Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



O MURMÚRIO DOS BÚZIOS

Quarta-feira, 04.09.13

Ele vivia junto ao mar, numa casa simples, pequenina ornada com flores de algas e perfumada com os afagos oscilantes das marés. Mas se quisermos ser mais precisos, afinal, não era ele que morava junto ao mar. Era o mar que morava junto dele, que cercava o seu quotidiano duma maresia persistente, decalcada em ondas baloiçantes, a perderem-se num vaivém irrequieto, umas vezes embravecido outras ternurento, mas sempre a trazer-lhe uma salubridade adocicada, uma brisa inebriante, um resfolgo de liberdade.

Desde pequenino que a avó lhe segredava: o mar, para além de maior e de mais inquietante, também é mais rico do que a terra. Mas não eram os tesouros dos navios encalhados, nem o ouro das caravelas perdidas, nem os cofres dos piratas naufragados, nem sequer o pescado fluente, quotidiano, despejado sobre o cais, a ressuscitar o reboliço da lota. Por nada disso ansiava. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Lembrava-se muito bem de ter lido no livro da quarta classe um poema que dizia: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Era esse mar salgado, ali presente, paternal e amigo, que lhe atirava respingos de salmoura, o cobria de espuma e o transformava num escudo translúcido que o protegia de nevoeiros e caligens. Belo poema, uma espécie de cântico dos cânticos, um elogia da maresia, talvez o hino daquele torrão azulado, enorme, que, por vezes e em sonhos, lhe parecia tornar o nundo infinito. Mas do mar não queria nem o infinito, nem o azul, nem sequer as lágrimas dos seus heróis, transformadas em cristais de sal. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Terminava assim aquele poema. Não sabia o nome do poeta que o escrevera, mas seria, decerto, um poeta grande, autor de muitos outros poemas, porque este era, deveras, belo, mesmo sublime. E um poeta nunca faz só um poema ao mar. E sobre o mar não faz versos apenas um poeta. Talvez até muitos outros poetas tivessem trovado sobre o mar. Quando morrer quero levar comigo um pedacinho do mar, para recuperar o tempo que vivi sem ele. Mas também do mar não queria os poemas, embora se deleitasse a apreciar alguns deles. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Até nas madrugadas sombrias e enevoadas escapulia para junto do mar. Era um tormento, uma angústia, uma consumição, ver aquele enorme lençol de água, sem Sol, sem uma réstia de luminosidade que, ao menos, tivesse ficado esquecida do dia anterior, a aureolar-se para aos poucos se ir transformando num clarão, que trouxesse um respirar mais folgado às rochas, aos baixios, aos escolhos e até ao sargaço que, arrancado das profundezas pela força das correntes, flutuava suavemente sobre as águas. Mas não queria as rochas mesmo que o Sol as clarificasse em cada manhã, nem queria baixios, nem escolhos, nem sequer o sargaço, mesmo já postado em terra e a secar, no estio. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Depois eram as ondas, umas vezes pequeninas, lisas, sonolentas, outras enormes, gigantescas, altivas, bravias, mas sempre a irem e a virem, num vaivém ritmado, umas vezes mais suave e embelecido outras, agreste, toldado e raivoso, a saltarem por entre os esconderijos das enseadas, repletos de sombras e de mistérios ou a enrolarem-se nos pedestais das baixas e dos ilhéus, cravejados de lapas e assolados por caranguejos. Mas do mar também não queria as ondas, por mais mansas e quietas que fossem, nem a arrogância ingénua dos ilhéus ou negrume basáltico dos baixios. Do mar ele queria, apenas, os búzios.

Estranha obsessão, esta, a dele, de nada mais querer do mar, para além dos búzios. E sabem por que do mar ele, apenas, queria os búzios? Simplesmente para os colocar junto ao ouvido e ali ficar, um minuto que fosse, a ouvir o suave sussurrar do oceano. É que dentro dos meandros cavernosos e enroscados das suas conhas, o mar nunca é revolto, não há tempestades nem bravezas e as ondas, ali, ouvem-se sempre, suaves e doces, como se fosse em eco, porque balançam sempre, num vaivém ternurento e meigo, semelhante, talvez mesmo igual, àquele com que as mães embalam os seus filhos.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 16:20

