PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A PROMESSA
A casa do Cambado explodiu de alegria e contentamento quando, através duma carta vinda da América, recebeu a notícia de que o mano Augusto, no próximo Verão, vinha de visita à Fajã, com a intenção de pagar uma promessa feita há muitos anos: um jantar de pão e carne, a toda a freguesia, em louvor do Senhor Espírito Santo. Apalavrasse o mano, quanto antes, duas reses ou que ele próprio as criasse que depois, quando chegasse, lhas havia de pagar. Queria-as de boa raça, bem gordas e anafadas. E mais não dizia!
Ufanou-se o Cambado, regozijou-se a mulher e exultaram de contentamento os filhos. Mas quem mais se inebriou de regozijo foi a filha mais velha, a Verónica que, a partir desse dia não deixou de sonhar com a promessa do tio Augusto. É verdade que mal se lembrava dele, que a carta ocultava todos os outros pormenores, relativos quer à festa, quer à estadia deles e a tudo o mais. Mas, caramba! Ele não tinha filhas, apenas dois rapazes que, ao que se sabia ainda não namoravam e, do lado do pai, o parente mais chegado, não havia nenhuma outra rapariga com idade apropriada para levar a corroa no cortejo. Havia de ser ela. Olaré, se havia!
Todos os anos, pelas festas do Espírito Santo, eram as meninas mais ricas da freguesia, as filhas dos senhores mais importantes, que levavam a coroa, durante os cortejos. Ela desfazia-se em tristezas e acabrunhava-se em mágoas. Tantas vezes sonhara que, um dia a haviam de a convidar. Mas nada! Chegava-se ao dia da festa e lá ia a mesma do ano anterior ou uma outra das meninas mais finas e chiques da freguesia, trajando vestido de tule branco, em tudo semelhante aos das noivas, capa de veludo avermelhado, diademas de prata e brilhantes na cabeça, transportando, entre o quadro das varas, ao som dulcificante da Filarmónica, intercalado com o solene cantar dos foliões e o repicar dos sinos, o símbolo do Paráclito nas ilhas – a coroa. Desfilavam como princesas, ostentavam-se como rainhas e sorriam como fadas, numa sobranceria vaidosa, arrogante e presumida. E ela, ali postada na beira do caminho, a vê-las passar, acabrunhada, triste, sentindo-se até como que vilipendiada mas cuidando, em sonhos, que um dia havia de ser ela a pisar aquela passadeira de encanto, de fascínio e de glória. Agora era a promessa do tio a espevitar-lhe a flama da esperança. Ela postava-se como candidata primeira, única e natural para transportar a coroa e o ceptro da glorificação.
Os meses seguintes, que mediaram a chegada do tio foram de um sonhar permanente e de um arquitectar constante de projectos, de imagens e de fantasias. O vestido, a capa, o diadema, tudo havia de ser trazido da América e haviam de ultrapassar em brilho, em grandiosidade, em fascinação e em riqueza todos os que ao longo dos anos haviam desfilado pela rua Direita, tanto no cortejo da Casa de Cima como, sobretudo, no da de Baixo. Ela seria, incontestavelmente, a mais bela “rainha” de sempre e as outras, sobretudo as que outrora haviam ocupado o trono da sublimidade, agora haviam de ser elas a postarem-se ao lado do caminho, roídas de inveja, apoucadas com a sua sumptuosidade, desfeitas com a sua fascinação, humilhadas com a imponência dos seus trajes e a renderem-se à indiscutível opulência da sua beleza.
