PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
“CORIS JULIS” OU “O PEIXE QUE O GUILHERME ENGOLIU
O Guilherme era, incontestavelmente, um exímio pescador. Sem tirar nem por, um dos melhores da Fajã! Pescador de pedra, diga-se em abono da verdade. Caniços de todos os tamanhos, formas e feitios, engodo e iscas do bom e do melhor e até anzóis com comprimentos diversos mas adequados a cada tipo ou espécie de peixe a cuja pesca pretendia dedicar-se. A casa chegava de tudo o que havia no mar e que fosse possível apanhar em qualquer pesqueiro da Fajã, mesmo nos mais arrojados e perigosos: vejas, sargos, salemas, castanhetas, bodiões, peixe-reis, rateiros e até polvos e moreias. Chegara mesmo a apanhar meia dúzia de bicudas na Ponta do Cais, duas ou três enchovas na Baía d’Água e uma serra por fora da Poça do Cobre.
Pese embora o que trouxesse chegasse para as encomendas lá em casa e até, por vezes, para presentear vizinhos e parentes mais chegados, o Guilherme queixava-se, frequentemente, junto do seu progenitor, de que afinal trazia aquilo tudo mas até podia trazer muito mais, talvez mesmo o dobro se... E explicava a medo:
- É que uma grande parte do que isco e puxo para terra se perde! Volta para o mar…
- Como? Quando? – Perguntava o pai assarapantado.
- Ora quando? Na altura em que puxo o peixe para terra. Quando vou tirar os malditos do anzol e colocá-los numa pequena poça, ou em cima duma pedra os atrevidotes “zip”, dão um salto e “zás-trás”: atiram-se para o mar.
Certo dia o pai, farto de ouvir tantas lamúrias e queixumes, atirou-lhe de rompante:
- Fogem porque tu deixas, porque és um palerma, um parvo, um desajeitado. Um bom pescador, logo que apanha um peixe, mata-o imediatamente. Sabes como? Dando-lhe uma dentada na cabeça e pronto. Assim que apanhares um peixe dá-lhe uma valente dentada no cachaço e vais ver que nunca mais te foge nenhum.
Dito e feito. O Guilherme não se fez rogado. No dia seguinte lá se foi rápido e prazenteiro, de caniço em riste, aperaltado com isca e engodo em quantidade suficiente, plantar-se no melhor pesqueiro que havia, ali para os lados do Poceirão, junto ao Calhau da Barra. Engodo para água, caniço aparelhado, isco no anzol e vamos a isto, que hoje não lhe havia de zarpar para a água um que fosse dos que houvesse de puxar para terra.
Eis senão quando sente a primeira ferrada. Leve mas firme. Peixe pequeno. Melhor, para se iniciar na nova forma de amansar definitivamente os espertalhotes. Puxou, puxou e zás. Um peixe rei, lindo de morrer, com as cores do arco-íris, mas pequeno e perfeitamente adequado à sua bocarra. Melhor para exercitar os maxilares não podia ter vindo!
- Este não me escapa! – Pensou o Guilherme com os seus botões.
Se bem o pensou melhor o fez. Zumba! Dentada na cabeça do peixe. Só que fê-lo com tanta avidez e sofreguidão que o dito cujo já de si húmido, escorregadio e pegajoso deslizou-lhe de imediato pela boca dentro, passando-lhe, vivinho da silva, pelas goelas abaixo, indo parar-lhe ao estômago, onde encontraria o seu fim, sem, no entanto, antes, não dar lá dentro umas valentes cambalhotas e uns angustiantes repelões no “bucho” do Guilherme que muito o agoniaram, provocando-lhe náuseas e enjoos, forçando-o a suspender de imediato a pescaria, cuidando que morria ali mesmo. Aos gritos e aos arrotos lá conseguiu voltar para casa sofrendo as injúrias mais atrozes e descabidas do seu progenitor e os vitupérios mesquinhos e trocistas de quantos se cruzaram com ele pelo caminho.
E não é que a partir de então o peixe rei, na Fajã, mudou de nome, passando a chamar-se “O Peixe que o Guilherme engoliu” e, muito provavelmente, Lineu, se tivesse vivido uns anos mais tarde, em vez de o nomear de “Coris Julis” ter-lhe-ia chamado muito simplesmente “Engolatis Guilhermis”.