MINHA AVÓ E A LADAINHA DE NOSSA SENHORA

Quarta-feira, 04.09.13

Em casa dos meus avós maternos todos os dias, à noite, se rezava o terço. Era um costume ancestral que, pelos vistos, já vinha dos tempos de meus bisavós, trisavós, tetravós e por aí atrás. Por tradição, quem presidia às orações era o chefe de família ou cabeça de casal, ou seja, o meu avô. Porém, após a sua morte passou minha avó a fazê-lo, na sua qualidade de chefe de família substituta. Ao terço seguia-se a Salve Rainha e logo, depois desta, a Ladainha de Nossa Senhora. Minha avó rezava-a de cor, em grego e em latim! No entanto, se eventualmente fosse interrompida a meio ou em qualquer parte da mesma teria necessariamente que voltar ao início, recitando-a de novo do princípio ao fim e de um jacto. Além disso proferia as invocações, umas atrás das outras, com tal rapidez que quase nem tempo dava para o “ora pró nóbis” com que devíamos responder a cada uma.

O mais interessante e curioso, no entanto, era a maneira como pronunciava cada invocação à Virgem, em latim.

Minha avó iniciava a Ladainha em grego com o tradicional Kyrie eleison (Κύριε ἐλέiησον). Porém como treinava todos os dias durante a missa e em voz baixa, ouvindo o senhor padre rezá-lo antes do Gloria, nestas frases não se saía muito mal. A seguir vinha a invocação da Santíssima Trindade e os “Sancta” da Virgem Maria, onde também se safava razoavelmente bem. Nos “Mater” e nos “Virgo” porém, a coisa já fiava doutra maneira e as dificuldades já eram muito grandes: - “Maté devinhagrá, Maté por isso, Maté criató,  Vigo veneran, Vigo predican”… Mas a partir daqui é que eram elas: - “Se dés sapien, Casanosta lati, Vazo spritual, Vazo onorá”... e assim sucessivamente.  De seguida, chegava às “Torres”, o ponto alto da declamação. Era o descalabro total! “Turres da vida, Turre zé burro, Domuzau, Fedisá, Zalu zinfimó, Refujo pecató, Consolá tusaflitó”. Finalmente as “regina”, terminando assim a Ladainha em grande com a invocação final “Regina stóruó.”

Uma coisa é certa, porém. Minha avó recitava a ladainha com uma concentração impressionante, com uma atenção excessiva e com uma devoção inaudita. E ai de nós, se a distraíssemos, se nos ríssemos ou se brincássemos durante as rezas, as quais fazia geralmente, com uma varinha na mão, embora creio que fosse com o primordial objectivo de enxotar as moscas, que ali, em casa, não eram poucas… Mas verdade é com a varinha na mão nos obrigava a estar mais atentos e concentrados nas orações, evitando, brincadeiras, graçolas e risadas.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 16:18

AS FAJÃS DAS FLORES

Quarta-feira, 04.09.13

(TEXTO DE CAETANO VALADÃO SERPA)

A maior superfície do que é conhecido nos Açores por fajãs encontra-se na quarta mais pequena ilha do Arquipélago, as Flores. Plana, aberta ao mar e no enquadramento de longa cordilheira arborizada e altiva, hoje quase inacessível a não ser pela estrada principal, bem asfaltada e mantida. Este Verão, ao seu arvoredo verde tenro de numerosas tonalidades juntava-se a distinção das ‘canarrocas’ amarelas, aromáticas e de seiva açucarada, em forma das rocas tradicionais de fiar lã, sustentadas por robusto caule e longas folhas em forma de mãos estendidas. A dimensão e feitio da sua flor em cacho também se pode comparar ao ananás maduro. Na planície, o incenso é rei e a ‘erva santa’ e a hortênsia azul e rosada, damas de honra, que o acompanham por toda a parte. Nalgumas áreas das fajãs, junto à rocha, o mato alto formou bosques quase impenetráveis de atracção mística e reclusão silenciosa que segredam paz e tranquilidade.

