas e pedira à recepcionista do hotel que mas guardasse até à tarde; quando terminasse a aula passaria lá a caminho do aeroporto. Chego ao carro e dou com uma garrafa de aguardente da Graciosa oferecida na véspera por um amigo. Volto a correr ao hotel e, apressadíssimo, tento pedir à recepcionista que ma ponha junto às malas para eu depois arrumar. Ao menos era essa a intenção, mas as palavras devem-me ter saído num jacto incompreensível. Muito sorridente e com graciosa vénia a senhora disse-me: «Olhe, muito obrigada! É muito gentil. Mas não precisava fazer nada disto…»
Faltou-me a coragem de tirar a máscara de hóspede gentil e agradecido.”
Onésimo Almeida
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MUNDO
“Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo.”
Karl Marx
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GAZELA
Os suspiros matinais eram um estorvo, um empecilho, dir-se-ia uma espécie de sufoco atiçado ao vento, sem convicção, sem vivacidade e sem comprometimento. Uma espécie de martírio, mas um martírio gratificante, sensível e bem delineado. No horizonte perplexo e indefinido, apenas e somente, uma gazela, uma gazela sem asas, mas veloz como o vento e rápida como o pensamento. Corria deslumbrante e perturbadora, nas madrugadas ainda pouco clareadas, por vezes sem luz, muito antes de nascerem aqueles suspiros sufocantes, estilhaçados, a tingirem-se de pranto, a perfumarem-se de temeridade, imersos, definitivamente, numa estranha e perversa mortalha de perplexidade. Gazela das madrugadas, a deslizar por veredas inverosímeis, por ruas desertas, a açular-se em enigmas perfumados, sibilantes, loiros, a provocar encantos maviosos e a verter murmúrios silenciosos, disfarçadamente suplicantes. Mas o arfar das madrugadas era dolente, aflitivo, quase aniquilador.
Depois, a gazela das madrugadas escuras entrava na floresta, ora ocultando hesitações ora lançando-se em êxtases céleres, a sulcar as veredas sinuosas, onde vento soprava com uma intensidade intempestiva, desfazendo neblinas, solidificando sentimentos, imergindo-se em metamorfoses e suplícios, libertando anseios tempestivos. Cada vez mais veloz e voadora, a gazela! Gazela das árvores floridas, dos pântanos a abarrotar de folhas de nenúfar, dos caminhos ermos com as paredes enegrecidas pelos sonhos incoerentes das nuvens, correndo junto às margens de um rio de águas cinzentas.
Perdia-se na floresta, a gazela dos encantos repressivos, mesmo sabendo que o rio estava ali ao seu lado, que podia navegar nas suas águas, caminhar ao longo das suas margens, atravessar as suas pontes, talvez mesmo ouvir o cantar sibilante e dolente das árvores circundantes. Mas limitava-se apenas a atravessar a floresta, veloz como o vento e rápida como o pensamento, esta gazela com o destino preso por um sufocante raio de luz.
Gazela sem rio, sem floresta, sem árvores, sem ruas mas a abarrotar de desejos indefinidos, de aspirações misteriosas, de vontades inexpressáveis!
As madrugadas não eram contínuas, nem sequer sustentáveis mas tinham o sabor acre das noites claras, possuíam o perfume amarelado dos arraiais em festa e alvejavam-se em ondas sonoras de sentimentos adormecidos.
Gazela intrépida e voadora, gazela dos desertos e das cavernas, das florestas e dos bosques, dos rios e das madrugadas. Incoerente, altiva, corajosa, ousada e afoita! Gazela sem medos, sem receios, cuidando que o destino nunca havia de lhe cravar as garras implacáveis, funestas e aniquiladoras.
Mas um dia nefasto, incongruente e destruidor, chegou! Gazela ferida, presa, sem destino, atingida pela crueldade, a cercear os inesgotáveis encantos das suas velozes corridas pelas madrugadas e a confundir e a aniquilar, para sempre, os inesgotáveis e inconsequentes suspiros matinais.
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A MATANÇA DO PORCO NA FAJÃ GRANDE
A matança do porco, na Fajã Grande, como em muitas outras freguesias e aldeias de Portugal, era um acontecimento social com grande relevo, importância, significado e transcendência, dado que para além de ser um dia de convívio e reunião da família e dos amigos, constituía a mais relevante forma de armazenar alimento para todo o ano, nomeadamente para os invernosos meses que se seguiam ao Natal. Daí que se pusesse grande cuidado e esforço não apenas na sua realização mas também e sobretudo na sua preparação.
Esta começava pouco tempo depois da matança do ano anterior, com a aquisição ou compra do novo bároco, o qual ficaria em rigorosa engorda durante todo o ano, a fim de que se transformasse em porco e, por alturas do Natal, estivesse o mais gordo e pesado possível. Por vezes, sobretudo quando a compra era mais tardia ou os porcos eram de raça miúda ou serôdios e porque o tempo já era pouco para o crescimento e engorda do dito cujo, adquiriam-se dois em vez de um. Tempos mais tarde era-lhe colocada uma arcada no focinho para que ele não fossasse e assim se alimentasse melhor e não destruísse o curral onde ia crescendo e engordando com as lavagens e restos da cozinha e ainda com milho, couves e com batatas brancas e doces.
