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FUGA

Sexta-feira, 30.08.13

Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não dessem pela abalada e deu consigo quase tresloucada, na no meio da rua, imersa numa madrugada ingente e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.

Era Maio e a noite estava muito escura e fria. Júlia cobriu os ombros quase nus com um xaile de lã que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de armas, prolongando-se por aqui e por além, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, estampando-se em eco nas rochas das Covas e das Águas, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante,

Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do lado mar, arrepiou-se mais e desatou numa correria louca, pela canada que dava para o Mimóio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes altíssimas, a vedar os pequenos cerrados de milho, as compridas belgas de batata-doce e uma ou outra courela a abarrotar de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse ainda mais naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-a por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.

Desde há muito que Júlia e António se amavam como ninguém, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitectando construir, dentro em breve, com harmonia e sublimidade, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam, ainda mais a impediriam, quando soubessem que ali havia muito amor, havia uma grande paixão e que se conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Talvez por isso é que ele tomara aquela abruta e radical decisão, por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam sempre de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e que por isso mesmo nunca haviam de autorizar aquele casamento, é que ele, o seu António, decidira partir, em busca da aventura, do sucesso, do necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia também nunca concordara com aquela partida, para tão longe, para a América e ainda por cima, naquelas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.

Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira, já quase no Mimóio, desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projécteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar contínuo das balas, por vezes incerto, dos azougados artilheiros. A ordem era atirar a matar.

Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, do alto do Mimóio, no escuro da noite, apenas clarificada momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, aquele terrífico e dramático espectáculo. Apenas uma certeza: o seu António estava ali e havia de se salvar.

No meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma pequenina e ténue réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim e, agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Pouco depois o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste. O seu António estava salvo!

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publicado por picodavigia2 às 20:58

A RETIRADA

Sexta-feira, 30.08.13

A noite já ia adiantada. Caíra tardia e enigmática sobre a “tabanca” que circundava o pequeno quartel, donde postos vesgos e carcomidos projectavam uma luz ténue e baça que se perdia na imensidão escura da planície africana.

Nos abrigos, a maioria dos soldados já havia recolhido. Um silêncio profundo, emanado da planície, pairava sobre o quartel e sobre a “tabanca”. Num pequeno cubículo, quatro oficiais desfazendo os dissabores e as preocupações de um quotidiano mavórcio, iniciavam mais uma partida de sueca, sobre uma mesa velha e besuntada, onde, duas horas antes, haviam, frugalmente, saboreado o rancho.

Ainda não tinha caído sobre a mesa a última carta da primeira jogada, quando o Tulhas, sem pedir licença ou sequer fazer a continência do costume, entrou de rompante, no pequeno ádito. Esbaforido, de mãos na cabeça, gritava repetidamente:

- Meu capitão! Meu capitão! Houve uma grande revoluçãoem Portugal. Mataramo Américo Tomás e o Marcelo Caetano.

O capitão Cachadinha, sobre quem caía o comando da pequena companhia, ali sediada, levantou-se de um salto e correu, precipitadamente, para o exíguo cubículo, ao fundo do largo central do quartel, impropriamente denominado “sala de transmissões”, enquanto os três alferes, estupefactos, procuravam, sem proveito nenhum, tirar mais alguma informação do Tulhas, aguardando ansiosos, a chegada de Cachadinha:

- Se isto é verdade – arriscava o Carvalhal, esfregando as mãos de contentamento – é a nossa salvação. Vamos embora daqui!

- Viva a liberdade! - Gritava o Penha da Silva e depois cantarolava. – “Adeus Guiné-é, vou-te deixar-ar-ar!”

Cachadinha não tardou. Entrou na pequena sala de punhos cerrados, desenhando com os braços gestos de convicção, certeza e contentamento. Atirou um pontapé à mesa, derrubou meia dúzia de garrafas de cerveja e, abraçando esbaforidamente os colegas de armas, gritou:

- Até que enfim, que esta porcaria vai acabar! Ou melhor: acabou! Acabou-se o fascismo! Acabou-se a ditadura! Somos um país e um povo livres. Esta guerra também vai acabar, em breve!