A rocha nos pontos mais elevados atinge quase os quinhentos metros de altitude, de onde umas numerosas cascadas saltam para a planície em caprichoso percurso, galgando penedos, circundando morros e desaparecendo em grotas profundas para reaparecerem na planície a caminho do mar. Em dias de pluviosidade tornam-se autênticas cataratas, aumentando de volume e até tornando-se perigosas por não reconhecerem limites. De vez em quando, em impulsos de fúria, varrem as margens até aos ossos. Outra vezes, até brotam das entranhas da terra, a meio da rocha, como válvulas de escape das Lagoas que se instalaram no coração da ilha. Uma delas, a Ribeira Grande, o único caudal de água, nos Açores, que mereceria o cognome de rio, muda de percurso a bel-prazer, arrastando e deslocando tudo por onde passa para se espraiar em largo estuário ao lado da Fajãzinha, fazendo ainda rodar a mó de pedra do único moinho de água que tritura o grão de milho para as papas grossas tradicionais. Com açúcar ou simplesmente imersas no leite gostoso das vacas florenses, são uma delícia para uma ceia tradicional, sem pretensões, apenas de recordação de paladares, na doce memória de tempos que já lá vão.

Outra, a Ribeira do Ferreiro, talvez a mais misteriosa, depois de descer a rocha em cascata grandiosa esconde-se por entre o matagal, a maior parte do seu percurso, para reaparecer pouco antes de se irmanar no Atlântico.

Por sua vez a Ribeira das Casas, a mais admirada e vaidosa, expõe-se desfraldada no alto da montanha, a dar à luz o seu caudal, onde a rocha se abra em quilha para a deixar passar e toda gente a ver, descendo quase em salto único, com tempo e beleza acrobática, pavoneando-se ao sol em gotas cristalinas, as mais puras para espelhar o arco-íris. Quando bate no chão das fajãs, fá-lo numa piscina natural que a voz popular baptizou por Poço do Bacalhau. É ponto de atracção e conveniência para um banho na graça original, sem olhos de curiosidade e na privacidade do manto virgem da natureza acolhedora. Aqui, um chuveiro magnânimo nas águas regeneradoras desta última parcela de terra do velho continente europeu, que só a meados do século XV foi descoberta e povoada, mesmo com sabor histórico das fantasias medievais das ‘fontes de vida e juventude’, como poderiam ter sido narradas por Ponce de Leon se por lá tivesse tomado a rota das Américas.

A seguir as Grotas do Vime, que nascem em plena rocha, e a Ribeira do Cão, talvez a mais disciplinada, galga a rocha em dois saltos gigantescos, os mais estrondosos e espectaculares de todas elas, sem pisar limites proibidos e desvios ousados, em perfeito controlo e precisão. Não se sabe bem como coordena a chegada à meta final, o acesso é difícil, mas o mistério ainda lhe concede mais graça e intriga. Entre ela e as Grotas da Lombinha a rocha cai mesmo a pique sobre a estrada, em curta distância do mar, não permitindo a ninguém por lá passar indiferente. As almas mais devotas e tímidas, por respeito e louvor, fazem-no a rezar!

Por fim, a Ribeira de José Fraga, é a mais constante e persistente quanto ao volume de água e à disponibilidade de tempo. Sem pressa de atravessar o povoado, dá de beber aos animais e embala os humanos em cantares de sonho e fantasia. O Grotão da Ponta e o Grotão do Areal, a maior parte do Verão repousam à espera das restantes estações para lavar o leito, refrescar as margens e limpar a vegetação que cresceu à procura da luz solar. Os seus leitos são profundos, mesmo cavernosos, tornando a queda das águas as mais tumultuosas e sonoras das fajãs.

Assim, em uníssono, a voz das águas doces une-se às do mar salgado e, em cor com as aves, cantam todo o dia ‘cantigas de amor e bem-dizer’, concedendo a felicidade a quem tem ouvidos para escutar as baladas da natureza mãe. Não fossem as ribeiras das fajãs e a sua rocha em cordilheira, longa e alta, arborizada e florida, que lhes permite saltar e dançar, a alma dupla das fajãs, designadas por Fajãzinha, Cuada, Fajã Grande e Ponta, esta sinfonia não seria completa.

Afinal, a ilha das Flores, não só navega em pleno oceano, quase equidistante da Europa e da Terra Nova, como também é profusamente irrigada e banhada por dezenas de ribeiras, abundantes riachos, numerosas nascentes e várias lagoas, tornando-a, praticamente, em estado permanente de incubação. A essência da ilha, mais que em qualquer outra, é a água, tudo o mais são dádivas da generosidade natural e migalhas da beleza extraordinária da criação. Um curto circuito para o transcendental!

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 16:13





mais sobre mim

foto do autor


pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Setembro 2013

D S T Q Q S S
1234567
891011121314
15161718192021
22232425262728
2930