Nos meses e dias mais próximos do Natal, no entanto, muitos outros cuidados eram tidos e muitas outras eram as tarefas realizadas a fim de que no dia, atempadamente agendado, nada, mas mesmo nada, faltasse. Entre muitas outras coisas era necessário ceifar e acarretar muita cana roca, uma seca para o curral e outra verdinha para que as folhas fossem colocas debaixo das postas de carne depois do porco estar partido. Se a cana roca seca não fosse suficiente para enxugar o curral recorria-se aos milheiros. Outra tarefa que ocupava uns bons dias inteirinhos era a de ir cortar uma grande quantidade de queirós, no Mato, as quais eram acarretadas para cima da Rocha, atiradas no arame da Ribeira cá para baixo e depois trazidas para casa onde eram postas a secar, ficando então prontinhas para o chamusco.
Não havia matança que se prezasse cujas refeições não incluíssem inhames. Daí que se cultivassem sempre alguns com uma adequada e tal programação que estivessem prontos a ser apanhados por altura da matança, o que resultava em muitos outros dias de trabalho árduo. Outra tarefa espinhosa mas necessária era a de arranjar a lenha suficiente para cozinhar no dia da matança, para derreter os torresmos e para afoguear a linguiça. Eram quantidades excessivas de toros de faia e de incenso, acarretados aos ombros ou em corções que depois tinham que ser serrados, cortados e fendidos, sendo posteriormente postos a secar, empilhados e arrumados em lugar que não apanhassem chuva. Era preciso também semear e cultivar as cebolas e o cebolinho, cuja rama era necessária para as morcelas. Finalmente na véspera amolavam-se as facas e as raspadeiras feitas com pedaços de corda de relógio presos em semicírculo a cabos feitos de pedacinhos de madeira. Era necessário ainda preparar muitas outras coisas que não podiam nunca falhar, como: lavar as salgadeiras e o alguidar para aparar o sangue, lavar a mesa, arranjar as cordas, preparar os temperos, fazer queijos, manteiga e doce, cozer muito pão, incluindo pão de trigo que era “obrigatório” nas matanças, apanhar os limões e as laranjas azedas para lavar as tripas, comprar muito sal, uma garrafa de aguardente de cinco estrelas e uma outra de traçado e, sobretudo, não dar comida ao porco na véspera da matança.
No dia da matança era necessário levantar cedo, mesmo muito cedo, ainda noite escura. Antes de realizar qualquer tarefa e à medida que os familiares e outros convidados iam chegando almoçava-se. A mesa era lauta nesse dia: tigelas e tigelas bem cheias de café, que havia sido moído na véspera, com leite, açúcar e pão de trigo com manteiga, queijo e doce.
De imediato começavam as tarefas. As mulheres preparavam o alguidar para aparar o sangue. Os homens abriam o portal e, por vezes depois de várias tentativas infrutíferas, apanhavam o porco e amarravam-no pelo focinho, enquanto ele guinchava ingloriamente. De seguida tiravam-no do curral, conduzindo-o para junto da mesa já devidamente preparada. Uma vez deitado em cima da mesa, o suíno era amarrado de pés e mãos e preso pelos homens que se colocavam ao redor da mesa, uns a aguentar-lhe os pés e as mãos, outros o rabo e outros a cabeça, enquanto o matador, depois de lhe lavar o cachaço muito bem lavado, lhe enfiava a faca que devia ir certeira ao coração, a fim de que morresse de imediato e expelisse a maior quantidade possível de sangue, o qual era recolhido e muito bem mexido dentro do alguidar, segurado por duas mulheres de avental novo ao peito.
Seguia-se o chamuscar. Feita uma fogueira nela se acendiam ramos e ramos de queirós que, a arder em grandes labaredas, eram lançados sobre o porco queimando-lhe todo o pêlo, enquanto um cheiro a chamusco e a pêlo queimado subia pelos ares e anunciava que ali havia matança. Com uma maior dosagem de lume e calor eram-lhe retiradas as unhas. Para se aquecerem “por dentro” que por fora já o estavam, os homens iam bebendo cálices de cinco estrelas e de traçado. Depois o porco era raspado de uma ponta à outra com as raspadeiras, em seguida, lavado com água e sabão e esfregado com grossas pedras, ficando alvo como a neve. Por fim era barbeado com facas muito bem amoladas e com lâminas de barba nas partes mais rugosas e recônditas, sendo novamente muito bem lavado. Sempre que o porco era virado para ser lavado de um outro lado a mesa também era muito bem lavada esfregada.
Finalmente o porco era colocado em cima da mesa de costas para baixo e pernas para o ar e era aberto a fim de se lhe tirarem as vísceras, aproveitando-se apenas: o coração, o fígado, a língua e as tripas. Os bofes e os rins eram enterrados ou dados aos gatos.