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DIA DE REGRESSO
(TEXTO DE ONÉSIMO ALMEIDA)
“Dia de regresso. Fizera as malas e pedira à recepcionista do hotel que mas guardasse até à tarde; quando terminasse a aula passaria lá a caminho do aeroporto. Chego ao carro e dou com uma garrafa de aguardente da Graciosa oferecida na véspera por um amigo. Volto a correr ao hotel e, apressadíssimo, tento pedir à recepcionista que ma ponha junto às malas para eu depois arrumar. Ao menos era essa a intenção, mas as palavras devem-me ter saído num jacto incompreensível. Muito sorridente e com graciosa vénia a senhora disse-me: «Olhe, muito obrigada! É muito gentil. Mas não precisava fazer nada disto…»
Faltou-me a coragem de tirar a máscara de hóspede gentil e agradecido.”
Onésimo Almeida
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MUNDO
“Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo.”
Karl Marx
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GAZELA
Os suspiros matinais eram um estorvo, um empecilho, dir-se-ia uma espécie de sufoco atiçado ao vento, sem convicção, sem vivacidade e sem comprometimento. Uma espécie de martírio, mas um martírio gratificante, sensível e bem delineado. No horizonte perplexo e indefinido, apenas e somente, uma gazela, uma gazela sem asas, mas veloz como o vento e rápida como o pensamento. Corria deslumbrante e perturbadora, nas madrugadas ainda pouco clareadas, por vezes sem luz, muito antes de nascerem aqueles suspiros sufocantes, estilhaçados, a tingirem-se de pranto, a perfumarem-se de temeridade, imersos, definitivamente, numa estranha e perversa mortalha de perplexidade. Gazela das madrugadas, a deslizar por veredas inverosímeis, por ruas desertas, a açular-se em enigmas perfumados, sibilantes, loiros, a provocar encantos maviosos e a verter murmúrios silenciosos, disfarçadamente suplicantes. Mas o arfar das madrugadas era dolente, aflitivo, quase aniquilador.
Depois, a gazela das madrugadas escuras entrava na floresta, ora ocultando hesitações ora lançando-se em êxtases céleres, a sulcar as veredas sinuosas, onde vento soprava com uma intensidade intempestiva, desfazendo neblinas, solidificando sentimentos, imergindo-se em metamorfoses e suplícios, libertando anseios tempestivos. Cada vez mais veloz e voadora, a gazela! Gazela das árvores floridas, dos pântanos a abarrotar de folhas de nenúfar, dos caminhos ermos com as paredes enegrecidas pelos sonhos incoerentes das nuvens, correndo junto às margens de um rio de águas cinzentas.
Perdia-se na floresta, a gazela dos encantos repressivos, mesmo sabendo que o rio estava ali ao seu lado, que podia navegar nas suas águas, caminhar ao longo das suas margens, atravessar as suas pontes, talvez mesmo ouvir o cantar sibilante e dolente das árvores circundantes. Mas limitava-se apenas a atravessar a floresta, veloz como o vento e rápida como o pensamento, esta gazela com o destino preso por um sufocante raio de luz.
Gazela sem rio, sem floresta, sem árvores, sem ruas mas a abarrotar de desejos indefinidos, de aspirações misteriosas, de vontades inexpressáveis!
As madrugadas não eram contínuas, nem sequer sustentáveis mas tinham o sabor acre das noites claras, possuíam o perfume amarelado dos arraiais em festa e alvejavam-se em ondas sonoras de sentimentos adormecidos.
Gazela intrépida e voadora, gazela dos desertos e das cavernas, das florestas e dos bosques, dos rios e das madrugadas. Incoerente, altiva, corajosa, ousada e afoita! Gazela sem medos, sem receios, cuidando que o destino nunca havia de lhe cravar as garras implacáveis, funestas e aniquiladoras.
Mas um dia nefasto, incongruente e destruidor, chegou! Gazela ferida, presa, sem destino, atingida pela crueldade, a cercear os inesgotáveis encantos das suas velozes corridas pelas madrugadas e a confundir e a aniquilar, para sempre, os inesgotáveis e inconsequentes suspiros matinais.