Os outros não cabiam em si de estupefactos. Afinal era verdade. O entusiasmo excessivamente exteriorizado e os gritos emitidos eram tais, que muitos furriéis, sargentos e soldados assomaram à messe de oficiais, interrogando-se, sem resposta.

Já mais calmo e com a minúscula e degradante sala a abarrotar, entre gritos e vivas à liberdade, o capitão explicou:

- Meus senhores. Acabam de me confirmar, de Lisboa, que hoje de madrugada teve início no nosso país uma revolução que há-de ficar na história. Um grupo de capitães, através de um golpe de estado, há muito esperado, pôs termo ao fascismo e instaurou um novo regimeem Portugal. Apartir de hoje somos um país livre, totalmente livre. Uma Junta de Salvação Nacional, já formada, irá tomar conta do poder e mudar os destinos do nosso país. Isto significa, para já, o fim desta guerra maldita e o nosso regresso a Portugal o mais rapidamente possível.

As últimas palavras de Cachadinha já nem se ouviram. Os presentes manifestavam-se, entusiasticamente, entre gritos de “liberdade”, “abaixo o fascismo” “vivam as Forças Armadas”. Uns abraçavam-se efusivamente, alguns bebiam em demasia, outros gritavam esbaforidamente e, pelo rosto nervoso de muitos, corriam lágrimas… lágrimas de alegria e emoção. Mas o que todos mais sentiam, era a certeza de em breve terminar a guerra e regressarem a Portugal...

A noite, na camuflada messe de oficiais, foi de vigia contínua e festança. Já alta madrugada, quando furriéis, sargentos e soldados regressaram aos seus abrigos, entre copos e trambolhões, Cachadinha, com os olhos esbugalhados de álcool e alegria, confirmava:

- O dezasseis de Março fracassou, mas o movimento não morreu. Isto não podia parar. A situação aqui, na Guiné, era insustentável. Todos os comandos estavam de alerta, previa-se um ataque em massa, pelo PAIGC, com apoio da OUA.

- Estamos verdadeiramente no fim do mundo! – Lamentava o Carvalhal. – Uma revolução de madrugada, em Portugal e nós aqui todo o dia, até às onze da noite, sem saber de nada...

A noite, embora já perto do fim, custou a terminar. Cachadinha não dormiu. Passava-lhe pela mente, a mulher, os filhos, o regresso à “Santiago e Irmão”, a retirada dali, os caminhos cheios de minas, a evacuação dos trinta mil homens que lutavam na Guiné e o futuro dos soldados de cor, fiéis ao exército português.

A noite seguinte foi trágica. O quartel foi atacado, mais uma vez. Corrida para as valas... Resposta de Pirada... Dois mortos...

- Os tipos do PAIGC, nas zonas mais interiores ainda não sabem o que se passa...  – Explicava Cachadinha. – Os informadores disseram-lhes que estávamos em festa e de armas paradas e os tipos aproveitaram logo... Não vai ser fácil parar tudo isto...

Os dias seguintes foram de esperança misturada com uma enorme ansiedade e com uma profunda incerteza. As notícias de Portugal, no entanto, eram óptimas. - “A revolução, denominada dos cravos, fora um sucesso. Agora reinava a liberdade, a democracia e a esperança no futuro.” – Afirmavam, unanimemente, todas as cartas.

Mas ali, bem no interior da Guiné, a 400 metros do Senegal, a situação continuava complicada. Na realidade, a muitos elementos da guerrilha, dispersos no mato, em pequenos grupos, quase isolados, não chegaram, tão cedo, as notícias dos acordos de paz, nem as decisões tomadas em Bissau. As estradas e caminhos continuavam minados, as pontes permaneciam armadilhadas, os ataques aos quartéis eram cada vez mais frequentes e as emboscadas às colunas não cessavam.