Com o coração e o fígado e alguns pedacinhos de carne fazia-se a caçoila que seria o jantar daquele dia, acompanhada de inhames, escaldadas e pão de trigo. Por sua vez as tripas eram despegadas umas das outras e guardadas em cestos forrados com panos de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas na Ribeira. A bexiga era dada às crianças para jogarem à bola e a língua salgada e guardada para oferecer às Almas do Purgatório.
Durante o jantar o porco normalmente ficava pendurado pelo focinho para escorrer os líquidos e arrefecer, sendo preso geralmente aos tirantes da cozinha ou duma casa velha, ou até ao ar livre, numa armação adequada, feita com paus em cruz.
De tarde voltava-se ao trabalho. O porco era aberto pelas costas e partido em duas metades, sendo depois desmanchado. Era-lhe retirado a parte com o toucinho, destinada aos torresmos, pedacinhos de carne da barriga com gordura para as morcelas, a carne para os bifes e para a linguiça e as orelhas e os ossos para salgar. A carne assim partida era colocada ao ar, em cima de folhas de cana roca, para arejar. Às crianças era atribuída a honrosa tarefa de vigia a fim de enxotar os gatos e impedi-los de se atiraram às postas de carne fresca.
As mulheres, sobretudo as mais novas e as raparigas iam lavar as tripas para a Ribeira. Regressavam a casa e voltavam a lavá-las muito bem lavadas, viravam-nas e reviravam-nas por dentro e por fora, voltavam a lavá-las, esfregando-as com folhas de cebola, farinha, sal, salsa, laranjas azedas, água morna para que ficassem muito bem limpinhas. O bucho também era rapado e muito bem lavado, pois geralmente tinha destino igual ao das tripas grossas, com as quais se faziam as morcelas enchidas com pedacinhos de carne, arroz cozido, muita cebola e cebolinho refogados e temperos variados: canela cominhos, noz cada, cravo-da-índia, sal e malaguetas. As morcelas eram cozidas juntamente com os pés e constituíam a ceia, na qual participavam apenas as pessoas da casa e uma ou outra mais chegada ou amiga.
Os dias subsequentes ao da matança também eram de grande azáfama, sobretudo, para os donos da casa. No dia seguinte salgava-se uma parte do porco, nomeadamente os ossos da coluna e das pernas, as orelhas e a cabeça. Era uma tarefa que só os mais velhos e experientes sabiam fazer: é que os pedaços do porco tinham que ser todos muito bem passados pelo sal a fim de não se deteriorarem. Depois de salgados eram guardados numa ou mais salgadeiras, geralmente feitas de barro. As mulheres faziam enormes fogueiras sobre o lar, por vezes até ao ar livre, onde se colocavam grandes caldeirões ou tachos dentro dos quais era derretido o toucinho, com o duplo objectivo: fazer os torresmos e obter a gordura resultante do “derreter” para nela, mais tarde, se guardar a linguiça. A carne destinada a estas era posta numa calda ou salmoura, devidamente temperada, na qual se colocava um ovo para testar se a quantidade do sal era necessária e suficiente, o que acontecia quando o ovo vinha ao de cima. A carne ficava ali a marinar durante três ou quatro dias, devendo ser virada e revirada vezes sem conta a fim de que toda ela apanhasse bem o sal e os temperos.
Passados três dias enchiam-se as linguiças com a carne assim temperada e que antes era partida e picada em pedaços pequenos e lascados a que se juntavam cominhos moídos e em grão e outros temperos, sendo depois enfiada no interior das tripas finas, com “engorladeiras” feitas de lata. Colocadas em cima de tábuas, eram todas e cada uma picadas de ponta a ponta e de um lado e outro, com uma agulha de coser em cujo fundo se enfiava um bom pedaço de linha dobrado uma ou mais vezes, não fosse a agulha escapulir-se pela tripa dentro e perder-se entre os pedacinhos de carne. Uma vez cheias, bem apertadas e fechadas nas extremidades, geralmente com pedacinhos de pau, as enormes tripas agora recheadas com a carne e os temperos, eram penduradas no “pau das linguiças” e afogueadas no lar, durante vários dias. Os três primeiros eram muito importantes, pois tinha que se lhes dar o calor necessário e adequado e que era controlado não apenas pela maior ou menor quantidade de lenha que se ia metendo no lume mas também pela subida ou descida do pau, a fim de que o calor que lhes era dado não fosse de mais ou de menos. Além disso, as linguiças eram viradas de vez em quando, voltando-se necessariamente para cima o lado que estava sobre o pau, para que este também apanhasse lume e calor e toda a linguiça adquirisse a mesma cor alourada. Finalmente baixava-se o pau e as linguiças eram colocadas na beira do lar, para apanhar apenas o calor resultante do brasido. Ao mesmo tempo que se afogueavam as linguiças colocavam-se as morcelas nas extremidades do pau, a fim de secarem melhor.
Uma vez bem afogueadas, as linguiças eram retiradas, lavadas, partidas aos pedaços e colocadas debaixo de banha, em vasilhas geralmente de lata, sendo a sua prova realizada no dia de Ano Bom.