Os meses deslizaram vagarosos e os dias decorreram lentos. Parecia que o tempo não passava e aquele dia nunca mais chegava. O pai, a mãe, ela e os irmãos haviam-se envolvido no arranjo e preparação da chegada de tão desejados visitantes. Os americanos haviam de ser muito bem recebidos. Para além das duas reses destinadas ao cumprimento da promessa, o Cambado comprou um bácoro e colocou-o à engorda, a mulher, a Júlia, pôs uma galinha de choco e criou uma ninhada de pintos e os filhos fartaram-se de sachar e cobrir inhames na Cabaceira e no Moledo Grosso. Mais perto da chegada, caiou-se a casa, deu-se um arranjo na retrete, compraram-se pratos e tijelas novos, uma celha de madeira para os banhos e uma cadeira de vimes, para a sala, onde o mano havia de gostar de se sentar, talvez a fumar o seu charuto. Na véspera da chegada, matou-se um carneiro, cozeu-se pão de trigo, deu-se uma barrela â casa duma ponta à outra e colocaram-se os melhores lençóis e as mais belas colchas nas camas em que os americanos haviam de dormir.
Finalmente chegou o dia do Carvalho. O Cambado e os dois filhos mais velhos, alta madrugada abalaram, a pé, para Santa Cruz. No regresso, a partir dos Terreiros, carregaram, malas e malotes e toda a bagagem que os americanos traziam. A Verónica e os mais novos foram esperá-los à Eira da Cuada enquanto a mãe ficou em casa a guisar o carneiro, a fritar a linguiça e os torremos e a cozer os inhames.
Ao chegar à Fajã, no entanto, o mano Augusto, alegando que não queria dar trabalho à cunhada, nem incómodos à família do irmão que muito prezava, informou que decidira hospedar-se, juntamente com a mulher e os filhos, em casa do compadre Honório. Que ali ficava mais à larga, que a casa era bem maior, que incomodava menos o irmão e a família e que há muito que o compadre os havia convidado para lá ficarem. Que o mano não lhe levasse a mal, mas não lhe passava pela cabeça fazer uma desfeita daquelas ao seu compadre e amigo, a quem já devia muitos favores.
E no dia do pagamento da promessa, durante o cortejo do Espírito Santo, foi a filha do compadre Honório que, a abarrotar de vaidade e arrogância, trajando um vestido de tule branco, capa de veludo vermelho e diadema de prata na cabeça, tudo trazido da América nas malas que o Cambado e os filhos haviam acarretado dos Terreiros até à Fajã, entre o quadro de varas e acompanhada do som da Filarmónica, do cantar dos foliões e do repicar dos sinos, transportou os inequívocos símbolos do Paráclito nas ilhas – a coroa e o ceptro.
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A MESA POSTA NO LARGO DA CANCELINHA
Antigamente e antes da construção da nova estrada entre o Porto da Fajã à Ribeira Grande, um dos caminhos mais importantes da Fajã Grande era o que ligava o cimo da Assomada aos Lavadouros. Dezenas e dezenas de pessoas, animais, corsões e alguns carros de bois por ali passavam diariamente, de manhã, ao meio dia, à tarde e até à noite, nas suas idas e vindas para as terras de cultivo do Descansadouro, para as hortas do Delgada, da Cabaceira e da Cancelinha, para as casas e festas da Cuada, para as terras de mato do Espigão, Vale Fundo e Desarraçado, para as terras de inhames da Lombega e do Moledo Grosso, para as relvas da Alagoinha e Lavadouros e até para os longínquos e pouco produtivos os currais do Curralinho e Portalinho, lá para os lados do Poço da Alagoinha. Um dos percursos mais curiosos deste longo e importante caminho era o que ficava entre o Largo de Santo António, no cruzamento que dava para a Cuada, e o início da Ladeira do Espigão, onde o caminho também se bifurcava para os lados do Desarraçado e do Vale Fundo. Era precisamente neste troço daquele caminho, logo acima da ladeira da Cabaceira e depois da canada que dava para a Cabaceira de Cima, que ficava o celebérrimo largo da Cancelinha, onde também desembocava uma estreita e sinuosa canada vinda dos lados do Pocestinho e do Pico Agudo.