A manhã de oito de Agosto nasceu calma e apaziguadora, pese embora, entre os comandados de Cachadinha, a azáfama fosse grande. Tinha sido a última noite no pequeno e mísero aquartelamento de Bajocunda!

No centro do quartel, um pequeno mastro com a bandeira portuguesa. De um lado, pouco mais de meia dúzia de soldados do PAIGC, de farda acinzentada, rosto tristonho, tímidos e de aspecto cansado. A chefiá-los um graduado. Do outro lado os cerca de sessenta homens que Cachadinha comandava, excepto os nativos, que durante os dias anteriores haviam, progressivamente, desertado, sem que ninguém a tal se opusesse. Cahadinha, em passo militar, dirigiu-se para o graduado negro. Fizeram a continência recíproca, cumprimentaram-se muito formalmente e colocaram-se perfilados, em frente à bandeira portuguesa, de continência em riste.

O Penha da Silva deu ordens à hoste lusa:

- Apresentar! Armas! Up!

Logo um rumor enorme de pés a bater no chão, mãos a pegar em armas e estas a escorregarem sobre fardas, se fez ouvir. Os soldados do PAIGC obedeceram também a idênticas ordens do seu chefe, imitando, desajeitadamente, os gestos dos militares brancos. De seguida, Cachadinha e o oficial negro passaram revista às tropas e voltaram a perfilar-se diante da bandeira.

Seguiu-se um toque de clarim. Um soldado branco dirigiu-se para o poste e, desamarrando os fios, fez descer, lenta e solenemente, a bandeira portuguesa. Depois, dobrando-a muito cuidadosamente, veio, em passos ritmados pelo rufar dos tambores, ladeado por dois colegas, colocá-la nas mãos de Cachadinha. Um soldado negro, dirigiu-se então, para o poste e, amarrando a bandeira negra, verde e amarela do PAIGC, fê-la subir, com cerimonial idêntico.

- Que desgosto! – Comentava, à socapa, o sargento mais velho da companhia e que já ia na quarta comissão no Ultramar. - Que vergonha! Sermos derrotados desta maneira! Sem honra nem glória!

- Deixe lá, meu sargento! – Aconselhava o Tulhas em voz baixa. – Perdemos a guerra mas ganhamos a liberdade. A guerra acabou, mas não acabou a tropa. Se você quiser ainda pode continuar a tropa, lá em Portugal.

Penha da Silva voltou a dar ordens. Todos se puseram à vontade e, rodeando os soldados do PAIGC, procuravam, pô-los à vontade, abraçando-se uns aos outros como se sempre tivessem sido amigos.

 

Nessa tarde, Cachadinha e os seus homens, entre lágrimas de saudade e eflúvios de alegria, abandonaram o pequeno quartel situado na aldeia de Bajocunda, na fronteira da Guiné com o Senegal, onde haviam permanecido mais de um ano. A população da tabanca, entrara no quartel, como que tomara conta dele e abanava-lhes sem grande convicção.

A companhia direcção de Tabassi, através da “picada” que dava Pirada dirigiu-se para aquele aldeamento, localizado na fronteira com o Senegal, juntando-se ao Batalhão a que pertencia. Passados alguns dias, rumaram a Nova Lamego, onde esperaram o avião em que viajariam até ao aeroporto de Bissalanca, aguardando, finalmente o tão almejado voo para Lisboa.

Mas, naquela tarde, não partiram todos!

Faltavam os negros que haviam desertado sem destino, abandonados e sem protecção de ninguém. Sabia-se que muitos já haviam sido fuzilados enquanto outros estavam presos, à espera de julgamento por traição à pátria. Alguns, mais afoitos e expeditos, os mais valentes e destemidos, tinham fugido. Faltavam, também, os dezanove brancos que, juntamento com a companhia chefiada por Cachadinha, haviam partido de Lisboa, os dezanove que sucumbiram às balas, aos obuses e aos morteiros e que não puderam participar naquela retirada precoce e inopinada, que a madrugada de 25 de Abril originara.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:05

TRISTE SINA

Sexta-feira, 30.08.13

“Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.”

 

William Shakespeare

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publicado por picodavigia2 às 08:46

O NAUFRÁGIO DA BIDART – DADOS HISTÓRICOS

Sexta-feira, 30.08.13

A Barca Bidart encalhou, na noite de 24 para 25 de Maio de 1915, nos baixios da Fajã Grande, mais concretamente no Canto do Areal, por fora da Poça das Salemas. Esta barca pertencia à classe de barcas francesas, com 3 mastros, "Amiral Courbet". A "Bidart" é um símbolo do canto do cisne dos últimos veleiros no virar do século XIX. Estes navios, cuja única propulsão era a vela, iriam desaparecer em função dos Clippers e navios de metal, maiores e mais rápidos.

A "Bidart" foi lançada à água em Setembro de 1901,em França. Acabariapor encalhar e consequentemente afundar-se a 24 de Maio de 1915, nas rochas do Baixio, zona perigosa devido aos muitos laredos ali existentes, na Fajã Grande das Flores, Açores.

Durante a noite de 24 para 25 de Maio de 1915, abarca francesa de três mastros Bidart seguia, a meio pano e em pleno Oceano Atlântico, uma rota para norte, em direcção ao arquipélago dos Açores. A bordo, o comandante Jacques Blondel tentava proceder à manobra do navio, uma tarefa que não era em nada facilitada pela escassez de tripulantes válidos - com efeito, em pleno século XX, ainda se morria de escorbuto a bordo dos navios oceânicos. A longa viagem, sem escalas, que a barca Bidart realizava entre o porto de Thio, na Nova Caledónia, e o porto de Glasgow, na Escócia, era propícia ao desenvolvimento desta e de outras doenças, causadas por uma deficiência de vitamina C na dieta diária dos tripulantes. O escorbuto, causador de perturbações ósseas e de dores musculares, provocava também o aparecimento de fadiga e de depressões, o que em muito terá contribuído para o acidente e consequente naufrágio da barca.

Após vários dias de sol encoberto e da presença omnipresente dos nevoeiros, durante os quais não fora possível posicionar o navio pelo sol, o comandante estava praticamente perdido, sem ao menos saber a latitude certa da embarcação. Para piorar ainda mais as coisas, durante o anoitecer do dia 24 de Maio, morreu um dos marinheiros, de nome Letloc. Poucas horas depois, outros oito se lhe seguiriam.

A barca Bidart fora construída em 1901, pelos estaleiros navais Chantier Nantais de Construction Maritime, de Nantes. Este navio tinha 2199 toneladas de arqueação bruta e 1917 toneladas de arqueação liquida. O casco era de aço, tinha 84 metros de comprimento, com 12,30 metros de boca e 6,80 metros de calado. Como todas as barcas, tinha 3 mastros, largava pano redondo no de proa e no grande, e um latino quadrangular e gave-tope no de ré. Os mastros de proa e o grande tinham dois mastaréus enquanto que o de ré - denominado da mezena - tinha um só.

Em Setembro de 1901, abarca fora lançada à água e entregue à Société Bayonnaise de Navigation. A barca, comandada pelo capitão Pinsonnet, iniciou então várias viagens entre a Europa e o continente americano, sem acidentes. O único, digno de menção, ocorreu em 1906 quando, em viagem para Tacoma, Washington, uma tempestade lançou um homem ao mar e arrancou parte do velame e da mastreação da barca.
Em Maio de 1911, a Bidart foi vendida à Societé Anonyme de Voiliers Normands, estabelecida na praça de Rouen. Em 1915, sob o comando do capitão Jacques Blondel, os 23 homens da tripulação carregaram minério de níquel no valor de 500 mil francos e partiram da Nova Caledónia, com destino a Glasgow, na Escócia.