O largo da Cancelinha impunha-se e destacava-se, por um lado, pelo seu excessivo tamanho e exagerada largura no contexto de um caminho onde pouco mais cabia do que uma junta de bois e, por outro, por uma lenda a que estava ligada à sua existência. Na realidade era um largo enorme, coberto por árvores altíssimas que lhe davam uma sombra austera, esconsa e descomunal. Não ficasse por ali uma terra do Guarda Furtado, ou seja aquelas que tinham incensos graúdos, faias enormes e criptomérias altíssimas dado que a lenha nunca era cortada pois o dono dela não precisava como não precisava de incensos para o gado e os seus procuradores não o podiam fazer. Esse arvoredo ao redor do largo dava-lhe um aspecto assombroso, taciturno, sinistro, tétrico e nefasto. Talvez daí ter sido criada uma lenda segundo a qual quem por ali passasse ao lusco-fusco via uma mesa posta com toda a espécie de comidaem cima. Noentanto ninguém tentava aproximar-se dela pois à medida que o fazia a mesa ia-se afastando sem que quem quer que fosse a agarrasse ou dela retirasse qualquer vitualha das muitas existentes sobre a mesma.
Passei lá muitas vezes de madrugada, à noite, acompanhado e por vezes sozinho mas na realidade nunca vi a tal mesa, nem posta nem por pôr. Não porque ela lá não estivesse, ou melhor, lá não aparecesse, mas porque eu ao passar no largo quando sozinho, ao ir levar as vacas aos Lavadouros, ou a ir buscá-las para o palheiro, cheio de medo, fechava os olhos bem fechadas e largava em tão grande carreira como em nenhum outro sítio por onde habitualmente passava. Como conhecia o caminho de cor e salteado safava-me sempre muito bem, não esbarrando nas paredes nem caindo em algum barranco.
Mas confesso que quando se abriu a nova estrada que desviou o trajecto para os Lavadouros do Largo da Cancelinha foi um grande alívio para mim.
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DIÁLOGO SIMPLES
- Gostas de andar na escola?
- Gosto sim senhor, gosto muito e venho, sempre muito bem-disposta, para a escola.
- De que gostas mais, na escola?
- Dos professores de Português, Matemática e Área Projecto.
- Porque gostas desses professores?
- Tenho que gostar deles, se não eles não gostam de mim.
- E dos teus colegas, gostas de todos?
- Sim, gosto de todos?
- E o que gostas mais de fazer com eles?
- Brincar, gosto de brincar com eles todos
- Mas não há assim alguém com quem gostes mais de brincar?
- Brinco com a Raquel e a Diana.
- E com os meninos?
- Só com o meu irmão.
- Então o teu irmão é teu amigo?
- É, muito.
- Se tu fosses professora, que disciplina gostarias de ensinar?
- Português.
- Por quê?
- Porque acho que Português é mais… Português dá para fazer coisas mais divertidas.
- O quê? A aula de Português é divertida para ti?
- Então aquele jogo de eu ler mais o Emanuel e a Diana não foi fixe?!
- Claro que foi! E quando fores grande, o que queres, realmente, ser.
- Bombeira da ambulância.
- Bombeira para quê?
- Para apagar os fogos.
- Então achas que os incêndios são maus?
- São, são maus, muito maus.
- E trabalhas em casa, ajudas a arrumar a casa?
- Ajudo a minha tia a lavar a loiça. A sua filha também não o ajuda a lavar a loiça?
- Claro que ajuda. Mas tu conheces a minha filha?
- Claro, aquela menina que nos vem ajudar nas aulas.
- Mas aquela menina que nos vem ajudar nas aulas não é minha filha, é uma senhora professora.
- Mas ela é muito parecida consigo.
- Achas? Mas não é minha filha. E estudar, estudas?
- Não, porque não tenho livros.
- Ui! Não tens livros?
- Não. Você podia arranjar-me um livro de Português. Agora apetece-me ter um.
- Mas a tua tia, no início do ano, não te comprou nenhum livro?
- Não. O setor disse que não era preciso porque eu tenho muitas dificuldades em aprender.
- Então como é que tu estudas sem livros?
- Eu não estudo porque tenho muitas dificuldades em aprender. O Emanuel, o meu irmão, é que tem sorte.
- Tem sorte por quê?
- Pois é. Ele foi num passeio ao Porto e eu não.
- Ele foi ao Porto? Com quem?
- Com a minha tia. E faltou às aulas. Já disse ao Director de Turma.
- E achas bem faltar às aulas?
- Faltar por faltar não. Ele faltou porque tinha que ir. Você escreve muito. Dava para ser escritor.
- Escrevo o que me estás a dizer. E tu, gostas de escrever?
- Gosto.
- Já escreveste alguma história?
- Ainda não li nenhuma história linda, de que gostasse.
- E escrever? Já escreveste alguma?
- Ainda não. Na 1ª classe escrevia muito. Isto é uma história?
- É! Ora lê o título.
- Na-drei-a e a bo-ta dos sete an-da-res.
- Sim senhora! Leste bem. Gostavas de ler essa história?
- Gostava! Gosto de ler histórias.
- Mas agora não vais ler. Vamos acabar esta conversa.
- Oh! Setor deixe-me ler. Quero ler esta historinha…
- Queres ler a história ou conversar comigo?
- Eu leio isto rápido.
- Mas não gostas de conversar?
- Gosto.
- Sobre o quê?
- Sobre a vida.
- Gostas de saber a vida dos outros?
- Gosto.
- Então o que gostavas de saber sobre mim?
- Se você já foi carteiro.
- Eu carteiro? Não. Por que me perguntas isso? Tenho cara de carteiro?
- É que os carteiros trazem coisas.
- E eu trouxe-te alguma coisa?
- No Natal quero que você seja o Pai Natal.
- Vamos lá a ver se consigo. Gostas do Natal.
- Gosto.
- O que se come de especial na ceia de Natal?
- Ai! Ai! Batatas cozidas. Ai! Ai! Delícia!
- E doces?
- Chocolates.
- E rabanadas?
- Também.
- E prendas. Sabes que prendas vais ter, este Natal?
- Vou ter uma boneca.
- Uma boneca! Que bom! Gostas de brincar com bonecas?
- Gosto, às vezes.
- E de viver em Paredes? Gostas de viver em Paredes?
- Gosto.
- Mas antes vivias no Porto?
- Vivia.
- Ainda te lembras com quem vivias?
- Sim. Com a minha mãe.
- E onde está a tua mãe?
- Está no Porto. Agora quero é ler.
- Vais ler logo. Agora vamos conversar mais um pouco. Disseste que gostavas de conversar.
- E gosto Mas tem aqui histórias lindas.
- Queres ir para a aula ou ficar aqui a conversar?
- Quero conversar.
- Então diz-me lá: vês Televisão?
- Vejo.
- Que gostas de ver?
- “Morangos com Açúcar”.
- E Desenhos Animados? Não gostas?
- Gosto.
- E notícias?
- Gosto. As notícias são o mais importante.
- Por quê?
- Porque traz notícias para nós e pronto.
- Gostavas de ir a um programa de Televisão?
- Gostava.
- Com quem irias falar?
- Com o Jorge Gabriel e com aquele o Rocha, o Luís Rocha.
- Se lá fosses o que ias dizer?
- Dizia que queria voltar para casa.
- Para qual?
- Para a do Porto.
- Para a da tua mãe?
- Sim, mas que me dessem condições. Aquilo não tem condições.
- E a tua mãe mora lá, sem condições, sozinha?
- Mora. O meu vizinho já pôs a casa a arder.
- Então ele é louco?
- É, pôs a casa a arder.
- Mas agora, em Paredes, tens uma casa, onde morar.
- Moro com a minha tia. Fico por aqui, professor. Já estou cansada.