Após quatro meses de viagem, a barca aproximava-se perigosamente do seu último destino. Às 4.30 da madrugada do dia 25 de Maio de 1915, o capitão Blondel apercebe-se, por entre a névoa matinal, de que a barca se aproximava de uma zona de rebentação. Rapidamente, Blondel tentou fazer com que o navio virasse para o mar. No entanto, a bravura crescente do mar e vento não lh'o permitiu vindo o navio a descair encalhando enfim no canto do Areal, junto aos rochedos da Poça das Salemas, na freguesia da Fajã Grande, a cerca de50 metros de terra.

Com o encalhe, o navio parte-se em dois e afunda-se, até ao castelo de popa, a cerca de8 metrosde profundidade. No processo, caiu também o mastro do traquete sobre a ré do navio. Com os salva-vidas inoperacionais, o piloto, o cozinheiro Charles, o imediato Pedron e o contramestre Lhotis atiraram-se à água, no intuito de se dirigirem até à costa e pedirem ajuda. Infelizmente, a agitação do mar apenas permitiu que fosse o piloto o único a lá chegar.

Perante este cenário, o comandante ordenou o abandono do navio. Após se terem munido de coletes de salvação, os elementos da tripulação saltaram, um a um, para o mar revolto. No final, apenas 14 se salvaram, entre eles alguns mais ou menos pisados, tendo-se afogado os marinheiros Legasi, Lecandre, Totbien, Lebreton e Kerne. Logo que foram recolhidos, os náufragos foram logo vestidos e tratados com a maior solicitude, por todo o povo da freguesia. O médico de Santa Cruz procedeu logo aos primeiros socorros, fazendo embarcar os feridos mais graves para o Hospital de Santa Cruz das Flores, logo no dia seguinte, assim que o mar acalmou.

Tanto o cozinheiro como o contramestre se afogaram, tendo os seus corpos dado à costa na freguesia da Fajãzinha, no dia 25 de Maio, juntamente com o de um marinheiro. Imediatamente, o povo os colocou em câmara ardente numa casa do Espirito Santo e ofereceu-lhes 6 coroas de flores naturais, que foram depostas sobre os cadáveres. Os habitantes ofereceram tambem lençoes e almofadas para os caixões dos mortos. Por iniciativa do vice-vigário da freguesia, reverendo Caetano Bernardo de Sousa, fez-se o enterro com toda a solenidade, sendo os três cadáveres acompanhados por todo o povo da freguesia. Os restantes mortos foram sepultados na Fajã Grande.

O que restava do navio - avaliado em cerca de 300 mil francos - e da carga, foi arrematado por José Azevedo da Silveira por 210$000 reis, no dia 29 de Maio. Este comerciante local acabou por tomar posse de alguns salvados tirados do castelo de proa, único ponto do navio que ficou fora d'agua. O resto do navio estava submerso a alguns palmos abaixo da linha d'agua, tendo dentro parte da carga e todos os objectos de bordo, conservas e algum dinheiro. Por vários dias, o mar em volta do naufrágio tomou uma cor avermelhada, devido à fuga do minério de níquel que vinha embarcado a bordo da Bidart. O povo crédulo, cuidou que eram as almas dos marinheiros mortos que ali haviam ficado sem sepultura. Os náufragos sobreviventes embarcaram então para Lisboa, a bordo do paquete Funchal, tendo escalado Angra do Heroísmo a 15 de Junho de 1915.

No meio de todo este azar, o mais azarado acabou por ser o imediato, que acabou também por falecer. Este, que estava para se casar e que iria assumir o comando da Bidart, já tinha naufragado anteriormente nos Açores quando, simples marinheiro a bordo da galera francesa Caroline, encalhou na vila da Madalena, ilha do Pico, a 3 de Setembro de 1901.

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publicado por picodavigia2 às 08:02





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